PREFÁCIO

A MPB solta o verbo no Pasquim

Um dia de 1976, perguntei para meu mano, o cartunista Henfil, idealizador do Comando de Defesa do Crioléu, resumido na sigla Codecri, editora do Pasquim: “Sabia que tem um livro de música dentro desse jornal?” “Como assim?”, saltou da cadeira. Ele costumava arregalar os olhos quando não acreditava muito na proposta do interlocutor. Fiz um levantamento das melhores entrevistas musicais do incandescente hebdomadário, e eis que saiu do prelo O Som do Pasquim, agora reprefaciado pelo mesmo autor do primeiro texto e da organização do livro. “Mas tem sentido relançar um livro de entrevistas mais de trinta anos após os depoimentos?”, ele me questionaria hoje, dilatando as pupilas incrédulas. Tem – e muito.

Em primeiro lugar, porque o “Pasca”, como o chamávamos os íntimos, estava no auge, com mais de 250 mil exemplares semanais vendidos nas bancas. E, apesar da agressividade e impertinência das perguntas, movidas a etanol de 12 anos, todos queriam dar (êpa!) entrevista para o jornal. Segundo, porque não havia, como abundam hoje (êpa! êpa!) em boa parte dos casos, as implacáveis barreiras entre os artistas e jornalistas, erguidas por marqueteiros, assessores de imprensa e incontáveis aspones. Ou seja: os músicos punham, literalmente, a(s) boca(s) nos respectivos trombones (sem duplo sentido, por favor). Chico Buarque, gentilmente, procurou o jornal para atualizar sua entrevista, a exclusiva que abre o livro. Nela, relembra o massacre do CCC à sua peça Roda Viva, a derrocada da carreira italiana no exílio voluntário e a prisão na adolescência como “puxador” de carros.

Curiosamente, o único dos arrolados do livro acompanhado de assessor (apresentado como advogado), foi o recém-falecido ídolo brega Waldick Soriano. O que não o impediu de disparar petardos que hoje seriam considerados pra lá de politicamente incorretos. 1) “Sou casado em casa. Saio na rua e ninguém tem nada com a minha vida.” 2) “Mulher deve ser sempre subalterna ao homem.” 3) “Sou a favor do esquadrão da morte, hippie é marginal, maconheiro, safado.” Tiradas de letra, de quem considerava “a vida uma constância de conseqüências de vários gêneros” (ops!). Agnaldo Timóteo trouxe um dicionário para a entrevista (“para procurar as palavras difíceis que vocês falam e a gente não sabe o significado”) e girou a metralha contra os ídolos “de elite”. Sobrou para Caetano, Chico (“eles são o modelo da hipocrisia da imprensa escrita”), Jobim, João Gilberto, Milton, Gil, Vinicius, entre outros. Relendo a entrevista agora, o cantor que virou político pediu espaço para um mea culpa, devidamente concedido. Timóteo também relatou, na época, para espanto dos entrevistadores, ter sido o portador de um documento que achacava o poeta e supermercadista Augusto Frederico Schmidt (dono da finada cadeia Disco). Foi recebido com um revólver na cara.

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O genial rei do baião Luiz Gonzaga lembra o tempo em que cantava e passava o pires na Zona do Mangue, além da “cascata” do produtor Carlos Imperial de que os Beatles iriam gravar Asa Branca. Não gravaram. Mas o popstar escocês David Byrne (ex-Talking Heads) o fez recentemente, em versão para o inglês de próprio punho. O classudo Tom Jobim rebobina um revés sexual inimaginável: “A primeira mulher branca que peguei, rendeu uma doença que levei dois anos para curar, quase morri.” Para livrar-se de ser jurado do Festival Internacional da Canção, Jobim inscreveu como concorrente “uma música cheia de modulações, toda complicada, nada popular”. Resultado: Sabiá, letrada por Chico Buarque, ganhou o festival – e vaias avassaladoras. Martinho da Vila levou um piche de Aracy de Almeida. “Ela disse que eu precisava de um freiozinho para não superar Noel Rosa, que é o maior do Brasil”, desculpou ele, numa entrevista ao especialista em samba da casa, Sérgio Cabral, atual pai de Governador. Em estrondoso sucesso, no final de 1969, Martinho, hoje consolidado no ramo, não previa uma carreira longa. “Como o meio artístico pra mim é um troço que vai passar, não preciso fazer concessão, né?”

Caetano carrega na autocrítica. “Não tenho uma musicalidade excepcional. O meu negócio foi que eu tinha algumas idéias sobre o problema da música popular no Brasil e coloquei essas idéias em ação.” E, dialético, diagnostica o impasse tropicalista: “Me interessei pelas coisas que o cerco do bom gosto da bossa nova deixava de fora. Mas o mau gosto ficou na moda, então, virou a mesma coisa que a bossa nova.”

Conquistador impenitente, o gaúcho Lupicínio Rodrigues, que fazia ponto num bar grego da Barata Ribeiro, em Copacabana, inventariou as musas que valeram êxitos nacionais de sua lira, como Vingança e Nunca. Modesto, definiu-se: “Não sou compositor, cantor, nem músico; sou boêmio.” Depois de ter tocado pandeiro e guitarra para Jerry Adriani, Raul Seixas passou “dois anos de fome na Cidade Maravilhosa”. Voltou pra Bahia e acabou num psiquiatra, “completamente pirado”. Mas isso foi antes de ver um disco voador na então deserta Barra da Tijuca, com o parceiro ilustre Paulo Coelho, e criar o “iê-iê-iê realista”. Numa confissão que entrou para a história da MPB – “Geraldo Pereira me vendeu Na Subida do Morro por um conto e trezentos” –, Moreira da Silva ainda profetizou a ressurreição da Lapa. “Sonhei que a Lapa boêmia dos meus cabarés/ voltava trazendo de novo a cidade a seus pés.” O Som do Pasquim continua sendo.

Tárik de Souza

(2008)

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