Luis Fernando Verissimo
Tenho boas lembranças daquele abril. Estávamos recém-casados, voltando da lua de mel e começando a vida num pequeno apartamento da rua Figueiredo Magalhães, perto do Túnel Velho, com janelas para a Siqueira Campos, onde naquele tempo ainda passavam bondes. Éramos felizes, mas casar não tinha sido uma decisão muito sensata. Eu tentava tocar um negócio sozinho, sem muita esperança de que desse certo, e dependia da ajuda de casa para pagar o aluguel do apartamento. Ah, e ainda por cima havia o país daquele jeito...
O país daquele jeito. Nossa maior preocupação, naquele abril, era com a minha tia Lucinda, que trabalhava numa repartição do governo estadual, nunca escondera suas opiniões políticas e estava ameaçada de perseguição pela direita triunfante. Tínhamos um plano de emergência para o caso de ter que escondê-la no nosso apartamento ou contrabandeá-la para Porto Alegre. E a operação Resgate da tia Lucinda — que, felizmente, nunca precisou ser posta em prática — foi o meu único, no caso hipotético, ato de reação ao Golpe de 64, além de alguns palavrões dirigidos à TV durante o noticiário.
Fora o ato de ir até a banca comprar o Correio da Manhã nos dias em que saía o Cony.
Eu costumava ler o Cony regularmente no Correio. Me agradavam seu modo de escrever e seu humor, mas nunca prestara maior atenção nele ou lera um dos seus livros. E de repente, depois do 1º de abril, ali estava aquele cara dizendo tudo que a gente pensava sobre o golpe, sobre a prepotência militar e a pusilanimidade civil, com uma coragem tranquila e uma aguda racionalidade que tornava o óbvio demolidor — e sem perder o estilo e a graça. Em pouco tempo aquele ato, ler o Cony, se tornou um exercício vital de oxigenação para muita gente, e a sua coluna uma espécie de cidadela intelectual em que também resistíamos — mesmo que a resistência consistisse apenas em dizer “É isso mesmo!”, ou “Dá-lhe, Cony!”, a cada duas frases lidas. “Leu o Cony hoje?” passou a ser a senha de uma conspiração tácita de inconformados passivos, cujo lema silencioso seria “Pelo menos eles não estão conseguindo engambelar todo o mundo”.
Cony não foi o único a se manifestar, quando a manifestação ainda era permitida. Mas, como não era um homem de esquerda nem mostrara muita simpatia pelo governo deposto, podia esquecer ideologias derrotadas e reformas interrompidas e se concentrar na ignomínia básica, a de um poder armado se instalando violentamente em nossas vidas para nos salvar dos seus próprios demônios. E como não era um polemista retórico ou um ensaísta gongórico, mas um jornalista e romancista, fez os textos políticos mais importantes do momento com todas as artes do bom cronista, em especial a ironia, que atingia o alvo com a força do que qualquer poder usurpador mais teme: a do ridículo. A única maneira de a prepotência reagir à ridicularização é ser ainda mais ridícula ou ainda mais prepotente. Não havia censura oficial à imprensa, naquele abril, mas a reação às ironias do Cony não tardou, com ameaças de represálias violentas e de “ações punitivas” contra ele e o jornal, de militares golpistas e seus admiradores. Todas respondidas tranquilamente com a palavra, enquanto a palavra foi possível. Depois viria a censura, e o silêncio.
Estes textos reeditados do Cony são evocativos não só da coragem de um homem, mas do clima moral de uma época, em que muitos se deixaram engambelar por oportunismo, mas a omissão e a adesão também tinham seus argumentos, e seus escritores. Cony não escolheu ser herói. Apenas não teve medo de ser contra o poder usurpador apesar de todos os riscos e, sem querer, construiu a breve barricada na qual nos reunimos para resistir com ele. Uma frágil e inútil barricada de poucas semanas e poucas palavras, em contraste com os vinte anos de discursos triunfalistas e ordens do dia transcendentais que viriam. Mas quarenta anos depois voltamos ao local das batalhas e o único monumento àquele abril que resta de pé, empolgante e inspirador como nos dias em que foi construído, é a breve barricada do Cony. A última ironia.
Hoje, um golpe como o de 64 parece tão improvável quanto a volta dos bondes à Siqueira Campos. Nossa democracia formal está consolidada e nossos militares estão quietos. Mas não falta uma direita denunciando os mesmos demônios de antigamente e uma esquerda reclamando, de certo modo, as mesmas reformas. O último elogio que se quer fazer aos textos do Cony é que eles continuam atualíssimos.
(2004)