É 25 DE JULHO DE 1936 E JOHANNES BERNHARDT ESTÁ EM BAYREUTH.

O compositor Richard Wagner, a quem esta pequena cidade do Leste da Alemanha deve a sua fama universal, tem muito que ver com a visita de Bernhardt. De facto, o carro que o trouxe de Munique detém-se justamente diante da fachada de Wahnfried, a bela villa que o músico aqui construiu graças ao patrocínio do Rei Louco, Luís II da Baviera.

Em 1936, a proprietária de Wahnfried é Winifred Wagner, viúva e herdeira de Siegfried, único filho varão do compositor, cujo corpo lhe deu quatro filhos antes de a alma se entregar a outro amor. O acontecimento mais importante da sua vida dá-se em 1923, quando um jovem enérgico de trinta e quatro anos se apresenta à família Wagner, depois de assistir a um espetáculo do Festival de Bayreuth. É o líder do Partido Nacional-Socialista Operário Alemão, mas o motivo da sua visita não é político. Está convencido de que não existe obra comparável à de Richard em toda a história da música e quer manifestar o seu fervor aos herdeiros do compositor. Em segundo plano, a jovem esposa de vinte e seis anos assiste a esta declaração apaixonada que lhe inspira uma paixão ainda mais desmedida. Desde esse momento, Winifred vive exclusivamente por e para Adolf Hitler.

Durante mais de uma década, a amizade íntima do Führer com Winifred Wagner faz circular na Alemanha todo o tipo de rumores. Johannes Bernhardt conhece-os decerto, e a sua ignorância acerca da percentagem de verdade que terão talvez lhe aumente o nervosismo, na antessala onde espera pela chegada do casal, que assiste nesse momento a uma representação impecável de Siegfried. Dali não se ouve a orquestra, as vozes dos intérpretes que conseguiram arrancar Hitler de Berlim, trazendo-o uma vez mais ao Festival de Bayreuth e à hospitalidade amorosa de Frau Wagner. Johannes Bernhardt fez uma viagem muito mais longa para estar ali.

Até à manhã de 23 de julho de 1936, a trajetória deste empresário alemão de trinta e nove anos é uma sucessão anódina de fracassos. Sem perspetivas no seu país, na primeira metade dos anos trinta, emigra para Espanha, mas também não tem sorte na Península. Vai procurá-la no Protetorado espanhol de Marrocos e fixa residência em Tetuão, onde não consegue nada melhor do que um emprego numa empresa alemã de importação e exportação. Mas Bernhardt, membro veterano do Partido Nazi, opera também em Tetuão como o homem da AO – Auslandsorganisation der NSDAP –, a organização exterior do seu partido, mantendo excelentes relações com o marechal Hermann Göring. Assim, a 17 de julho de 1936, a sublevação do exército espanhol em Marrocos oferece-lhe a oportunidade que procurou durante anos com muito esforço e pouco sucesso.

Bernhardt apressa-se a entrar em contacto com os militares rebeldes. Não é, longe disso, o único nazi a viver em Espanha, nem sequer o único de Marrocos espanhol, mas é o mais rápido, o mais audacioso, aquele que, por isso, obterá o favor da fortuna. Sem outros argumentos, sem nenhuma garantia além da sua própria veemência, oferece-se como intermediário entre os militares golpistas e o próprio Führer, e essa bazófia mudar-lhe-á a vida para sempre.

O primeiro golpe de sorte de Bernhardt reside no facto de o comandante militar das Canárias ser, justamente, Francisco Franco. O segundo no facto de este aceder a reunir-se com ele em Tetuão na manhã de 23 de julho, apesar de não ser, nem de perto, o principal cabecilha de uma rebelião dirigida pelo general Mola, por delegação do general Sanjurjo – chefe supremo dos rebeldes, morto num acidente de avião três dias antes. O terceiro é encontrar um avião da Lufthansa disponível e convencer o piloto, Alfred Henke, a levá-lo a Berlim com o chefe do Partido Nazi no Protetorado, Adolf Langenheim, e o capitão de aviação Francisco Arranz Monasterio, chefe das forças aéreas sublevadas em Marrocos. Uma vez completa a tripulação, os membros tiram uma fotografia diante do aparelho com que vão atravessar meia Europa. Nela, Bernhardt posa com um sorriso e com um envelope na mão.

A partir desse momento, a sorte, outrora esquiva, alia-se descaradamente a ele. Às cinco da tarde do próprio dia 23, o Junkers JU-52 descola do aeródromo de Tetuão rumo a Sevilha, onde Henke arrisca uma aterragem perigosa porque a pista de Tablada carece de luzes de sinalização e o motor do aparelho está com uma avaria. Reparada no próprio aeródromo, prossegue o voo até Marselha, onde se previa o reabastecimento de combustível. Os franceses exigem o pagamento em francos, Bernhardt e os companheiros não conseguem cambiar dinheiro, parece que a viagem termina ali, mas também esses problemas se resolvem, novamente por milagre, conseguindo eles prosseguir até Estugarda, apesar de Henke, inicialmente, se recusar a aterrar em solo alemão com receio das represálias que a Lufthansa pudesse exercer contra ele, um piloto civil que saiu da base sem autorização. De Estugarda, o voo até à capital da Alemanha é um passeio.

Rudolf Hess, responsável máximo do NSDAP em Berlim na ausência de Hitler, recebe Bernhardt – autoproclamado chefe da expedição apesar de Langenheim ter um posto superior no Partido – e decide apoiar a causa. Oferece aos recém-chegados a sua avioneta particular e acompanha-os a Munique, onde os aguarda um carro que os deixa em Wahnfried ao cair da tarde do dia 25 de julho, enquanto Adolf Hitler desfruta da música de Wagner no camarote da sua amiga Winifred.

Ela organizou uma pequena receção para o convidado, mas o Führer está mais interessado na carta que Bernhardt lhe traz de Tetuão. Escrita à mão pelo próprio Franco, o conteúdo não ultrapassa meia folha, deixando espaço livre para a tradução. No entanto, o portador, que se deu ao trabalho de a copiar, nunca a verteu por escrito para alemão. No momento culminante da sua existência, preferiu ler diretamente na sua língua materna estas palavras de Francisco Franco.

Excelência,

O nosso movimento nacional e militar tem como objetivo a luta contra a democracia corrupta no nosso país e contra as forças destrutivas do comunismo, organizadas sob o comando da Rússia.

Permito-me dirigir-me a V. Ex.ª através desta carta, que lhe será entregue por dois senhores alemães que partilham connosco os trágicos acontecimentos atuais.

Todos os bons espanhóis decidiram firmemente começar esta grande luta, para o bem de Espanha e da Europa.

Existem severas dificuldades em transportar rapidamente para a Península as experientes forças militares de Marrocos, por falta de lealdade da Marinha de Guerra Espanhola.

Na minha qualidade de chefe supremo destas forças, rogo a V. Ex.ª que me facilite os seguintes meios de transporte aéreo:

10 aviões de transporte com a maior capacidade possível; além disso solicito:

20 peças antiaéreas de 20 mm.

6 aviões de caça Heinkel.

A maior quantidade possível de metralhadoras e de espingardas com as suas munições em abundância.

Também bombas aéreas de vários tipos, até 500 kg.

Excelência,

Espanha cumpriu em toda a sua história os seus compromissos.

Juntamente com esta carta, Bernhardt entrega a Hitler um esboço da situação da guerra, também desenhado à mão por Franco. O Führer, bastante impressionado, guarda ambos os documentos.

No dia seguinte, ordena que sejam transferidos para Espanha não dez, mas vinte aviões de transporte com tripulações completas e todo o material bélico que conseguem transportar.

Ao longo da semana seguinte, esses vinte Junkers alemães transportam, de Marrocos para Sevilha, cerca de quinze mil soldados.

Francisco Franco nunca esquecerá o favor que Johannes Bernhardt lhe fez.