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ANTONIO CARLOS JOBIM

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EDIÇÃO N° 20 – 12/11/1969

Há entre os editores e colaboradores d’O Pasquim inúmeras divergências em matéria de preferências artísticas. A única unanimidade reinante neste semanário – e mais do que isso, uma posição que assumimos – é a seguinte: Antonio Carlos Jobim é o maior compositor brasileiro. Por isso, nesta entrevista, não está somente aquilo que os jornalistas desejam saber de Tom, mas muita coisa que um admirador comum gostaria de ouvir do seu ídolo.

O PASQUIM – Fale do filme que você fez agora. O que é Corteguay?

TOM – Corteguay é o nome do país hipotético onde passa o filme, que foi dirigido por um inglês chamado Louis Gilbert. Trabalhei quatro meses, no filme, fazendo a música com o Eumir Deodato.

O PASQUIM – É a primeira música de filme que você faz ou não?

TOM – Não. Fiz mil filmes no Brasil. E fiz o Orfeu Negro, que, aliás, ganhou a Palma de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Uma produção franco-brasileira.

O PASQUIM – Mais franco ou mais brasileira?

TOM – Acho que saiu mais franco, não é?

O PASQUIM – Antes de fazer esse filme, você se recusou a fazer música para vários filmes americanos, não foi?

TOM – Foi, na Califórnia: Two For The Road, A Pantera Cor de Rosa, uns negócios assim que davam dinheiro, mas eram muito chatos de fazer.

O PASQUIM – E A Pantera Cor de Rosa foi um dos maiores sucessos de todos os tempos.

TOM – Mas eu acho que a gente só leva da vida a vida que a gente leva.

O PASQUIM – E por que você resolveu fazer esse filme, agora?

TOM – Eu estava nos Estados Unidos, vinha para o Brasil, e encontrei aquele inglês educado, Mineirão…

O PASQUIM – Dizendo uai também, é?

TOM – É. E pronunciava aqueles erres também. Disse: “Vamos fazer um filme” e coisa e tal. Passou. Depois encontrei com ele na Califórnia e ele disse: “Olha, é um filme importante, um filme de 14 milhões de dólares.” Eu esqueci, vim pro Brasil. Mas aí eu estava aqui em casa, vendo minhas coisinhas, tentando levar minha vidinha e tal, quando ele telefona e diz: “Está na hora, venha pra Inglaterra.” Aí eu fui. E de fato foi muito bom trabalhar lá, pude levar minha mulher e meus filhos, trabalhei com o Eumir Deodato, com os músicos ingleses e tudo. Foi ótimo. Eu estou com 42 anos e nunca tinha ido à Europa. Foi a primeira vez.

O PASQUIM – Esta entrevista está sendo feita no dia 30 de outubro de 1969, às 21 horas. Tom Jobim, você vai continuar a passar o verão inglês na Inglaterra e o verão brasileiro no Rio?

TOM – Se Deus quiser. Mas eu acho muito chato viajar. Na primeira vez que eu saí do Brasil, já tinha 36 anos. Saí empurrado com aquele pontapé no traseiro, do Vinicius e do Fernando Sabino. Foi pra ir àquele malfadado Carnegie Hall. Me diziam: você é burro, tem que ir. Mas eu não queria: estava naquela de minha terra tem palmeiras, pindorama é a coisa mais linda do mundo, estou de pijama listrado numa cadeira de vime, e adeus porque vocês estão numa civilização velha e superada. Mas eles insistiram e eu fui. Cheguei lá, todo mundo fez o Carnegie Hall e voltou pra cá, mas eu não, eu disse: “Agora, eu quero ver isso aqui, esse frio, essa gente esquisita” e tal. Fiquei lá uns sete meses.

O PASQUIM – Você fez um disco inteiro, agora, com o Sinatra, só com músicas suas.

TOM – Eu gravei o disco em março deste ano. Ia sair em abril, mas eu pedi ao Sinatra pra não soltar o disco porque eu pretendia botar umas músicas do disco no filme. Mas aconteceu que não foi nada disso, o filme era completamente diferente. Eu tinha lido o roteiro na Califórnia e pensava em usar o Sabiá…

O PASQUIM – O Sabiá ou a Sabiá?

TOM – A palavra é do gênero masculino pra nós: em algumas regiões do Brasil, como diz o Caldas Aulete, é do gênero feminino. Quando você diz a onça não quer dizer que a onça seja fêmea; com a sabiá é a mesma coisa. O que o Rubem Braga disse está certo: Sabiá é uma música visivelmente influenciada pela editora do mesmo nome.

O PASQUIM – Quando você foi lá dentro eu dei uma espiada na sua agenda em cima do piano e estava escrito: “telefonar Sinatra.” O que você vai falar com ele?

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TOM – Se vou, ainda não sei. Aqui no Brasil, é difícil telefonar para ele. Você pede à telefonista: “Quero uma ligação para Los Angeles, o número é tal, quero um person-to-person call.” Ela pergunta para quem, você diz Frank Sinatra, e a telefonista começa a rir e pensa que você está gozando ela. O Frank Sinatra troca de telefone a toda semana, com exceção de um dentro da gaveta que só ele e os filhos sabem o número. Porque o Frank Sinatra é um cara que está marcando encontro com ele mesmo pra 1979. Agora, o que eu queria falar com ele é o seguinte: o André Miami, diretor da Philips no Brasil, quer lançar o disco aqui e saber quando o Frank Sinatra vai soltar o disco. O disco está bom, com arranjos do Deodato, só música minha. Desta vez não tem nenhuma americana.

O PASQUIM – O que você fez musicalmente nesse disco?

TOM – A música que o brasileiro Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim pode fazer é a que eu faço aqui. Se eu fosse francês ou inglês faria música francesa ou inglesa. Agora, o Frank Sinatra é um velho cantor, está com 53 anos, é um grande intérprete e tudo o mais e, por isso, acho que vale a pena gravar com ele. É filho de italiano, fala espanhol, tem lá seus amigos mexicanos, Cantinflas e outros, entende o que a gente fala etc. Eu diria que Sinatra é um liberal condicionado.

O PASQUIM – Vocês se entendem fundamentalmente em inglês ou você mistura as línguas quando fala com ele?

TOM – Fundamentalmente em inglês. Porque inglês é aquela língua de índio, simples… Eu não tenho o menor problema de comunicação com o Sinatra.

O PASQUIM – Como é que você aprendeu inglês?

TOM – No pau, aos 36 anos. Claro, aprendi antes graças à minha mãe. Ela estava já querendo fazer o Colégio Brasileiro de Almeida, ali na Sadock de Sá, onde nós morávamos, quando apareceu uma holandesa sem emprego, a Miss Erika, que está ainda por aí. Aí minha mãe perguntou: “O que você sabe fazer?” Ela disse: “Eu sei inglês.” Então minha mãe botou a Miss Erika para ensinar inglês pra gente. Mas eu não prestava muita atenção, não queria saber daquilo. Mas tudo vai somando: aquele inglês do ginásio, os filmes americanos, Os Perigos de Paulina…

O PASQUIM – Você conhece um sujeito chamado José Ramos Tinhorão?

TOM – De nome. Ainda não li nada dele, não. Mas vou ter que ler.

O PASQUIM – Você sabe o que ele disse de você?

TOM – Me disseram que ele diz que Tom é nome americano, uma coisa assim. Não sei porque ele escreveu isso. Acontece que meu apelido de infância era Tom-tom. Minha irmã mais moça não sabia dizer Antonio Carlos e falava Tom-tom. O irmão da Miss Bahia, Ângela Vasconcelos, também tem esse apelido de Tom-tom, é outro Antonio. Esse som – Tom –, nenhum inglês ou americano diz isso. Transformar esse apelido numa coisa americana é obra de uma imaginação fértil. Ninguém, nos Estados Unidos, me conhece por Tom. Lá, Tom é apelido de Thomas. Eles me chamam de Antonio.

O PASQUIM – E ainda tem os Tonton Macoute, que não são americanos. Continua a falar do disco.

TOM – O Frank Sinatra raramente grava músicas novas. Uma vez ou outra, faz o seu sucesso e tal. Mas ele é um velho colecionador de standards, aquelas músicas já gravadas mil vezes. Eu disse isso a ele. Aí ele gravou, nesse disco, músicas como Água de Beber, Sabiá, músicas assim.

O PASQUIM – Continua a falar do Tinhorão.

TOM – Eu tenho a impressão que ele deve ser um homem honesto. Como sabeis, nós somos grandes puristas. Eu vivo ali, no piano, tocando Chopin. Vem Dico Wanderley e diz: por que a música brasileira parece tanto com Chopin? É o primeiro chorão da história, com aquela alma polonesa, aquela alma francesa também, é aquele veado herói porque foi herói, hein, mas aquele cara sensível que casa com George Sand, que fuma charuto, não é? Você pega um choro do Nazareth e está Chopin lá. Eu acho ótimo. Até Pixinguinha tem Chopin. Agora, durante o FIC* esteve aqui um garoto genial, chamado Jimmy Webb. Esse cara é fogo na jaca. Tem 23 anos, é filho de um pastor protestante e já fez todas as músicas bonitas do mundo. Já nasceu em inglês, não é? Não cometeram o erro que Carlos Drummond e Millôr Fernandes cometeram de nascer em português. É, porque Jaguar e eu não temos nada com isso, nós já escrevemos outra coisa, não é? Deixa eu falar uma coisa muito importante sobre o Jimmy Webb. Ele veio aqui trazido pelo Marcos Valle. Ele me fez, no jornal, uma acusação que eu adorei. Ele disse o seguinte: acho o Tom Jobim formidável, visivelmente influenciado pela música francesa. Disse a verdade. Eu nunca soube tocar jazz. Se tive influência séria foi essa. Mas o diabo é o nosso purismo…

O PASQUIM – E aquele negócio de harmonia jazzística. É conversa fiada, é?

TOM – Harmonia jazzística, tudo isso é conversa fiada. O negócio é o seguinte: o jazz bebeu em todas as fontes, avidamente. Debussy, Ravel, tudo. A oposição purista brasileira é um negócio subdesenvolvido; a posição deles lá é uma grande angular que vê tudo. Eles estão abertos a tudo: música havaiana, cubana, brasileira, tudo. Eles estão na de venha a nós; nós estamos na deixa pra lá. A gente faz uma batidinha de bossa nova; no dia que americanos copiam, você é imediatamente acusado de os americanos já terem feito aquela batida. A gente fica sempre por baixo, de subdesenvolvido, não é?

O PASQUIM – Você fez uma verdadeira revolução na música popular brasileira. Você foi, nisso, influenciado por algum compositor brasileiro?

TOM – Esse negócio de influência é um negócio muito sério. Porque, no meu tempo, não havia a facilidade de informação que há hoje. A gente tinha de procurar música de Villa-Lobos na Embaixada da França. Música que a gente podia arranjar era Beethoven, Bach, Brahms, Chopin, Debussy e Ravel. Só ia até aí. Pra ter uma música de Villa-Lobos tinha de pagar uma nota, porque ela era toda editada em Paris e não era editada aqui. Hoje é diferente: meu filho sabe mais do que eu, porque já nasceu num mundo de comunicações rápidas. Eu sou do tempo da 914: a primeira mulher branca que eu peguei, rendeu uma doença que levei dois anos para curar e quase morri. Da cura, não é? Quando você levava aquela injeção na veia, você tinha vontade de vomitar a alma; ou você morria do arsênico do bismuto e do mercúrio, ou a sífilis morria. É um negócio pra ver quem morre primeiro.

O PASQUIM – Como foi que você se sentiu sob a vaia quando ganhou o Galo de Ouro, com Sabiá?

TOM – Eu sou um homem sério. O Marzagão telefonou aqui pra casa e me pediu uma canção. Eu disse: “Eu não tenho nada novo, não estou compondo, estou quieto aqui no meu canto.” Aí ele disse: “Então você vai ser do júri pra prestigiar o Festival.” Eu disse: “Juiz eu não vou ser. Não vou julgar os meus colegas.” O segundo lugar fica chateado, o terceiro mais ainda, o quinto te dá um tiro e o último solta uma bomba atômica. Você vai ser do júri, por quê? Que negócio é esse? Então, pra não ser do júri, eu peguei uma música que não é de Festival, uma música toda complicada, cheia de modulações, nada popular, e botei lá pra me livrar. Estava certo que não chegaria à fase nacional e cheguei, apesar de meus amigos terem votado contra mim e meus inimigos terem votado a favor. Quando eu senti a barra do Festival e eu não quero ter um enfarte, eu pedi socorro ao Chico Buarque. Ele estava em Roma, coitadinho, e veio: bebeu lá, bebeu no avião, aí bebemos no Maracanãzinho… Aquela passarela do Maracanãzinho é muito curva, íngreme; o sapato de verniz nunca tinha sido usado, era aquele que escorrega mesmo. Então nós nos demos as mãos e tentamos chegar lá embaixo. Agora, interpretar a vaia ou os aplausos é um negócio muito difícil.

O PASQUIM – Quais as influências que você teve da música popular brasileira?

TOM – Eu tenho dois tios que tocavam violão. O repertório que ouvi deles, você deve conhecer, é aquele repertório básico da música popular brasileira: Pixinguinha, Noel Rosa, Ernesto Nazareth, Custódio Mesquita, tudo o mais. Desde garoto, meu contato com o público sempre foi difícil. Então, me dediquei a fazer arranjos: fiz arranjos pra Orlando Silva, Dalva de Oliveira etc. Nessa coisa, você aprende muito. Aí conheci o Vinicius e ele me levou pra Orfeu, dele, e eu tive oportunidade de conviver com os crioulos.

O PASQUIM – Quem foi que te apresentou ao Vinicius?

TOM – Lúcio Rangel. Era pra fazer o Orfeu. Sem favor nenhum, Lúcio Rangel é uma das pessoas mais musicais que eu já conheci na minha vida. Lúcio Rangel é um músico, um sujeito que sabe das coisas. Eu também trabalhei um ano e meio no Noite de Gala, com Sérgio Porto, como maestro do programa. Nunca ninguém me viu, porque eu não olhava para as caras e usava uma casaca. Minha vida no começo foi muito dura. Porque eu não tinha nenhuma habilidade, nem mesmo melódica. Eu ia ser arquiteto. E antes, eu ia ser engenheiro. Quando eu conheci minha mulher… pra casar no Brasil, a gente tem que ser doutor, não é? Aí eu ia ser engenheiro. Música era negócio de vadio, quem toca violão é vagabundo, aquela coisa. No começo, disseram que eu ia morrer de fome e tuberculose. Depois, me xingaram de rico.

O PASQUIM – Mas seu contato com a música americana não lhe influenciou?

TOM – Olha, esse negócio já aconteceu com Carmem Miranda, antes de mim. Quando ela voltou ao Brasil, pediu até ao Dorival para fazer aquele samba: Já Disseram que Eu Voltei Americanizada* etc. Acontece o seguinte: o americano pode passar 20 anos no Brasil e voltar pra lá que ninguém vai chamar ele de brasileiro. Mas ao nativo, o indígena, o aborígine é proibido sair da taba, não é? Você passa uma semana nos Estados Unidos e quando volta, logo alguém diz: “O que há, americano?”

O PASQUIM – Dizem que você voltou ao Brasil pra tomar cerveja no Veloso. Aliás, nem você chama o Veloso de Garota de Ipanema, só de Veloso.

TOM – É verdade. Eu só chamo o Veloso de Veloso. Mas quando me perguntam por que eu voltei, eu digo que voltei pra me aporrinhar. Para responder a esse tipo de pergunta. Voltei para pagar o imposto sobre a renda. Pra ser um dos 5% dos brasileiros que pagam imposto sobre a renda. Voltei para perder o apetite, ou para ter indigestão. Voltei porque nunca saí daqui. Não tenho nada a fazer no estrangeiro, não. Me perguntam muito também quanto eu ganhei lá fora. Mas eu faço sempre questão de dizer: as minhas notas são outras, não é? Eu ganhei o suficiente pra comprar essa casa aqui. Porque eu sempre aprendi, quando criança, que um homem deve ter uma casa pra morar. E eu sempre tive muita angústia de, no fim do mês, não ter dinheiro pra pagar o aluguel.

O PASQUIM – Em nome da amizade fraternal e do respeito que você tem por ele, você quer responder, sinceramente: o Frank Sinatra pertence ou não à Cosa Nostra?

TOM – Pra ser sincero, eu não sei uma coisa dessas. Mas não creio que o Frank Sinatra seja um bandido. Se eles prenderem o Frank Sinatra nos Estados Unidos, eu vou ser preso aqui também. Esse negócio todo é um grande folclore. Dizem que ele dá socos na cara dos outros e tudo; só posso dizer que, comigo, ele foi uma dama, uma dama de alta fidúcia.

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O PASQUIM – Mas que o Frank Sinatra pertence de uma maneira ou outra à máfia é coisa mais ou menos sabida no mundo inteiro.

TOM – Você acha mesmo? O Frank Sinatra é apenas um homem que não pode encontrar uma garota, não pode tomar um café na rua, tem que morar no deserto etc.

O PASQUIM – Tinhorão diz no livro dele que você sempre atende aos chamados do Sinatra porque você é empregado dele.

TOM – Acontece que uma pessoa rica tem sempre muito a dar a uma pessoa pobre. Como ele é um sujeito pobre, e eu sou um sujeito muito rico – e ele sabe disso –, ele pediu que eu desse um pouquinho a ele. E eu dei.

O PASQUIM – Como começou a sua ligação com o Sinatra?

TOM – Começou quando meu padrasto alugou um piano para a minha irmã estudar. A garagem era de cimento, fresca no verão. O teclado era cariado, desdentado, mas eu comecei a tocar. E aí eu comecei a achar que o mundo era feio e aquela garagem era bonita paca. Foi assim que começou minha relação com o Francesco.

O PASQUIM – Depois da revolução da bossa nova, que você fez, houve outra, liderada pelo Caetano Veloso. O que você acha disso?

TOM – Eu sou grande fã do Caetano e do Gil. Eles sabem disso. Estiveram comigo em Londres. Nós temos uma profunda ligação através do João Gilberto. E sou afilhado do Dorival Caymmi. Nós – Caetano, Gil e eu – conversamos muito sobre a gente e nossos problemas. Eu acho que o negócio que eles fazem é genial, formidável. Ninguém saberia fazer melhor do que eles. Eu estou aqui em casa tocando as músicas deles.

O PASQUIM – Quais as músicas deles que você gosta mais?

TOM – Esse negócio de melhor música é meio bobo. Tem tanta coisa. É difícil de dizer. Eu gosto de Superbacana, aquela da “minha sabiá, minha zabelê”, e do Domingo no Parque, do Gil; e gosto de Aquele Abraço. Ah, essa é indispensável. Diz uma série de coisas que nunca foram ditas antes. “O Rio de Janeiro, fevereiro e março” diz mais do que qualquer poesia.

O PASQUIM – Nelson Cavaquinho também tem uma música sobre o Rio de Janeiro.

TOM – Eu sou ardente fã do Nelson Cavaquinho. Posso passar horas nesse piano tocando músicas dele. Ele me deu muito. Quando eu era pianista de boate, tocava no Vogue antes do incêndio, eu tocava meia hora e meia hora eu bebia com Nelson Cavaquinho num botequim da esquina. E eu ficava ouvindo ele tocar aqueles troços dele, divinos, (canta) “As rugas fizeram residência no meu rosto”. Se eu não soubesse isso, não sabia nada.

O PASQUIM – O que você acha do Ary Barroso?

TOM – Gênio. Pixinguinha, gênio. Lamartine Babo? Gênio. Custódio Mesquita? Gênio.

O PASQUIM – Você sabe que a moda em festivais agora é a chamada “toada moderna”. O que você acha disso?

TOM – Esse negócio de toada moderna está muito bem. Eu queria falar uma coisa, ainda, sobre festivais. Eu não tenho nada a ver com isso, sabe? Entrei num por um acidente desgostoso. Não sou da época de festival. Agora, acontece que a noite no Rio desapareceu. Antigamente, os músicos tinham emprego. Agora, não. Só tem os festivais. O que ganha, ganha alguma coisinha e pronto. Os outros não ganham nada: perdem seu tempo e perdem sua profissão. Esse negócio é muito grave. O profissional não tem mais como viver. E todo mundo tem de ir pro estrangeiro. Isso é péssimo. Que o músico brasileiro não possa ter emprego e viver na terra dele é uma grande sacanagem.

O PASQUIM – O que você acha do Sérgio Mendes?

TOM – Ele fez o que nenhum brasileiro ainda fez. Todo brasileiro que vai para o exterior volta correndo. Pergunta onde está o feijão, não tem e aí ele pega aquele avião da Varig, o das 18 horas pra não ter de esperar o das 23 horas. Sérgio Mendes foi o único homem que enfrentou o dragão. Chegou lá e disse: “Como é que é aí? Ah, é assim? Então vamos fazer assim.” Se as menininhas brasileiras não funcionam, chama as americanas, manda cantarem em português e toca pra frente. Eu não toparia essa parada porque eu já sou outro cara, ligado a sabiás, e essas coisas todas, e quero morrer é aqui mesmo, com nosso subdesenvolvimento, nossa sacanagem, nossa beleza.

O PASQUIM – E o que você achou da Luciana*, a música que ganhou o festival?

TOM – Acho bem bonitinha. E gosto muito de Paulinho Tapajós, acho que ele vai fazer grandes coisas. Esse negócio de “música para festival” não tem a menor importância.

O PASQUIM – Você não acha que Sabiá, ela perdeu com a letra? Não vale camaradagem.

TOM – Eu acho o Chico Buarque um gênio. O Chico me deu tanto para Gávea: fez uma letra que eu não saberia fazer.

O PASQUIM – Mas Tom, você acha realmente impossível fazer a menor restrição a um amigo da gente que fez uma coisa ruim?

TOM – Chico Buarque foi muito gentil em pegar essa parada da Sabiá, que vinha da Gávea, que era minha, já na aposentadoria, fazendo samba pra inglês ver. Ele, ao fazer essa letra para mim, foi de uma gentileza, uma sensibilidade total. Talvez porque o pai dele, Sérgio Buarque de Hollanda, foi amigo de meu pai, Jorge de Oliveira Jobim, da porta da livraria Garnier.

O PASQUIM – Mas você também é um grande letrista. Em Retrato em Branco e Preto, que é música sua e letra de Chico, não tem muita letra sua?

TOM – Juro por Deus que não tem uma palavra minha ali. Eu sou um músico chato: quando chamo meus queridos letristas, o Vinicius por exemplo, eu dou a eles uma proposição de letra que estraga muito as coisas, porque eu tenho uma tendência a verborragia, à falastrice. Ultimamente eu tenho parado com isso. No caso do Retrato, o que eu contei ao Chico nada tem a ver com a letra que ele fez, que é um trabalho genial. Eu contei que o nome original da música era Zíngaro, cigano, não é? Era a história de um músico que acabava empenhando o violino e ficava sentado numa praça, sem violino, sem o lugar pra trabalhar, sem a música dele nem nada. O trabalho do Chico, tanto em Sabiá como em Retrato, é genial. Ponto final.

O PASQUIM – Mas no festival…

TOM – O festival tirou o emprego dos músicos, fechou a porta de todas as coisas pra todo mundo. Não passa de um grande folclore. A “Máquina” ganhou mais, todo mundo se tornou marginal. E Tom Jobim é apenas um marginal bem-sucedido.

O PASQUIM – Na época, disseram que Retrato em Branco e Preto era plágio de Apelo, de Baden Powell.

TOM – Eu falei pro Baden: existe o Prelúdio n° 4, de Chopin, do qual todos os americanos, por exemplo, roubaram tudo. O próprio Apelo foi baseado em Insensatez: “A insensatez que você fez, coração mais sem cuidado…” Alguma outra pergunta?

O PASQUIMRetrato saiu, então, de Insensatez, que é tua mesmo.

TOM – Olha aqui: o negócio de você fazer um acorde menor e aumentar ou diminuir a quinta é mais velho do que o mundo. O Prelúdio n° 4, de Chopin, está aí em cima do piano pra provar que Tom Jobim não é original, Baden Powell não é original, mas somos todos originais porque estamos na Restinga da Marambaia e o ritmo é samba. E o meu negócio é samba, está entendendo? Eu sou do plá, a minha linguagem é canhegue e estou na minha.

O PASQUIM – E quanto você ganhou com suas músicas, no mundo inteiro?

TOM – Pra ser honesto, não sei. Eu posso me chamar de homem rico, por exemplo, em relação a um pescador que tem de pagar 14 contos para ter uma licença de pesca – o que é uma coisa que só acontece aqui no Brasil.

O PASQUIM – Quanto você ganhou com Garota de Ipanema, por exemplo?

TOM – Não sei. Mas ganhei bastante. Foi minha música de maior sucesso.

O PASQUIM – É verdade que você ganhou mais de 500 mil dólares?

TOM – Se eu tivesse ganhado 500 mil dólares, jamais falaria com vocês.

O PASQUIM – Você realmente acha que a maior cerveja do mundo é a brasileira?

TOM – Eu acho que a maior cerveja do mundo se encontra no Brasil; e, ultimamente, no Estado de Minas Gerais.

O PASQUIM – A que você atribui seu sucesso musical?

TOM – À minha bisavó, que era uma mulata de olhos verdes, nascida em Aracati, no Ceará, e que tinha uma musicalidade excepcional, o ouvido absoluto.

O PASQUIM – Vamos sair do terreno musical para o psicológico. Por que você não gosta que lhe perguntem quanto você ganha?

TOM – Realmente eu me chateei com a pergunta. Eu sempre fui teso. Nasci na Tijuca, de uma família de classe média, nunca tive nada. Eu tinha até o maior preconceito contra a música: achava que piano era coisa de menininha, queria ir à praia e jogar futebol. Eu já disse que sempre tive medo até de não ter dinheiro para pagar aluguel, ser despedido. Sempre fui demissionário, também. A “Máquina” nunca conseguiu me mastigar, não é? Agora fica todo mundo me perguntando: quantos dólares? Eu desço no Galeão e lá está aquele repórter com cara de sono, me perguntando: quantos dólares? Eu não quero ficar rico. Se quisesse, ia ganhar muito dinheiro: ia ser editor nos Estados Unidos, editava música brasileira, ia explorar o homem, ia ficar rico mesmo. Se eu gostasse de dinheiro, não ia morar mais no Rio de Janeiro, ia morar num lugar qualquer aí chamado civilizado. Eu não me incomodo com dinheiro: só quero ter pra sustentar minha mulher e meus filhos. Sou um homem de hábitos simples.

O PASQUIM – Outra coisa que lhe deixa indignado é lhe perguntar sobre seu trabalho, sobre o que você está fazendo.

TOM – Uma vez que você faz um sucesso, todo mundo lhe cobra o sucesso. Eu diria que a maior bênção do artista é o anonimato: pode compor, passear, você trabalha bem paca e ninguém lhe cobra nada. Se você quer uma definição certa sobre Tom Jobim é aquela que eu disse: é um marginal bem-sucedido.

O PASQUIM – O Brasil é um país tão miserável que as pessoas que ganham dinheiro ficam com complexo de culpa.

TOM – É verdade, sim. Você não pode progredir, seus irmãos não progridem. Você não tem direito de ser melhor do que ninguém. O Brasil está tomando consciência de suas realidades dolorosas, sua condição de país latino-americano, subdesenvolvido e tudo o mais. Quando você vê as favelas cada vez maiores, as pessoas pobres não terem o que comer, as pessoas ficando marginais etc., isso é um negócio que ninguém pode se conformar. É onde cessa o diálogo, porque a força das coisas é muito maior do que o nosso blablablá. Eu levei toda minha vida, 42 anos, para comprar esse piano aí; em outros países todo mundo que precisa tem um piano de cauda. Hoje em dia, eu posso pagar meu uísque, contratar um chofer para levar meus filhos ao colégio etc. Mas com muita vergonha. Depois que meus filhos tiverem a vida deles, eu vou morar num apartamentinho no Méier, não vou mais me chamar Antonio Carlos Jobim e ninguém mais vai fazer entrevistas comigo, não.

O PASQUIM – Você é um grande admirador do João do Vale, por quê? Tecnicamente?

TOM – Eu sou um compositor cosmopolita, do asfalto. Mas o João do Vale traz nele um negócio que é o próprio cerne do Brasil. Se eu fosse editor, ia buscar coisas no Nordeste: as coisas mais geniais do mundo estão lá. E João do Vale traz aquele acervo todo, não é? Eu tinha de me apaixonar por ele. Vejo, nele, a grandeza de um mundo insuspeitado.

O PASQUIM – Você é o único cara que só cedeu à “Máquina” o que não podia deixar de ceder. Agora, pergunto: é possível resistir à “Máquina”?

TOM – É. A “Máquina” preza os que não se dão a ela. Não no grau de um Tom Jobim. Mas no grau de um Van Gogh. Aí a “Máquina” tem de rebolar. Mesmo que o cara já esteja morto.

O PASQUIM – Você acha que há racismo no Brasil?

TOM – O racismo brasileiro é dos piores que eu já vi em toda minha vida. É o racismo por debaixo da mesa, suave, bonito e inconformado.

O PASQUIM – Você prefere Pelé ou Garrincha?

TOM – Eu acho o Pelé o maior jogador de futebol do mundo. Agora, o Garrincha está no meu coração por razões muito pessoais. Em poucas palavras: eu acho que o Brasil fez uma sacanagem com o Garrincha.

O PASQUIM – Voltando ao racismo: você sabe que, aqui, preto famoso não é preto: é famoso. Você deixaria sua irmã casar com um preto que não fosse famoso?

Se eu fosse editor, ia buscar coisas no Nordeste: as coisas mais geniais do mundo estão lá

TOM – É claro. Mas o Brasil é um dos países onde mais eu vi preconceito racial. E é principalmente socioeconômico.

O PASQUIM – Isso é uma injustiça com o Brasil. Nos Estados Unidos, o preconceito racial é homicida.

TOM – É, aqui todo mundo é nacionalista, mas, como diz o Simonal, o uísque tem de ser escocês, o azeite tem de ser português, o perfume tem de ser francês e a mulher tem de ser loura, com olhos azuis… Nós não podemos negar nossos preconceitos. Nos Estados Unidos, dão tiro, mas o crioulo tem seu lugar, anda de Cadillac, tem aquela revista Ebony, que até eu compro, e não dá cartaz pra branco, não.

O PASQUIM – Para terminar, vamos às tradicionais notas. Eu digo os nomes e você dá as notas.

TOM – Chico Buarque, 10. Caetano Veloso, 10. Martinho da Vila, 8,5. Roberto Carlos, 9 – pelo que eu não entendo, 100 pela resposta do público. João Gilberto, é hors-concours. João do Vale, 10. Sérgio Mendes, 9,5. Gal Costa, 11. Nara Leão, 10. Elis Regina, 10. Elza Soares, 9. Moreira da Silva, 10. Jorge Ben, 10. Simonal, 10. Ary Barroso, 100. Villa-Lobos, 1.500. Custódio Mesquita, 299. Flávio Cavalcanti, 7. Chacrinha, 10 – pelo que eu não entendo. Dercy Gonçalves, 7. Nelson Rodrigues, não digo.

O PASQUIM – Há alguém na música popular brasileira de quem você não goste?

TOM – Não sei. Eu acho que gosto de todo mundo.