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CAETANO VELOSO

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EDIÇÃO N° 84 – 11 a 17/2/1971

Maiakóvski Juízes Perus Cabelos Atrozes Caetano Veloso. Segurem o homem. Um gênio, espanto, e não podemos fazer nada.

Glauber Rocha

O PASQUIM – O Gilberto Gil diz que a Bahia deu a ele régua e compasso. A Bahia já te deu régua e compasso?

CAETANO VELOSO – O Rogério Duarte disse que isso foi uma concessão especial ao Gilberto Gil porque a Bahia jamais deu régua e compasso a ninguém.

O PASQUIM – Você acha que a baiana é a mulher mais elegante do mundo?

CAÊ – Sei não. Pode ser. Se tem alguma coisa de diferente que se pode notar nas mulheres da Bahia é que, como na Bahia o ritmo é todo mais lento, as mulheres olham assim pra cara da gente com o olho parado, descansado. Olham assim direto pra gente com o olho descansado.

O PASQUIM – Qual é o efeito desse olho descansado?

CAÊ – Pode ser legal e pode ser apavorante também, dependendo da situação.

O PASQUIM – Você acha que Dedé é uma boa dona de casa?

CAÊ – Dedé é. Dedé é maravilhosa. Ela é boa dona de casa e boa dona de rua também. Ela sai comigo pra toda parte, está sempre legal comigo. Ela é muito boa.

O PASQUIM – Como é que você conseguia azeite-de-dendê em Londres?

CAÊ – É muito fácil, porque a Nigéria foi colonizada pelos ingleses, né? You never heard? Anyway, a Nigéria foi colonizada pelos ingleses, e a comida nigeriana é muito parecida com a comida baiana e toda coisa de azeite-de-dendê tem lá. A cultura de Iorubá é da Nigéria, que é a cultura negra que veio parar na Bahia, é uma delas, uma das principais.

O PASQUIM – Da Bahia para o mundo então, não é?

CAÊ – Da Nigéria, pela Bahia para o mundo.

O PASQUIM – Lá tem tudo que tem aqui?

CAÊ – Tem camarão seco, tem tudo. Você pode fazer um caruru, pode fazer um vatapá, pode fazer o que você quiser em Londres. Muqueca de camarão a gente come sempre lá em casa. O azeitede-dendê pode ser muito bom lá. Dedé ficou amiga do cara que vendia lá e ele sempre guardava o azeite bom pra vender pra ela. Leite de coco você tem que comprar em barras pra depois derreter na panela, não é muito bom não.

O PASQUIM – Nós estamos vivendo um momento muito ruim no Brasil, isso independentemente do governo, qualquer coisa. Nós estamos vivendo um momento muito ruim e está havendo um retrocesso em vários setores. Até que ponto você não está querendo produzir no Brasil esperando conseqüências desse trabalho todo que está se fazendo aqui, que está resultando num zero.

CAÊ – Eu não sei, porque eu não estou aqui. Eu fiquei em Londres um ano e meio e vim aqui pra ver meu pai e minha mãe. Vim pra Bahia, estou meio desligado do que está acontecendo no Rio, que é o centro cultural do país.

O PASQUIM – São Paulo nunca te perdoará essa, hein?

CAÊ – Nem a Bahia. Pra eu saber qual é o clima de trabalho aqui, só eu ficando aqui e trabalhando.

O PASQUIM – O André Midani disse hoje que o seu grande drama foi ter nascido no Brasil e não num país de língua inglesa, por exemplo, que é uma língua mais internacional. Ele disse que se você tivesse nascido num país de língua inglesa você seria uma figura conhecida mundialmente. Você gostaria de ser conhecido mundialmente ou pra você ter sucesso no Brasil já é muito bom. Há essa ambição?

CAÊ – Eu não tenho propriamente essa ambição, embora pareça, porque logo antes de sair do Brasil eu compus duas canções em inglês. Talvez isso deixe parecer que eu tinha uma ambição internacional, mas na verdade eu não tinha essa ambição.

O PASQUIM – Você não acha genial fazer sucesso no Brasil, já não é muito bom, não?

CAÊ – Pra mim tanto faz, na verdade. O que aconteceu comigo no Brasil, o trabalho que eu fiz aqui ter repercutido muito dentro do Brasil para mim é uma coisa de uma força total. Algumas pessoas têm um pouco a sensação de que fazendo as coisas no Brasil é como se não tivessem chegado a atuar no mundo propriamente dito, é como se vivessem num submundo. Eu não tenho essa sensação. Pra mim, de alguma forma, eu, tendo tocado na vida brasileira, toquei o mundo da maneira mais profunda que poderia tocar. Eu não tenho esse problema.

O PASQUIM – Você tem aquele amor ao Brasil no sentido do Brasil, pra você, ser mais importante do que o mundo que está em volta? Pra você é mais importante fazer vibrar o Brasil ou o mundo?

CAÊ – Isso é uma coisa muito difícil de colocar. Eu sou, em princípio, como vocês todos sabem pelas coisas que eu tentei fazer em música, internacionalista. Eu penso que o mundo é o que importa, todas as pessoas de todos os lugares do mundo. Agora, a nacionalidade, a pessoa ser de um país, é muito importante. Eu, por exemplo, tenho necessidade de determinadas coisas ligadas à realidade brasileira e que me formaram. O fato de as pessoas serem nacionais, quer dizer, serem brasileiras e gostarem do Brasil, serem francesas e estarem interessadas nos problemas da França, não é uma necessidade, mas é uma realidade. Não é uma exigência moral, mas uma fatalidade, de uma certa forma. A tentativa de conseguir ter uma vivência mundial, sentir o mundo, estar integrado numa coisa mundial depende inclusive de você saber se relacionar com esse problema da sua nacionalidade…

O PASQUIM – Você preferia fazer sucesso aqui ou lá fora, como Sérgio Mendes?

CAÊ – Sobre esse negócio do Sérgio Mendes eu acho o seguinte… Eu até já comentei isso num artigo que eu fiz pr’O Pasquim. O Sérgio Mendes, quando trabalhava no Brasil, fazia uma música bem mais americana do que a música que ele faz hoje nos Estados Unidos. Na verdade, ele teve que se abrasileirar desde que teve que tentar o mercado americano. Isso é uma coisa que eu usei como desmentido dos argumentos supostamente nacionalistas de José Ramos Tinhorão. Quando eu combatia certos argumentos dele, eu utilizava o caso do Sérgio Mendes como argumento. Quando o Sérgio Mendes estava no Brasil ele era um músico interessado em jazz, se desenvolvendo como um músico de jazz. Isso é uma coisa, todo mundo sabe, que você pode fazer em qualquer lugar. Em todos os países da Europa há pessoas interessadas em jazz, que se exercitam dentro da linguagem do jazz e que chegam a ser jazzistas, importantes ou não, pouco importa. Isso é um interesse do cara, não é necessariamente uma negação da nacionalidade do sujeito. Tudo isso é muito complicado porque eu também poderia dizer que o sujeito tem o direito de não se prender a características nacionais. Mas, de qualquer maneira, se a suposta desnacionalização do trabalho de um artista pode vir a ser um piche para ele, há a defesa de que no caso de um cara que está interessado num determinado campo de arte em outro país não implica uma desnacionalização do trabalho dele. Tudo isso é muito difícil de falar, é muito complicado. De qualquer maneira, o Sérgio Mendes era um cara que dentro do Brasil estava interessado em jazz. Você pode perguntar ao Antonio Carlos Jobim, que escreveu a contracapa do disco dele falando que ele era um menino de Niterói que ficava tocando piano, ouvindo os caras de jazz etc. Quando ele foi pros Estados Unidos ele descobriu que o que interessava aos americanos eram as características diferentes das coisas que os próprios americanos fazem. Interessava comercialmente pras pessoas que estavam empregando ele, e hoje ele está enganando as pessoas por isso. Ele descobriu que, na verdade, o que venderia mais seria uma característica brasileira diferente, com um nível de produção americana, com aquela sabedoriazinha comercial americana de utilizar certos ritmos brasileiros pra dar uma coisa mais ou menos exótica. Isso é um negócio que o Oswald de Andrade chamava de macumba pra turista, entende? Na verdade, quando eu jogo nisso um pouco como piche, eu gosto do Sérgio Mendes. Inclusive eu fiz um show com ele em Londres. Eu não conheço ele bem. Estive com ele uma vez por acaso aqui na Bahia, quando eu ainda morava aqui, e depois estive com ele em Londres, porque fiz aquele espetáculo com ele. Acho ele legal, ele foi simpático comigo. Tem gente que diz que ele é mau-caráter, tem gente que diz que ele é ótimo sujeito, eu não sei.

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O PASQUIM – Esse tipo de sucesso do Sérgio Mendes fabricado em estúdio etc., vale a pena? O Sérgio exagerou um pouco e acabou tocando pros soldados no Vietnã. Este sucesso, apesar de todas as concessões, vale a pena?

CAÊ – Eu não sei, eu não tenho essa experiência. Você deveria perguntar isso ao Sérgio Mendes. Vale a pena Sérgio Mendes?

O PASQUIM – Você entraria nessa área se tivesse chance?

CAÊ – Não, eu não entraria. O meu sistema de trabalho é completamente diferente do de Sérgio Mendes. Eu queria terminar de responder aquela pergunta que separou o problema de fazer sucesso no Brasil do problema de fazer sucesso fora do Brasil, como se fossem duas coisas que se opõem. Eu falei do Sérgio Mendes porque, no caso dele, de uma certa maneira, as duas coisas se opõem no momento em que ele está fazendo sucesso nos Estados Unidos e em certos países da Europa e não está fazendo sucesso no Brasil. Aquiele vende, mas não é a grande figura da música brasileira dentro do Brasil. O que eu quero dizer é que, na verdade, quando ele chega nos Estados Unidos, dá uma recuada nos interesses que ele tinha em relação ao jazz, mas encontra um novo tipo de interesse dentro da chamada música comercial. Eu não estou colocando nenhuma moral nisso, não estou fazendo nenhum julgamento moral porque, inclusive, a música comercial veio me formar por outro meio. Se você acha que isso é mau-caratismo, que é ser honesto ou não ser, pouco importa. Ray Conni?, por exemplo, é um negócio que você repassando hoje em dia por outros canais, dando a volta por cima, vem a dar uma informação diferente, quer dizer, o cara termina acontecendo de qualquer maneira. O próprio fato de ser comercial, como um jingle, pode ser uma informação cultural muito importante. Você nem sabe quem fez, nem precisa saber, mas por outros caminhos vem dar em outra coisa. Eu não vou julgar o Sérgio Mendes moralmente, isso é uma coisa que não me interessa. Me atrasaria ficar pensando se ele é mau-caráter ou não. Mas como eu estava dizendo, o Sérgio Mendes, pra fazer o que ele está fazendo, de uma certa maneira, recuou dos interesses que ele tinha e esses interesses que ele tinha no Brasil se desenvolveram. As pessoas no Brasil desenvolveram esses interesses num determinado sentido e como ele abandonou esses interesses ele está desligado daquilo que as pessoas no Brasil estavam querendo ou estavam esperando. Então, ele não está fazendo uma coisa dentro do ritmo brasileiro, ele realmente se desligou do ritmo brasileiro. Ele está fazendo uma coisa antiga. Quando você ouve um disco do Sérgio Mendes você lembra da Elis no tempo do Fino da Bossa, você lembra de coisas que de uma certa forma, no Brasil, já são passadas. O que acontece é que se fala sempre nessa colocação de países subdesenvolvidos e desenvolvidos e você tem a impressão de que há um atraso enorme dos países subdesenvolvidos em relação aos países desenvolvidos, mas há também um atraso absoluto no sentido inverso. Num país desenvolvido as maiores exigências são de uma paralisação daquilo que está se desenvolvendo nos países menos desenvolvidos. De modo que o Sérgio Mendes tem que apresentar uma coisa que no Brasil já está conhecida e consumida e que lá fica como novidade. Eu soube, lendo os jornais na Inglaterra, que o Zumbi*, do Arena de São Paulo, fez um enorme sucesso em Nova York. Eu adorei Zumbi quando eu vi, mas todo mundo sabe que se uma peça do mesmo nível do Zumbi, com aquela mesma coisa, for montada hoje no Brasil nos mesmos termos, não vai ter mais sentido nenhum dentro do país. Por outro lado, se você mostra um disco de Gal Costa lá fora, a primeira coisa que o cara vai dizer é: “Puxa, mas vocês em vez de fazer uma coisa brasileira estão fazendo um negócio pop que não tem o mesmo nível das coisas pop internacionais!” Nunca ninguém me disse isso, mas de uma certa forma poderia chegar a esse ponto, entende? Eles apoiariam coisas que no Brasil já está passada há algum tempo e não uma coisa de uma linguagem mais avançada, mais moderna.

O PASQUIM – Você está explicando que o negócio do Sérgio Mendes…

CAÊ – O que o Sérgio Mendes faz é novo no mercado internacional. Isso limita a relação dele com o mercado brasileiro, com o desenvolvimento da música brasileira, com uma série de coisas, mas ele está em outra jogada lá que pode vir a ser uma outra coisa. Eu estou falando esse negócio, mas eu não tenho o menor interesse por isso, na verdade. Eu não vivo analisando esse tipo de coisa não, às vezes eu me lembro dessas coisas quando o Tinhorão, por exemplo, diz aquelas bobagens, que o Tom é americano, que o João Gilberto tem o apelido de Gibi, aquelas coisas nacionalistas bobas. Quando toca no seu assunto, no meu interesse que é ver a linguagem musical se desenvolvendo, aí eu vejo que ele vem me atrapalhar, então naturalmente eu releio e pego os argumentos todos que me vem à cabeça.

O PASQUIM – O que você acha do Tom Jobim, que fez sucesso lá e foi pichado aqui? Você acha que se você fizer sucesso lá fora também vão te pichar? Quer dizer, enquanto você é mártir dá pé, todo mundo está na sua e no que você fizer sucesso vão dizer que você não vale nada. Você acha isso?

CAÊ – Eu não me preocupo com isso, não. Pra mim tanto faz. Você não pode dizer que o povo brasileiro tem mau-caráter e pichar quem faz sucesso fora. Talvez, de uma certa forma, haja um certo ciúme. O Tom nunca se desligou daqui. Você me perguntou o que eu achava dele. Eu acho o Tom um gênio, uma coisa fantástica. Eu até hoje tenho um sonho de algum dia fazer um trabalho comele e nunca propus isso a ele porque eu fico muito tímido diante dele. Por outro lado, como eu não sou muito bom músico, eu fico duplamente tímido.

Eu não sou um bom músico, não tenho uma musicalidade excepcional. Eu tenho um ouvido musical mediano

O PASQUIM – Puxa, se você não é bom músico você é o que então?

CAÊ – Sou um bom sujeito.

O PASQUIM – Em termos musicais, se você não é bom músico, você é bom letrista, o que que é?

CAÊ – O Tom sabe, ele está por dentro. O Gil também sabe, várias pessoas estão por dentro. Eu não sou um bom músico, eu não tenho uma musicalidade excepcional. Eu tenho um ouvido musical mediano, consigo rememorar melodias, cantar coisas, toco violão, faço harmonia certa, se tiver errado eu sei pegar. O Tom está por dentro disso, ele sabe. Agora, o meu negócio foi outra coisa. O meu negócio foi que eu tinha algumas idéias sobre o problema de música popular no Brasil e coloquei essas idéias em ação.

O PASQUIM – Caetano, há quatro anos você deu uma entrevista e você dizia que o caminho pra música brasileira seria a retomada da linha evolutiva de João Gilberto, que isso não estava sendo feito embora houvesse várias tentativas. Um ano depois você realizou essa retomada. Hoje se poderia colocar a mesma coisa em relação a você. A seu ver quem está fazendo esse trabalho de retomada do salto que você deu?

CAÊ – Eu falava muito de João Gilberto e falo até hoje e tenho mesmo motivo pra falar que é o mesmo longplay dele, que eu adoro e ouço 40 vezes por dia. O que eu falei naquela época sobre o negócio do João Gilberto eu penso até hoje. Eu uso o nome do João Gilberto porque sei e acredito que João Gilberto centraliza tudo o que se chamou de bossa nova. Aquele momento, os discos que ele fez com o Tom Jobim, o que centrava tudo, o que dava a linha era a presença do João Gilberto, era a maneira dele cantar e tocar violão, eram as sugestões que ele dava pros arranjos. Isso o Tom não esconde quando escreve na contracapa do primeiro disco dele: “Quando o violão lhe acompanha, o violão é ele; quando a orquestra o acompanha, a orquestra também é ele.” O João Gilberto, naquele momento, fez realmente o que você pode chamar de uma revolução formal. Ele realizou uma forma completamente nova que era capaz de ser satisfatoriamente crítica em relação à toda história anterior da música brasileira, satisfatoriamente exigente em relação ao futuro. Na verdade, depois desse acontecimento que se chamou de bossa nova e que eu teimo em chamar de João Gilberto e tenho certeza que o Tom Jobim não discordará disso, que o Roberto Menescal não discordará disso, que Nara Leão não discordará disso, que toda bossa nova não discordará disso, mas depois desse momento, na época que eu cheguei ao Rio, que eu estava em contato com todos os músicos, o Edu estava no auge, depois outros compositores, eu falava isso porque eu achava que o trabalho que todo mundo estava fazendo, embora fosse um trabalho muito interessante, rico e generoso, não era um trabalho que dissesse nada além do que o João Gilberto estava dizendo. Na verdade, tudo era corolário daquela realidade do João Gilberto. No disco novo dele, hoje, isso se comprova pra mim.

O PASQUIM – Você conheceu o João Gilberto aqui na Bahia?

CAÊ – Eu conheci o João Gilberto não do tempo em que ele morava na Bahia. Eu conheci o João Gilberto quando ele já morava nos Estados Unidos e veio aqui.

SÍLVIO LAMENHA – Uma vez a Gal Costa, então Gracinha, me disse que queria conhecer João Gilberto. Eu disse: pois não, ele vai lá em casa hoje, a gente vai lá. Depois ele me disse assim: Sílvio, Gracinha vai estourar em breve e eu tenho vontade de fazer um disco com ela.

CAÊ – A Gal fala sempre nisso, ela é louca pelo João Gilberto e fala sempre nesse encontro como uma das coisas mais importantes que já aconteceram a ela.

O PASQUIM – Fale sobre o problema da diluição do tropicalismo.

CAÊ – O que eu queria dizer é que esse problema de diluição todo mundo sabe que é normal, é uma coisa que acontece. Eu não quero fazer nenhuma crítica a nada que está se fazendo no Brasil em matéria de música, não quero criticar ninguém porque é muito desagradável e incômodo para uma pessoa que trabalha em determinado setor de repente se improvisar de crítico daquele setor. Mas, de qualquer maneira, de um modo geral, teoricamente, esse negócio é normal. A única coisa que eu tive vontade de falar quando você fez a pergunta foi lembrar um artigo, que vocês provavelmente não conhecem, que eu escrevi antes de sair da Bahia sobre música popular brasileira para uma revista que se chamava Ângulo. É um artigo em que eu falo da diluição que se fez de João Gilberto. Você disse que de uma certa forma se fez no Brasil uma espécie de maneirismo tropicalista. Nesse artigo eu dizia que inevitavelmente acontecia a confusão das características pessoais, estilísticas de um artista com a verdadeira informação nova que ele trazia. Então, as pessoas confundiam a novidade da inovação com a novidade do estilo do sujeito. O João Gilberto tem, e, é claro, todo mundo tem, uma série de coisas muito pessoais e que chamaram a atenção de todo mundo quando a bossa nova explodiu. As primeiras coisas que foram seguidas foram os maneirismos pessoais, estilísticos do João Gilberto, e não a nova informação que ele trazia. Não é preciso parecer pessoalmente com ele para estar entendendo o que ele diz nem pra estar contribuindo para concluir o que ele propõe. Isso pra mim é o processo que acontece. Eu acho que isso pode ter acontecido numa escala, digamos, inferior com o meu trabalho, com o trabalho do Gil aqui no Brasil. Algumas pessoas podem tentar fazer coisas que perceberam no meu estilo. Isso não quer dizer nada. Talvez a grande concordância com as minhas idéias seja exatamente fazer o que o João Gilberto fez. Gravou um long-play exatamente como ele é, imutável e maravilhoso. Nada, absolutamente nada do que eu ouvi ultimamente chega aos pés do disco de João Gilberto, na minha preferência pessoal. João Gilberto é novo, é mais novo do que eu.

SÍLVIO LAMENHA – Você acha que no começo da bossa nova era possível João Gilberto gravar Farolito e outros sucessos, considerados como quadrados, sem alguma espécie de escândalo? Você não acha que ele seria considerado cafona e quadrado na época?

CAÊ – Eu acho que é praticamente impossível dizer o que seria possível acontecer ou não. De qualquer maneira, o João Gilberto tinha já nos discos dele daquela época o mesmo nível de independência do bom gosto comum, digamos, que ele tem agora gravando Farolito, Besame Mucho, Eclipse. São músicas lindas que ele canta lindamente. Farolito então, eu ouço um milhão de vezes, é aquela coisa infantil que o João guarda ainda. O que eu quero dizer é que nos discos dele daquela época, pra mim, já tinha o mesmo escândalo que teria se ele gravasse Farolito naquela época. Quando ele fala: “Blim, blom, blim, blom” é só isso, o meu baião já está tudo, não precisa dizer mais nada não.

SÍLVIO LAMENHA – Esse negócio dele ter gravado Farolito, Besame Mucho, foi uma espécie de revivência da época de quando ele era do conjunto Namorados da Lua. Ele cantava muito isso, era do repertório do conjunto. Foi uma espécie de retomada de uma velha vivência, de uma velha experiência pessoal. Você não acha?

CAÊ – Eu não sei. Eu não conheço bem o João Gilberto. Mas ele, ao que parece, é muito fiel a toda a vida dele. Ele parece ser uma pessoa fiel a toda a vida dele, é uma coisa fantástica, maravilhosa. Ele cantando The Trolley Song com aquela versão do Haroldo Barbosa ingênua, absolutamente maravilhosa. Eu não quero falar nas coisas estritamente musicais, que é o mais importante do João Gilberto, que é a contribuição estritamente musical, mas no próprio comportamento dele, na própria maneira de escolher o repertório, na maneira de cantar as músicas que escolhe. Há uma liberdade que é tudo o que em várias letras e em várias confusões nós tentamos dizer.

O PASQUIM – Depois de Alegria, Alegria, cada vez mais começou a aparecer guitarra elétrica no Brasil. Você acha agora que a chamada música pop internacional pode ter alguma importância na evolução da música brasileira ou algum papel como o jazz teve na bossa nova? Se pode ser alguma coisa de revitalizadora.

CAÊ – Eu acho que sim, sem dúvida nenhuma. Eu posso dizer mesmo como um depoimento que o fato de os Beatles existirem, as coisas que eu ouvi dos Beatles foram muito importantes pra mim. Eu não conhecia praticamente nada de música pop quando eu fiz Alegria, Alegria, que foi quando começou toda essa onda, todas essas coisas em música no Brasil. Mas, de qualquer maneira, o fato de os Beatles existirem e o que eu pensei sobre eles quando eu comecei a pensar nas coisas que me levaram a fazer Alegria, Alegria foram muito importantes. Na verdade, eu cheguei a eles através do Roberto Carlos. O que me interessou a princípio foi o problema da música comercial no Brasil. Antes disso, o que me interessou foi quebrar o cerco de bom gosto então vigente, então todas as coisas que estavam fora desse cerco começaram a me fascinar mais do que o que estava dentro e eleito, o que estava dentro e eleito começou a me desinteressar. Eu tive uma conversa sobre isso com o Edu Lobo no Rio, logo que eu cheguei, depois que o João Gilberto tinha estado aqui e voltado pros Estados Unidos. Foi nessa época que eu me mudei pro Rio e comecei a ter contato com Edu, com o pessoal de música. O pessoal foi maravilhoso com a gente quando a gente chegou no Rio; Edu foi um cara fantástico, ajudava a gente em tudo assim de casa, de roupa, de comida, de tudo que a gente precisasse, porque ele ficou interessado nas nossas músicas, gostou da gente. O pessoal era muito bacana, então eu conversava muito sobre o que eu pensava sobre música brasileira com eles. Eu conversei com Edu um dia em que ele estava, eu creio, meio chateado com algumas coisas que o João Gilberto tinha dito numa entrevista que deu no Rio, então eu defendia o que o João Gilberto dizia. Eu não me lembro mais qual era o problema, mas, de qualquer maneira, eu tive uma discussão muito grande com Edu, eu espero que ele se lembre disso porque foi uma conversa bacana, dessa conversa saiu muita coisa. Eu tive essa grande discussão com ele defendendo a coisa do João porque, na verdade, as pessoas que estavam interessadas nas coisas que o João Gilberto começou a fazer, que era a bossa nova, inclusive o Edu – que é um compositor ótimo, eu gosto muito dele – e muitas outras pessoas, inclusive eu antes de criticar essas coisas, porque tudo o que eu fiz também foi uma autocrítica, estavam limitadas a um pequeno bom gosto que se supunha continuador daquilo que João Gilberto fazia. Essa discussão começou a me mostrar e eu tentei mostrar a ele que tudo o que a gente pensava, todas as nossas referências críticas estavam limitadas a esse pequeno bom gosto que se supunha continuador daquilo que João Gilberto propunha e quanto mais esse pequeno bom gosto se cristalizava, mais o João Gilberto se mostrava fora desse cerco. Então, num determinado momento João Gilberto passou a soar pra mim tão estranho quanto Gregório Barrios em matéria de bom gosto e mau gosto, aí eu comecei a colocar esse tipo de coisa. Então daí eu comecei a me interessar muito, a ficar fascinado nas coisas que não estavam dentro do bom gosto, de uma certa forma, estabelecido no grupo de gente que fazia música no Brasil naquela época…

O PASQUIM – Você gravou Coração Materno e naquela época pras pessoas de bom gosto aquilo era o que podia haver de pior. Aí deu um pé bárbaro, você gravou divinamente e tudo. Dentro desse mesmo sentido você gravaria Coração de Luto, de Teixeirinha?

CAÊ – Quando eu fiz esse espetáculo em Londres com o Gil, espetáculo do Sérgio Mendes, a minha intenção era cantar Coração de Luto, de Teixeirinha. Eu queria cantar com o Gil em português, fazer uma tradução pra língua inglesa e apresentar a tradução em cartazes sucessivos enquanto a gente cantava as estrofes em português, com a informação de que era a canção recorde de vendagem no Brasil em toda a história da música brasileira. Isso só não foi feito por problema de produção, porque não era um show nosso, era um espetáculo do Sérgio Mendes e a gente ia cantar antes. Então, não dava pra fazer cartazes, produzir como eu queria, mas isso era uma coisa que eu queria fazer.

O PASQUIM – Teria o mesmo sentido que teve Coração Materno?

CAÊ – Cada coisa era uma coisa, né? De uma certa forma, teria a mesma colocação, mas já era um outro momento, uma colocação, uma outra jogada. Inclusive era uma jogada internacional completamente estranha, completamente diferente de todas as outras jogadas internacionais que já foram tentadas pela música brasileira.

O PASQUIMCoração de Luto é a música mais vendida no Brasil. Você acha que ela tem algum valor por causa disso, pelas pessoas gostarem e comprarem?

CAÊ – Eu tenho a impressão de que você não pode de maneira nenhuma negar quando uma música é a música que mais vendeu e que mais interessou a todo um povo de um país, que isso é de uma incrível importância. Você está perguntando se o fato de ter vendido é que me revela essa importância. De uma certa forma, sim.

O PASQUIM – Do momento que vende passa a significar alguma coisa, quer dizer, você toma conhecimento do fato, não é?

CAÊ – Desde que vende e toca o tempo todo, você passa a viver com aquilo como uma presença das mais importantes.

SÍLVIO LAMENHA – É verdade que você, em Londres, ouviu muito a velha Isaura Garcia?

CAÊ – É. Eu tenho ouvido muito mesmo. Tem um casal de amigos nossos em Londres, brasileiros, que tem os discos dela. Tem uma porção de sambas dela maravilhosos. Quando você vê, João Gilberto gravou De Conversa em Conversa, que é uma coisa absolutamente genial.

SÍLVIO LAMENHA – Ela sintetiza toda a época dos anos 1940. É um misto de Dalva de Oliveira e Aracy de Almeida.

CAÊ – É um misto de Dalva de Oliveira e Aracy de Almeida e profundamente paulista. Uma coisa que é muito atraente pra mim na Isaurinha Garcia é que ela é profundamente paulista, com sotaque do Brás e toda coisa meio italianada cantando samba, que é uma realidade completamente diferente. A coisa que me interessa muito nela é São Paulo. São Paulo é uma cidade tradicionalmente fora do bom gosto brasileiro. Na época que eu estava interessado nas coisas fora do cerco do bom gosto, São Paulo foi uma das coisas que me interessou. Tanto que eu fui morar em São Paulo e terminei trabalhando e começando a funcionar comercialmente em São Paulo.

SÍLVIO LAMENHA – E aquele projeto que você e o Gil tinham de gravar com Dalva de Oliveira sambas patrióticos. Sambasexaltação?

CAÊ – Nós fizemos um espetáculo pra televisão em São Paulo em que a Dalva de Oliveira foi convidada e cantou samba de dancing exaltação, a Linda Batista também, e foi fantástico. Inclusive foi uma noite muito estranha, pois o espetáculo quase foi suspenso porque também era convidado nosso desse dia o Vicente Celestino e ele morreu nesse dia. Ele fez o ensaio, cantou uma canção que se chamava Mandem Flores do Brasil*. Era uma canção em que ele falava sobre os pracinhas brasileiros na Itália e pedia pras pessoas que mandassem flores do Brasil. Quando ele morreu, eu e Gil desistimos de fazer o espetáculo, ficamos nervosos e foi uma coisa terrível. Aí a Linda Batista, a Dircinha, a Dalva de Oliveira e a Aracy falaram assim: “Nós temos que fazer o espetáculo, se Vicente estivesse vivo e fosse uma de nós que tivesse morrido ele faria o espetáculo.” Então, nós fizemos. O Grande Otelo, que também estava no espetáculo, chorou em cena, ficou um espetáculo estranhíssimo, triste.

SILVIO LAMENHA – Naquela época você era, e ainda é, o que havia de supervanguarda. O que eu acho genial é você ter a liberdade de conciliar você, Gil, Dalva, Aracy. É uma espécie de conciliação entre a música de vanguarda e a música tradicional.

CAÊ – Eu comecei a me interessar pelas coisas que o cerco do bom gosto post bossa nova deixava de fora. Mas eu, pessoalmente, era um cara que ouvia João Gilberto, estava interessadíssimo nele, mas sabia uma porrada de músicas velhas brasileiras que minha mãe me ensinava, cantava. Lá em casa tinha discos de Noel cantados por Aracy, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Emilinha Borba.

O PASQUIM – Você acha que o mau gosto está na moda?

CAÊ – Isso é que é o problema, né? O mau gosto ficou na moda, então de uma certa forma virou a mesma coisa que a bossa nova. Quando eu digo que o meu trabalho e o de Gil não são do mesmo nível da bossa nova, é porque o nosso trabalho não tem uma característica formal definida. No nosso caso fica mais difícil porque nós nunca propusemos uma solução formal definida, nós alertamos pra determinadas coisas que tinham sido esquecidas por causa de um equívoco que houve do bom gosto que veio depois da bossa nova. O mau gosto está de uma certa forma fazendo o mesmo papel que o bom gosto da bossa nova fazia na época post bossa nova. Você pode pegar um disco do João Gilberto, tocar 500 vezes e, se você tem bom ouvido musical, você pega os acordes e faz. Agora uma coisa que não tem uma forma definida, como o nosso trabalho, como é que você vai imitar? Então, essa coisa do mau gosto ficou uma coisa de moda e de difícil controle, de difícil imitação. Isso tudo que aconteceu foi um momento da minha vida. Quando eu digo que eu, num determinado momento, porque estava pressionado num determinado meio por um bom gosto restritivo, quis abrir pra outras coisas, não quer dizer que isso seja uma norma de conduta. Isso aconteceu comigo em 1967.

O PASQUIM – Caetano, você acredita em Deus?

CAÊ – Claro, como todo mundo, graças a Deus. Essa coisa de acreditar em Deus ou não acreditar em Deus eu não gosto que haja essa separação, entende? Eu não acredito que as pessoas acreditem ou não acreditem em Deus. Eu acho que isso não é um problema. Quando você me perguntou e eu disse é claro é porque é claro, não há problema quanto a isso com ninguém nem com os materialistas nem com os não-materialistas, os budistas. Isso daí, como diz o Gil, não entra na minha cabeça. Não é um problema pra mim.

O PASQUIM – Candomblé existe na sua vida?

CAÊ – Candomblé existe.

O PASQUIM – Como fé ou como música?

CAÊ – Como ambas as coisas. Na verdade eu tenho muito pouco contato com candomblé porque desde menino eu tenho muito medo. Eu nunca poderia dizer que não acredito em Deus, porque a primeira coisa que eu sinto no candomblé, nas poucas vezes que eu fui, é que alguma coisa estava me tomando, que o meu corpo começava a ficar dormente e que eu ia embora de minha individualidade e ia me integrar numa coisa fora desta realidade. Eu tenho até hoje sensação de vertigem física no candomblé. Todo mundo diz que o meu santo é forte, sei lá. Eu não sei dizer essas coisas.

O PASQUIM – Qual é o seu santo?

CAÊ – Meu santo é Oxóssi.

O PASQUIM – São Sebastião.

CAÊ – Não, São Jorge*. Eu estou falando em candomblé. Macumba eu não entendo nada. Aqui na Bahia eu sou Oxóssi, São Jorge. Se eu fosse em casa de macumba no Rio certamente eles me diriam que eu sou outro santo, porque lá é diferente.

O PASQUIM – São Jorge não é Ogum?

CAÊ – Em umbanda, no Rio, é que Ogum é São Jorge. Em candomblé é Oxóssi. Como todo mundo sabe, o que existe de religião africana na Bahia é muito mais conservado das raízes africanas do que no Rio. Começa que aqui nos terreiros quentes as pessoas falam em iorubá, cantam em iorubá. A religião negra na Bahia tem uma forma básica de uma religião. No Rio, a macumba e a umbanda já estão tão misturadas que são um apanhado de várias religiões sem uma estrutura definida de religião. Eu não entendo nada de candomblé, tem muita gente aqui que entende mesmo, eu tenho muitos amigos que entendem. Pra entender uma religião você tem que dedicar a sua vida a estudá-la, é muito difícil.

O PASQUIM – A Bethânia disse que você era ligado em roupa desde menino. Contou uma história que uma vez você saiu vestido de hindu pelas ruas de Santo Amaro. Como é essa história?

CAÊ – Eu acho que ela estava querendo dizer que eu sou desligado de roupa desde menino. Todas as minhas roupas, desde menino, é minha mãe que compra e, depois que eu me casei, é Dedé que compra. Eu nem pergunto como é e como não é. Eu não suporto ir numa loja, olhar vitrine e escolher roupa. Acho chatíssimo, nunca fiz isso. Agora, a história do hindu é verdade. No carnaval em Santo Amaro eu peguei um pano, fiz uma roupa feita de hindu, um turbante e fiquei na rua andando fazendo posturas místicas. Nesse ponto eu sou precussor dos hippies. Eu nunca estive sincronizado com a onda das pessoas se vestirem normalmente, quer dizer, comprar na loja, escolher. Disso eu estou desligado, acho um saco.

O PASQUIM – Você tem prazer em combinar as suas roupas, inventar?

CAÊ – Na verdade eu não tenho isso, não. Eu não ligo muito, não. Mas eu sei o que eu gosto. Isso que você está falando é verdade, o fato de eu estar desligado desses negócios é uma liberdade que eu quero ter pra poder escolher, gozar o fato de usar uma roupa ou outra. Na verdade eu tenho esse prazer, mas é tão fácil. Eu não faço esforço nenhum nesse sentido, não fico pensando, bolando.

O PASQUIM – Você já botou alguma vez na sua vida terno e gravata?

CAÊ – Já botei sim. Na procissão de Nossa Senhora da Purificação, em Santo Amaro, quando eu tinha entre 15 e 17 anos eu botava paletó e gravata.

O PASQUIM – Você poria de novo?

CAÊ – Posso pôr.

O PASQUIM – Sem precisar, por escolha própria?

CAÊ – Eu não tenho paletó e gravata, não está dentro das minhas cogitações. Eu não gosto, principalmente no Brasil, que faz calor, é um absurdo andar de paletó e gravata. Eu não tenho vontade de botar, mas se um dia eu tiver que botar, eu boto. Não é uma coisa muito importante não.

O PASQUIM – Você não acha que estão construindo muito aqui na Bahia, que daqui a pouco vai ficar igual a São Paulo?

CAÊ – Não. Eu ouvi dizer que vão construir uma fábrica em Arambepe e é uma pena, porque dizem que vai poluir a água. Tudo isso é chato pra burro porque a Bahia é um lugar lindíssimo. Agora, essa coisa toda de avenida, essas coisas novas ficaram muito bonitas. Agora, eu não tenho nada com isso. Eu sou saudosista, eu gostaria que a Bahia ficasse sempre como eu conheci, mas eu não determino isso, não sou eu que vou fazer os planos urbanísticos pra Bahia.

O PASQUIM – Caetano, qual é o seu signo?

CAÊ – Leão.

O PASQUIM – Você costuma ler horóscopo? Sabe quais são as características do Leão?

CAÊ – De vez em quando eu leio, mas geralmente as características não coincidem de um horóscopo pra outro. Tem coisas que eu gostaria que fossem verdade. Dizem que o leonino tem capacidade de controle da situação, que é desinibido, coisas que eu não tenho. Eu sou tímido, é meio difícil de conseguir o que eu quero, não tenho coragem de ferir as pessoas. Tem outra coisa que é invejável, dizem que o leonino é um sucesso incrível com as mulheres. Eu não tenho um sucesso incrível, eu tenho um sucesso razoável.

O PASQUIM – Na época que você estava no auge do sucesso aqui tinha aquele negócio de fã, de puxar o cabelo, arrancar a roupa etc. Agora em Londres você era praticamente desconhecido, como é que você reage em relação a isso?

CAÊ – Isso é legal. Em Londres eu fiquei anônimo de novo, andava na rua, ninguém me conhecia. Isso descansa muito. Esse negócio de me reconhecerem na rua, de pedirem autógrafo, que acontecia aqui e que me cansava, às vezes também me agradava, me dava um certo orgulho, uma certa alegria. Mas eu acho que eu não me acostumei a isso porque lá eu não senti falta e de uma certa forma senti um certo alívio em ser anônimo de novo. Há um desagrado das pessoas de serem anônimas, andarem perdidas na cidade, não serem ninguém. Todo mundo tem essa necessidade de ser uma pessoa que todo mundo sabe quem é, mas ao mesmo tempo o que se consegue quando se passa de ser anônimo pra não ser anônimo vem a dar no mesmo. Quando a pessoa é conhecida fica lutando pelo anonimato porque sente a mesma carência que o anônimo. Na verdade são os dois lados de uma moeda, é a mesma realidade, a mesma coisa, são umas tão carentes quanto as outras, em minha opinião. Naquela peça Roda Viva, do Chico, no texto tinha aquele negócio do artista que perdia a pureza de uma pessoa, se tornava um ídolo e então se estragava. Na verdade, eu não vejo necessariamente uma maior pureza em meu pai, que foi funcionário público dos Correios e Telégrafos* durante toda a vida do que no Roberto Carlos, que é um ídolo. São dois lados de uma mesma realidade.

O PASQUIM – O que você tem vontade de fazer em cinema?

CAÊ – Eu não sei. Eu só poderia dizer se eu fizesse pra ver o que eu queria. Eu gosto muito de cinema e mesmo quando eu ainda morava na Bahia eu escrevia artigos sobre cinema.

O PASQUIM – Você tem algum projeto um pouco mais concreto sobre negócio de cinema?

CAÊ – Eu tive alguns pequenos projetos concretos nessa época que eu escrevia críticas sobre cinema. Mas eu já fazia música, e depois me profissionalizei como músico, cantor e compositor e nunca mais planejei nada concreto pra fazer em cinema. Eu tenho idéias esparsas, imagens que me vêm à cabeça, certos movimentos de uma pessoa em campo.

O PASQUIM – Você vai muito ao cinema?

CAÊ – Eu ia muito. Depois eu passei um tempo indo muito menos porque eu estava trabalhando muito e não tinha tempo. Mas agora eu tenho ido bastante.

O PASQUIM – Você está pensando em voltar pra Bahia?

CAÊ – Você tem razão. Apesar de eu ficar falando nesse negócio da Bahia, na verdade eu morei no Rio e em São Paulo e trabalhei nos dois lugares. Acontece o seguinte: eu fui morar no Rio mais ou menos por acaso. Eu não saí daqui tanto porque eu queria ir. Eu fui porque a Bethânia tinha só 18 anos e meu pai pediu que eu fosse com ela enquanto ela fazia o Opinião e depois trazê-la de volta. Era uma esperança meio irreal do meu pai, porque ele não contava que o espetáculo fosse fazer sucesso com Bethânia e ela fosse ficar lá. Eu nem estava pensando no Rio de Janeiro. Eu estava numa fazenda de um amigo meu, descansando nas férias, nessa época eu estava na universidade, e na volta passei em Santo Amaro pra ver minha outra irmã, que é casada e mora lá. Quando eu estava lá, chegou Bethânia, e quando ela chegou nós recebemos um telefonema de Salvador, de Nilda Spencer, dizendo que ela tinha recebido um telefonema do Rio, do pessoal do Teatro Opinião, chamando Bethânia pra ir correndo pro Rio pra fazer um teste pra fazer o espetáculo Opinião. A Nara tinha visto a Bethânia cantar na Bahia e tinha dito que ela era legal, cantava bem. Aí eu fui com ela. Todo mundo ficou meu amigo, meu conhecido, falaram que minhas músicas eram bacanas, Bethânia gravou logo uma música minha, De Manhã, e eu fui ficando. Não estou dizendo que isso foi um destino terrível, que me afastou da Bahia, mas o acaso ajudou tudo. Eu não sabia o que eu ia fazer da minha vida, não sabia como eu ia ganhar dinheiro nem nada, eu era muito desorganizado.

O PASQUIM – Você nunca tinha ido ao Rio?

CAÊ – Entre 13 e 14 anos eu morei um ano em Guadalupe, entre Deodoro e Marechal Hermes, na casa de uns primos meus. Eu voltei pra Bahia. Eu não sabia o que eu ia fazer da vida, estava sem projeto nenhum ainda, estava com saudades da Bahia, então eu voltei. Disse no Rio: eu vou pra Bahia, vou ficar um mês lá, depois eu volto pra trabalhar, mas eu tenho que ir lá pra saber se eu quero vir. Fui pra ficar um mês e fiquei um ano. Isso foi em 1965. Em 1966 eu resolvi voltar porque eu estava sem estudar, sem fazer nada, não tinha dinheiro, andava a pé porque não tinha dinheiro pra táxi. Pedia dinheiro a meu pai só pra ir ao cinema. Eu ia ao cinema todo dia. Via, às vezes, dois, três filmes por dia.

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O PASQUIM – Teu percurso foi Santo Amaro-Rio ou Salvador-Rio?

CAÊ – Eu nasci em Santo Amaro e vivi lá até 18 anos, daí eu vim pra Salvador e passei quatro anos aqui, depois eu fui pro Rio. Em 1966 eu resolvi ir pro Rio pra ver se eu gravava alguma coisa, se eu trabalhava, porque eu estava aqui pedindo dinheiro ao meu pai pra ir ao cinema. Meu pai não tem muito dinheiro, é funcionário público aposentado, vida mediana, baixa classe média. Quando eu estava na Bahia, os caras da TV Excelsior tinham vindo aqui buscar uma música minha pro Festival da TV Excelsior. Eu tinha feito uma música, Boa Palavra, então eu botei no festival. Quando eu cheguei no Rio a música estava fazendo sucesso, tinha tirado segundo ou terceiro lugar*. Aí eu fiquei no Rio, fiz várias músicas, fiz Um Dia, que ganhou o prêmio de melhor letra do Festival da Record. A Philips me contratou, contratou a Gal, eu gravei Domingo, aquele LP, com a Gal. A coisa tradicional deu certo, então eu fiquei lá. Eu não estou dizendo que eu fui pro Rio sem querer não. Foi uma coisa muito desorganizada, não chegou o dia em que eu tomei a decisão de sair da Bahia e tentar a vida. Foi tudo me acontecendo assim.

O PASQUIM – Ainda sobre aquele negócio, do sucesso: você é um ídolo. Fala sobre isso.

CAÊ – Eu falei que esse negócio de ser anônimo ou famoso são dois lados de uma mesma moeda, que a mesma carência que o anônimo tem a celebridade tem, só que do outro lado. Isso pra mim iguala mesmo a condição das pessoas que estão numa e noutra posição. Na verdade nós todos aqui somos celebridades no Brasil. Você que fez a pergunta está na mesma situação que eu e está aí da mesma forma que eu. As dificuldades que a gente tem são dificuldades reais, as outras pessoas têm outras dificuldades.

O PASQUIM – Você já viu algum disco voador?

CAÊ – Eu vi duas vezes.

O PASQUIM – Você pode contar como é que foi?

CAÊ – Eu vi uma vez em Santo Amaro, quando eu era menino, na porta da minha casa. Eu e minha irmã mais velha vimos. Passou no céu uma coisa prateada, redonda e rápida. Nós ficamos assustados, chamamos o resto do pessoal lá de casa, mas foi muito rápido e sumiu.

O PASQUIM – Quantos anos você tinha?

CAÊ – Tinha 12 anos, 13. Quando eu estava na Bahia, morando na Pituba, pouco antes de ir pra Londres vinha eu, Dedé, um amigo meu dirigindo um Volkswagen e uma menina de São Paulo que por acaso estava aqui. Nós vínhamos pela Amaralina, deviam ser 2 horas e o Pedrinho, que estava dirigindo, disse: “Gente, o que é aquilo no céu?” Aí a menina de São Paulo olhou e disse assim: “Vocês não estão vendo que são as casinhas no morro?” Mas ela não conhecia geografia bem, porque era do lado direito, do lado do mar e dali é pra África, né? Era uma coisa grande e parada o que se via no céu. Aí nós fomos correndo acordar o Gil e a Sandra pra verem. Pra chegar em casa tinha que entrar numa transversal e a gente só via a coisa na rua da praia. Eu fiquei na praia gritando pro Gil. Aí o negócio foi embora com uma rapidez incrível. Agora, eu não sei o que é isso. Aconteceu. Na hora todo mundo ficou meio excitado querendo ver, mas depois ficou todo mundo nervoso. Dedé ficou nervosa, ficou até com um pouco de febre de noite.

O PASQUIM – Quer dizer que a letra de London, London, quando diz “meus olhos procuram discos voadores” é verdade?

CAÊ – De uma certa forma tinha a ver com isso. Não que eu tivesse procurado propriamente discos voadores. Mas a idéia do disco voador misturava a presença na Bahia, uma coisa de saudade com uma coisa completamente nova, como uma coisa que não tinha nada a ver com a Bahia nem sequer com Londres. Então, o disco voador quando aparece em London, London pra mim tem o papel de uma coisa que ao mesmo tempo é a saudade e o novo total.

O PASQUIM – Que importância você dá ao seu encontro com os concretos* em São Paulo?

CAÊ – Eu dou uma importância muito grande. Pessoalmente, em primeiro lugar, foi muito importante. Eu me fiz muito amigo do Augusto de Campos, que é uma pessoa maravilhosa, adoro ele. Literariamente, eu tenho muito interesse nas coisas que eles fazem. O problema é que eu sou muito ignorante. Eu não posso de maneira nenhuma querer colocar aqui, teoricamente, os problemas que eles colocam, nem defender nem atacar. Depois das coisas que eu fiz em música popular, das coisas que eu dizia, eu tenho uma concordância enorme com eles, principalmente com o Augusto, que é com quem eu tenho mais contato. Ele entende perfeitamente meus pontos de vista e as coisas que ele diz são muito inteligentes e estão perfeitamente por dentro. Dentro daquele negócio que eu falei das coisas que estavam fora do cerco, sem o beneplácito oficial do bom gosto oficial, os concretos me excitaram demasiadamente a curiosidade. Eles eram pessoas de quem eu só tinha ouvido falar muito raramente em momento assim em que as pessoas estavam gozando, falando como uma coisa ridícula. Quando eu tomei contato com as coisas que eles fazem eu me interessei muito. Se eu tivesse que falar mais longamente sobre isso eu começaria pelo lado indiscutível, que é o lado de levantamento de coisas do passado da literatura brasileira que eles fizeram e de novas posições críticas que eles colocaram em relação à literatura brasileira. Isso é ponto pacífico, eu não conheço ninguém que não reconheça isso neles. O lado mais discutido mesmo é o trabalho poético deles, que é o lado não aceito. Eu começaria por falar nesse negócio, chegaria na poesia com muita simpatia, sem ousar falar demais.