4 Possíveis contribuições metodológicas da fenomenologia de Merleau-Ponty às pesquisas em Educação em Ciências

Ana Carolina Biscalquini Talamoni1; Cláudio Bertolli Filho2

O presente artigo tem por objetivo discutir possíveis aportes metodológicos oferecidos pela fenomenologia de Merleau-Ponty às pesquisas em Educação em Ciências em contrapartida às tendências atuais de investigação na área que apontam para uma predominância das abordagens construtivistas, que implicam uma perspectiva cartesiana do sujeito cognoscente.

Uma das problemáticas com as quais se deparam os pesquisadores da área de Educação em Ciências relaciona-se, sobretudo, às limitações metodológicas colocadas pelas propostas de investigação existentes, amplamente divulgadas e utilizadas, cujo empréstimo, das Ciências Sociais aplicadas, nem sempre dão conta da abordagem analítica, mais compreensiva, que a natureza dessas primeiras pesquisas, altamente interdisciplinares, requer. Ao se designar uma pesquisa como pesquisa qualitativa subentende-se que ela se caracteriza pela “obtenção de dados descritivos, obtidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais o processo do que o produto e se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes” (Bogdan & Biklen, 1982, apud Lüdke & André, 1986, p.13). Sua execução pressupõe que o investigador se preocupe “menos com a generalização e mais com o aprofundamento e abrangência da compreensão seja de um grupo social, de uma organização, de uma instituição, de uma política ou de uma representação” (Minayo, 2000, p.102).

As pesquisas denominadas qualitativas têm sido utilizadas e amplamente referendadas nas investigações em Educação em Ciências, justamente por permitir a priori esse aprofundamento na análise das situações de ensino e aprendizagem que constituem uma série de especificidades dessa área.

A Educação em Ciências e as investigações acerca das representações

A incorporação das disciplinas de ciências naturais no âmbito da Educação é um fenômeno relativamente recente, que ganhou forças sobretudo na segunda metade do século XX. Teria sido principalmente após a Segunda Guerra Mundial, e mais especificamente com a “construção e lançamento da bomba atômica”, que a ciência e a tecnologia (aqui entendida como aplicação do conhecimento científico na vida coletiva e individual) “transformaram-se em grandes empreendimentos, nomeadamente na vertente aplicada, envolvendo muito dinheiro, definindo a competitividade e o poder bélico das nações”. Assim, a ciência e a tecnologia passaram a ser, nas análises de Canavarro (1999, p.81), dois importantes determinantes da sociedade, do seu desenvolvimento, da sua cultura e sobrevivência.

A transição de uma educação clássica para uma educação mais “pragmática”, com base científica, tornou-se imprescindível nesse cenário, para que os cidadãos fossem, enfim, capazes de lidar com um conjunto de questões ainda não contempladas pelo sistema educativo e que perpassavam pelas possíveis consequências do desenvolvimento tecnológico nas sociedades em geral.

Para garantir a aprendizagem de conteúdos científicos, várias pesquisas e modelos de ensino e aprendizagem foram sendo paulatinamente propostos. Mesmo partindo de epistemologias diversas, parece consenso que a educação científica deve estar alinhada às necessidades sociais, oferecendo novas ideias e contribuindo, assim, para o desenvolvimento e aprimoramento de habilidades e competências nos indivíduos. Tal proposta favorece que os educandos se desenvolvam, autorregulem suas aprendizagens, daí decorrendo os sentimentos de satisfação pessoal e responsabilidade social (Canavarro, 1999, p.89).

Nesse momento, tornou-se imprescindível a investigação acerca dos processos cognitivos e metacognitivos envolvidos na realização de uma aprendizagem com significado, já que somente esse tipo de aprendizagem permitiria aos indivíduos lançar mão de seus conhecimentos em benefício da existência individual e da vida coletiva. Tais observações remetem à influência da visão construtivista na Educação em Ciências, e, mais especificamente, no processo de ensino-aprendizagem das ciências, pois se centrou predominantemente na construção de conhecimentos com significado, contextualizados, ensinados e aprendidos num determinado contexto (sala de aula), porém com aplicação ou generalização a tantos outros, tais como a vida cotidiana.

Aprender ciências, para além de uma apropriação indiscriminada de conteúdos, deveria importar aos alunos como uma forma de se relacionar e compreender o meio em que estão inseridos (Canavarro, 1999, p.95).

Nesse contexto, as pesquisas referentes às concepções espontâneas, concepções alternativas, errôneas, ou simplesmente das “representações” dos alunos acerca dos fenômenos naturais foram amplamente disseminadas, culminando com o advento da teoria da mudança conceitual (Posner et al., 1982).

A partir disso é possível constatar a forte tendência de considerar as teorias construtivistas como as mais adequadas e coerentes tanto para compreender o ensino e a aprendizagem de conteúdos científicos como para lançar luz a práticas pedagógicas específicas.

Ao refletir sobre como os indivíduos aprendem, e considerando também as dificuldades inerentes ao processo de ensino e aprendizagem das ciências, pesquisadores da área de Educação em Ciências puderam fazer algumas constatações importantes, como salientam Bastos et al. (2004, p.10):

duas importantes suposições tornaram-se possíveis: os alunos, a partir de suas experiências com objetos, eventos, pessoas, informações da mídia, etc., constroem por si mesmos uma variedade de ideias e explicações acerca das coisas da natureza; as ideias e explicações construídas pelos alunos podem ser consideravelmente resistentes à mudança e funcionar como importantes obstáculos à aprendizagem escolar.

Tentando resolver o impasse cognitivo que se estabelece nos indivíduos diante da incompatibilidade das concepções espontâneas e das ideias/explicações científicas acerca dos fenômenos da natureza, surgiu a partir da década de 1980 uma série de

debates e pesquisas que visavam estabelecer de que forma essas concepções poderiam ser eliminadas ou transformadas, dando lugar a concepções mais coerentes com os conhecimentos científicos atuais. Surgiram então diversos trabalhos que tinham como finalidade discutir os processos mentais que conduzem à mudança conceitual e identificar as condições objetivas (contextos de ensino e aprendizagem) que estimulam o indivíduo a voluntariamente substituir suas concepções alternativas por concepções mais adequadas do ponto de vista científico. (Bastos et al., 2004, p.10).

Apesar desse amplo mapeamento realizado nas décadas de 1970 e 1980, é possível constatar que essas concepções espontâneas – por serem frutos de um conhecimento tradicional, cujas bases são culturais – sempre persistirão, motivo pelo qual as pesquisas acerca das representações de alunos e professores ainda figuram como um tema atual na área de Educação em Ciências.

Piaget, Vygotsky e a inversão da origem do pensamento

A teoria da mudança conceitual proposta por Posner et al. (1982) foi sem dúvida um marco nas pesquisas em Educação em Ciências. No entanto, a forte influência da epistemologia genética de Piaget não pode ser ignorada. Dos empréstimos da terminologia piagetiana à compreensão de como os indivíduos aprendem, esteve presente em tais pesquisas, de forma implícita ou explícita, a ideia de que os conhecimentos (cotidianos, científicos ou de outra natureza) correspondem a construções da mente humana e não a descrições objetivas da realidade concreta (Bastos et al., 2004, p.11).

Essas construções, no entanto, situam-se, no pensamento de Piaget, no cerne da capacidade cognitiva do indivíduo enquanto uma predeterminação biológica (Piaget, 1997), sendo que a linguagem nesse contexto figura como uma capacidade adquirida pelo sujeito em função da maturação biológica do sistema nervoso (e, mais especificamente, do cérebro) associada às interações sociais realizadas ao longo do processo de desenvolvimento. A hipótese sobre a qual Piaget se baseia, e que Posner et al. (1982) reiteram, é a de que o pensamento (cogito) precede a linguagem, pois figura numa capacidade inata dos seres humanos, baseada no cogito cartesiano representado pela máxima “Penso, logo existo”.

Uma renovação possível da compreensão de como se dá a construção do conhecimento no homem adveio das pesquisas de Vygotsky sobre a importância fundamental dos sistemas simbólicos na mediação da relação entre o homem e o mundo. A base biológica da capacidade cognitiva dos sujeitos (o cérebro, o sistema nervoso, etc.) é, para o referido autor, também a base sobre a qual se desenvolvem as funções psicológicas superiores. No entanto, os limites e possibilidades dessas funções não seriam fixos e imutáveis como propõe Piaget (1997) através dos estágios de desenvolvimento por ele sugeridos. O homem, para Vygosky, é um ser sócio-histórico, sendo a cultura parte essencial da constituição da natureza humana.

O conceito de mediação na relação homem/mundo proposto por Vygotsky passa por dois pressupostos importantes: o primeiro refere-se ao uso de instrumentos, criados e utilizados no desenvolvimento de atividades coletivas, e que, enquanto produtos da cultura, trazem consigo a função para a qual foram criados, ou seja, o significado em si. O segundo refere-se à existência dos signos, elementos de percepção e organização do “real”, fornecidos pela cultura e através dos quais o indivíduo “decifra” o mundo. Sua função é semelhante à dos instrumentos, pois correspondem a “instrumentos psicológicos” no campo da cognição (Oliveira, 2006).

O processo de internalização dos signos é o que permite ao indivíduo desenvolver sistemas simbólicos através dos quais se torna possível a representação da realidade. Dentre esses sistemas, figura a linguagem. Ora, se a linguagem é uma forma de ordenação do real sob categorias conceituais, ela é também o instrumento do pensamento, já que fornece os conceitos e formas de organização do real que constituem a mediação entre o sujeito e o objeto. A palavra precede o pensamento. No entanto, uma questão central da teoria vygotskyana, por sua filiação marxista, é que esse processo de interiorização dos signos não se dá de forma passiva pelo sujeito, mas por meio de uma negociação simbólica através da qual se opera uma síntese. O indivíduo não se apropria automaticamente de um signo, ele se apropria de um signo cujo significado é subjetivo.

Nesse sentido, existem diferenças irreconciliáveis entre a epistemologia genética de Piaget e a teoria sócio-histórica de Vygotsky. No entanto, não é incomum que ambas sejam rotuladas como “construtivismo”, e que, em função de um termo comum, perpetuem-se confusões no campo epistemológico, metodológico e analítico de algumas pesquisas em Educação.

A importância das considerações até então realizadas sobre as tendências teóricas nas pesquisas em Educação em Ciências deveu-se à tentativa de retificação da predominância de uma perspectiva cartesiana do indivíduo nas pesquisas da área, o que, ao longo do processo de investigação científica, faz aflorar uma série de problemas relativos ao paradoxo: privilegiar a atividade cognitiva que leva o sujeito de um estado de menor conhecimento a um estado de maior conhecimento, ignorando os aspectos subjetivos envolvidos no processo de aprendizagem, ou admitir a existência e presença dessa esfera subjetiva que, se está presente nos sujeitos da pesquisa, também se faz presente na figura do pesquisador?

Numa abordagem mais humanista da Educação, originou-se uma série de pesquisas, subsídios teóricos e reflexões sistemáticas, em uma tentativa de resgate do sujeito individual, da história de vida do sujeito e dos elementos objetivos e subjetivos que influem no processo de aprendizagem, no processo de ensino e na constituição de uma identidade docente (Nóvoa, 1992; Tardif, 2002; Tardif & Raymond, 2000; Alarcão, 1996; Marcelo García, 1999; Schön, 2000, dentre outros). No entanto, quanto aos subsídios teóricos às pesquisas qualitativas, persistem sempre as dúvidas no que se refere à influência da subjetividade do pesquisador, em contrapartida à necessidade de preservação da neutralidade científica, problemática esta a ser contornada pela utilização rigorosa de técnicas de coleta de dados.

Dentre as técnicas previstas para as pesquisas qualitativas, é possível encontrar menções recorrentes à observação, observação participante, aplicação de questionários (abertos, fechados), entrevistas (abertas, fechadas, estruturadas, semiestruturadas, etc.), que devem ser rigorosamente registradas, mensuradas, filmadas, gravadas, a fim de preservar a objetividade científica que tais pesquisas requerem. E para que essa objetividade seja resguardada, os dados devem ser descritos com o mesmo rigor com que foram coletados, a partir de uma linguagem científica igualmente rigorosa. No entanto, os termos a partir dos quais certas técnicas são “escolhidas”, alguns dados são salientados e tantas outras palavras e conceitos são utilizados na interpretação dos resultados de uma pesquisa científica passam pelo crivo do pesquisador.

O pesquisador, que escolhe com rigor científico seus referenciais teóricos e aportes metodológicos, não deixa de ser, no entanto, o sujeito que conduz a investigação, e suas escolhas, por mais rigorosas e concisas que sejam, sempre eliminam uma gama de outras possibilidades igualmente válidas, o que permite afirmar que o crivo científico é também um crivo pessoal. É justamente a partir da constatação de que as pesquisas qualitativas em Educação e, mais especificamente, das pesquisas em Educação em Ciências não podem dar conta de seus objetos se não admitirem que o esvaziamento do homem pretendido pela perspectiva cartesiana é um projeto inviável, que este trabalho almeja ressaltar o sujeito da pesquisa numa abordagem fenomenológica.

A percepção: entre o fato preciso de existir e a capacidade de pensar

Merleau-Ponty (2006) realiza um desdobramento rigoroso das faculdades sensoriais que permitem ao sujeito humano apreender o mundo real e construir conhecimentos sobre este mesmo mundo. As críticas de Merleau-Ponty ao cogito de Descartes, e às consequências dessa concepção na construção de conhecimentos na modernidade, não se dá apenas pela maneira como o corpo e, mais especificamente, a percepção, foram subtraídos do processo de conhecer, mas também pela supremacia que esse conhecimento tomou para si, em detrimento da experiência através da qual ele pode ser concebido, e, então, pensado:

Eu não sou o resultado ou o entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam meu corpo e meu “psiquismo”, eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente o seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma determinação ou explicação dele. (Merleau-Ponty, 2006, p.3)

É o indivíduo que faz ser para si, na experiência de ser ele mesmo, tudo aquilo que ele é ou pensa ser. É ele quem olha o mundo, percebe esse mundo e o significa, e esse movimento o autor considera um “retornar às coisas mesmas”. Na busca das essências, exercício fundamental do olhar fenomenológico sobre as coisas, o “retornar” a este mundo se refere à possibilidade de voltar-se à experiência de viver o mundo, de inserir-se nele como uma experiência original anterior ao conhecimento; é retornar ao ponto no qual a percepção se dá antes de ser capturada pela consciência e subsumida pelo conhecimento; é retornar ao momento em que a experiência não faz parte do conhecimento sobre o qual “o conhecimento sempre fala”.

As percepções se dão de forma aleatória, e na maioria das vezes não podem ser ligadas ao contexto percebido de forma consciente. Para Merleau-Ponty (2006, p.6), a percepção

não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual possuo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas.

No entanto, se o mundo existe enquanto campo profícuo no qual se dão todas as percepções, é preciso considerar que estas se dão de forma subjetiva, no plano da experiência, já que não é possível conceber que todos os indivíduos se apercebem dele da mesma maneira. Aperceber-se de uma cor de um dado objeto significa percebê-los enquanto a sensação de sê-los eles mesmos, uma determinada cor ou objeto, cuja denominação ou conhecimento propriamente dito só se torna possível através do tempo e da linguagem, dos quais emana a capacidade dos sujeitos de se comunicar; é no campo da intersubjetividade, portanto, que as percepções podem ser compartilhadas, racionalizadas, possibilitando um “mundo comum”.

Tudo que é percebido (ou a “unidade da coisa”) o é primeiramente no plano da experiência. As denominações ou atribuições de sentido que dela decorrem são um exercício da consciência, que busca a compreensão a partir de semelhanças e contiguidades, ou melhor, a partir daquilo que ela já conhece. A “unidade da coisa” na percepção não é construída pela associação, mas é condição da associação, e só ocorre porque de certa forma já foi apreendida, de modo que essa primeira impressão jamais se associará a outra impressão sem passar primeiro pelo crivo da consciência.

Percepção, linguagem e conhecimento em Merleau-Ponty

A função essencial da percepção, para Merleau-Ponty (2006, p.40), é a de inaugurar o conhecimento, o que se dará sempre de forma subjetiva, já que todo conhecimento advém da experiência sobre a qual se desdobra a linguagem que permite o “pensar sobre”. A linguagem, num primeiro momento, pode ser compreendida como “um conjunto de imagens verbais ou traços deixados em nós pelas palavras pronunciadas ou ouvidas”. As palavras parecem, num primeiro plano, ser dotadas de um sentido e de uma certa configuração sonora, sem o que elas não existiriam e não expressariam.

A fala, por sua vez, estaria presa às palavras de forma que toda linguagem poderia ser reduzida a uma “linguagem concreta”, ou seja, aquela que pode se manifestar inconscientemente, automaticamente e, inclusive, não dizer nada para aquele que fala. Por outro lado, o uso da fala por um homem, com a intenção de expressar uma determinada atitude ou ideia, poderia transformar a linguagem em um “fenômeno de pensamento”, o que Merleau-Ponty (2006) denomina de “linguagem gratuita”.

No ato de falar, dispondo-se das palavras, encontra-se a capacidade da consciência em “subsumir um dado sensível a uma categoria”. Mas se o ato de falar só dispusesse dessa determinada habilidade, a consciência faria da palavra, em última análise, uma palavra vazia. Nessa linha de raciocínio é que foi dada à linguagem a característica de ser a expressão do pensamento, como se o pensamento precedesse a fala na intenção de buscar, na consciência, as palavras mais adequadas, com seus respectivos significados, para o estabelecimento de uma comunicação objetiva.

O que o autor busca elucidar é justamente o fato de que a palavra não pode existir sem seu sentido: ela tem um sentido imanente, e o pensamento não precede a fala, ele é a própria fala, que se articula a partir dos recursos linguísticos e dos signos verbais que tornam possível, em meu corpo, a articulação das ideias. Um pensamento, portanto, não existe fora dos horizontes da fala e da comunicação, ele não existe sem as palavras.

Da mesma forma, “a denominação dos objetos não vem depois do reconhecimento, ela é o próprio reconhecimento” (Merleau-Ponty, 2006, p.242). Retomando o fenômeno da percepção, o que o autor salienta é que um objeto percebido pode ser por mim reconhecido porque os objetos que conheço possuem um sentido intrínseco, que é parte da identidade de meu corpo próprio, e é nesse sentido que “reencontro o mundo em mim”, em um “verdadeiro cogito”:

não preciso representar-me a palavra para sabê-la e para pronunciá-la. Basta que eu possua sua essência articular e sonora, como uma das modulações, um dos usos possíveis de meu corpo. Reporto-me à palavra, assim como minha mão se dirige para o lugar de meu corpo picado por um inseto; a palavra é um certo lugar de meu mundo linguístico, ela faz parte de meu equipamento, só tenho um meio de representá-la para mim, é pronunciá-la, assim como o artista só tem um meio de representar-se a obra na qual trabalha: é preciso que ele a faça. (Ibidem, p.246)

Se não represento em minha mente aquilo que quero dizer, nem necessito formular em pensamento a minha fala, é porque a minha fala é o meu pensamento, e meu corpo, “um poder de expressão natural” através do qual posso comunicar. A fala e o pensamento “estão envolvidos um no outro, o sentido está enraizado na fala, e a fala é a existência exterior do sentido”; a palavra e a fala não devem se resumir a uma maneira de designar objetos, mas, antes, devem ser a presença de meu pensamento no mundo.

Ora, se, para a fenomenologia, a existência pressupõe a transcendência, é preciso considerar a possibilidade de que o sentido não encerre as palavras, que as palavras não encerrem a fala e que a fala não encerre a linguagem e sua “potência de significação” porque, para além da “significação conceitual” da qual dispomos nas palavras, existe a “significação existencial” que as habita. É preciso, portanto, admitir que para além dos conceitos, que fazem parte do mundo linguístico, existe a possibilidade de o homem, no movimento de sua existência, apropriar-se de palavras ou gestos de uma forma subjetiva; significa considerar que no mundo intersubjetivo as palavras transcendem seu sentido, e que a possibilidade de comunicação não deve se encerrar na impossibilidade da linguagem de nos exprimir.

Assim, se a fala é o único ato de expressão capaz de “constituir um saber intersubjetivo” – porque é privilegiada por um exercício da “Razão” –, ela também possui um sentido existencial, já que as palavras são habitadas por um “sentido vivo” que não pode ser evocado. Destarte, a linguagem só pode ser compreendida como “uma tomada de posição do sujeito no mundo de suas significações”, uma maneira particular de nosso corpo (enquanto “potência de significação”) se desempenhar, e esse “corpo-sujeito-pensante”, por estar fundado no “corpo-sujeito-encarnado”, faz reviver a fala e a linguagem de um modo autêntico, emprestando-lhes, muitas vezes, um novo sentido.

Todo ato de expressão constitui o mundo linguístico e cultural do homem. O uso da fala, das palavras, ou de um sistema simbólico é o que possibilita aos sujeitos estabelecer uma comunicação intersubjetiva. Também é essa apropriação tácita das palavras que limita o homem na expressão de suas experiências, ou seja, ao mesmo tempo em que a linguagem permite ao homem “exceder sua existência por sobre o ser natural”, a sua “aquisição torna impossível outros atos de expressão autêntica”. Como já explicitado, a linguagem que exprime o homem só não se encerra nela mesma porque pode ser retomada pelo próprio homem num sentido transcendente.

O autor observa que, nos estudos sobre o pensamento, a fala e a linguagem, esses elementos sobressaíram-se do corpo, como se querendo expressar, ou melhor, manifestar, uma outra “potência” que o habitava (fosse ela a consciência ou a própria alma). O corpo como a fonte de todas as percepções, e as percepções como todo o conhecimento originário do mundo, fez contestar mais uma vez essa visão cartesiana, porque é ele (o corpo) quem exprime todo pensamento à medida que “precisa tornar-se o pensamento ou a intenção que ele nos significa. É ele que mostra, ele que fala” (Merleau-Ponty, 2006, p.267).

A visão cartesiana deixou seus prejuízos no estudo da percepção e do corpo, mas também na forma como foram sistematizados os conhecimentos modernos. O problema que se coloca, e que Merleau-Ponty (2006) empenha-se em esclarecer, consiste no prejuízo do pensamento objetivo, que deslocou do mundo seus objetos, “deixando apenas dois sentidos para a palavra existir: ou existe-se como coisa ou existe-se como consciência” (ibidem, p.268).

No cogito, todo ato de conhecimento deriva do pensamento: ele jamais poderia corresponder a um instante, nem a existência do sujeito ou da coisa em si poderia ser atestada, senão pelo meu próprio pensamento de existir e de ver; essa correspondência entre o conhecer e o pensar é uma redução das experiências dos sujeitos em acontecimentos psicológicos.

Quando o cogito propõe que as coisas do mundo correspondem ao pensamento que tenho delas, ele destitui a experiência da vida do sujeito e o conhecimento é um conhecimento vazio. O problema está em como seria possível elevar a um status de juízo/ideia da coisa um pensamento sobre ela cujo fundo de realidade só existe na consciência que a constituiu.

Ora, se “a consciência constituinte é, por princípio, única e universal”, todo conhecimento que dela deriva se fecha em si mesmo e em sua abstração, e aceitá-la como constituinte do mundo significa subtrair do mundo a sua concretude, a sua facticidade. Sendo assim, um dos problemas a partir dos quais o cogito pode ser repensado consiste no fato de que todo pensamento, assim como toda percepção, possui uma mesma ancoragem, que é a do mundo vivido.

Se o pensamento de ver equivale a ver, e o de sentir equivale a sentir, evocar esses verbos na tentativa de explicitar um certo conhecimento ou pensamento de si ou das coisas (o que em última instância exprime a minha interação com o mundo ou a maneira como o concebo) pressupõe que, em algum instante, eles mesmos, enquanto atos, tenham sido atestados no nível da experiência como uma “visão autêntica ou efetiva à qual o pensamento de ver se assemelha e na qual, desta vez, a certeza de ver esteve envolvida” (Merleau-Ponty, 2006, p.501). Para ter o pensamento de que vi, é preciso que alguma vez eu “realmente” tenha visto, e esse retorno à percepção funda um “novo cogito”.

A perspectiva de Merleau-Ponty sobre a origem do conhecimento, ao enfocar a importância do corpo e da percepção nesse processo, não deixa dúvidas a respeito do caráter subjetivo pelo qual as representações são primeiramente concebidas. O uso da linguagem no pensamento e, consequentemente, na comunicação humana, passa sempre por essa esfera, o que se configura em um problema às pesquisas qualitativas em educação na medida em que a observação e a descrição de dados de pesquisa implicam o uso de palavras cujo significado é para sempre “fugidio”.

A linguagem científica, nesse sentido, cumpre o papel de modular a própria linguagem numa esfera cultural específica, a da Ciência (Mortimer, 1994). No entanto, a questão que persiste no pesquisador refere-se ao que se ganha e ao que se perde, nesse processo de filtragem da realidade, das representações, enfim dos dados coletados, pela forma do pensamento e das descrições científicos. É possível apreender a realidade vivida de professores e alunos, suas ideias e as formas como essas ideias repercutem no ser professor, no ser aluno, no “ser”?

Observação, observação participante, descrição e “descrição densa”

Uma perspectiva fenomenológica do sujeito e do processo de construção de conhecimentos (sejam estes científico ou não) abre uma gama de possibilidades no processo de coleta e análise de dados de pesquisa, a começar pela amplidão a partir da qual certas técnicas podem ser (re)pensadas.

A observação, enquanto técnica fundamental nas investigações em educação por permitir o maior contato do pesquisador com o lócuspesquisado, comumente é diferenciada da observação participante quanto ao nível de envolvimento e ao grau de intervenção do primeiro no segundo (Lüdke & André, 1986; Fals Borda, 1999). O problema da observação e de como ela se desenrola ao longo do processo também traz um problema subsequente, que se refere à descrição rigorosa e objetiva do observado. Uma técnica não pode existir sem a outra, e, mesmo quando o pesquisador opta por uma observação sistemática ou por gravações em vídeo, ainda existirá o momento em que esses dados deverão ser analisados.

Em uma abordagem metodológica fundamentada na fenomenologia de Merleau-Ponty, a presença do pesquisador como sujeito da observação e da descrição se faz inerente, está pressuposta, e nenhuma tentativa de neutralidade poderá “apagar” esse fato existencial e as possíveis alterações que dela decorrem. Assim sendo, não existe observação que não seja “participante”. O pesquisador “está lá” (no sentido de “estar ali”, como propõe Geertz, 1978).

Com relação ao processo de descrição nas análises qualitativas, é importante salientar algumas considerações tecidas por Martins (1997, p.51), que se referem ao problema da linguagem, ou melhor, do “interior da linguagem na qual o homem está mergulhado, na maneira pela qual representa em si, falando o sentido das palavras ou das proposições e, finalmente, obtendo uma representação da própria linguagem”. Para o autor, o homem nunca está liberto da forma existencial pela qual interpreta o mundo, de onde surge a pertinência e também as limitações dos conceitos descritivos e morfológicos através dos quais se configuram as ideias.

A descrição nas pesquisas qualitativas tem sempre um objeto, motivo pelo qual ela necessita ser objetiva. No entanto, o que Martins (1997) salienta é que a descrição, em seus próprios termos, designa “algo escrito para fora” (p.54), ou seja, para alguém que não esteve presente, que não conhece aquela realidade, cujo sentido só é possível se apreender na medida em que “o objeto existir ao tempo em que está sendo descrito” (p.54).

Nesse encaminhamento, é possível mencionar a “descrição densa” de Clifford Geertz (1978), que, ao considerar incompatível o projeto de uma “descrição neutra” acerca de qualquer “realidade observada”, propõe que a descrição tenha por objetivo maior possibilitar a compreensão das estruturas significantes implicadas na ação social observada em detrimento de um suposto “diagnóstico” de uma cultura ou realidade. Trata-se, para o antropólogo, de uma possibilidade de “alargamento do universo do discurso humano” (Geertz, 1978, p.24), de diálogo entre a cultura do pesquisador e do grupo/mundo pesquisado. A descrição, nesse sentido proposto pelo autor, pode propiciar o aprofundamento das análises requeridas pelas pesquisas qualitativas que almejam uma maior compreensão das representações subjetivas que subjazem ao entendimento do mundo e, sobretudo, dos fenômenos naturais que nunca cessam de requerer a atenção humana.

Considerações finais

As pesquisas em Educação em Ciências, ao assumirem uma perspectiva construtivista do conhecimento, deram um salto qualitativo no entendimento dos processos pelos quais o ensino e a aprendizagem das ciências podem se tornar frutíferos. No entanto, em termos metodológicos, torna-se premente uma revisão das bases teóricas até então utilizadas e, quiçá, uma maior atenção aos aportes oferecidos pela fenomenologia, através da qual toda pesquisa qualitativa em Educação revela-se fundamentalmente participante.

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