Não tenho procuração para defender ninguém. Mas não preciso de um papel selado em cartório para denunciar a estupidez e a covardia. Com esse introito, vamos ao assunto: os cheques que uma Comissão descobriu na Caixa Econômica, comprometendo a mulher do sr. João Goulart. A denúncia foi, ao mesmo tempo, estúpida e covarde.
Estúpida porque primária. Tratava-se de cheques nominais. Estúpida porque, para roubar, para se encher de dinheiro, a mulher de um presidente da República não seria idiota ao ponto de deixar recibos e papéis comprometedores. Os grandes ladrões públicos não deixam rastros — e se o governo do sr. João Goulart foi o oceano de corrupção que os revolucionários apregoam, não seria preciso à mulher do grande corrupto usar de recursos mesquinhos para arranjar cinco ou dez mil cruzeiros.[20]
Covarde também. A chamada Revolução até agora não provou um grande escândalo do governo deposto. Tirante a geral avacalhação do Poder, o caos administrativo, a pusilanimidade e o despreparo do sr. João Goulart, a influência de carreiristas da pior extração na vida pública — nada foi provado, realmente, que desabone pessoalmente o sr. João Goulart. Dona Sandra Cavalcanti, nos primeiros dias de revolução, chegou a mostrar pela tevê recibos de 112 cruzeiros: era a prova dos grandes escândalos.
Isoladamente, como em todas as administrações, apareceram deslizes diversos: tráfico de influências, empreguismo desenfreado em alguns setores, esbanjamento em outros — mas os grandes negócios, as polpudas comissões, enfim, a bandalheira grossa que afirmavam sobrenadar no país —, nada disso, até agora pelo menos, veio a público.
Os dedos-duros, os prebostes do 1º de abril estão perdendo tempo e dignidade. Fazer escândalo com dois cheques nominais, de quantias relativamente modestas, não causa efeito a não ser nas histéricas mães de família que promovem marchas com Deus.
Nada, porém, como um mergulho no passado. Em 1955, um grupo de militares depôs um governo constitucional. A alegação do golpe foi quase a mesma de hoje: corrupção e conspiração contra o regime. Pois nos primeiros dias que se seguiram à quartelada de novembro de 1955, acharam e divulgaram listas de homens que deveriam ser fuzilados. O ex-deputado Meneses Côrtes foi acusado de estar construindo um campo de concentração em Olaria e em São Cristóvão. Apareceram recibos de ministros de Estado que haviam se vendido ao capital norte-americano e a outros grupos internacionais. Enfim, os que depuseram o governo de então não eram melhores nem piores do que os de agora: eram os mesmos.
A eficiência da estupidez reside na covardia — na própria e na alheia. Mas nem todos são covardes. Dona Yara Vargas desmanchou o equívoco provocado pelos prebostes. Uma atitude digna, brava, que merece respeito e aplauso.
Se todos assumissem a mesma posição, se todos reagissem, a quartelada de 1º de abril entraria em recesso e no cano. Lembro, a propósito, o caso da carta dos chineses, comprometendo pessoas que não podem se defender. O intuito da carta é claro e estúpido também: vincular a revolta dos sargentos, em Brasília, à linha dura do comunismo. E, de lambugem, incriminar pessoas como o deputado Max da Costa Santos e o sargento Prestes numa conspiração internacional. Isso tudo sem se dar o mínimo direito de defesa aos acusados.
Por tradição, não creio nos documentos apresentados pela Polícia. Se o coronel Gustavo Borges me mostrasse um documento provando que eu nasci, duvidaria do meu próprio nascimento. Dito isto, acho que estou sendo claro.
(26-5-1964)