6

Nas semanas seguintes à morte do pai, Meredith conseguiu se manter funcionando apenas por causa da força de vontade. Isso, e uma agenda tão apertada e lotada quanto a de um recruta do exército.

A tristeza tornou-se sua acompanhante silenciosa. Sentia a sombra dela a seu lado o tempo todo. Sabia que, se se virasse para aquela escuridão apenas uma vez, se se entregasse a ela como ansiava fazer, estaria perdida.

Por isso, continuou em movimento. Fazendo.

O Natal e Ano-Novo foram desastrosos, é claro, e sua insistência em seguir a tradição não ajudou. O jantar com peru-e-tudo-mais apenas realçou o lugar vazio na mesa.

E Jeff não compreendia. Ele ficava dizendo que, se chorasse, ela ficaria bem. Como se algumas lágrimas pudessem ajudar.

Era ridículo. Sabia que chorar não adiantaria nada, porque chorava enquanto dormia. Noite após noite, acordava com lágrimas no rosto e isso não ajudava em nada. De fato, era ao contrário. A expressão da tristeza não ajudava. Apenas a supressão dela faria com que atravessasse esse período tão duro.

Ela seguiu adiante, sorrindo abertamente no trabalho e indo de uma tarefa para a próxima com um zelo desesperado. Não foi senão quando as meninas voltaram para a escola que ela percebeu como estava exausta por causa daquela pretensa vida normal. E não ajudava, é claro, que não tivesse dormido uma noite inteira desde o funeral, nem que ela e Jeff estivessem tendo problemas para encontrar algum assunto sobre o qual conversar.

Ela tentou explicar para ele como se sentia, como estava entorpecida, mas ele se recusava a entender. Ele achava que ela deveria “extravasar”. O que quer que isso quisesse dizer.

Porém, ela não estava fazendo muita força para falar com ele, e isso era verdade. Às vezes, passavam dias inteiros com pouco mais que um aceno de cabeça quando cruzavam um com o outro. Ela precisava mesmo tentar com mais empenho.

Meredith lavou a caneca de café, colocou-a no secador e foi para o escritório no porão que ele usava para escrever. Batendo uma vez, ela abriu a porta.

Jeff estava sentado à mesa — aquela que compraram fazia uma década, chamaram de o espaço de escritor dele e batizaram fazendo amor sobre ela.

Você vai ser famoso um dia. O novo Raymond Chandler.

Ela sorriu com a lembrança, apesar de se entristecer pensando que em algum ponto ao longo do caminho os sonhos de ambos tinham se separado, seguindo caminhos diferentes.

— Como está indo o livro? — ela perguntou, apoiando-se no batente.

— Uau. Você não pergunta isso há semanas.

— Mesmo?

— Mesmo.

Meredith franziu a testa diante disso. Sempre adorara o que o marido escrevia. Nos primeiros dias do casamento, quando ele era um jovem jornalista lutando para se estabelecer, lia cada palavra que ele escrevia. Até alguns anos atrás, quando ele ousara tentar escrever ficção, ela fora sua primeira e melhor crítica. Pelo menos, era o que ele dizia. Aquele livro não tinha sido vendido para nenhuma editora, mas Meredith acreditava nele de todo o coração. E estava feliz que ele finalmente começara outro livro. Havia dito isso para ele?

— Lamento, Jeff — ela disse. — Tenho estado terrível ultimamente. Posso ler o que você escreveu até agora?

— Mas claro.

Ela viu como era fácil fazê-lo sorrir e sentiu uma pontada de culpa. Queria se curvar e dar um beijo nele. Beijá-lo costumava ser tão fácil quanto respirar, mas agora parecia algo estranhamente ousado, e ela não conseguia se aproximar dele. Mentalmente, ela acrescentou ler livro de Jeff à sua lista de coisas a fazer.

Ele se inclinou para trás na cadeira. O sorriso que dirigiu para ela foi um bom esforço; apenas os 20 anos de convívio permitiam que ela visse a vulnerabilidade por trás do sorriso.

— Vamos jantar e ver um filme hoje. Você precisa de um descanso.

— Talvez amanhã. Hoje, tenho que pagar as contas de Mamãe.

— Você está queimando a vela dos dois lados.

Meredith odiava quando ele dizia coisas ridículas como essa. O que exatamente ela deveria deixar de fazer? Seu trabalho? Cuidar da mãe? As tarefas de casa?

— Faz apenas algumas semanas. Me dê um descanso.

— Só se você se der algum.

Ela não tinha ideia do que ele queria dizer com isso, e no momento não se importava.

— Eu preciso ir. Vejo você de noite. — Curvando-se, ela deu um tapinha no ombro dele e saiu. Colocou os cachorros no cercado do jardim e seguiu para a casa dos pais.

A casa da mãe.

Esse lembrete veio com uma pontada de tristeza que ela pôs de lado.

Lá dentro, fechou a porta e chamou pela mãe.

Não houve resposta, o que não era de surpreender.

Encontrou a mãe na sala de jantar formal que raramente era usada, murmurando consigo mesma em russo. Na mesa, espalhadas diante dela, estavam joias que o pai comprara para ela ao longo dos anos, assim como uma caixa de joias decorada que tinha sido um presente de Natal das filhas, muito tempo atrás.

Meredith viu a confusão que a tristeza havia causado no belo rosto da mãe: as faces estavam encovadas e os ossos apareciam de forma proeminente; a cor sumira da pele ao ponto dela estar quase com a cor do cabelo. Apenas os olhos — de um azul chocante em meio a toda aquela palidez — guardavam alguma semelhança com a mulher que ela era um mês atrás.

— Oi, Mamãe — disse Meredith, aproximando-se. — O que você está fazendo?

— Temos essas joias. E a borboleta está em algum lugar.

— Você vai se vestir para alguma coisa?

A mãe a fitou com ar duro. Apenas então, quando os olhares delas realmente se encontraram, foi que Meredith percebeu a confusão naqueles olhos de um azul-elétrico.

— Podemos vendê-las.

— Não precisamos vender suas joias, Mamãe.

— Eles vão parar de entregar dinheiro logo. Você vai ver.

Meredith inclinou-se e com gentileza pegou uma das joias. Não havia nada realmente de valor ali: os presentes de Papai foram sempre mais de coração do que caros.

— Não se preocupe com as contas, Mamãe. Eu vou pagá-las para você.

— Você?

Meredith assentiu e ajudou a mãe a se levantar, surpresa por ela consentir. Mamãe se deixou levar escada acima sem problemas.

— A borboleta está em segurança?

Meredith assentiu.

— Está tudo seguro, Mamãe — garantiu ela, ajudando a mãe a se deitar na cama.

— Graças a Deus — disse Mamãe com um suspiro. E fechou os olhos.

Meredith ficou ali por um longo tempo, olhando para a mãe que dormia. Por fim, estendeu a mão e tocou a testa dela (não estava quente) e afastou com gentileza o cabelo dos olhos.

Quando por fim ficou certa de que Mamãe dormia profundamente, ela desceu e ligou para o escritório.

Daisy atendeu ao primeiro toque.

— Escritório de Meredith Whitson Cooper.

— Oi, Daisy — disse Meredith, ainda franzindo a testa. — Vou trabalhar aqui de Belye Nochi hoje. Minha mãe está agindo de uma forma um pouco estranha.

— A tristeza faz isso com as pessoas.

— Sim — Meredith disse, pensando nas lágrimas que sempre estavam em seu rosto quando acordava. Ontem, estivera tão exausta que colocara suco de laranja no café em vez de leite de soja. E tomara meia caneca antes de perceber. — Ela faz, sim.

J

Se Meredith estava queimando a vela dos dois lados, então, no final de janeiro, não restava nada além da chama. Sabia que Jeff estava impaciente com ela, até mesmo bravo. Ele sempre dizia para contratarem alguém para ajudar a tomar conta da mãe dela, ou que o deixasse ajudar, ou — o pior de tudo — que arrumasse tempo para eles. Mas como poderia fazer isso em meio a todas as outras tarefas? Tinha tentado arrumar uma governanta para ajudar Mamãe, mas a tentativa resultara em desastre. A pobre mulher havia trabalhado por uma semana em Belye Nochi e pedira demissão sem aviso, dizendo que não podia aguentar o modo como Mamãe a vigiava o tempo todo e dizia para não tocar nas coisas.

Então, com Nina sabe-se Deus onde e Mamãe ficando mais estranha e fria a cada dia, Meredith não tinha opção senão seguir adiante. Ela havia prometido para o pai que tomaria conta da mãe e não quebraria a promessa. Por isso, seguia adiante sem parar, fazendo tudo que precisava ser feito. Enquanto se mantivesse em movimento, conseguiria conter a tristeza.

Sua rotina tornara-se sua salvação.

Toda manhã, acordava bem cedo, corria seis quilômetros, fazia o café para o marido e para a mãe e ia trabalhar. Às 8, estava em sua mesa, trabalhando. Ao meio-dia, voltava para Belye Nochi para ver a mãe, pagar algumas contas ou fazer alguma limpeza. Depois, voltava ao trabalho até as 6, fazia compras no mercado no caminho para casa, parando para ver Mamãe, até as 7 ou 8 e — se Mamãe não estivesse agindo de forma estranha demais — estava em casa às 8h30 para jantar o que quer que ela e Jeff conseguissem fazer. Sem falha, caía no sono no sofá às 9 e despertava às 3 da manhã. A única parte boa dessa rotina maluca era que podia ligar cedo para Maddy por causa da diferença de fuso horário. Às vezes, só ouvir a voz das filhas lhe dava forças para atravessar o dia inteiro.

Agora, mal passava do meio-dia e já estava exausta quando apertou o botão do interfone e disse:

— Daisy, vou almoçar em casa. Volto em uma hora. Você pode levar o relatório do barracão para Hector e lembrar Ed de me conseguir aquelas informações sobre uvas?

A porta do escritório abriu.

— Estou preocupada com você — disse Daisy, fechando a porta atrás dela.

Meredith ficou emocionada.

— Obrigada, Daisy. Mas estou bem.

— Você está trabalhando demais. Ele não gostaria disso.

— Eu sei, Daisy. Obrigada.

Meredith esperou Daisy sair de sua sala, então, pegou as chaves e a bolsa.

Lá fora, a neve caía outra vez. O estacionamento estava uma confusão de neve e lama misturadas, assim como as estradas. Ela dirigiu lentamente até a casa da mãe, estacionou e entrou. Tirou o casaco e o pendurou, chamando:

— Mãe, estou aqui.

Não houve resposta.

Enfiando a cabeça na geladeira, encontrou os pierogiesa que havia colocado para degelar na noite anterior e uma Tupperware cheia de sopa de lentilha. Colocou os pierogies no micro-ondas e os esquentou. Estava a ponto de subir quando percebeu uma mancha escura no jardim de inverno.

Isso estava ficando cansativo...

Pegando o casaco, marchou pela neve até o jardim.

— Mãe — disse ela, percebendo a exasperação na voz, mas sendo incapaz de controlá-la. — Você tem que parar de fazer isso. Vamos para dentro. Vou fazer pierogies e sopa para você.

— Do cinto?

Merdith balançou a cabeça. O que quer que isso quisesse dizer.

— Vamos. — Ela ajudou a mãe a se levantar — sem casaco novamente, e azul de frio — e a levou para a cozinha, onde a envolveu em um cobertor e a sentou à mesa. — Você está bem?

— Não é comigo que deveria se preocupar, Olga — disse Mamãe. — Vá ver o leão.

— Sou eu. Meredith.

— Meredith — ela repetiu, tentando dar sentido ao nome.

Meredith franziu a testa. A mãe parecia cada vez mais confusa. Aquilo não era apenas tristeza. Havia algo errado.

— Vamos, Mamãe. Acho que precisamos visitar o dr. Burns.

— O que temos para trocar?

Meredith suspirou novamente e pegou o prato com pierogies no micro-ondas. Colocou os pasteizinhos em um prato frio, que foi posto diante da mãe.

— Estão quentes. Cuidado. Eu vou pegar suas roupas e ligar para o médico. Fique aqui. Está bem?

Ela subiu em busca das roupas e, enquanto estava lá, ligou para Daisy e pediu que marcasse uma consulta de emergência com o dr. Burns. Então, desceu com as roupas e ajudou Mamãe a se levantar.

— Você comeu tudo? — Meredith disse, surpresa. — Bom. — Vestiu um suéter na mãe, então ajudou-a a calçar as meias e botas para neve. — Vista o casaco. Eu vou esquentar o carro.

Quando voltou para dentro de casa, Mamãe estava na entrada, abotoando o casaco nas casas erradas.

— Aqui, Mamãe. — Meredith desabotoou e reabotoou o casaco da forma correta. Tinha quase terminado quando percebeu que o casaco estava quente.

Enfiando a mão nos bolsos, ela encontrou os pierogies, ainda quentes, embrulhados em toalhas de papel engorduradas. Mas o que é isso?

— São para Anya — disse Mamãe.

— Eu sei que são seus — disse Meredith, franzindo a testa. — Vou deixá-los aqui para você, está bem? — Ela colocou os pastéis no prato de cerâmica da entrada. — Vamos, Mamãe.

Conduzindo a mãe para fora, ajudou-a a entrar no SUV.

— Apenas relaxe, Mamãe. Durma. Você deve estar exausta. — Ela ligou o carro e foi para a cidade, estacionando em uma das vagas inclinadas diante do prédio de tijolos aparentes dos consultórios do Grupo Médico Cashmere.

Lá dentro, Georgia Edwards encontrava-se por trás da mesa da recepção, parecendo tão vivaz e bela quanto na época em que era animadora de torcida no Colegial Cashmere.

— Oi, Mere — ela disse, sorrindo.

— Oi, Georgia. Daisy marcou uma hora para minha mãe?

— Você conhece Jim. Ele faz qualquer coisa para vocês, Whitson. Leve-a para a Sala de Exames A.

Quando se aproximaram da sala de exames, Mamãe pareceu perceber subitamente onde estavam.

— Isso é ridículo — ela disse, puxando o braço.

— Reclame o quanto quiser — disse Meredith —, mas vamos ver o médico.

A mãe se endireitou, ergueu o queixo e entrou na primeira sala de exames. Ali, ocupou a única cadeira existente.

Meredith entrou atrás dela e fechou a porta.

Momentos depois, o dr. James Burns entrou na sala, sorrindo. Completamente careca, com olhos cinzentos cheios de compaixão; para Meredith, ele se parecia com seu pai. Os dois tinham sido parceiros de golfe durante anos; o pai de Jim tinha sido um dos melhores amigos de seu pai. Ele abraçou Meredith com força; no abraço, estavam a tristeza compartilhada e um silencioso eu também sinto falta dele.

— Então — disse ele quando se afastou. — Como você está hoje, Anya?

— Eu estou bem, James. Obrigada. Meredith é exagerada. Você sabe disso.

— Você se importa se eu a examinar? — ele perguntou.

— Claro que não — disse Mamãe —, mas é desnecessário.

Jim realizou um exame geral. Quando terminou, fez anotações na ficha dela e então disse:

— Que dia é hoje, Anya?

— Vinte e um de janeiro de 2001 — disse ela, o olhar firme e claro. — Quarta-feira. Nós temos um novo presidente. George Bush, o mais jovem. E Olym­pia é a capital do estado.

Jim fez uma pausa.

— Como você está, Anya? De verdade?

— Meu coração está batendo. Eu respiro. Eu vou dormir e acordo.

— Talvez devesse ver alguém — ele disse com gentileza.

— Quem?

— Um médico que possa ajudá-la a falar sobre sua perda.

— A morte não é algo de que falar. Vocês, americanos, acreditam que as palavras mudam as coisas. Elas não mudam.

Ele assentiu.

— Minha filha talvez precise de ajuda.

— Certo — ele disse, anotando algo mais na ficha. — Por que você não vai até a sala de espera enquanto falo com ela?

Mamãe saiu da sala imediatamente.

— Tem algo errado com ela — disse Meredith assim que estavam sozinhos. — Ela está muito confusa. Mal consegue dormir. Hoje, colocou o almoço nos bolsos e falou sobre si mesma na terceira pessoa. Ela está constantemente preocupada com um leão e me chamou de Olga. Acho que está misturando contos de fadas com a vida real. Ontem à noite eu a ouvi recitando uma dessas histórias para si mesma... como se Papai estivesse ouvindo. Você sabe que ela sempre fica deprimida no inverno, mas isso é alguma outra coisa. Algo está errado. Será que é Alzheimer?

— A mente dela parece estar bem, Meredith.

— Mas...

— Ela está triste. Dê um tempo para ela.

— Mas...

— Não há uma forma normal de lidar com algo assim. Eles estiveram casados por cinco décadas e agora ela está sozinha. Apenas a escute, se você conseguir; fale com ela. E não a deixe sozinha por muito tempo.

— Acredite, Jim, minha mãe está sozinha mesmo que eu esteja do lado dela.

— Então, fiquem sozinhas juntas.

— Sim — disse Meredith. — Certo. Obrigada, Jim, por nos ver. Agora, preciso levá-la para casa e voltar ao trabalho. Tenho uma reunião às 2h15.

— Talvez você devesse ir mais devagar. Posso lhe receitar um remédio para dormir, se quiser.

Meredith queria ter ganho dez contos cada vez que alguém — especialmente seu marido — tinha lhe dado esse mesmo conselho. Estaria em uma praia no México com todo o dinheiro.

— Claro, Jim — ela disse. — Eu vou parar e cheirar as rosas.

J

Em um dia de calor infernal, mais de um mês depois de partir do Estado de Washington, Nina encontrava-se no meio de um mar de refugiados famintos e desesperados. Até onde a vista alcançava, havia gente amontoada diante de tendas sujas e capengas. A situação delas era crítica; muitas haviam chegado feridas, ou baleadas, ou estupradas, mas o estoicismo delas era impressionante. Calor e poeira as atingiam; elas andavam quilômetros por um balde de água, esperavam horas por um punhado de arroz da Cruz Vermelha, mas ainda assim havia crianças brincando na terra; de vez em quando, ouvia-se o som de risadas erguer-se acima do choro.

Nina estava tão suja e cansada e faminta quanto todos ao redor dela. Estava vivendo naquele campo havia duas semanas. Antes disso, estivera em Serra Leoa, abaixando-se e escondendo-se para evitar levar um tiro ou ser ela mesma estuprada.

Ela se agachou no solo seco e sujo. O zunido dos ruídos no campo era opressivo, uma combinação de insetos, vozes e máquinas à distância. Para a esquerda, uma bandeira médica esfrangalhada ondulava acima de uma tenda de exército. Centenas de pessoas feridas esperavam pacientemente em uma fila para serem atendidas.

Diante dela, meio dentro e meio fora de uma tenda, um homem velho e encarquilhado encontrava-se deitado nos braços da esposa. Ele havia perdido uma perna recentemente e o toco sangrento manchava de vermelho o cobertor que o cobria. A mulher estava ali com ele fazia horas, mantendo-o erguido, apesar de ser claro que o magro corpo dela também estava doendo. Ela colocava preciosas gotas de água na boca do marido.

Nina pôs a tampa na lente e levantou. Olhando para o campo, sentiu uma exaustão que era uma coisa nova. Pela primeira vez em sua carreira, a tragédia daquilo tudo era quase insuportável. Não era algo pior do que havia visto antes. Não era isso. A situação não mudara. O que mudou fora ela. Carregava consigo uma tristeza e esse peso tornava impossível compartimentá-la.

As pessoas costumavam pensar que o trabalho dela era estar lá, como se qualquer um pudesse apontar a máquina e bater fotos, mas a verdade é que as fotos dela eram uma extensão de sua pessoa, do que pensava, do que sentia. Precisava de uma concentração perfeita para capturar em filme a intensa dor da tragédia pessoal. Era preciso estar lá 100% do tempo, no momento — mas tinha que ser o momento deles.

Ela abriu a mochila e tirou a antena do satélite. Indo para leste tanto quanto ousava, montou o equipamento, posicionou o prato e ligou para Danny.

Com o som da voz dele, sentiu algo relaxar no peito.

— Danny — ela disse, tendo que gritar para se fazer ouvir acima da estática.

— Nina, amor. Pensei que tinha me esquecido. Onde você está?

Ela se contraiu com a pergunta.

— Guiné. E você?

— Zâmbia.

— Estou cansada — ela disse, surpreendendo a si mesma. Não se lembrava de jamais ter dito isso, não enquanto trabalhava.

— Posso estar na Ilha Mnemba na quarta.

Água azul. Areia branca. Gelo. Sexo.

— Combinado.

Ela desligou e guardou o telefone. Passando a alça pelo ombro, voltou para o acampamento. Uma fileira de novos caminhões da Cruz Vermelha tinha chegado e o pandemônio da distribuição de comida começara. Ela correu adiante de duas mulheres carregando uma caixa de suprimentos e passou na frente da tenda da qual tinha tirado fotos.

O homem com as bandagens ensanguentadas havia morrido. A mulher continuava sentada ao lado dele, embalando-o no colo, cantando para ele.

Nina parou e tirou uma foto, mas dessa vez a lente não foi uma proteção, e quando afastou a máquina do rosto ela percebeu que estava chorando.

J

Do confortável assento dentro da SUV com ar-condicionado, Nina olhou pela janela para o cenário de Zanzibar. As ruas estreitas e ondulantes, cheias de gente: mulheres envoltas nos tradicionais véus muçulmanos, crianças com uniformes de escola azuis e brancos, homens parados em grupos. Do lado da estrada, homens tentavam vender de tudo, de frutas e legumes a tênis e camisetas com pouco uso. Na selva atrás da estrada, mulheres — a maioria com crianças nas costas ou braços — colhiam cravos; os temperos ficavam em largos recipientes marrons na beirada da estrada, secando sob o sol quente.

Quando o táxi por fim deixou a estrada principal e virou na estradinha de terra que levava até a praia, Nina agarrou-se ao puxador da porta com toda a força. A estrada ali era coral puro — assim como a ilha toda — e os pneus podiam estourar a qualquer momento. A velocidade diminuiu; avançaram lentamente, passando por aldeias erguidas no meio do nada; gado confinado em currais improvisados, mulheres de véus e vestidos coloridos com varas nas mãos, crianças bombeando no poço em busca de água. As casas eram pequenas e escuras e feitas de qualquer coisa que estivesse disponível — madeira, lama, pedaços de coral — e tudo era coberto pelo vermelho da poeira terrosa.

No final da estrada, a praia era uma colmeia de atividade. Barcos de madeira subiam e desciam na água rasa, enquanto homens arrumavam as redes abertas na areia. Garotos vestidos com roupas esfarrapadas corriam por todos os lados, assediando os turistas, oferecendo poses para fotografias em troca de dólares.

No minuto em que ela entrou na esguia lancha branca, percebeu o quanto estava tensa. Um nó em seu pescoço relaxou. Sentiu o ar do mar no rosto sujo, batendo no cabelo enquanto aceleravam pelo mar liso. Ocorreu-lhe, enquanto respirava o ar salgado, como tinha sorte na vida, apesar da tristeza. Ela podia deixar os lugares terríveis para trás, mudar seu futuro com um telefonema e uma passagem de avião.

A ilha particular — Mnemba — era um pequeno atol no arquipélago de Zanzibar. Quando ela chegou, o gerente da ilha, Zoltan, estava ali com um cálice de vinho branco e um pano úmido e fresco. Quando ele viu Nina, seu rosto moreno e atraente abriu-se em um sorriso largo.

— Estou feliz em vê-la novamente.

Ela desceu do barco saltando para a água quente, assegurando-se de manter a mochila e sacola de equipamento acima da cabeça.

— Obrigada, Zoltan. Estou feliz em estar aqui. — Ela pegou o cálice de vinho. — Danny já chegou?

— Ele está no número 7.

Nina pendurou a mochila e a sacola no ombro e caminhou pela praia. A areia estava tão branca quanto o coral do qual era formada e a água tinha um tom impressionante de verde-azulado. Quase que exatamente a cor dos olhos da mãe dela.

Havia nove bandas privativas na ilha — cabanas com teto de folhas e laterais abertas —, todas ocultas por vegetação densa. O único momento em que os hóspedes viam uns aos outros, ou ao pessoal da ilha, era na hora das refeições na cabana de jantar ou ao pôr do sol, quando coquetéis eram oferecidos em mesas na praia diante de cada banda.

Nina viu a discreta placa com o número 7 perto das espreguiçadeiras na praia e entrou pela trilha de areia. Um par de pequenos antílopes, não maiores que coelhos, com chifres tão pontudos quanto furadores de gelo, cruzou a trilha e desapareceu.

Ela viu Danny antes de ele a ver. Estava em uma das cadeiras de bambu trançado, com os pés descalços apoiados na mesa de café, tomando uma cerveja e lendo. Ela encostou-se no corrimão de madeira.

— Essa cerveja não é a coisa mais atraente por aqui, mas está perto.

Danny largou o livro e levantou. Mesmo naquele short cáqui gasto e desbotado, com o cabelo comprido precisando de um bom corte e o rosto escurecido pela barba por fazer, ele estava lindo. Ele a tomou nos braços e a beijou até ela afastá-lo, rindo.

— Estou me sentindo suja — disse ela.

— É o que mais gosto em você — disse ele, beijando a imunda palma da mão dela.

— Preciso de um chuveiro — ela disse, desabotoando a blusa. Ele a levou pela mão através do quarto e pela passagem de madeira até o banheiro e o chuveiro externo. Sob o jorro de água quente, ela tirou sutiã, short e calcinha, chutando as roupas sujas para o lado. Danny a lavou de uma forma que eram puras preliminares e, quando o sabão ainda estava escorrendo de seu corpo esguio e ela avançou para ele, tudo de que precisou foi um toque. Ele a ergueu nos braços e a levou para o quarto.

Mais tarde, quando os dois conseguiram respirar novamente, ficaram deitados enrodilhados na cama coberta por uma rede.

— Uau — disse ela, a cabeça apoiada no braço dele. — Tinha esquecido como somos bons nisso.

— Somos bons em muitas coisas.

— Eu sei. Mas nisso somos realmente bons.

Ocorreu uma pausa e nela Nina percebeu que ele diria o que ela não queria ouvir.

— Eu soube pela Sylvie que o seu pai morreu.

— O que eu deveria fazer? Ligar para você e chorar?

Ele virou para o lado, levando-a consigo até ficarem de frente um para o outro. A mão deslizou pelas costas dela e parou na curva do quadril.

— Eu sou de Dublin, lembra? Sei como é perder alguém, Nina. Sei como isso fica lá dentro como ácido de bateria, queimando e queimando. E sei como é fugir disso. Você não é a única na África, certo?

— O que você quer de mim, Danny? O quê?

— Conte-me sobre seu pai.

Ela o fitou, sentindo-se encurralada. Queria dar o que ele pedia, mas não conseguia. Seus sentimentos, sua perda, eram tão intensos que, se ela se permitisse sentir tudo aquilo, jamais conseguiria se recuperar.

— Eu não sei como. Ele era... meu sol, eu acho.

— Eu amo você assim — ele disse suavemente.

Nina queria que isso a fizesse se sentir melhor, mas não fez. Sabia sobre o amor desigual, como era possível ser esmagada por dentro se uma pessoa amava mais do que a outra. Já não tinha visto esse tipo de devastação nos olhos do pai quando olhava para a mãe? Estava certa de que sim. E, uma vez que se via esse tipo de dor, não se esquecia mais. Se Danny a olhasse assim algum dia, isso partiria seu coração. E ele faria isso. Cedo ou tarde, ele perceberia que ela podia ter amado o pai, mas era mais parecida com a mãe.

— Não podemos só...

— Por enquanto — ele disse, mas ela sabia que aquilo não terminaria ali.

A ideia de perdê-lo fez com que se sentisse estranhamente ansiosa. Então, ela fez o que sempre fazia quando as emoções eram fortes demais para aguentar: deslizou as mãos pelo peito nu dele até a linha dos pelos junto do umbigo. Continuou a descer e, quando o tocou e sentiu como ele estava duro, teve certeza de que ele ainda era seu.

Por enquanto.

J

O céu está cinza-ardósia e inchado de nuvens. Uma gaivota solitária gira no alto, combatendo o vento, grasnando. Ela é pequena, uma menina com longas maria-chiquinhas castanhas e joelhos esfolados. Correndo atrás dele. Uma pipa cai na areia diante dela, girando; ela sobe novamente antes que ela a alcance.

Papai — ela grita, sabendo que ele está muito adiante. Ele não pode ouvi-la. — Eu estou aqui atrás...

Meredith acordou em pânico. Sentou-se na cama e olhou ao redor, sabendo que ele não estaria ali. Era mais um sonho.

Ainda cansada e com dores por causa da noite passada virando de um lado para o outro sob as cobertas, ela levantou da cama, tomando cuidado para não acordar Jeff. Foi até a janela e olhou para a escuridão lá fora. A madrugada ainda não mostrara sua face. Ela cruzou os braços com força, tentando se controlar. Era como se ultimamente pedaços de sua alma estivessem caindo, como se tivesse alguma espécie horrível de lepra espiritual.

— Volte para a cama, Mere.

Ela não olhou para trás.

— Desculpe. Não queria acordar você.

— Por que você não dorme até mais tarde hoje?

Parecia boa a ideia de poder se enterrar nos braços dele e sob as cobertas e apenas dormir enquanto a vida seguia adiante sem ela.

— Eu queria poder fazer isso — disse ela, já pensando no que precisava fazer naquela manhã. Como já estava de pé, poderia trabalhar nos impostos daquele trimestre. Teria uma reunião com o contador na semana seguinte e precisava se preparar.

Jeff levantou da cama e foi até lá, ficando atrás dela. Meredith viu o reflexo prateado do rosto deles na janela escura.

— Você cuida de tudo e de todos, Mere. Mas quem cuida de você?

Ela virou-se para ele, deixando que ele a abraçasse.

— Você.

— Eu? — ele exclamou. — Eu não passo de um item em sua lista de tarefas.

Em outra época — há um ano, talvez —, ela teria dito a ele que isso não era justo, brigaria com ele, mas agora estava esgotada demais para se importar.

— Agora não, Jeff. — Foi tudo que conseguiu dizer. — Não posso ter essa conversa.

— Eu sei a dor que você está sentindo...

— Claro que estou sentindo dor. Meu pai morreu.

— É mais que isso. Você está fazendo coisas demais — ele disse calmamente. — Você continua tentando chamar a atenção dela, como...

— E o que eu deveria fazer? Ignorá-la? Ou talvez deva pedir demissão do meu trabalho?

— Contrate alguém. Ela não dá a menor bola se você vai lá. Eu sei que dói, meu bem, mas ela nunca se importou.

— Não posso. Ela não deixaria. E eu prometi para Papai.

— E se ela esgotar você? É isso que seu pai queria? Ela jamais sequer olhou para você.

Meredith sabia que ele tinha razão. Em momentos como aquele, desejava que não estivessem juntos há tanto tempo, que ele não tivesse visto tanto. Mas ele estava lá na noite da peça — e em outras noites como aquela — e sabia como ela era e quanta dor carregava.

— A questão não é ela. Você sabe disso. Sou eu. Eu não posso simplesmente... abandoná-la.

— Seu pai estava preocupado com isso, lembra? Ele temia que a família desmontasse sem ele e estava certo. Nós estamos desmontando. Você está desmontando e não quer que ninguém a ajude.

— O dr. Burns disse que Mamãe vai ficar bem em algum tempo. E, quando ela estiver bem, eu prometo que vou contratar alguém para limpar a casa e pagar as contas dela, está bem?

— Você promete?

Ela o beijou levemente nos lábios. Estava terminado. Por enquanto.

— Eu volto para o café, está bem? Teremos omeletes e frutas. Só nós dois.

Afastando-se dele, ela foi para o banheiro. Quando estava fechando a porta, pensou tê-lo ouvido dizer alguma coisa. Percebeu a palavra preocupado e fechou a porta.

No escuro, vestiu a roupa para correr e deixou o quarto. Lá embaixo, ligou a cafeteira, pegou os cachorros e saiu para a fria escuridão de fevereiro.

Forçou-se mais do que nunca na corrida, desesperada para limpar a mente. A dor física era tão mais fácil de lidar do que aquela dor no coração. A seu lado, os cachorros latiam e brincavam um com o outro, ocasionalmente correndo para a neve profunda, mas sempre retornando. Quando chegou ao campo de golfe e fez a volta, a camada superior da neve formava uma crosta dura e brilhante sob a pálida luz do sol.

Ela seguiu para Belye Nochi e alimentou os cachorros na varanda de Mamãe. Esta era uma das muitas mudanças em sua rotina. Sempre fazia pelo menos duas coisas ao mesmo tempo. Tirou os sapatos de corrida e foi para a cozinha, onde acendeu o samovar, depois subiu as escadas. Ainda estava com o rosto vermelho e ofegando quando abriu a porta do quarto da mãe.

A cama estava vazia.

— Merda.

Meredith foi para fora e seguiu até o jardim de inverno, onde sentou-se ao lado da mãe, que vestia a camisola rendada que seu pai havia lhe dado no Natal do ano anterior, com o cobertor azul ao redor dos ombros. O lábio inferior sangrava onde o havia mordido. Os pés estavam apenas com meias úmidas e sujas de terra.

Meredith ousou estender a mão e cobrir com ela a mão fria da mãe, mas não conseguiu encontrar palavras para acompanhar o gesto íntimo.

— Vamos, Mamãe, você precisa comer alguma coisa.

— Eu comi ontem.

— Eu sei. Vamos. — Ela segurou a mão da mãe e a ajudou a levantar. Depois de tempo demais passado naquele banco de metal, o corpo da mãe endireitou-se lentamente, estalando e rangendo com o movimento.

Assim que terminou de se levantar, Mamãe afastou-se de Meredith e percorreu depressa a trilha de pedras até a casa. Meredith a deixou ir na frente. Entrando na cozinha, ela ligou para Jeff e avisou que não voltaria para o café da manhã.

— Mamãe estava no jardim outra vez — ela disse. — Acho melhor eu trabalhar aqui hoje.

— Grande surpresa.

— Puxa vida, Jeff. Seja justo...

Ele desligou.

Magoada por ouvir o tom de ocupado, ela ligou para Jillian. As duas entraram imediatamente na rotina fácil delas, falando sobre a faculdade e Los Angeles e o tempo. Meredith escutou maravilhada a filha mais velha. Como vinha ocorrendo mais e mais recentemente, ouviu aquela confiante jovem mulher falar sobre química e biologia e medicina, e Meredith imaginou como aquilo havia ocorrido, esse crescer e seguir adiante. Ainda ontem, Jillie fora uma menina gordinha com espaços entre os dentes que podia passar a tarde toda observando uma flor de macieira, esperando que abrisse. Está começando, Mãe. A flor vai abrir a qualquer segundo. Será que devo chamar Vovô?

E ensinar Jillian a dirigir levara cerca de dez minutos. Eu li os manuais, Mãe. Você não precisa cerrar os dentes. Confie em mim.

— Eu amo você, Jillie — Meredith disse, percebendo tarde demais que havia interrompido a filha. Ela estava dizendo alguma coisa sobre enzimas. Ou talvez fosse ebola. Meredith riu; havia sido pega não escutando. — Eu estou realmente orgulhosa de você.

— Eu estou te deixando em coma, não é?

— Só em um sono profundo.

Jillian riu.

— Certo, Mãe. Eu preciso mesmo ir. Amo você.

— Amo você também, Besouro.

Quando Meredith desligou, estava se sentindo melhor. Novamente inteira. Falar com as filhas era sempre a melhor prescrição para a tristeza. Exceto, claro, quando eram essas conversas que causavam a tristeza...

Pelo restante do dia, ela trabalhou na mesa da cozinha da casa da mãe; além de pagar os impostos, ler relatórios sobre as colheitas e conferir preços de depósitos, ela convenceu a mãe a comer, pagou as contas e lavou as roupas dela.

Por fim, às 8 horas, quando já havia lavado os pratos do jantar e guardado a comida, ela foi até a sala.

Mamãe estava sentada na poltrona favorita de Papai, tricotando. Um abajur brilhava por trás dela; a luz criava uma suavidade em seu rosto que era ilusória. À esquerda, a luz do altar do Canto Sagrado emitiu fagulhas e produziu fumaça que subiu em uma espiral.

Os olhos de Mamãe estavam fechados, enquanto seus dedos manipulavam as agulhas de tricô. Os cílios longos desciam sobre as faces pálidas, dando a ela aspecto de uma tristeza estranha.

— Está na hora de ir para a cama, Mamãe — Meredith disse, lutando para não soar nem impaciente nem cansada. Ela acendeu a luz do teto e em um instante a intimidade da sala sumiu.

— Eu posso cuidar dos meus próprios horários — disse Mamãe.

E assim aquilo começou, o interminável atrito que era levar Mamãe para cima e para a cama. Elas lutaram em todos os detalhes: escovar os dentes, trocar de roupa, tirar as meias.

Pouco depois das 9, Meredith finalmente conseguiu pôr a mãe na cama. Puxou as cobertas até o queixo dela, assim como sempre fizera com Jillian e Maddy.

— Durma bem — Meredith disse. — Sonhe com Papai.

— Sonhar machuca — Mamãe disse baixinho.

Meredith não sabia o que dizer diante disso.

— Então, sonhe com seu jardim. O açafrão logo vai dar flores.

— Elas podem ser comidas?

Era assim que acontecia ultimamente; em um instante, a mãe estava ali, por trás dos olhos azuis; em outro, ela subitamente ficava ausente.

Meredith queria acreditar que era a tristeza que causava essas mudanças na mãe, toda essa confusão. Se fosse tristeza, haveria um momento em que aquilo acabaria.

Mas os dias passavam e a cada vez que Mamãe parecia desconectada do mundo e confusa com ele, Meredith perdia um pouco da fé no que o dr. Burns dissera. Ficava preocupada que fosse Alzheimer e não tristeza. Como explicar a súbita obsessão da mãe com sapatos de couro e libras de manteiga (que Meredith agora encontrava escondidas por toda a casa) e o leão de conto de fadas sobre o qual a mãe às vezes falava?

Meredith tocou sua mão outra vez, acalmando-a como faria com uma criança assustada.

— Está tudo bem, Mamãe. Temos muita comida lá embaixo.

— Eu vou dormir por um minuto, depois vou subir para o telhado.

— Não vá ao telhado — Meredith disse com cansaço.

Mamãe suspirou e fechou os olhos. Em um momento, estava dormindo.

Meredith andou pelo quarto recolhendo os cobertores e outros itens que Mamãe havia largado por ali.

Embaixo, colocou um monte de roupas na máquina de lavar para que estivessem prontas quando ela chegasse na manhã seguinte. Em seguida, terminou os dois pacotes que enviaria para Jillian e Maddy.

Eram 10 da noite quando acabou.

Em casa, encontrou Jeff no escritório, trabalhando em seu livro.

— Oi — disse ela, entrando.

— Oi. — Ele não se virou.

— Como está indo o livro?

— Bem.

— Eu ainda não li.

— Eu sei. — Então, ele se virou para ela.

O olhar dele era familiar, cheio de desapontamento, e subitamente ela viu ambos nesse momento a distância, e a nova perspectiva mudou tudo.

— Estamos com problemas, Jeff?

Meredith viu que ele ficou um pouco aliviado com a pergunta, que ele estava esperando que ela a formulasse.

— Sim.

— Ah. — Ela viu que o desapontou novamente, que ele queria conversar sobre esses problemas que ela havia subitamente escavado e nos quais tropeçara, mas não sabia o que dizer. Francamente, essa era a última coisa de que precisava saber. Sua mãe estava perdendo a sanidade e o marido achava que estavam com problemas.

Sabendo que era um erro e incapaz de corrigi-lo, ela saiu do escritório — e se afastou do olhar triste e desapontado dele — e foi para cima, para o quarto que compartilhavam fazia tantos anos. Tirou a roupa, ficando só com calcinha e sutiã. Vestiu uma camiseta velha e entrou na cama. Duas pílulas para dormir deveriam ajudar, mas isso não aconteceu e, mais tarde, quando ele foi deitar, ela sabia que ele sabia que ainda estava acordada.

Ela virou e se encostou nas costas dele, sussurrando:

— Boa noite.

Não foi o bastante, aquilo não era nada, e ambos sabiam disso. A conversa que precisavam ter estava ali, como uma nuvem de tempestade, crescendo a distância.


a Palavra de origem polonesa que significa “pastel”. São tradicionalmente em forma semicircular, podendo ser também quadrados ou triangulares. São recheados com batata, repolho, carne moída, queijo ou frutas. Depois de fervidos, são assados ou fritos, geralmente na manteiga com cebola (N.T.).