Joanna
Sexta-feira, 25 de junho de 2021
Filadélfia
— Joanna — diz Sean Prior —, o seu cérebro é uma catedral gótica.
Joanna Wasserman sustém o olhar de Sean Prior e disfarça a preocupação. A sério? Uma catedral? Gótica? Gótica flamejante, pelo menos, pensa a advogada. Porque não o Taj Mahal, as pirâmides, ou o Caesars Palace em Las Vegas? Desconcertada, por um instante, arranja, porém, uma resposta.
— Sempre é melhor do que um cérebro de homem.
— Desculpe?
— Simone de Beauvoir. O pai estava sempre a dizer-lhe que ela tinha «um cérebro de homem».
O diretor executivo da Valdeo solta um risinho com ar cúmplice, como se fosse o melhor amigo da Simone, do pai e do cão. Joanna ri-se para dentro. Na melhor das hipóteses, Prior tem uma vaga ideia de quem é a tal Simone, mas o dono de um gigante da indústria farmacêutica que pesa trinta mil milhões de dólares não tem o direito de apresentar a mínima falha. Uma catedral gótica… que tristeza.
Joanna deslocou-se à sede da Valdeo, em Filadélfia, com um jovem advogado estagiário que acompanha os processos e, já agora, os carrega. Há sete anos que a empresa farmacêutica é cliente da firma Denton & Lovell, na sua maioria assuntos fiscais e Ofertas Públicas de Aquisição, há três meses que ela ali trabalha e há dois meses que Prior é o seu interlocutor direto. Desde o primeiro encontro, Prior perguntou-lhe, com aquele fraseado lento do Texas que ele cultiva e aquele sorriso de grande rapinante que não tem predador à sua altura:
— Diga-me uma coisa, senhora advogada, sabe porque é que a escolhi de entre aquela cambada de imbecis da Denton & Lovell?
— Deixe-me adivinhar, doutor Prior. Talvez porque fui a melhor aluna do meu curso em Stanford, sem dúvida porque sou uma mulher jovem, e de certeza absoluta porque sou negra. E também porque ganho todos os processos contra os velhos brancos com quem o senhor andou em Harvard.
Prior desatou a rir.
— Sim, senhora advogada, e porque é a única pessoa suficientemente ousada para me dar uma resposta dessas.
— E eu, doutor Prior, só o aceitei como cliente porque o senhor consegue suportar-me.
Como a última palavra tinha de ser sempre dele, Prior acrescentara:
— Mas não se esqueça de que eu também saí de Carnegie Mellon.
Empatados. Desde esse dia, Joanna Wasserman e Sean Prior fingem que são os melhores amigos à face da Terra. Que falam de igual para igual. Prior faz ponto de honra nisso, é o seu momento de diversidade social e racial muito relativa, em que o herdeiro multimilionário se orgulha, se regozija até, de saber conversar, sem mostrar o mínimo desdém, com uma pretinha sobredotada de Houston, uma bolseira merecedora da affirmative action, filha de um eletricista e de uma costureira, ele mandou investigá-la.
Nas suas conversas, apesar de tudo o que os separa — trinta e três anos, dois mil milhões de dólares em stock options e uma cintilante dentadura postiça —, abusam ambos dos nomes próprios, o que confere ao diálogo um toque sofisticado de hipocrisia venenosa. Se fossem latinos, tratar-se-iam por tu. Na qualidade de burguês que se declara amigo do seu jardineiro, Prior convenceu-se daquela ficção de amizade, mas Joanna não se deixa enganar. Discerne no rito de Prior aquele sentimento indizível do Sul que ele carrega em si, os sinais e nuances simbólicos que impregnam todas as relações raciais, reconhece a postura espontânea que autoriza uma senhora branca e rica, de cabelos muito bem penteados, a oferecer ao seu motorista negro um sorriso radioso, um sorriso de afetação esmagadora em que se distingue a sua certeza imperiosa na inferioridade natural daquele neto de escravo, o sorriso envenenado que não mudou um milímetro desde E Tudo o Vento Levou e que, ao longo de toda a sua infância, Joanna viu desenhar-se nos rostos empoados das clientes brancas da sua mãe costureira.
Um dia — o século xx terminava —, à saída do liceu, quando a pequena Joanna esperava o autocarro escolar, uma limusina preta parara diante dela, o vidro fumado de trás abrira-se e uma colega de turma oferecera-lhe boleia, com um sorriso que denotava a sua alegria simples de passar mais uns minutos com Joanna.
— Sim, Joanna — acrescentara a mãe dela —, entra, fazemos um pequeno desvio para te levar a casa, não custa nada.
«Não custa nada.» Joanna percebera: a mãe contrariada cedera à insistência da filha. E a menina entrara no grande automóvel alemão e sentara-se no banco de trás com a amiga. A senhora ao volante quis mostrar que era educada, quis fazer conversa:
— Então, Joanna, o que é que pretendes fazer na vida? Não queres ser costureira como a tua mãe, pois não?
Joanna não respondera. Assim que chegara a casa, lançara-se nos braços da mãe, de olhos molhados, abraçara-a com força e, depois, pegara nos cadernos da escola. A arrogância de uma frase acabava de dar origem à filha mais grata e estudiosa do mundo.
Vinte anos mais tarde, Joanna sabe de onde vem e para onde vai. Sabe, acima de tudo, que no processo do heptacloro, em que muitas empregadas são mulheres, quase todas de cor, uma advogada negra pugnaz como ela vai fazer a diferença e refrear a agressividade dos opositores. Pelo menos, Prior está a contar com isso. Joanna até desconfia de que ele queria tanto que ela fosse sua advogada, que pressionou a D&L a recrutá-la, apesar das suas pretensões salariais, que ela esperara que fossem dissuasoras; entregaram-lhe imediatamente um cliente e apenas um: a Valdeo. Melhor ainda, a firma, coisa raríssima, fê-la ascender diretamente ao estatuto de partner.
Os janelões do gabinete de Prior, no último andar de um edifício alto dos anos 1930, dão para o rio Delaware. Na presença de uma visita, Prior põe-se sempre a andar de um lado para o outro, é mais forte do que ele, com uma postura satisfeita de proprietário, fingindo-se absorto na vista sobre o rio, de braços cruzados e queixo erguido à Mussolini. A advogada concede-lhe sempre esses longos segundos de pose supostamente meditativa, ainda por cima são dois da firma de advocacia ali na reunião, portanto cada minuto é cobrado a cem dólares. Um dia, ela chamara-lhe a atenção para isso. Prior arrancara da memória uma frase maravilhosamente cínica: se o dinheiro não fosse tão sobrestimado, dar-lhe-íamos menos valor… A fórmula não é sua, mas Prior adora citações. Num mundo de gestores em que a cultura literária é incongruente, ele fez dela um potente instrumento de dominação simbólica. E, quando surgiu a ameaça de um processo-crime por causa do heptacloro, o inseticida lançado sem que todos os testes fossem validados, quando o conselho de administração deu sinais de ansiedade, Prior pulverizou, com mestria, o princípio da precaução: «Meus caros colegas, lembro-me sempre do belíssimo poema de Ralph Waldo Emerson, que termina assim: “Não vás aonde o caminho te leva. Vai antes por onde ainda não existe caminho e deixa uma marca.” Portanto, sim, na luta sem fim para alimentar a humanidade, nós teremos deixado uma marca.»
O heptacloro… Se Joanna está naquele gabinete, é por causa dessa molécula ativa que impede determinados insetos de evoluir do estado larvar. Foi nos anos 2000 que a Valdeo a sintetizou, a patente tornou-se, entretanto, do domínio público e agora é produzida também por outras empresas. Mas a molécula é, segundo os estudos, altamente cancerígena, mesmo em doses baixas, e é um desregulador endócrino. Agora que a firma Austin Baker lançou uma ação judicial coletiva, a Valdeo arrisca-se a ter de desembolsar centenas de milhões.
— Falemos do nosso processo, se não se importa, Sean. Com sessenta e cinco doentes a acusarem a Valdeo de imprecaução, isto pode sair-nos muito caro.
Joanna gosta muito da palavra «imprecaução», que pressupõe a ausência de intencionalidade. Também não desgosta daquele «nós» que mostra a que ponto a sua firma assume como seus os interesses do cliente. Prossegue:
— Diga-me uma coisa, Sean: existe o risco de a Austin Baker apresentar provas de que a Valdeo conhecia o perigo da molécula e o escondeu de todas as pessoas que a manuseavam?
— Não vejo como é que isso seria possível.
— Se lhe fizerem uma pergunta desse género no julgamento, responda tudo menos: «Não vejo como é que isso seria possível.» A pergunta feita como eu a formulei é perversa e eu protestarei. Comece por repetir que a molécula é inofensiva.
— É claro que é. Os testes terapêuticos que fizemos na altura contradizem os estudos independentes apresentados pela Austin Baker.
— Perfeito. Repita-o, de qualquer maneira. Será a palavra de uns especialistas contra a de outros especialistas, Sean. O nosso problema é o vosso antigo engenheiro, Francis Goldhagen. Segundo ele, a Valdeo decidiu ignorar as análises que ele fez e que provavam a nocividade do heptacloro.
— Tínhamos reservas acerca do protocolo dele e pusemos de parte as suas conclusões. Além disso, investigámo-lo e a vida privada do homem prova que ele é capaz de mentir, pelo menos à mulher.
A advogada suspira. Ganhar aquele processo com esse tipo de tática podia, a médio prazo, prejudicar a imagem da firma. Mas perdê-lo, a curto prazo, não é sequer opção.
— Não quero desacreditá-lo dessa maneira. A Valdeo não sairia com boa imagem e a justiça, também não.
— Sabe uma coisa, Joanna, a justiça é como o amor materno, toda a gente seria a favor… Já que falamos de família, Joanna, como vai a sua irmã?
Ele sabe, percebe a advogada imediatamente. É óbvio. Prior, que mandou investigar as suas falhas, Prior sabe que, em fevereiro passado, foi diagnosticada à sua irmã uma colangite esclerosante primária. Sabe também que uma jovem estudante como Ellen fez forçosamente um seguro de saúde clássico, constatando depois, assustada, que a apólice não cobria essa doença rara que é a CEP. Prior está convencido de que foi só por causa de Ellen que Joanna aceitou aquele cargo bem remunerado na Denton & Lovell. Sem o transplante de fígado que custou duzentos mil dólares, Ellen já estaria morta e, agora, será preciso desembolsar pelo menos cem mil todos os anos, cem mil dólares só para que ela viva, o quê, uns dez anos, quinze talvez, esperando que o seu corpo frágil resista à colangite, que se aguente até, quem sabe, se descobrir um tratamento. Prior está enganado. O salário pesou, claro que sim, mas Joanna desejara aquele cargo de topo, aquele monte de dinheiro do cimo do qual podia contemplar a extensão da sua vingança.
O diretor executivo continua, numa voz grave à qual incute toda a compunção de que é capaz:
— É terrível o que ela está a passar. Acredite que estou solidário convosco, do fundo do coração.
— Fico muito… sensibilizada.
— Se a sua irmã precisar do que quer que seja, Joanna, não há melhor ajuda que a nossa. Clínica, medicamentos, protocolos novos.
— Obrigada, Sean. Para já, é preciso que o organismo dela reaja bem ao transplante de fígado. Mas não me esquecerei da sua sugestão. Mas, por favor, voltemos à ação judicial coletiva contra o heptacloro. Vou pedir ao meu colega Spencer para lhe fazer um resumo da nossa linha de defesa.
Assim que o jovem advogado acaba a sua exposição, Sean indica, com um simples movimento do queixo, que aceita a estratégia de defesa da Denton & Lovell. Dá-lhes um aperto de mão, mostrando que, para ele, a reunião terminou. Quando Joanna se prepara para sair também do gabinete, ele retém-na.
— Joanna, gostava de a brindar com uma oportunidade. A de participar na nossa reunião do Dolder Club, amanhã à noite, sábado. Conhece o Dolder, não conhece?
Joanna faz que sim com a cabeça. Conhece o Dolder. Um clube muito fechado, mais confidencial ainda do que o seu modelo, o Bilderberg. Mas, enquanto o Bilderberg reúne, todos os anos, à porta fechada, uma centena de personalidades do mundo dos negócios e da política, o Dolder restringe-se a vinte patrões, a fina flor da «big pharma»: há cinquenta anos que ninguém sabe quando serão as reuniões, nem o que lá se diz. É possível que nelas se negocie o preço dos medicamentos, que nelas se façam pequenos acordos entre amigos, que nelas se decidam estratégias a longo prazo. São um prato cheio para os adeptos das teorias da conspiração. Prior sorri.
— Vou apresentá-la como minha conselheira pessoal, que é como a vejo. A reunião anual realiza-se, desta vez, nos Estados Unidos e, portanto, é a mim, americano, que cabe a honra de fazer o discurso inicial. O tema interessa-lhe, é «O fim da morte». Julius Braun, sim, o futuro prémio Nobel, apresentará os seus estudos sobre filogenética do embrião e, a seguir, haverá outros dois intervenientes e o que eles dirão vai deixá-la estupefacta. Desculpe avisá-la tão em cima da hora, mas conhece bem a paranoia do nosso setor. Será em Manhattan, na sala Van Gogh, no Hotel Surrey, no Upper East Side. Pode lá estar por volta das vinte horas?
Joanna procura a melhor maneira de lhe responder: Sim, é uma honra, Sean, mas avisou-me um bocado tarde e infelizmente eu não… Mas, instintivamente, pousa a mão na barriga, num gesto protetor, primitivo. Porque há uma coisa que Prior desconhece: Joanna está grávida.
Foi há exatamente sete semanas: entre os sashimis comidos em andamento e a reunião dos sócios da firma, ela fez o teste na casa de banho da Denton & Lovell. E, quando os dois tracinhos grená surgiram na vareta, Joanna sentiu o peito explodir de exultação.
O homem que Joanna ama é ilustrador de imprensa. No final de outubro do ano anterior, um líder neonazi apresentara queixa por ter considerado um dos desenhos injurioso, ela defendera o jornal na justiça e ganhara o processo inequivocamente em tribunal. Agora, «Keller vs Wasserman» faz jurisprudência: o facto de se escrever, num desenho ou noutra parte, que um supremacista branco carece de matéria cinzenta não é uma injúria, mas uma opinião, ou até um diagnóstico. Foi fácil. Nessa noite, Aby Wasserman convidara-a para jantar no Tomba’s, um restaurante demasiado caro para ele e, no fim da refeição, ante as evidências do coração, perguntara-lhe, balbuciando muito, o que desejava ela para os séculos vindouros. Contivera-se para não lhe dizer que nascera para a amar e seguir, embora estivesse convencido disso. Joanna também não tinha dúvidas. Ele oferecera-lhe uma caneta de tinta permanente, Toma, Joanna, é uma Waterman, o nome é parecido com o meu apelido alemão, hum… o meu apelido que eu gostava que usasses, mas, se quiseres, posso ficar com o teu. Joanna pegara na caneta, abrira-a e, na toalha de algodão branco, escrevera simplesmente Joanna Woods-Wasserman, evitando mostrar-se demasiado lacrimosa. O dono do restaurante deixara-os levar a toalha para casa.
Quiseram logo ter um filho e fizeram o necessário para o conseguir, com muita frequência, durante muito tempo e em inúmeros lugares. O médico fora categórico: foi depois de Joanna regressar da Europa, no início de março, naquele voo abominável em que ela decidira que, se sobrevivesse, se casaria com ele, e antes do casamento deles, no início de abril, que os seus gametas se tinham conhecido e decidido imediatamente fundir-se. Estavam profundamente gratos ao supremacismo branco. E, além disso, sugerira o judeu Aby, diminutivo de Abraham, se for rapaz, chamamos-lhe Adolf. Como segundo nome próprio, atenuara Joanna, rindo-se. E recriminara-se imediatamente por se sentir tão feliz, quando a irmã se preparava para viver uma lenta agonia. Mas uma felicidade de poucos gramas crescia dentro dela e invadia tudo.
Prior insiste.
— Joanna? O Dolder?
Amanhã à noite? Complicado: ela tencionava festejar o seu terceiro mês de gravidez com os pais… Por outro lado, encontrar-se com o diabo para dar um passo de dança com ele tinha o seu interesse.
A advogada não tem tempo de tomar uma decisão, porque um pesado telefone preto, uma antiguidade em baquelite, retine na secretária de Prior. Ele atende e irrita-se:
— Eu tinha dito para não ser incomodado… Está bem… Eu aviso-a.
Prior vira-se para Joanna, com um sorriso intrigado.
— Com certeza vai ficar espantada, Joanna, mas estão à sua espera do lado de lá desta porta. Dois agentes do FBI. Mas conto consigo amanhã, se eles a libertarem, claro.