TAPLOW, BUCKINGHAMSHIRE, INGLATERRA, 27 DE JULHO DE 1946
Pouco depois de descer do comboio em que embarcara em Londres, Manuel Arroyo Benítez sentiu uma pontada imprevista de nostalgia.
– Anima-te, homem! – A voz de Pablo de Azcárate parecia descontraída, até risonha, quando lhe telefonara para o obscuro escritório. – Gostando tanto de Londres, como vais perder um weekend? Vem almoçar no próximo sábado, que estamos todos com muita vontade de te ver. Suponho que na tesouraria ainda haja dinheiro para te pagar a viagem, mas se não houver não te preocupes que trataremos disso aqui.
No verão de 1939, Manolo voltara a viver em Genebra, em condições muito diferentes daquelas que o tinham popularizado como Monsieur Agoyo antes de 1936. Meg Williams já não vivia lá. Ao regressar à cidade onde haviam sido tão felizes juntos, Manolo sentiu saudades dela nos dias de sol e nas manhãs nubladas, no sabor dos bombons e nas margens do lago onde já não passeava um cão, nas tascas que os diplomatas não frequentavam e nas esquinas onde marcaram encontro tantas vezes, depois de festas onde quase nem se cumprimentavam. Apesar de só sentir a falta de Meg, a solidão foi o traço principal da sua nova etapa genebrina.
Pablo de Azcárate, que conservava muitos amigos e contactos na Sociedade das Nações, tinha-lhe oferecido um posto oficioso, à margem da exígua representação diplomática a que se podia permitir o governo republicano no exílio. A sua nova missão libertava-o do tédio dos banquetes e dos cocktails de outrora, embora não fosse muito mais apaixonante. Arroyo trabalhava sozinho num pequeno escritório alugado em nome de uma empresa comercial inexistente, mas o seu verdadeiro escritório eram os bancos das praças, os parques e os cafés, que frequentava quase diariamente para conversar com diversos representantes de países neutros e aliados. Tudo o que tinha a fazer em Genebra era comparecer a esses encontros, nos quais se apresentava como Felipe Ballesteros Sánchez, e resumir o que deles resultava nos relatórios que enviava para Taplow quando encontrava lugar em algum avião militar britânico.
Apesar de o salário ser tão baixo que nem chegava para pagar uma renda, Manolo tinha consciência de que o posto seria um privilégio para qualquer exilado que não tivesse servido anteriormente na embaixada republicana em Londres. A salvo da guerra, num país neutro, com autorização de residência na Suíça e um quarto cómodo numa pensão bem localizada, o tédio era um presente em comparação com a dor, a angústia e a fome sofridas pela maior parte dos exilados espanhóis que permaneceram na Europa depois da derrota. E, no entanto, ele teria trocado aquela situação sem hesitar pela intempérie de um campo francês.
Manuel Arroyo Benítez já tinha visto demasiadas lágrimas estremecerem nos olhos dos assassinos da República Espanhola. Tinha ouvido demasiadas palavras de amor e promessas ardentes e compromissos solenes que no fim não haviam passado de uma impostura interminável. Tinha a língua em carne viva de tanto a morder, mas Azcárate fora inflexível da única vez em que se atrevera a pedir-lhe para ser substituído. Sinto muito, Manolo, mas preciso de ti lá. Sei que tens de engolir muitos sapos, porém é fundamental manter a pressão até ao fim da guerra e, para isso, temos de averiguar coisas que não são faladas nos cocktails, de modo que… Ele não insistiu. Fez o seu trabalho e fê-lo muito bem. Engoliu tantos sapos que, em junho de 1945, na Conferência de São Francisco onde foi criada a Organização das Nações Unidas, destinada a substituir a Sociedade de Genebra, vetou-se a presença da Espanha franquista e recebeu-se, em seu lugar, uma delegação de políticos republicanos, com o posto de observadores. Para quem não tivesse sido obrigado a ver a cara de Lorde Windsor-Clive todas as manhãs, teria sido um sucesso estrondoso. Não para Manolo, que nem na sua sombra confiava.
Quando recebeu o telefonema de Azcárate, o seu quotidiano era um decalque amargo, tristíssimo, da experiência dos representantes da Moldávia ou das Repúblicas Bálticas, por quem, à distância, sentira pena, enquanto trabalhava para o governo de uma nação verdadeira, com território e soberania. O facto de os organismos internacionais manterem a Espanha de Franco o mais longe possível dos fóruns, tão isolada do resto do mundo como se tivesse lepra, não lhe melhorava muito o estado de espírito. Genebra tinha deixado de ser uma estância balnear e transformara-se num teatro gigantesco onde ele nem sequer tinha um papel adequado à tragédia do seu país. Longe da intensidade dos dramas clássicos, via-se obrigado a atuar na qualidade de um simples figurante numa farsa de má qualidade, como um desses atores que têm uma única fala que mais tarde os espectadores nunca recordam. Por isso, e apesar das suas lembranças amargas de Londres, aceitou com prazer o convite do mentor e ao meio-dia do dia 27 de julho de 1946 desceu de um comboio na estação de Taplow.
Num aprazível dia de verão, aquela vila pareceu-lhe tão diferente da capital britânica como se estivesse noutro país. O campo inglês, mais doméstico do que domesticado, lembrava um jardim em comparação com a natureza agreste de onde ele provinha, mas as grandes extensões de um único tom de verde pareceram-lhe mais familiares na sua infinita uniformidade do que imaginara. Foi então, enquanto caminhava por entre gradeamentos recém-pintados, sebes recortadas primorosamente e belos edifícios, cujas fachadas revelavam o bem-estar de quem neles habitava, que sucumbiu a uma saudade prematura e surpreendente da sua vida na Europa. Porque, depois da criação da ONU, também ele dava como garantido que Genebra perderia uma das três indústrias sobre as quais assentava o seu prestígio internacional, ficando apenas com os relógios e os chocolates. A diplomacia multilateral já fazia as malas para se transferir para Nova Iorque, e, por mais voltas que desse, só encontrava motivo para o telefonema de Azcárate se estivesse relacionado com tal mudança. Tinha a certeza de que o chefe nunca gastaria o pouco dinheiro que lhes restava num bilhete de avião só para lhe suavizar a notícia do seu despedimento, o que significava que o havia convocado para lhe dar instruções que implicariam, mais cedo ou mais tarde, a sua saída de Genebra. No entanto, o convite não deixava de ser misterioso.
A guerra europeia fora duplamente trágica para Pablo de Azcárate. Enquanto as bombas alemãs caíam sobre Londres, a morte da mulher rematara-lhe o exílio com uma cereja cruel, desmoralizando-o de tal modo que, quando conseguiram voltar a falar pelo telefone, ele próprio lhe contou que os filhos e os netos haviam chegado a ser um estorvo, embora felizmente não o tivessem abandonado. Apesar da necessidade transitória de solidão que marcou a primeira fase do seu luto, não teria conseguido recuperar sem a companhia deles, porém tudo isto decorrera durante a guerra e havia mais de um ano que a Europa vivia em paz. No verão de 1946, os casais tinham-se reunido, os pais tinham recuperado os filhos e cada qual havia escolhido o seu caminho. Manolo não percebia a quem se referia exatamente o chefe quando falava em «todos», mas começou a desconfiar antes de se sentar para almoçar.
– Manolín! Fico muito feliz por te ver…
No último trecho do passeio desde a estação, o recém-chegado identificou ao longe a mulher morena, de cabelo preso, que saiu da casa de Azcárate no momento em que ele estava prestes a chegar. Durante a sua época de ligação com o governo de Valência cruzara-se várias vezes com Feli López, a companheira de Juan Negrín, reconhecendo-a num carro que se afastou velozmente, na direção contrária à sua. Por isso não se surpreendeu ao encontrar no jardim traseiro os dois visitantes do Colégio Sierra Pambley que um dia, havia muitos anos, não tinham tecido comentários sobre o estado lastimável dos seus sapatos.
– Mais feliz fico eu, senhor, ao vê-lo com tão bom aspeto.
– Bom, aceito a mentira como uma demonstração de carinho.
A emoção do reencontro não o impediu de constatar até que ponto tinham envelhecido os dois homens que mais haviam influenciado o seu destino. Não se admirou, porque nenhum republicano espanhol se sentiria tão derrotado como aqueles velhos amigos que o convidaram a sentar-se entre eles sob o sol pálido do verão inglês, mas feriu-o o cansaço e a tristeza que viu neles e que parecia tê-los precipitado para uma velhice precoce. Antes de descobrir que ambos conservavam energia de sobra, reparou que o mais magro dos dois emagrecera tanto quanto o mais robusto engordara. O pouco cabelo que Azcárate conservava estava já completamente branco. As entradas de Negrín não haviam aumentado muito e quase não tinha cabelo grisalho, ainda assim trazia-o pouco cuidado, tão comprido que lhe rematava a cabeça como um estranho diadema que mudava de forma com o vento, dando-lhe ao rosto um aspeto insólito, muito diferente do esmero que o cabelo penteado com brilhantina lhe conferia noutros tempos. Vestiam ambos roupa casual, calças largas, cómodas, camisas soltas e mocassins. Quem não os conhecesse pensaria que eram dois reformados sem mais nada que fazer além de apreciar o domingo.
– Como estás? – O dono da casa levantou uma mão para chamar uma rapariga. – O que queres beber? Acabou-se-nos o vinho espanhol, xerez incluído, pelo que te recomendo uma cerveja, ou um whisky, se quiseres começar em força…
– Eu deixaria o whisky para mais tarde – replicou Negrín, sorrindo – porque com certeza vais precisar.
– Bom, nesse caso, uma cerveja, mas… – Manolo olhou para um, depois para o outro e apostou consigo próprio que nenhum dos dois quereria responder à pergunta que se preparava para fazer. – Por que razão vou precisar de me embebedar?
– Agora não, deixemos isso para depois do almoço – e ganhou a aposta. – Conta-me, anda lá, como vão as coisas por Genebra?
– Na mesma, como deve imaginar…
Durante cerca de uma hora, Manolo foi praticamente o único a falar, desfiando um relatório aborrecido de apertos de mãos e conversas cordiais, de sorrisos e promessas, que os companheiros ouviram com um interesse que lhe pareceu excessivo. Assim, passaram do aperitivo para o almoço, um estranho arroz com açafrão e nacos de carne, que de paelha só tinha o nome, e da sobremesa para um café que lhe provocou no estômago um formigueiro incipiente.
– Recapitulando… – Depois de voltar a encher o copo, Azcárate inclinou-se sobre a mesa e olhou-o fixamente. – Que percentagem de sucesso julgas que teria uma proposta de condenação do regime de Franco na Assembleia Geral das Nações Unidas?
Manolo acendeu um cigarro para ganhar uns segundos antes de responder. Não lhe constava que estivessem a trabalhar nesse sentido, apesar de alguns boatos a que não prestou muita atenção. Por instantes, pensou que aquela consulta poderia ser a razão da sua presença em Taplow e sentiu pena, todavia lembrou-se a tempo do whisky que ainda ninguém lhe tinha oferecido e atreveu-se a dar a sua opinião.
– Tenho de ser completamente sincero?
– Claro.
– A verdade é que julgo que há muitas possibilidades de essa proposta ter pés para andar. Mas temos pouquíssimas hipóteses de que consiga tirar o Franco do poder.
Nenhum dos dois falou imediatamente. Manolo deu uma passa, olhou para eles, deu outra passa e explicou-se melhor.
– O que quero dizer é que julgo que será muito fácil a Assembleia aprovar por maioria um texto que não implique um recrudescimento do bloqueio económico, nem uma ameaça militar e muito menos uma invasão aliada de Espanha. Todos estarão de acordo em dizer que o Franco os repugna, que o seu regime é intolerável, que Espanha nunca entrará nas Nações Unidas enquanto ele estiver no poder, blá, blá, blá… E nada mais.
– Sim. – Azcárate sorriu e olhou para Negrín, que soltou uma risadinha. – É exatamente o que achamos que vai acontecer.
– Ainda bem, porque não gostaria de vos dar um desgosto. – Manolo atreveu-se finalmente a esboçar um sorriso que logo se extinguiu. – A verdade é que tudo está a mudar tão depressa que ninguém se quer lembrar de que, no ano passado, a União Soviética era também uma aliada. Já nem sequer reconhecem que sem Estaline nunca teriam derrotado Hitler. O relato da guerra muda de dia para dia, dando cada vez mais importância ao desembarque na Normandia e menos à campanha do Leste. Por este andar, dentro em pouco, as crianças estudarão na escola que os americanos libertaram Berlim. Isso não nos favorece porque o Franco se apresenta como o campeão do anticomunismo, o que parece ser a única coisa que interessa agora. E… – Respirou fundo, como se precisasse de o fazer antes de mergulhar na ferida. – Não sei se estão a par, mas as potências democráticas voltaram a jogar com um pau de dois bicos. Por um lado, brincam aos criminosos de guerra em Nuremberga com tanta publicidade que mais parece que estão a rodar um filme; mas, por outro, a verdade é que os nazis se andam a esfumar dos campos e das prisões. Diz-se que algumas das chefias aliadas os recrutam como agentes antissoviéticos na Alemanha e noutros países do Leste. E se eles não se dão ao trabalho de desmentir estes rumores porque os nazis não os estorvam, por que raio iria o Franco estorvá-los? Por isso, não acredito numa palavra do que me contam a mim, que não sou ninguém.
– Fazes bem. – Azcárate concordou com ele e olhou para Negrín, que assentiu com a cabeça. – Bem, nesse caso, acho que chegou a altura do whisky.
O dono da casa levantou-se para o servir em três copos com gelo e muita formalidade, porém, depois de o fazer, cedeu a iniciativa ao último presidente do governo da República.
– Lembras-te de como me doía a cabeça em Valência, Manolo?
– Evidentemente, senhor. Nunca poderei esquecer-me.
– Bom, chamámos-te porque agora nos dói ainda mais…
A 10 de setembro de 1946, Manuel Arroyo Benítez entrou em Espanha por Gibraltar. Teria preferido passar através de França porque essa via chamava menos a atenção, mas a fronteira estava fechada e cruzá-la pela serra, com um guia clandestino, tê-lo-ia exposto a uma queda que lhe arruinaria prematuramente a missão. Antes de pisar o Rochedo, avistou Campo de Gibraltar das escadas de um avião militar britânico e, vendo a roupa estendida nos terraços das casas de La Línea, teve a sensação de inalar um ar que lhe pertencia, que lhe era próprio e que há mais de sete anos lhe faltava. O vento do Estreito emocionou-o tanto que sentiu o impulso de parar entre dois degraus e fechar os olhos para que aquela ventania lhe confirmasse que estava de volta a casa, mas não o fez. O funcionário britânico que o aguardava na pista teria achado muito estranho semelhante amor por parte de um cidadão norte-americano, nascido em Nova Jérsia, que se dispunha a visitar pela primeira vez a pátria dos pais. Eis a sua cobertura, a identidade que constava no passaporte que trazia no bolso do casaco, mas foi-lhe difícil não sorrir ante o sotaque gaditano, áspero e sinuoso, com que o anfitrião lhe deu as boas-vindas ao Rochedo antes de o apresentar ao norte-americano que o acompanhava.
– Nas Nações Unidas vai passar-se exatamente o que prognosticaste – comentou Juan Negrín, bebendo o primeiro gole do primeiro whisky que tomaram em Taplow. – É uma pena porque muita gente trabalhou essa via, mas a diplomacia vai continuar a causar-nos desgostos. Se as coisas se passarem como tememos, a resolução não será do agrado de Franco, como é lógico. Ficará muito ofendido por continuarem a tratá-lo como se estivesse contaminado, no entanto a sua verdadeira derrota seria que o obrigassem a abandonar o poder. Ora, como isso não vai acontecer, nós voltaremos a perder, infelizmente.
– Outra desgraça – interveio Azcárate – é que muitos dos nossos, dentro e fora de Espanha, teimam em ser demasiado otimistas. Os boatos de que o Franco tem os dias contados não param de aumentar desde que os aliados venceram a guerra e, ao que parece, em Madrid há gente a querer organizar um levantamento para tomar o poder quando a ONU nos apoiar.
– A sério? – Arroyo franziu o sobrolho. – Mas os comunistas…?
– Não, os comunistas não são tão ingénuos. – O chefe sorriu-lhe com amargura. – Depois do fracasso da invasão de Arán, confiam tão pouco nos aliados como nós. Parece que se trata de gente muito nova, estudantes da FUE, vários anarquistas, membros da Juventude Socialista e antifranquista sem inscrição, que não chegaram a fazer a guerra porque, nessa altura, eram miúdos, mas que agora estão dispostos a tomar a dianteira… Uma loucura. Se chegar a acontecer, essa rebelião pode acabar numa carnificina.
Quando ficou sozinho no quarto do The Rock Hotel, o alojamento mais luxuoso e confortável do minúsculo território que para ele seria sempre um penhasco e não uma rocha, Manolo já sabia que a sua missão não estava diretamente relacionada com aqueles jovens que pretendiam tomar Madrid para favorecer uma transição para a democracia que as Nações Unidas nunca iriam patrocinar. Não lhe agradava que assim fosse porque estava cansado de fracassos, porém, na varanda que se abria para a imensidão furiosa do mar aberto, sentiu-se quase feliz, muito satisfeito por ter aceitado um risco infinitamente maior. Enquanto desfazia as malas com a porta da varanda aberta para apreciar a companhia daquele vento que lhe falava na sua língua materna, praticou o sotaque norte-americano com que tinha previsto deformá-la até chegar a Madrid. Numa homenagem íntima, num tributo de amor a Meg Williams, experimentou salpicar as frases com os órale e os a poco, sem os quais ela não sabia falar espanhol.
– Por esse caminho não podemos esperar outra coisa. Mas há alguns meses falaram-nos de um plano muito mais interessante, bastante prometedor mesmo. Estás vinculado a esse projeto desde o princípio, mais tarde te explicar-te-ei porquê. Agora o mais importante é que saibas que, desta vez, não se trata de uma missão delicada. É só muito perigosa.
– Porque tenho de voltar a Espanha, correto? – Aquelas palavras encheram-lhe o peito, aceleraram-lhe o ritmo do coração, inundaram com um sol radiante a penumbra morna daquela conversa. – A Madrid?
– Qualquer pessoa diria que estás encantado – comentou Negrín, com uma ironia que se transformou num sorriso melancólico.
– Se o senhor o diz… – Soltou uma gargalhada. – Para continuar em Genebra a engonhar…
Enquanto atravessava o bar do hotel, aproximando-se de Robert McKay, voltou a sentir aquela euforia pungente, efervescente, que lhe arrepiava de prazer cada centímetro da pele e o obrigava a sorrir sem razão. Felizmente, o seu contacto era um homem bastante risonho, com os lábios sempre curvados num sorriso mecânico, tão imperturbável que na realidade nada significava. Alto, louro, corpulento, com umas calças de ganga, uma camisa bordada fechada até ao último botão e um colarinho, em lugar da gravata, enfeitado por cordões de couro terminados nuns cones de prata lavrada, parecia um vaqueiro inocente do Midwest caído por engano, sem a sua manada de vacas, na outra ponta do oceano. No entanto, apesar das explicações pormenorizadas com que descreveu o seu trabalho em Gibraltar como agente comercial independente, com um vínculo temporário ao consulado do seu país para explorar as possibilidades de exportação de matérias-primas espanholas que não estivessem sujeitas ao bloqueio, Manolo tinha a certeza de que ele era um agente da CIA, que nem se chamava Robert, nem se apelidava McKay, embora não o pudesse censurar porque nisso estavam em pé de igualdade. Quando lhe perguntou pelo nome daqueles vinhos espanhóis que se bebiam num copinho alto e de que a mãe gostava tanto lá em Nova Jérsia, chamou-lhe Bob, como o outro lhe havia pedido que fizesse, e aguentou com um sorriso tão falso como aquele que tinha diante de si o discurso chato e inexato com que McKay esclareceu Peter, nascido Pedro, Louzán Valero, sobre os vinhos de Jerez.
– Bom, nesse caso… – Azcárate fingiu não ouvir o comentário sobre a irrelevância do trabalho que ele próprio lhe atribuíra. – Já que descreveste tão brilhantemente a situação em que nos encontramos… Achas que existe algum fator capaz de frustrar a política aliada de captação de antigos nazis, criando um cenário que nos seja mais propício?
Arroyo acabou a bebida, acendeu outro cigarro e assentiu.
– É claro, senhor, mas só um. A questão judaica, os campos de extermínio, os crimes de guerra. Qualquer nova revelação, o aparecimento de informação que tenha permanecido oculta… Se fosse possível provar os boatos, a cumplicidade ou, no mínimo, a tolerância de certas chefias aliadas com as fugas de nazis, o processo tornar-se-ia muito mais difícil.
– Continuas a ser o melhor da turma, Manolín! – festejou Negrín com uma gargalhada.
– Ai, sim? – Aquele elogio desconcertou-o. – Está bem, mas… Não sei é como poderia favorecer-nos. Nem toda a gente acredita que Espanha tenha agido como um país neutro durante a guerra, mas a Divisão Azul também não lhes parece suficiente para aceitar a sua beligerância, isso os senhores sabem muitíssimo bem.
– Claro. – Azcárate encheu o copo. – Mas o que vamos contar-te nada tem que ver com a Divisão Azul… Pelo menos, por enquanto.
Pedro Louzán Valero nascera em 1910 em North Arlington, uma zona de Nova Jérsia que, no verão de 1946, quando Bob McKay ouviu aquele nome pela primeira vez, albergava uma larga colónia de imigrantes portugueses e espanhóis, quase galegos, embora Ana Valero tivesse nascido em Maraña, uma aldeia do Norte da província de León. O seu filho Pedro tinha nacionalidade norte-americana e nunca atravessara o Atlântico. Espanha também não lhe interessava muito, a avaliar pelo aborrecimento com que falou da sua missão, muito semelhante à de McKay. Ao almoço, Peter Louzán, que pronunciava o seu apelido comendo o «o» e transformando o fonema interdental «z» num «c», explicou ao colega que trabalhava no Departamento de Defesa. Teria preferido ficar em Washington, mas fora escolhido pelas suas origens e conhecimento do idioma para recolher informações sobre as jazidas de volfrâmio que tanto haviam ajudado o esforço bélico de Hitler durante a Guerra Mundial, e cujo interesse aumentava de dia para dia ante a perspetiva de um novo conflito com a União Soviética. Antes de sair de Londres, Manolo Arroyo sentira-se desconfortável com aquela cobertura. Estava habituado a trabalhar com identidades falsas, no entanto era a primeira vez que tinha de se fazer passar por estrangeiro, cidadão de um país onde nunca havia posto os pés e, embora tivesse praticado intensivamente o sotaque durante mais de um mês, ao almoço quase não bebeu para evitar a loquacidade, tão perigosa na sua profissão. No entanto, antes do segundo prato começou a sentir-se bem; de seguida, muito bem, muito melhor do que esperava. Como McKay estava a aceitar a história sem contratempos, depois do almoço atreveu-se a sondá-lo acerca do franquismo, um regime que lhe parecia odioso. Nesse momento, inventou que os Louzán e os Valero haviam pago um preço muito elevado pela lealdade à República durante a Guerra Civil, mas, embora Peter tivesse feito uma descrição intensa e pormenorizada desses sofrimentos, o homem da CIA não moveu um músculo. Franco convém-nos bastante, limitou-se a afirmar no fim. Pode ser um tirano, mas é um grande inimigo de Estaline e agora é isso que interessa, não achas? Pouca sorte dos espanhóis, temos muita pena, mas… Claro, Peter Louzán não teve outro remédio senão concordar, nesse sentido tens razão.
– Um congressista do Partido Democrata chamado Sal Burnstein entrou em contacto connosco. Atua em seu nome e em nome de um lobby poderoso de empresários e financeiros judeus de Nova Iorque, originários, em grande parte, da outra Galícia, a polaca. O Burnstein também nasceu lá, emigrou em criança e mais tarde os nazis chacinaram-lhe toda a família, não deixando ninguém vivo. Como deves imaginar, o que o move é a vingança, mas é um homem sério em quem podemos confiar.
– Conheço-o? – Em Genebra, Manolo habituara-se ao funcionamento dos lobbies anglo-saxões. – Já teve alguma coisa que ver connosco anteriormente?
– Não – replicou Azcárate sorrindo –, mas tu conheces a pessoa que passou ao Burnstein a informação sobre uma rede de proteção a antigos nazis que opera em Madrid. De facto, com certeza, o mérito é teu. Na tua ausência, Miss Williams transformou-se na ativista mais trabalhadora, influente e abnegada dos comités de solidariedade com a causa republicana e com o exílio espanhol.
– Não me sobrestime, senhor. – Manolo desatou a rir para disfarçar o sobressalto agradável que lhe deixou o coração aos pulos. – Se calhar é mérito da Celsa, a do Mourúas.
– A Celsa? – Negrín franziu o sobrolho. – E quem é essa Celsa?
– Bem, é uma história muito longa.
– O facto – continuou Azcárate retomando o fio à meada – é que a Meg está metida em tudo o que se cozinha em Washington e em Nova Iorque. Não se faz nada, nem um simples cartaz, sem a aprovação dela. Por isso, foi falar com uma imigrante recém-chegada, a Sole Ruiz, uma rapariga asturiana que em Madrid serviu em casa da Clara Stauffer. O nome diz-te alguma coisa?
– Na verdade… – Manolo concentrou-se, mas não conseguiu que nenhum dado concreto se sobrepusesse àquela súbita, intensa lembrança de Meg. – Acho que me diz qualquer coisa, mas neste momento, não sei o quê.
Pedro Louzán Valero ficou em Gibraltar uma semana. Era esse o prazo que as autoridades franquistas requeriam para aceitar qualquer pedido de entrada em Espanha, mesmo de quem tinha todas as garantias e avales, como o que fora apresentado em seu nome pela embaixada norte-americana em Madrid. Bob McKay levou-o no seu carro para lá do gradeamento e depositou-o são e salvo à porta do hotel Reina Cristina de Algeciras, onde lhe tinha reservado um quarto para duas noites. Sei que querias ir imediatamente para Madrid, explicou-lhe na receção, mas fazemos sempre assim. Mesmo que a tua família seja espanhola, é melhor que te habitues ao país, ao tratamento, à comida, à maneira de falar das pessoas… Quando chegares à Galiza, vais agradecer-me. Peter Louzán não esperou tanto tempo e agradeceu-lhe nesse preciso instante com palavras efusivas, cúmplices, enquanto Manolo Arroyo lhe insultava silenciosamente o pai. No entanto, livre da tutela opressiva do agente da CIA, apreciou bastante a estada em Algeciras e, a 19 de setembro, de muito bom humor, foi buscar o carro que tinha alugado previamente para conduzir até Madrid.
– As belas esquiadoras? – referiu Negrín. – A travessia a nado da Laguna de Peñalara? – Quando pela segunda vez Arroyo negou com a cabeça, ele explicou-se melhor. – Até ao golpe de Estado, Clara, ou melhor, Clarita Stauffer, porque ela prefere usar o diminutivo, foi uma atleta famosa. Ganhou muitas corridas de esqui e apareceu numa reportagem do Blanco y Negro que deu muito que falar.
– És mesmo mauzinho! – Azcárate fez uma demonstração risonha de espanto e voltou-se para Manolo. – Ele está a dizer isto porque a Clarita não é muito bonita. As outras esquiadoras eram, mas ela destoava bastante do título… Por isso se falou tanto dessa reportagem. A Laguna de Peñalara foi outro dos seus feitos. Atravessou-a a nado num tempo tão bom que a fotografia dela foi capa da secção desportiva do ABC no verão de 1931.
– Também se falou muito nisso. – Negrín sublinhou a malevolência com um sorriso malandro e voltaram ambos a rir-se. – Nós conhecemo-la. Antes da guerra encontrávamo-nos de vez em quando em festas e atividades do género. A verdade é que é uma mulher encantadora, muito culta e sobretudo muito simpática, com uma graça a atirar para o castiço, apesar de provir de uma família alemã, das melhores de Madrid.
– O que interessa é que a Clarita nasceu em Espanha, mas estudou na Alemanha. Quando regressou a Madrid, juntou-se ao grupo da Pilar Primo e filiou-se na Falange logo depois dela. Além disso, e desde o primeiro momento, serviu de guia-intérprete nas visitas dos rebeldes ao Terceiro Reich. Acompanhou as dirigentes do Auxílio Social nas viagens de estudo ao Auxílio de Inverno alemão e tiraram muitas fotografias com camaradas nazis e grandes ramos de flores. Também acompanhou o Beigbeder e outros generais em viagens destinadas a negociar com o Himmler a ajuda militar. Claro que essas reuniões não foram fotografadas – frisou Azcárate, sorrindo –, para que não as pudesses mostrar ao Lorde Windsor-Clive. Tudo isto foi possível, naturalmente, porque a Clarita tinha dupla militância. Estava filiada no Partido Nazi, na Alemanha, e na Falange, em Espanha.
McKay não percebeu por que razão Louzán não quisera ir para Madrid de comboio, preferindo um trajeto longo e penoso de carro. Os caminhos de ferro espanhóis não são muito bons, reconheceu, mas as estradas então são um pavor… De facto, Peter Louzán fez uma péssima escolha, no entanto Manuel Arroyo tinha os seus motivos, e o principal não era tanto estar há sete anos fora de Espanha, mas acalentar a suspeita razoável de que aquela talvez fosse a última vez em muito tempo que poderia percorrer o seu país. Veterano no fracasso, demorou três dias a chegar a Madrid porque passou a primeira noite em Sevilha, calcorreando a cidade à vontade como um turista de antes da guerra, e a segunda em Valdepeñas, onde teria apanhado uma carraspana monumental se não gostasse tanto de migas. Tendo no palato a mistura deliciosa dos dois sabores de que mais falta sentira, o alho e o chouriço frito, saiu no domingo 22 de setembro a meio da manhã e registou-se ao início da tarde na receção do hotel Gran Vía. Depois de um jantar pretensioso de cozinha internacional, que não lhe soube a nada em comparação com os sabores fortes e deliciosos das tabernas manchegas, caiu na cama morto de cansaço, mas mais contente do que recordava ter estado em muitos anos.
– A Sole não tem o mesmo apelido dos filhos do primeiro casamento da mãe. Por isso, quando a contratou, com o aval do pároco do seu bairro, Stauffer não sabia que ela era irmã de um fuzilado e de um preso de Porlier. Também não podia imaginar que iria aproveitar a primeira oportunidade para dar o salto para França com a ajuda do namorado, um camarada do seu irmão morto. Essa oportunidade surgiu na noite de Natal do ano passado. Depois de deixar a mesa posta, despediu-se da patroa até ao dia 26 e, na madrugada do dia seguinte, chegou a Lérida. Nessa mesma noite, atravessou a serra. À hora em que deveria regressar ao trabalho, já estava em Toulouse, e daí tratou da autorização para se juntar ao pai, que tinha emigrado para Nova Iorque depois de enviuvar, antes da nossa guerra. Contou ao pai tudo o que te vamos contar a ti, e ele entrou em contacto com os comités de solidariedade com Espanha, onde já era muito conhecido.
– A verdade é que inicialmente desconfiámos dela – confessou Negrín –, mas pedimos informações a Toulouse e a tua amiga norte-americana comprovou tudo o que ela disse. E tem a certeza de que ela está a contar a verdade.
– Isso é importante porque a história dela é o primeiro golpe de sorte que tivemos em muito tempo, e já ia sendo tempo… – Pablo de Azcárate levantou-se, voltou a encher os copos, sentou-se e bebeu um longo gole antes de continuar. – A Sole Ruiz começou a trabalhar como criada da Clarita no verão de 1943. Na primavera de 1945 já estava bastante familiarizada com o ritmo da casa e por isso se deu conta de que tudo estava a mudar muito depressa. A patroa, que antes quase não saía de Madrid, começou a viajar com muita frequência e a ausentar-se dois ou três dias por semana. A Sole deduziu que ia para o Norte, pelo tipo de roupa que metia na mala e por algum comentário solto sobre o frio que ainda fazia lá em cima, mas não sabia para quem eram os cobertores e os víveres com que enchia a bagageira do carro. Até que um belo dia, à conversa com o motorista na cozinha, ficou a saber que a patroa visitava uns alemães que estavam presos numa povoação de Álava. Pouco depois, voltou a convidar o motorista para um café e descobriu que essa povoação era Nanclares de Oca.
– Como dizia a minha mãe – acrescentou Negrín com um sorriso –, com o pessoal doméstico todo o cuidado é pouco …
Peter Louzán tinha um encontro com a nova vice-conselheira de Comércio da embaixada norte-americana em Espanha, a 3 de outubro, às nove da manhã. Em Taplow haviam-lhe pedido que entrasse em contacto com os círculos estudantis implicados na rebelião armada que pretendiam fazer coincidir com a condenação de Franco pelas Nações Unidas, mas ordenaram-lhe, mais insistentemente ainda, que não tivesse pressa e se certificasse bem de cada movimento antes de o fazer. Por isso, decidiu que os estudantes podiam esperar até que organizasse a sua identidade e contasse com a proteção da vice-conselheira. Como expectável, o tema de Espanha não se discutiria na Assembleia Geral antes de dezembro, e dois meses parecia-lhe um prazo mais do que suficiente para dissuadir aqueles loucos do seu objetivo. De qualquer forma, não estava disposto a arriscar a sua missão por causa deles e dava como ponto assente que não iam ligar muito a um tipo que não pretendia dizer-lhes como se chamava, nem em nome de quem atuava, nem como soubera dos seus planos. Enquanto isso, lia exaustivamente todos os jornais que se publicavam em Madrid e dava longos passeios pela cidade que lhe permitiam passar amiúde diante da entrada do número 14 da calle Galileo.
– Nanclares de Oca… – Quando ouviu o nome, ainda não conseguia relacioná-lo com aquela morada. – Não é lá que há um campo de prisioneiros?
– Exato. – Azcárate inclinou-se, e o discípulo, que o conhecia muito bem, viu-lhe nos olhos o brilho das grandes revelações. – Foi construído pelos nossos presos, mas usaram-no sobretudo para prender brigadistas. Talvez por isso, porque já tinha estado cheio de estrangeiros, levaram para lá todos os fugitivos alemães que atravessaram os Pirenéus depois da libertação da França. Nessa altura, a maior parte eram soldados rasos que pretendiam fugir das represálias da Resistência, mas, quando a rendição estava iminente, começaram a entrar em Espanha outro tipo de indivíduos.
– O Léon Degrelle, por exemplo. – Depois de referir o líder do Partido Rexista belga, Arroyo lembrou-se do presidente do governo colaboracionista de Vichy. – E o Pierre Laval, claro.
– Sim – concordou Negrín –, mas esses dois chegaram de avião, como a cunhada do Mussolini e muitos outros, com cartas de recomendação do ministro Lequerica e com a bênção do governo de Madrid. Esse tipo de hóspedes nunca passou por Nanclares, no entanto, muitos outros nazis e colaboracionistas de meia Europa foram ali parar.
– A irmã da Petacci veio para Espanha? – A sua atenção tinha ficado presa naquele dado. – Não sabia disso.
– A irmã da Petacci vive tranquilamente com os pais em Madrid. – Confirmou Azcárate. – Toda a família entrou com um nome falso.
– Mas isso pode convir-nos. O governo italiano…?
– Espera, deixa-me terminar. Preparámos-te um dossiê com tudo o que sabemos, mas vale a pena voltar à Sole porque é agora que a história começa a ficar interessante.
– No fim de contas – insinuou Negrín –, a irmã da Petacci não passa de uma atriz medíocre.
– Evidentemente – concordou o amigo –, podemos apontar muito mais para cima. No verão de 1945, a Clarita Stauffer fez obras em casa. Remodelou dois quartos para montar um escritório, instalou uma nova linha telefónica e contratou duas secretárias que pareciam sempre muito atarefadas. Além disso, mandou fazer armários novos, que encheu com roupa de homem de todos os tamanhos e sapatos de todos os números. Os visitantes da casa também mudaram. Além dos amigos habituais da Clarita, que continuavam a ir jantar ou tomar café, começaram a aparecer por lá, a qualquer hora, homens misteriosos, sempre magros e cansados. A Sole, que quando podia ia visitar o irmão a Porlier, achou que tinham pinta de presos, e eram. Fugitivos das cadeias europeias que haviam atravessado os Pirenéus por sua conta e risco, ou presos de Nanclares que tinham sido libertados. No número 14 da calle Galileo eram recebidos com carinho e alimentados, davam-lhes roupa nova e decerto arranjar-lhes-iam alojamento porque nunca ficavam lá a dormir, talvez até trabalho, visto que a maior parte deles voltava a prestar serviços no escritório, mais cedo ou mais tarde, e aparecia com muito melhor aspeto. A Sole apercebeu-se de que nenhum deles falava espanhol e começou a desconfiar. Com esta azáfama a acontecer havia uns dois meses, a rotina da casa integrou um novo visitante, um recruta espanhol que todas as semanas levava um ou vários envelopes fechados com timbres de paróquias de Madrid, especialmente da que fica no largo de Iglesia. Numa dessas vezes, algum pároco se esqueceu de fechar o envelope. E a Sole abriu-o, encontrando uma certidão de batismo com nomes e apelidos alemães e datada de 1907. Este movimento manteve-se constante até ela fugir de Espanha, contudo, pouco antes, ao levar um café ao escritório a meio da manhã, ouviu uma das secretárias da Clarita dizer um nome que lhe chamou a atenção, porque não era alemão. Sim, Jean-Jules Lecomte, disse textualmente, tenho-o aqui sentado à minha frente. E sorriu a um homem novo, que lhe devolveu o sorriso sem reparar na criada que lhe estava a servir uma chávena de café.
– Não sei quem será esse Lecomte, mas… – Arroyo sorriu e voltou-se para Negrín. – Suponho que se trate de uma nova demonstração de que, com o serviço doméstico, todo o cuidado é pouco.
– Disseste bem, Manolín.
O hóspede norte-americano do quarto 312 era um homem tranquilo, amável, de poucas falas, tomava o pequeno-almoço todos os dias no quarto e, depois da primeira noite, não voltara a aparecer no restaurante do hotel Gran Vía. Manuel Arroyo Benítez tinha escolhido cuidadosamente aquele local, apesar de a generosidade dos seus patrocinadores lhe permitir hospedar-se noutros mais luxuosos, como o Palace ou o Ritz. O homem de Azcárate recusou a possibilidade, não só pela frequência com que os grandes hotéis do Paseo del Prado recebiam espiões de todos os tipos e nacionalidades durante a guerra, frequência que talvez se mantivesse, mas porque Peter Louzán Valero, identidade passageira que morreria de morte natural no dia em que a pudesse trocar por outra que o obrigaria a uma vida social intensa, achava melhor não estabelecer qualquer tipo de relações, nem sequer de vista, com a aristocracia e com a alta burguesia madrilena. Por isso se hospedou num hotel confortável, mas não muito caro, situado na avenida mais movimentada da cidade. Tendo em conta o controlo estrito que a polícia de Franco exercia sobre os livros de registo de viajantes, a sua presença em qualquer pensão barata ou periférica teria chamado demasiado a atenção. Porém, o hotel Gran Vía só se adequava aos seus objetivos porque não conhecia em Madrid nenhuma casa de hóspedes que lhe desse garantias. Enquanto esperava que lhe recomendassem alguma, habituou-se a entrar e a sair pelo vestíbulo sem ser visto quando ninguém estava à espera em alguma poltrona ou na fila diante do balcão da receção.
– A Sole Ruiz estudou um pouco de francês na escola, mas o sotaque dela é tão mau que a tua amiga teve algum trabalho para identificar alguém com esse nome. Quando conseguiu fazê-lo, saiu-nos definitivamente a sorte grande.
– A Meg descobriu que o Jean-Jules Lecomte, nazi fanático, tinha dupla militância, como a Clarita. Era membro do Partido Rex e também das SS. Com essas aptidões, durante a ocupação nazi fora nomeado burgomestre da sua cidade natal, Chimay. – Azcárate fez uma pausa e olhou para o discípulo.
– Onde fabricam aquela cerveja tão boa? – E ele não o dececionou.
– Exatamente. Chimay é famosa pela sua abadia cisterciense e pela cerveja que os monges fabricam, mas esse não é o único mosteiro da cidade. Existem vários conventos de freiras dedicadas ao ensino, que salvaram muitas crianças judias, matriculando-as com nomes falsos para as fazerem passar por irmãos ou primos dos seus alunos católicos. O Lecomte, que lhes tinha perseguido ferozmente as famílias e deportado todos os judeus da cidade, entrou à força nesses conventos, disparou sobre as freiras, deteve as madres superioras e identificou as crianças judias. No dia seguinte, todos eles foram metidos num comboio rumo a um campo de extermínio aonde poucos chegaram vivos e de onde nenhum voltou. Poucos meses depois da guerra, o Jean-Jules Lecomte foi julgado em Charleroi por crimes contra a Humanidade e condenado à morte à revelia porque nunca o capturaram.
– Não conseguiram – concluiu Negrín – porque estava a tomar café no número 14 da calle Galileo.
– Mas nesse caso… – Arroyo olhou para ele. – Nesse caso… – Voltou-se devagar para o chefe. – Porra! – E ficou tão nervoso que se levantou da cadeira e se pôs a andar pela sala, descrevendo um círculo quase perfeito. – É um criminoso de guerra! – Parou um momento e verificou que as duas cabeças assentiam em simultâneo. – Um criminoso de guerra… Porra, porra, porra!
– Senta-te, vá lá, que estou a ficar enjoado.
– Sim, senta-te. – Só quando conseguiu que ele lhe obedecesse, Azcárate continuou a falar. – O Jean-Jules Lecomte é um criminoso de guerra nazi que reside em Espanha, sob a proteção da delegada de Imprensa e Propaganda da Secção Feminina da Falange e do Franco, cuja obrigação seria denunciar às potências aliadas a sua presença no país. E não deve ser, nem de longe, o único.
– É por isso que nos dói tanto a cabeça, Manolo. Claro que nos doerá muito mais se agires como um homem inteligente, razoável e sensato, e nos mandares à merda em vez de aceitares o que te vamos propor.
Manolo Arroyo descobriu imediatamente que a grande especialidade da vida madrilena de outrora tinha passado a ser uma ocupação perigosa. Fazer tempo era muito difícil numa cidade ocupada, onde metade dos clientes das esplanadas eram polícias à paisana e todos os taxistas seus informadores. Para aproveitar o bom tempo, decidiu dar passeios à tarde pelo Retiro, porém, no terceiro dia em que lá foi, dois guardas municipais mandaram-no parar e queriam prendê-lo por ser homossexual. Teve de responder em inglês e mostrar o passaporte diplomático para que não o algemassem. Depois, num espanhol com um fortíssimo sotaque de Peter Louzán, perguntou-lhes porque tinham chegado a essa conclusão e ouviu uma resposta que o deixou perplexo. Vamos lá ver, disseram-lhe, se o senhor não é um pervertido, a que propósito passeia tanto pelos parques? Ele não quis insistir, na esperança de que lhe devolvessem o passaporte sem anotar o seu nome, e, engolindo uma amargura que não lhe convinha exibir, limitou-se a prometer que nunca mais deambularia pelos jardins. A partir de então, passava as manhãs fechado no quarto, saía para almoçar, todos os dias num restaurante diferente, e andava pela rua até ao entardecer, acabando a jornada num cinema, também diferente todas as noites. Antes do fim de setembro já tinha conseguido confundir-se com a massa obscura de madrilenos que tentavam não chamar a atenção, andando depressa, com os olhos nos sapatos e os ombros encolhidos. Na maior parte dos dias, só falava com o porteiro do hotel, com os empregados que o serviam nas esplanadas ou nos cafés e com as empregadas das bilheteiras que lhe vendiam a entrada para a última sessão. Assim, começou a sentir-se seguro, à força de se aborrecer mortalmente na cidade onde mais se havia divertido na vida.
– Tudo a seu tempo. – Azcárate impôs calma, levantando uma mão. – Não nos precipitemos – Negrín assentiu com a cabeça. – O que te contámos até agora é o que sabemos com certeza. A Meg Williams confirmou a história da Sole graças ao testemunho de alguns brigadistas que estiveram em Nanclares na mesma altura que os primeiros desertores alemães. Eles lembram-se muito bem de uma senhora de uns quarenta anos que entrava e saía do campo à vontade, na qualidade de intérprete dos nazis, a quem fornecia roupa e comida, além de recolher e entregar correspondência. Os presos alemães viviam em barracões diferentes dos outros e em condições muito melhores porque a mulher que os visitava tinha muito poder. Isso, e o Jean-Jules Lecomte estar em Madrid no outono do ano passado, eis o que… – Azcárate fez uma pausa, abanou a cabeça e continuou. – Minto: sabemos um pouco mais. A partir da primavera de 1945, um homem da tua idade, muito louro, com os olhos muito azuis, juntou-se aos visitantes habituais da casa da Stauffer. A Sole reparou nele porque era um rapaz muito bonito que, além de alemão, falava espanhol como se fosse castelhano antigo, com um sotaque que ela nunca tinha ouvido. Outra das criadas contou-lhe que era assim que os argentinos falavam. A partir do outono de 1945, aquele estranho convidado começou a chegar acompanhado, de vez em quando, por outros senhores que falavam espanhol com igual sotaque.
Chegado a este ponto, Juan Negrín meteu a mão no bolso da camisa e tirou um bilhete escrito à mão.
– Pela descrição física e sotaque portenho, temos quase a certeza de que se trata de… – Leu aquele nome com uma voz pausada, quase solene. – Horst Alberto Carlos Fuldner, conhecido na Alemanha como Horst Fuldner e, em Espanha e na Argentina, como Carlos Fuldner. Nasceu em Buenos Aires, mas a família regressou à Alemanha quando ele tinha doze anos. Nazi desde a primeira hora, mais tarde teve alguns problemazinhos com a lei… – Fez uma pausa para voltar a consultar o bilhete enquanto a ansiedade se instalava como um ninho de pássaros no estômago do visitante, que começava a desconfiar do motivo por que estava em Taplow. – Em 1935, expulsaram-no do Partido porque tinha ficado com dinheiro das SS, e não voltou a saber-se nada dele até que, em 1941, se apresentou como voluntário em Espanha para servir de intérprete da Divisão Azul na frente russa.
– Eu disse-te – avisou Azcárate – que mais cedo ou mais tarde acabaria por aparecer.
– Para ele, foi uma bênção. Quando a Divisão se retirou, ele voltou para a Alemanha, pediu a reintegração nas SS, que, além de o aceitarem, rapidamente o promoveram de uma só vez a Hauptsturmführer. – O antigo catedrático de Fisiologia formado em Kiel e em Leipzig pronunciou aquela palavra com um sotaque impecável. – Como foi possível semelhante reabilitação? – Cedeu a palavra ao anfitrião, que não precisou de consultar papel algum.
– Em 1944, Fuldner foi recrutado por Walter Schellenberg, que com certeza conheces, nem que seja só como amante da Coco Chanel.
– O chefe da organização de inteligência das SS, certo?
– Exatamente. E sabes o que Schellenberg pediu a Fuldner? – Arroyo negou com a cabeça. – Para investigar possíveis rotas de fuga para os dirigentes nazis porque já davam a guerra como perdida. E onde se instalou Fuldner para cumprir a missão de que fora incumbido?
– Em Madrid?
– Onde haveria de ser? – Azcárate sorriu. – E, pelo que sabemos, lá continua.
Enquanto Peter Louzán se aborrecia na capital de um país estrangeiro, Manuel Arroyo Benítez sentia muitas saudades do único amigo que tinha nessa cidade. Guillermo García Medina havia representado um problema para ele desde que aceitara aquela missão porque, além de sentir a falta da sua companhia, das longas tardes de conversa diante de um tabuleiro de xadrez que teriam tornado mais suportável a espera, também valorizava a experiência do amigo, o seu conhecimento das regras que regiam a vida quotidiana da Madrid franquista, um código que ele desconhecia, mas de cujo cumprimento estrito poderia depender o sucesso ou o fracasso da operação que tinha em mãos. Nunca conseguiria esquecer que o doutor García o havia arrancado das garras da morte, e tinha consciência de que a vida que lhe dera em troca bastava para saldar a dívida, continuando a sentir saudades dele. Às vezes, pensava que o que se dispunha a fazer era muito arriscado, demasiado perigoso para o partilhar com um amigo. Outras, recordava que Guillermo já tinha corrido riscos por ele e que ambos haviam saído airosamente incólumes da colaboração. Enquanto fazia tempo em Madrid, Manolo pensava em Guillermo, que já não devia chamar-se assim, nem viver na mesma casa. Se decidisse procurá-lo talvez nem o encontrasse, pelo menos não antes de pedir ajuda a uma vice-conselheira norte-americana, embora também não tivesse a certeza de o querer fazer. Pensava nisso na segunda-feira, 30 de setembro, enquanto bebia uma cerveja na esplanada do Café Lion, às sete da tarde. A essa mesma hora, um homem alto e magro, que fazia lembrar os modelos de El Greco, saiu do edifício da calle Alcalá, cujo rés-do-chão era ocupado pela Empresa de Transportes Nacionais e Internacionais La Meridiana. Chegado à rua, Rafael Cuesta Sánchez acendeu um cigarro e começou a descer na direção de Cibeles rumo a casa, como todas as tardes.
– Com esta informação – continuou Azcárate novamente sério –, a Meg acabou por convencer o congressista Burnstein, que andava há meses a investigar as rotas de fuga nazis sem encontrar indícios sólidos de qualquer organização estável. A rede Stauffer é estável, sem dúvida, mas os dados de que dispomos não são suficientes para os apresentarmos às Nações Unidas ou para pressionar o governo norte-americano, que é o que pretende o lobby de Nova Iorque. Os interesses deles não são evidentemente os nossos, porque não nos incomoda que os ianques continuem ou não a recrutar nazis, contudo, se conseguirmos tornar público que o regime de Franco apoia criminosos de guerra, culpados do genocídio judeu… Podes imaginar.
– Para começar, os aliados não teriam outro remédio senão cortar relações com o governo de Madrid – adiantou-se Azcárate, avaliando com cuidado o peso de cada palavra. – A opinião pública internacional pressionaria de tal modo que lhes seria difícil evitar uma intervenção definitiva… – Os lábios sorriram por iniciativa própria, sem lhe pedirem licença. – Acho que é isto.
– Mas para o conseguirmos… – Depois de concordar, Negrín substituiu-o. – Precisaríamos de muito mais do que o testemunho de uma criada. Em primeiro lugar, seria necessário confirmar toda a informação que a Sole nos transmitiu. Provar que o Lecomte é efetivamente o Lecomte, que o Fuldner é o Fuldner, que os seus convidados argentinos são, como julgamos, homens de confiança do Perón, e que a Clarita não se limita a vestir e a alimentar alguns soldados alemães.
– Em Genebra deves ter ouvido boatos sobre a rota argentina, calculo.
– Sim, mas para dizer a verdade não lhes dei muito crédito porque estavam quase sempre relacionados com a treta dos submarinos carregados de ouro do Reich e…
– Claro. – Azcárate terminou a frase por ele. – Não existem submarinos com essa autonomia, nem sequer abastecendo combustível nas Canárias, isso sabemos. Mas a pista argentina é sólida, Manolo. A América do Sul é o destino sonhado por todos os nazis que pretendem escapar aos tribunais internacionais. A CIA tem a certeza, o Burnstein e a Meg também. Por isso achamos que a rede Stauffer coopera com o regime de Perón, que, por outro lado, é o único que não respeita o bloqueio e que envia para Espanha barcos carregados de cereais e carne congelada. A Argentina deve ser o destino final dos foragidos que a Clarita acolhe e a quem fornece documentação espanhola, graças às certidões de nascimento que arranjam alguns párocos amigos e os contactos com a Administração do Estado. É isso que achamos, que supomos, mas que não conseguimos provar. Para o conseguir, necessitaríamos…
Manuel Arroyo Benítez assentiu com a cabeça antes de completar a frase.
– …de um infiltrado.
Guillermo García Medina viu um homem muito parecido com o seu paciente Felipe Ballesteros Sánchez sentado a uma mesa da esplanada do Lion. Tinham passado sete anos desde a última vez que se haviam encontrado, mas esse não foi o único motivo que o levou a hesitar. Nos dias turbulentos do fim da guerra, o agente de Negrín era um espanhol elegante, cuidadoso com o seu aspeto, mas o homem que via naquele momento parecia estrangeiro. Ficou confuso com o corte do fato, a largura da gravata, o estilo do chapéu e os sapatos ingleses, tão diferentes dos que calçavam os poucos madrilenos que podiam dar-se ao luxo da elegância no verão de 1946. Em novembro de 1937, tinha conhecido um jovem de óculos e de barba cerrada que parecia mais velho do que ele, tendo-se despedido em fevereiro de 1939 de uma versão descarnada, barbeada e muito mais juvenil, de um rosto que não parecia ser o mesmo. O homem que lhe chamou a atenção em plena calle Alcalá tinha um bigode ligeiramente mais espesso e mais comprido do que os que se usavam em Espanha e uns óculos de aros metálicos leves e dourados, mas aquelas mãos eram as dele, cruzava as pernas da mesma maneira e a expressão de concentração era idêntica, mesmo com metade da cara escondida pelas páginas do jornal que lia. Para ter a certeza absoluta, precisava de que ele levantasse a cabeça e por isso parou ao seu lado. O leitor apercebeu-se daquela mudança, da imobilidade súbita de uma figura, e, muito devagar, baixou o jornal, ergueu os olhos, sorriu e recebeu em troca outro sorriso. Não esperou por mais. Levantou-se como se o assento da cadeira estivesse a arder, abraçou com força o homem parado no passeio e sussurrou-lhe uma frase ao ouvido. Não me trates por nenhum nome, murmurou, e depois, em voz alta, disse-lhe que ficava muito feliz por vê-lo. Eu fico ainda mais, ouviu em resposta. Com os teu atrasos pensei que me deixarias aqui meia hora à tua espera…
– Por isso é que te disse anteriormente que um homem sensato, inteligente e razoável nos mandaria imediatamente à merda.
– Sim, mas… – Arroyo olhou para Negrín e sorriu. – Tem noção de como Genebra é aborrecida? Aquela cidade enlouquece qualquer um.
– Menos piadas – Azcárate estava sério – porque estamos a falar de uma operação muito perigosa. Há dois meses que comunico com o Burnstein e podemos garantir-te uma cobertura relativa da sua embaixada em Madrid. Contarás com a proteção da nova vice-conselheira do Comércio, que entrará em funções a 1 de outubro. Talvez imagines quem é.
– A Meg? – Proferiu o nome quase a medo, mas o sorriso do chefe fê-lo levantar-se novamente e pôr-se em movimento. – A Meg vai estar em Madrid? – Azcárate assentiu. – Ai, ai, ai!
– Mas senta-te, Manolo! – A voz de Negrín deteve-o quando estava prestes a dar a primeira volta completa à sala. – Bolas, nunca conheci ninguém que gostasse tanto de andar em círculos, para dizer a verdade não sei como não ficas enjoado…
– A Meg acabou de ser a nomeada e ficará em Madrid a trabalhar contigo. Os contactos que tem nos serviços secretos proporcionar-te-ão um passaporte norte-americano. A CIA aprovou a tua missão, mas os chefes não sabem que trabalhas também para nós, nem que a nossa intenção é infiltrar-te na rede Stauffer. Oficialmente, o teu trabalho em Madrid limita-se a recolher informações sobre os nazis que residem em Espanha e sobre a organização que os apoia, mas nós esperamos mais de ti.
– Que chegue fundo da questão.
– Até Buenos Aires, se tudo correr bem. Esse é também o objetivo do lobby do Burnstein. Terás de passar por um criminoso de guerra nazi de nacionalidade espanhola, provavelmente um antigo divisionário que tivesse continuado a lutar por sua própria iniciativa como voluntário das SS e acabasse envolvido nalgum crime, suficientemente grave para que a Clarita considere imprescindível tirá-lo do país. Contactar com ela será um problema teu, não podemos ajudar-te para evitar fugas de informação. Apareceres do nada no número 14 da calle Galileo é demasiado arriscado. O ideal seria que te aproximasses de alguém que ta apresentasse, enfim, qualquer via que garantisse que o teu cadáver não aparecia lançado num passeio. Não te vou dizer que se trata de uma missão muito perigosa porque tu próprio já te terás dado conta disso. Também não te vou dizer para teres muito cuidado, porque não é preciso. Mas digo-te que não vale a pena correres demasiados riscos. O lobby de Nova Iorque pagar-te-á todos os gastos e não espera resultados imediatos. Nós também não. Instala-te em Madrid, treina bem o teu papel, mete-te na pele de um criminoso de guerra antes sequer de dizeres bom dia a um falangista. Não tenhas pressa.
– É uma oportunidade única, Manolo – concluiu Negrín –, não vamos ter muitas como esta, mas não esperamos que respondas agora. Podes pensar nisto durante uns dias, voltar para Genebra, responder-nos…
– Não é necessário, don Juan, o senhor já me conhece. – Voltou-se para Azcárate. – Ambos me conhecem. Isto interessa-me muito mais do que continuar no escritório, e na nossa situação qualquer risco vale a pena.
A 3 de outubro de 1946, Peter Louzán Valero acordou de madrugada, duas horas antes de o despertador tocar. Às sete da manhã levantou-se, vestiu-se e dirigiu-se à sala de jantar, descobrindo que María Aránzazu já tinha fumado dois cigarros com o copo de conhaque do pequeno-almoço. Guillermo, a quem lhe era ainda difícil tratar por Rafa, apresentara-a não como sua antiga senhoria, mas como uma amiga, e Manolo não teve dificuldades em afeiçoar-se àquela mulher estrambólica que desmentia, entre outros lugares-comuns, a fama lendária das proprietárias de casas de hóspedes porque não gostava de fazer perguntas nem de se meter na vida de ninguém. Podem dizer o que quiserem, confessou-lhes, depois de obrigar o antigo inquilino a acompanhá-los no jantar da primeira noite, mas a viuvez cai que nem ginjas a algumas mulheres, e desatou a rir. A mim, por exemplo… María Aránzazu tinha ficado responsável pelo primeiro esquerdo do número 24 da calle Españoleto quando a tia Enriqueta renunciou a sair da cama, e isso também lhe caíra que nem ginjas. É uma patifaria a família ter de adoecer ou de morrer para que uma mulher se sinta livre, mas que havemos de fazer?, costumava dizer. Naquela manhã, limitou-se a comentar que o seu hóspede estava muito bonito. Manolo tinha decidido ir a pé até à embaixada, na esperança de que aquela manhã fresca e soalheira de outono lhe diminuísse os nervos. Não conseguiu. Quando se identificou à secretária da nova vice-conselheira, tremia como um adolescente no primeiro encontro, mas felizmente a chefe não o fez esperar.
– Margaret Carpani Williams… – disse devagar, saboreando cada sílaba, ao vê-la sentada atrás da secretária, como se o tempo não tivesse passado desde a última noite em que haviam estado juntos em Genebra.
– Ai, pinche gachupín!
Meg não disse mais nada.
Levantou-se da cadeira, descalçou-se, correu para ele, e num único movimento admiravelmente coordenado abraçou-o, baixou os ombros, dobrou o pescoço num ângulo preciso e beijou-o na boca como se tivesse nascido para aquilo.