NÃO ACREDITO EM DEUS, mas sinto a Sua falta. É o que digo quando o tema é abordado. Perguntei ao meu irmão, que ensinou Filosofia em Oxford, em Genebra e na Sorbonne, o que pensava desta afirmação, mas sem revelar que era minha. Ele respondeu com uma palavra: «Lamechice.»
É pela pessoa da minha avó materna, Nellie Louisa Scoltock, Machin de solteira, que temos de começar. Foi professora em Shropshire até se casar com o meu avô, Bert Scoltock. Não era Bertram, não era Albert, era só Bert: assim batizado, assim chamado, assim cremado. Foi diretor de escola e tinha um certo gosto por mecânica e por motorizadas com sidecar. Possuía então um Lanchester e depois, já na reforma, conduziu um Triumph Roadster desportivo e pomposo, com um banco de três pessoas à frente e dois bancos que abriam atrás, quando a capota baixava. Na época em que os conheci, os meus avós tinham vindo para o Sul do país, para estarem mais perto da única filha. A minha avó frequentava o Women’s Institute; fazia conservas que guardava em frascos; depenava e assava os frangos e gansos que o meu avô criava. Era pequena, expressava-se de forma pouco opiniosa e tinha os nós dos dedos deformados pela velhice; precisava de sabão para tirar a aliança. O guarda-roupa deles estava cheio de casacos tricotados à mão e o meu avô usava geralmente malha com torcidos, mais masculina. Iam regularmente ao calista e pertenciam à geração que os dentistas aconselharam a tirar todos os dentes duma assentada. Era um ritual de passagem comum nesse tempo: saltavam da dentição fraca para a porcelana total e para os estalidos e deslizes bucais, para o constrangimento social e para o copo com espuma na mesa de cabeceira.
Essa mudança — dos dentes para as dentaduras — pareceu-nos, a mim e ao meu irmão, ao mesmo tempo séria e vagamente obscena. Mas a vida da minha avó encerrava outra mudança enorme, jamais referida na sua presença. Nellie Louisa Machin, filha dum operário da indústria química, tivera uma educação metodista, ao passo que os Scoltocks eram anglicanos. A dada altura da juventude, a minha avó perdera subitamente a fé e, segundo rezava a narrativa da saga familiar, encontrara um substituto: o socialismo. Não faço ideia de quão forte seria a sua fé religiosa nem de qual seria a orientação política da família; só sei que chegou a concorrer pelos socialistas no seu círculo eleitoral e foi derrotada. Quando a conheci, nos anos cinquenta, já aderira ao comunismo. Deve ter sido uma das poucas idosas reformadas a receber o Daily Worker no Buckinghamshire suburbano e — era o que eu e o meu irmão costumávamos dizer um ao outro — tirava ao orçamento doméstico para enviar donativos ao Fundo de Combate do jornal.
No final da década de cinquenta deu-se a cisão sino-soviética e os comunistas de todo o mundo foram obrigados a escolher entre Pequim e Moscovo. Para a maioria dos fiéis europeus a decisão não foi difícil; como o não foi para o Daily Worker, que recebia apoio financeiro e diretivas de Moscovo. A minha avó, que nunca estivera no estrangeiro e vivia num chalé elegante, decidiu por razões desconhecidas juntar-se aos Chineses. Acolhi a decisão misteriosa por puro egoísmo, pois o Worker passara a trazer o China Reconstructs, suplemento herético expedido diretamente do continente longínquo. A minha avó guardava-me os selos dos envelopes beges. Glorificavam quase sempre obras industriais — pontes, barragens hidroelétricas, camiões à saída das linhas de produção — ou mostravam várias raças de pombos em voo sereno.
O meu irmão não disputava comigo os selos porque, uns anos antes, tinha havido em nossa casa a separação da coleção de selos. Ele decidira especializar-se no Império Britânico. Eu, para marcar a diferença, anunciei que ia especializar-me numa categoria a que chamei (e me pareceu lógica) Resto do Mundo. Era definida unicamente em função do que o meu irmão não colecionava. Já não consigo lembrar-me se essa iniciativa era agressiva, defensiva ou meramente pragmática. Só sei que levou por vezes a permutas desconcertantes na escola, no clube filatélico, entre filatelistas que mal haviam largado os calções. «Então, Barnesy, o que colecionas?» «Resto do Mundo.»
O meu avô usava Brylcreem, e a cobertura nas costas da poltrona Parker Knoll — uma raridade de orelhas e espaldar, onde ele se encostava a ressonar — não era só decorativa. O cabelo branqueara-lhe mais cedo que o da avó; tinha bigode militar aparado, cachimbo com tubo de metal e uma bolsa de tabaco que lhe deformava o bolso do casaco. Também usava uma grande prótese auditiva, outro aspeto do mundo adulto — aliás, do mundo no extremo da idade adulta — que eu e o meu irmão gostávamos de imitar. «Desculpe?», gritávamos um ao outro, trocistas, com as mãos atrás das orelhas. Ambos ansiávamos pelo momento muito apreciado em que a barriga da nossa avó fazia um ruído surdo e suficientemente prolongado para despertar o avô da surdez e levá-lo a perguntar: «É o telefone, mamã?» Ela resmungava, embaraçada, e voltavam aos jornais. O avô, na sua poltrona masculina, com a prótese auditiva a apitar de vez em quando e o cachimbo a fazer gluglu quando ele puxava, abanava a cabeça diante do Daily Express, que lhe descrevia um mundo em que a verdade e a justiça perigavam constantemente sob a ameaça comunista. Na sua poltrona mais macia, feminina — no canto vermelho —, a avó fazia ruídos impacientes diante do Daily Worker, que lhe descrevia um mundo em que a verdade e a justiça, nas suas versões atualizadas, perigavam constantemente sob o capitalismo e o imperialismo.
Por essa época, o avô restringira a prática religiosa ao visionamento de Songs of Praise na televisão. Fazia trabalhos em madeira e jardinava; cultivava o seu próprio tabaco e secava-o no sótão da garagem, onde também guardava bolbos de dálias e velhos exemplares do Daily Express, atados com cordão desfiado. Preferia o meu irmão, ensinava-o a afiar o formão e deixou-lhe a caixa de ferramentas. Não me lembro de ele me ensinar (nem deixar) nada, embora uma vez eu tivesse sido autorizado a vê-lo matar um frango no alpendre do quintal. Meteu a ave debaixo do braço, fez-lhe festas para a acalmar e depois pôs-lhe o pescoço em cima duma máquina de espremer, em metal verde, aparafusada à ombreira. Enquanto fazia descer o manípulo, agarrou o corpo da ave cada vez com mais força durante as convulsões finais.
O meu irmão tinha autorização não só para ver, mas também para participar. Puxou várias vezes a alavanca enquanto o avô segurava a ave. Mas as nossas memórias da matança no alpendre divergem, são incompatíveis. Para mim, a máquina só torcia o pescoço ao frango; para ele, era uma guilhotina em ponto pequeno. «Tenho a imagem clara dum cestinho por baixo da lâmina. Tenho a imagem (menos clara) da cabeça a cair, dalgum sangue (não muito), do avô a pôr a ave decapitada no chão e ela às voltas a correr, por instantes…» Terei a memória saneada ou estará a dele infetada por filmes sobre a Revolução Francesa? Em qualquer dos casos, o avô apresentou melhor ao meu irmão do que a mim a morte e a sua indignidade. «Lembras-te do avô a matar os gansos para o Natal?» (Não me lembro.) «Ele perseguia por todo o galinheiro o ganso escolhido, brandindo um pé de cabra. Quando finalmente o apanhava, deitava-o no chão, por segurança, atravessava-lhe o pé de cabra no pescoço e puxava-lhe a cabeça.»
O meu irmão lembra-se dum ritual — nunca por mim testemunhado — a que chamava «a leitura dos diários». A avó e o avô faziam diários separados e às vezes à noite entretinham-se a ler um ao outro, em voz alta, o que haviam registado nessa mesma semana, muitos anos antes. Ao que parece, as notas eram completamente banais, mas geravam desacordo. Avô: «Sexta-feira. Trabalhei no jardim. Semeei batatas.» Avó: «Disparate. Choveu o dia todo. Demasiado húmido para trabalhar no jardim.»
O meu irmão também se lembra de uma vez, quando era muito pequeno, em que foi à horta do avô e arrancou as cebolas todas. O avô bateu-lhe até ele gritar, depois ficou invulgarmente pálido, confessou tudo à nossa mãe e jurou que nunca mais levantaria a mão para uma criança. A verdade é que o meu irmão não se lembra de nada, nem das cebolas, nem da tareia. Mas a nossa mãe contou-lhe a história repetidas vezes. E, de facto, mesmo que se lembrasse, era capaz de desconfiar. Enquanto filósofo, acredita que muitas vezes as recordações são falsas, «tanto mais que, segundo o princípio cartesiano da maçã estragada, não se pode confiar em ninguém, a menos que haja confirmação externa». Eu sou mais confiante, ou mais crédulo, portanto, continuarei a proceder como se todas as minhas memórias fossem verdadeiras.
A nossa mãe foi batizada com o nome de Kathleen Mabel. Ela odiava Mabel e queixava-se ao avô, que se explicava dizendo: «Conheci em tempos uma rapariga muito simpática chamada Mabel.» Não faço ideia da progressão ou regressão das crenças religiosas da minha mãe, embora guarde o seu livro de orações, encadernado juntamente com os Hinos Antigos e Modernos em camurça macia castanha, cada volume assinado com uma tinta verde surpreendente, com o nome dela e a data: «25 de Dez., 1932.» Admiro-lhe a pontuação: um ponto e uma vírgula, com o ponto da abreviatura e a vírgula a fazer a separação. Não se vê pontuação assim, hoje em dia.
Na minha infância, os três temas inabordáveis eram os do costume: religião, política e sexo. Quando a minha mãe e eu discutíamos esses assuntos — ou seja, os dois primeiros, visto que o terceiro não estava mesmo na ordem do dia — ela era tão «fiel à sua causa» política como eu sempre imaginara. Quanto à religião, disse-me firmemente que, no funeral, não queria «nada dessa charlatanice». Por isso, quando o cangalheiro me perguntou se queria retirar os símbolos religiosos da parede do crematório, respondi-lhe que pensava ser essa a vontade dela.
O pretérito condicional, aliás, é um tempo verbal de que o meu irmão desconfia muitíssimo. Enquanto esperávamos pelo início do funeral tivemos, não uma discussão — isso seria contra toda a tradição familiar — mas uma altercação que provou que, se eu sou racionalista pelos meus próprios padrões, pelos dele sou muito pouco. Quando a nossa mãe ficou incapacitada devido a uma trombose, anuiu com gosto a que a sua neta C. passasse a usar o carro dela: o último duma longa sequência de Renaults, marca a que guardara lealdade francófila durante mais de quatro décadas. Estava de pé com o meu irmão no parque de estacionamento do crematório, e aguardava a silhueta familiar do carro francês, quando a minha sobrinha chegou ao volante do carro de R., o namorado. Eu disse (calmamente, tenho a certeza): «Acho que a mãe gostaria que a C. viesse no carro dela.» O meu irmão, com a mesma calma, protestou logicamente. Fez notar que há os desejos dos mortos, isto é, coisas que as pessoas já falecidas em tempos desejaram; e há os desejos hipotéticos, isto é, coisas que as pessoas teriam ou poderiam ter desejado. «O que a mãe teria desejado» era uma combinação dos dois: um hipotético desejo da falecida e por isso duplamente questionável. «Só podemos fazer o que nós queremos», explicou; satisfazer o hipotético desejo materno era tão irracional como dar agora atenção aos seus próprios desejos passados. Em resposta, propus que tentássemos fazer o que ela desejaria: a) porque temos de fazer alguma coisa, e essa coisa (a menos que deixássemos simplesmente o corpo a apodrecer no quintal) implica escolhas; e b) porque esperamos que, quando morrermos, os outros façam o que também nós teríamos desejado.
Vejo raramente o meu irmão e, por isso, fico muitas vezes surpreendido com o seu modo de pensar; mas é muito verdadeiro naquilo que diz. Enquanto o levava de carro de regresso a Londres, após o funeral, tivemos uma conversa para mim ainda mais peculiar sobre a minha sobrinha e o namorado. Estavam juntos há muito tempo mas, numa época em que estiveram separados, C. tinha andado com outro homem. O meu irmão e a mulher detestaram logo o intruso; e acho que à minha cunhada bastaram só dez minutos para «perceber quem ele era». Não quis saber qual o método para perceber quem ele era. Só perguntei: «Mas gostas do R.?» «Não interessa», respondeu o meu irmão, «se aprovo ou não aprovo o R.» «Interessa. A C. deve querer que gostes dele.» «Pelo contrário, pode querer que eu não goste dele.» «De qualquer maneira, para ela não deixa de ser importante que gostes dele ou não.» Ficou um momento a pensar. «Tens razão», disse. Por estas conversas talvez se perceba que é ele o irmão mais velho.
A minha mãe não manifestara opinião sobre a música que queria para o funeral. Escolhi o primeiro andamento da Sonata para Piano em Mi Bemol Maior K282 de Mozart, um daqueles temas longos e majestosos que evoluem e retornam, sérios mesmo quando se tornam mais vivos. Pareceu durar uns quinze minutos, em vez dos sete indicados na capa, e várias vezes dei por mim a pensar se não seria outra versão de Mozart, ou se o leitor de CDs do crematório teria saltado para trás. No ano anterior apareci em Desert Island Discs e a obra de Mozart que escolhi foi o Requiem. A seguir, a minha mãe telefonou e referiu o facto de eu me definir como agnóstico. Disse-me que era assim que o pai se definia — ao passo que ela era ateia. Disse-o como se ser agnóstico fosse uma posição fraca e liberal, em oposição à realidade inabalável, à verdade objetiva do ateísmo. «Ah, é verdade, e o que é isto agora em volta da morte?», acrescentou. Expliquei que a ideia não me agradava. «És mesmo como o teu pai», retorquiu. «Talvez seja da idade. Quando chegares à minha, não te ralas tanto. Mas eu conheci o que a vida tem de bom. E pensa na Idade Média. A esperança de vida era mesmo pequena. Hoje em dia vivemos setenta, oitenta, noventa anos… As pessoas só acreditam na religião porque têm medo da morte.» Era uma afirmação típica da minha mãe: lúcida, obstinada, claramente sem paciência para opiniões contrárias. O seu domínio da família e as suas certezas sobre o mundo tornaram as coisas úteis e claras na infância, restritivas na adolescência e incomodamente repetitivas na idade adulta.
Após a sua cremação, recuperei o meu CD de Mozart da mão do «organista» que, disse a mim próprio, deve receber atualmente um salário por inteiro, a pôr e a tirar uma única faixa de CD. Cinco anos antes, noutro crematório, o meu pai fora despachado por um organista que ganhava honestamente o seu dinheiro a tocar Bach. Era «o que ele teria desejado»? Acho que não teria objetado; era um homem amável, de espírito liberal, que não se interessava muito por música. Nisso, como em quase todas as coisas, submetia-se — não sem muitos apartes serenos e irónicos — à mulher. A roupa dele, a casa onde viviam, o carro que conduziam: eram tudo decisões dela. Nos meus tempos de adolescente implacável, achava-o fraco. Mais tarde, achei-o condescendente. Mais tarde ainda, autónomo nas suas opiniões mas avesso a defendê-las.
A primeira vez que entrei numa igreja com a minha família, para ir ao casamento dum primo, vi com espanto o meu pai ajoelhar-se no banco e, com uma mão, cobrir a testa e os olhos. «Donde vinha aquilo», perguntei a mim próprio, enquanto fazia sem convicção um gesto que era um arremedo de devoção, acompanhado de um olhar furtivo por entre os dedos. Foi um daqueles momentos em que os nossos pais nos surpreendem, não porque tenhamos ficado a saber algo de novo sobre eles, mas porque descobrimos mais uma zona desconhecida. O meu pai estava só a ser delicado? Pensaria que, se ficasse simplesmente ali sentado, seria tomado por um ateu como Shelley? Não faço ideia.
Teve uma morte moderna, no hospital, sem a família, assistido nos últimos momentos por uma enfermeira, meses — aliás, anos — depois de a medicina lhe ter prolongado a vida ao ponto de as condições em que lha davam serem pouco convincentes. A minha mãe vira-o uns dias antes, mas a seguir teve um ataque de herpes. Nessa última visita, ele estava muito confuso. Ela perguntara-lhe, muito à sua maneira: «Sabes quem eu sou? Porque da última vez que cá estive, tu não sabias que coisa era esta.» E o meu pai respondera, muito à sua maneira: «Acho que és a minha mulher.»
Levei a minha mãe de carro ao hospital, onde nos deram um saco de plástico preto e uma mala de viagem maleável. Ela remexeu muito rapidamente em ambos, pois sabia bem o que queria e o que devia ficar para o hospital, ou pelo menos ser lá entregue. Era uma pena, dizia, ele nunca ter usado os chinelos castanhos grandes com o prático fecho de tiras de velcro, que ela lhe comprara semanas antes; inexplicavelmente (para mim), levou-os para casa. Manifestou pavor de que lhe perguntassem se queria ver o corpo do meu pai. Disse-me que, quando o avô morreu, a avó não «servira para nada» e deixara tudo para ela fazer. Mas, no hospital, a avó sentiu de repente uma qualquer necessidade conjugal ou atávica, e insistiu em ver o corpo do marido. A minha mãe tentou dissuadi-la, mas ela não se deixou demover. Foram levadas para um espaço de observação, na morgue, e o cadáver do avô foi-lhes apresentado. A avó voltou-se para a filha e disse: «Está horroroso, não está?»
Quando a minha mãe morreu, o cangalheiro duma aldeia próxima perguntou se a família queria ver o corpo. Eu disse que sim; o meu irmão disse que não. Aliás, quando lhe telefonei a fazer a pergunta, a resposta dele foi: «Não, valha-me Deus. Nisso concordo com Platão.» De momento, eu não tinha presente o texto a que ele se referia. «O que é que Platão dizia?», perguntei. «Que não acreditava na necessidade de ver os corpos dos defuntos.» Quando apareci sozinho no cangalheiro, que era uma mera extensão nas traseiras duma empresa de camionagem, o dono da agência disse-me, à laia de desculpa: «Por enquanto ela ainda está na sala das traseiras.» Olhei-o em tom interrogativo e ele especificou: «Está num carrinho.» Dei por mim a responder: «Ah, ela nunca foi de cerimónias», embora sem a pretensão de adivinhar o que ela teria ou não teria querido naquelas circunstâncias.
Repousava numa salinha limpa com uma cruz na parede; estava efetivamente num carrinho, com a nuca virada para mim quando entrei, evitando assim o súbito face a face. Parecia mesmo morta: olhos fechados, boca entreaberta, mais do lado esquerdo que do direito, o que era mesmo dela: tinha o hábito de pendurar o cigarro do lado direito da boca e falar pelo outro, até a cinza estar quase a cair. Tentei imaginar que consciência teria, como teria sido o momento em que desapareceu. Ocorrera umas duas semanas depois de ser levada do hospital para um lar residencial. Estava já demente, nessa altura, com uma demência que alternava: às vezes ainda se julgava responsável por tudo e repreendia constantemente as enfermeiras por erros imaginários; de outras vezes reconhecia que perdera o comando, era outra vez criança, todos os familiares mortos ainda estavam vivos e o que a mãe ou a avó tinham dito era da maior importância. Antes da demência eu desligava muitas vezes, durante os seus monólogos solitários; agora, de repente, ela tornara-se dolorosamente interessante. Eu não sabia donde vinha tudo aquilo e como é que o cérebro fabricava aquela falsa realidade. E já não ficava magoado por ela só querer falar sobre si própria.
Disseram-me que duas enfermeiras estavam com ela no momento da morte, a virá-la, quando ela «partiu». Agrada-me imaginar, porque seria típico dela e as pessoas deviam morrer como viveram, que o seu último pensamento foi dirigido a si própria e foi algo do género: «Vá, despacha-te lá com isto.» Mas é sentimentalismo — o que ela teria desejado, ou melhor, o que eu teria desejado para ela — e talvez, se acaso pensou alguma coisa, se tenha imaginado outra vez criança, virada em agitação febril por dois familiares há muito desaparecidos.
Na agência funerária, toquei-lhe várias vezes a face e beijei-a na raiz dos cabelos. Estava assim tão fria porque tinha estado no frigorífico ou porque os mortos são naturalmente muito frios? E não, não estava horrorosa. Não tinha demasiada pintura e teria ficado satisfeita se soubesse que o cabelo estava penteado de maneira aceitável. («É claro que nunca o pinto», gabou-se uma vez à mulher do meu irmão. «É tudo natural.») Querer vê-la morta veio mais, confesso, da curiosidade de escritor do que dum sentimento filial; mas havia uma despedida a fazer, apesar de toda a minha longa exasperação com ela. «Bom trabalho, mãe», disse-lhe em voz baixa. Ela tinha, de facto, morrido «melhor» do que o meu pai. Ele sofrera uma série de tromboses, o declínio prolongou-se durante anos; ela passara do primeiro ataque à morte de maneira muito mais eficiente e rápida. Quando trouxe do lar residencial (uma expressão que me fazia pensar no que seria um «lar não residencial») o saco com as roupas dela, estava mais pesado do que eu esperava. Primeiro descobri uma garrafa cheia de Harvey’s Bristol Cream e depois, numa caixa de cartão quadrada, um bolo de aniversário intacto, comprado numa loja por amigos da aldeia que a tinham visitado no octogésimo segundo e último aniversário. O meu pai morrera com a mesma idade. Sempre imaginara que essa seria a morte mais difícil, porque o amara mais, ao passo que, na melhor das hipóteses, só conseguia gostar da minha mãe com irritação. Mas sucedeu o contrário: a que eu esperara ser uma morte menor revelou-se mais complicada, mais incerta. A morte dele foi só a morte dele; a morte dela foi a morte deles. E o subsequente desmontar da casa transformou-se numa exumação do que tínhamos sido como família, embora não o fôssemos de facto depois dos meus primeiros treze ou catorze anos de vida. Agora, pela primeira vez, mexia na mala da minha mãe. Fora as coisas habituais, continha um recorte do Guardian com uma lista dos vinte e cinco maiores batedores de críquete ingleses do pós-guerra, apesar de ela nunca ler o Guardian; e uma fotografia de Max, o cão da nossa infância, um golden retriever, por trás da qual havia esta inscrição em letra desconhecida: «Maxim: le chien1» e deve ter sido tirada ou, pelo menos, anotada no início dos anos cinquenta por P., um dos assistants franceses do meu pai.
P. era um tipo descontraído, natural da Córsega, e tinha o que os meus pais achavam ser um traço tipicamente gaulês: derreter o salário mensal assim que o recebia. Chegou a nossa casa para passar umas noites até encontrar alojamento e acabou por ficar o ano inteiro. O meu irmão entrou uma manhã na casa de banho e descobriu aquele homem estranho, à frente do espelho a fazer a barba. «Se te fores embora», informou o rosto coberto de espuma, «conto-te uma história de Mr. Beezy-Weezy.» O meu irmão foi-se embora e P. revelou conhecer uma série completa de aventuras que tinham acontecido a Mr. Beezy-Weezy e das quais não recordo nenhuma. Também tinha veia artística: fazia estações de caminho de ferro com pacotes de cornflakes, e uma vez deu aos meus pais — talvez em lugar da renda — duas pequenas paisagens que pintara. Estiveram penduradas na parede durante toda a minha infância e impressionavam-me por serem incrivelmente bem feitas; mas qualquer coisa que fosse vagamente figurativa teria o mesmo efeito.
Quanto a Max, fugiu ou — porque não imaginávamos que quisesse abandonar-nos — foi roubado, pouco depois de a foto ser tirada; e, onde quer que tenha ido, já terá morrido há mais de quarenta anos. Embora o meu pai gostasse, a minha mãe nunca mais quis ter outro cão.
Dada a base familiar de crença ténue combinada com irreligião dinâmica, eu podia, na rebelião da adolescência, ter-me tornado devoto. Mas nem o agnosticismo do meu pai nem o ateísmo da minha mãe chegaram alguma vez a ser completamente expressos, muito menos apresentados como atitudes exemplares, por isso talvez não justificassem a revolta. Eu poderia, se isso fosse viável, ter-me tornado judeu. Andei numa escola onde, de novecentos rapazes, cerca de cento e cinquenta eram judeus. Em geral pareciam mais avançados, tanto socialmente como no modo de vestir; tinham melhores sapatos — um dos meus colegas até possuía um par de botas Chelsea com elásticos — e sabiam mais de raparigas. Também tinham mais feriados, uma vantagem óbvia. E teria sido útil para chocar os meus pais, afetados pelo antissemitismo de baixo nível, próprio da sua classe e idade. (Quando passava o genérico no final duma peça na televisão e surgia um nome como Aaronson, um ou outro era capaz de comentar sarcasticamente: «Mais um galês.») Não que se comportassem de forma diferente com os meus amigos judeus, um dos quais dava pelo nome, bastante apropriado, de Alex Brilliant. Filho dum vendedor de tabaco, Alex lia Wittgenstein aos dezasseis anos e escrevia poesia que transbordava de ambiguidades — duplas, triplas, quádruplas, como bypasses coronários. Era melhor do que eu em Inglês e obteve uma bolsa para Cambridge; depois perdi-lhe o rasto. Às vezes, ao longo dos anos, imaginava o seu provável êxito numa profissão liberal. Tinha mais de cinquenta anos quando soube que essa hipótese biográfica era uma fantasia vã. Alex suicidara-se com comprimidos há cerca de vinte e cinco anos, antes dos trinta, por causa duma mulher.
Não tinha pois nenhuma fé a perder; só uma resistência, que parecia mais heroica do que era, ao brando regime de referência a Deus que uma educação inglesa implicava: lições sobre as Escrituras, orações e hinos matinais e o serviço anual de ação de graças na Catedral de São Paulo. E era tudo, à parte o papel de segundo pastor numa peça de Natal da escola primária. Nunca fui batizado, nunca me mandaram à catequese. Nunca assisti a um serviço religioso comum. Vou a batizados, casamentos, funerais. Estou constantemente a ir às igrejas, mas por razões arquitetónicas; e, em termos mais gerais, para apreender o sentido do que em tempos foi a anglicidade.
O meu irmão tinha ligeiramente mais experiência litúrgica do que eu. Na qualidade de benjamim, foi a um ou dois serviços religiosos. «Lembro-me que fiquei baralhado, qual antropólogo infantil entre antropófagos.» Quando lhe pergunto como perdeu a fé, responde: «Nunca a perdi porque nunca a tive. Mas percebi que era tudo um monte de patranhas no dia 7 de fevereiro de 1952, às nove da manhã. Mr. Ebbets, diretor da escola primária de Derwentwater, anunciou que o rei tinha morrido, que partira para a felicidade e glória eterna no Céu, com Deus, e que, em consequência disso, íamos todos usar fumos pretos durante um mês. Achei que havia ali qualquer coisa esquisita, e como eu tinha razão! Não vi a verdade de repente, não houve sensação de perda, de vazio na minha vida, etc.» E acrescenta: «Espero que esta história seja verdadeira. É de certeza uma memória muito clara e duradoura; mas tu sabes como é a memória.»
O meu irmão teria precisamente nove anos aquando da morte de Jorge VI (eu tinha seis e andava na mesma escola, mas não me lembro nada do discurso de Mr. Ebbets nem dos fumos pretos). O meu abandono final do que restava, ou da possibilidade duma religião, aconteceu depois, com outra idade. Adolescente, curvado sobre um livro ou revista na casa de banho familiar, dizia de mim para mim que Deus não podia certamente existir, pois a ideia de Ele me observar enquanto eu me masturbava era absurda; ainda mais absurda era a noção de que todos os meus antepassados mortos também podiam estar na fila a ver. Eu tinha outros argumentos, mais racionais, mas o que acabou com Ele foi esse sentimento poderosamente convincente e também egoísta, é claro. A ideia da avó e do avô a observarem o que eu fazia ter-me-ia desencorajado seriamente.
Porém, ao registar isto agora, não sei por que não encarei mais possibilidades. Porque é que assumi que Deus, se estivesse a ver, reprovaria necessariamente o modo como eu desperdiçava o meu sémen? Por que não me ocorreu que, se o céu não desabou enquanto testemunhava o meu zeloso e inquebrantável onanismo, seria porque o Céu o não considerava pecado? Tão-pouco tive imaginação para ver os meus falecidos antepassados a sorrirem igualmente aos meus atos: «Vá, filho, aproveita enquanto tens, não haverá mais disso quando passares a espírito sem corpo, por isso vá, mais uma por nós.» Talvez o avô tirasse da boca o cachimbo celestial e segredasse com ar cúmplice: «Conheci em tempos uma rapariga muito simpática chamada Mabel.»
Na escola primária as nossas vozes eram classificadas. Um a um íamos lá para a frente, diante da turma, e tentávamos cantar uma melodia fácil com acompanhamento musical do professor. Depois éramos colocados num de dois grupos: vozes agudas ou vozes graves (o Resto do Mundo musical). Estes rótulos eram eufemismos benévolos, dado que as nossas vozes estavam a anos da mudança; e lembro-me da condescendência dos meus pais quando revelei, como se de uma proeza se tratasse, o grupo em que fora colocado. O meu irmão também era voz grave; mas esperava-o uma humilhação maior. Na escola seguinte, voltámos a ser classificados e divididos — é o meu irmão quem mo lembra — em grupos A, B e C por «um homem repelente chamado Walsh ou Welsh». A razão da animosidade duradoura do meu irmão mais de meio século depois? «Ele criou o grupo D de propósito para mim. Foram precisos vários anos para eu deixar de odiar a música.»
Nessa escola, a música chegava todas as manhãs através dum órgão atroador e de hinos sem sentido. «Existe ao longe uma colina verde / Sem a muralha da cidade / Onde foi crucificado o bom Senhor / Que morreu para nos salvar.» A música era menos monótona do que habitualmente; e de facto era natural que a muralha da cidade não estivesse na colina verde! Mais tarde, quando percebi que «sem» queria dizer «fora de», transferi a minha perplexidade para «verde». Há uma colina verde? Na Palestina? Não estudávamos muita Geografia, no nosso nível (sendo espertos safávamo-nos), mas até eu sabia que aquilo era só areia e pedras. Não me sentia antropólogo entre antropófagos — fazia agora parte dum quórum de ceticismo — mas sentia certamente uma distância entre palavras que me eram familiares e os significados que lhes correspondiam.
Uma vez por ano, no dia da entrega de prémios com a presença do presidente da Câmara, cantávamos Jerusalém, que fora adotada como canção da escola. Era tradição os rapazes mais turbulentos — um pelotão de vozes graves incorrigíveis — lançarem-se a dado momento num fortissimo impecável e julgado com reprovação: «Trazei-me minhas flechas [leve pausa] DO-DEE-SEJO.» Eu sabia que as palavras eram de Blake? Duvido. Nem havia qualquer tentativa de promover a religião através da beleza da linguagem (talvez fosse considerado uma evidência). Tínhamos um mestre de Latim já idoso que gostava de se desviar do texto original e entrar naquilo que pareciam ser devaneios privados mas que era, percebo agora, uma técnica calculada. Surgia como clérigo formal e sóbrio, mas depois murmurava, como de improviso, algo do género: «Gaza não passava da filha dum árabe, mas haviam de vê-la a descascar-se2», piada muito arriscada para eu contar aos meus pais, eles próprios professores. Noutra ocasião, mostrou-se satírico acerca do título absurdo dum livro: The Bible Designed to be Read as Literature3.
Rimo-nos com ele, mas pela razão contrária: a Bíblia (maçadora) não se destinava obviamente a ser lida como literatura (excitante), QED4.
Entre nós, cristãos só de nome, havia alguns rapazes devotos, mas eram considerados ligeiramente esquisitos, tão invulgares — e tão esquisitos — como o mestre que usava aliança e a quem conseguíamos fazer corar (também era devoto). No final da adolescência, tive uma ou duas vezes uma experiência extrassensorial: a sensação de estar lá em cima, junto ao teto, a ver cá em baixo o meu corpo desabitado. Falei nisso ao colega das botas com elásticos — mas não à minha família; e, se bem que encarasse a questão com leve orgulho, não fiz nenhuma dedução significativa, muito menos religiosa.
Foi provavelmente Alex Brilliant quem avançou com a notícia oficial de que Deus estava morto, o que significava que podíamos todos masturbar-nos ainda mais alegremente. Não éramos donos e senhores das nossas vidas? Era precisamente nisso que consistia o existencialismo. E o nosso professor de Inglês, jovem e entusiasta, era implicitamente contra a religião. Pelo menos, citava os versos de Blake que pareciam o oposto de Jerusalém. «Porque lá em cima o Velho Pai do Céu / Peidava-se & Tossia & Arrotava.» Deus peidava-se! Deus arrotava! Isso provava que Ele não existia! (Também nunca pensei considerar esses traços humanos como argumentos a favor da existência ou mesmo da natureza simpática da divindade.) Citava-nos também o sumário sombrio que Eliot fez da vida humana: nascimento, cópula e morte. A meio caminho do seu próprio e natural tempo de vida, este professor de Inglês, tal como Alex Brilliant, havia de se matar com comprimidos e bebida, num pacto de suicídio que fez com a mulher.
Entrei em Oxford. Pediram-me que visitasse o capelão da Universidade e ele explicou que, como bolseiro, eu tinha direito a ler excertos da Bíblia na capela. Recentemente liberto das compulsões dum culto hipócrita, retorqui: «Lamento, mas sou um ateu feliz.» Nada se seguiu, estrondo de trovão, perda da capa de estudante ou rito de reprovação; acabei o xerez e saí. Um ou dois dias depois, o capitão da equipa de remo bateu-me à porta e perguntou se eu queria experimentar o rio. Respondi, talvez com mais arrojo depois de ter enfrentado o capelão: «Lamento, sou um esteta.» Agora estremeço com a resposta (preferia ter remado); mas, mais uma vez, nada aconteceu. Nenhum bando de atletas irrompeu pelo meu quarto a fim de esmigalhar a porcelana azul que eu não tinha ou enfiar a minha cabeça livresca na bacia do lavatório.
Eu conseguia marcar posição, mas era demasiado tímido para a defender. Se fosse articulado — ou bronco — podia ter explicado tanto ao clérigo como ao remador que ser ateu e ser esteta andavam a par: tal como, para eles, ser musculado e ser cristão. (Se bem que o desporto ainda podia oferecer uma analogia útil: Camus não tinha dito que a reação adequada à falta de sentido da vida era inventar as regras do jogo, como fizéramos para o futebol?) Na minha rejeição imaginária, podia ter passado a citar os versos de Gautier: «Les dieux eux-mêmes meurent. / Mais les vers souverains / Demeurent / Plus forts que les airains5.» Podia ter explicado que o êxtase religioso há muito havia dado lugar ao êxtase estético e rematado talvez com desagradável sarcasmo, aludindo a que Santa Teresa não via manifestamente Deus na escultura famosa, mas gozava de algo muito mais corpóreo.
Quando eu disse que era um ateu feliz, o adjetivo devia ser visto como aplicado àquele substantivo e nada mais. Eu era feliz por não crer em Deus; era feliz por, até então, ter conhecido o êxito académico; e era tudo. Consumiam-me ansiedades que tentava esconder. Se era intelectualmente competente (e desconfiava que era um mero fazedor de exames qualificado), também era social, emocional e sexualmente imaturo. E se era feliz por me ter livrado do Velho Pai de Ninguém, não era indiferente às consequências. Não havia Deus, não havia Paraíso, não havia vida depois da morte; por isso a morte, embora distante, apresentava-se a uma luz completamente diferente.
Enquanto estava na Universidade passei um ano em França, a ensinar numa escola católica da Bretanha. Os padres entre os quais vivi surpreenderam-me por serem humanamente tão variados como os civis. Um criava abelhas, outro era druida; um apostava em cavalos, outro era antissemita; um era jovem e falava aos alunos sobre masturbação; outro era velho e viciado em filmes na televisão, mas gostava de os rejeitar em seguida com a frase petulante «Não tem interesse nem moral». Alguns dos padres eram inteligentes e sofisticados, outros estúpidos e crédulos; alguns eram obviamente piedosos, outros céticos, a raiar a blasfémia. Lembro-me do choque à mesa do refeitório, quando o subversivo padre Marais começou a arreliar o druida padre Calvard sobre qual das suas duas aldeias natais teria um Espírito Santo com melhor qualidade no Pentecostes. Foi lá também que vi o meu primeiro cadáver: do padre Roussel, um jovem eclesiástico que se dedicava ao ensino. O corpo jazia numa antecâmara junto à entrada principal da escola; alunos e pessoal eram encorajados a visitá-lo. Eu limitei-me a olhar pelo vidro das portas duplas, e disse a mim mesmo que era sensatez; mas havia grande probabilidade de ser só medo.
Os padres tratavam-me com simpatia, alguma troça e incompreensão. «Ah!», diziam, fazendo-me parar no corredor, tocando-me no braço e oferecendo um sorriso tímido, «la perfide Albion.» Entre eles contava-se um certo padre Hubert de Goësbriand, tipo apagado mas jovial, a quem devia ter saído o nome bretão, grandioso e aristocrático numa rifa, tão-pouco se lhe adaptava. Tinha cinquenta e poucos anos, era roliço, lento, careca e surdo. O seu maior prazer na vida era pregar partidas, à hora das refeições, ao tímido secretário da escola, M. Lhomer: enfiava-lhe sub-repticiamente talheres no bolso, deitava-lhe fumo de cigarro para a cara, fazia-lhe cócegas no pescoço, metia-lhe inesperadamente o frasco da mostarda debaixo do nariz. O secretário da escola demonstrava uma resistência verdadeiramente cristã a estas fastidiosas provocações diárias. No início, o padre Hubert de Goësbriand enfiava-me o dedo nas costelas ou puxava-me os cabelos sempre que passava por mim, até que lhe chamei alegremente sacana e ele parou. Durante a guerra tinha sido ferido na nádega esquerda («Ias a fugir, Hubert!» «Não, estávamos cercados.»), por isso viajava com tarifa reduzida e recebia a revista dos Anciens Combattants. Os outros padres tratavam-no com indulgência e abanavam a cabeça. «Pauvre Hubert» era o comentário mais comum que se ouvia às refeições, quer num aparte sussurrado, quer gritado diretamente na cara dele.
O padre Hubert de Goësbriand acabava de celebrar os vinte e cinco anos como eclesiástico e assumia a fé sem rodeios. Ficou chocado quando, ao escutar a minha conversa com o padre Marais, descobriu que eu não fora batizado. Pauvre Hubert ficou logo preocupado por minha causa e explicou-me claramente as terríveis consequências teológicas: sem batismo eu não tinha hipótese nenhuma de ir para o Céu. Talvez devido ao meu estatuto de proscrito, confessava-me por vezes as frustrações e limites da vida sacerdotal. Um dia confidenciou-me em tom circunspecto: «Não acha que eu ia passar por tudo isto, se no fim não houvesse o Paraíso, pois não?»
Nessa altura fiquei, por um lado, impressionado com pensamento tão pragmático e, por outro, horrorizado com a vida desperdiçada numa esperança vã. Mas o cálculo do padre Hubert de Goësbriand tinha antecedentes notáveis e eu poderia ter reconhecido nele uma versão prosaica da célebre aposta de Pascal que, aparentemente, é bastante simples. Se acreditarmos e no fim se provar que Deus existe, ganhamos. Se acreditarmos e se provar que Deus não existe, perdemos, mas não tanto como perderíamos se decidíssemos não acreditar e só depois da morte descobríssemos que Deus existe mesmo. Talvez não seja tanto um argumento como uma tomada de posição interesseira, digna do corpo diplomático francês; mas a primeira aposta, sobre a existência de Deus, depende duma segunda e simultânea aposta, sobre a natureza de Deus. E se Deus não for como o imaginamos? Se, por exemplo, Ele reprova os apostadores, principalmente aqueles cuja suposta crença n’Ele depende dum pensamento interesseiro? E quem decide quem ganha? Nós não: Deus pode preferir o cético honesto ao oportunista interesseiro.
A aposta de Pascal ecoa através dos séculos, e encontra sempre interessados. Eis uma versão extrema, radical. Em junho de 2006, no Jardim Zoológico de Kiev, um homem desceu por uma corda até à fossa murada onde estão os leões e os tigres. Enquanto descia, gritava à multidão boquiaberta. Uma testemunha afirmou que ele disse: «Quem crê em Deus não será atacado pelos leões»; segundo outra, foi ainda mais provocador: «Se Deus existe, salvar-me-á.» O provocateur metafísico chegou ao chão, tirou os sapatos e dirigiu-se aos animais; então uma leoa irritada derrubou-o e, com os dentes, cortou-lhe a carótida. Isto provará: a) que o homem era louco; b) que Deus não existe; c) que Deus existe, mas não cai no engodo de se manifestar com truques tão baixos; d) que Deus existe mesmo e acaba de provar que pratica a ironia; e) ou nada disso?
E eis a aposta, feita para parecer que quase não é aposta: «Vá, acredita! Mal não faz.» Esta versão chalada, murmúrio do homem fatigado com uma dor de cabeça metafísica, vem dos cadernos de Wittgenstein. Se fôssemos a divindade, ficaríamos um tanto indiferentes a aval tão frouxo. Mas há, provavelmente, alturas em que «mal não faz», exceto o de não sermos verdadeiros, coisa que para alguns pode ser um mal irredutível e não negociável.
Como exemplo: cerca de vinte anos antes de escrever esta nota, Wittgenstein foi professor de várias escolas em aldeias remotas do Sul da Áustria. Os habitantes locais achavam-no excêntrico e austero, mas dedicado aos alunos; disposto também, apesar das suas próprias dúvidas religiosas, a começar e a acabar cada dia com o padre-nosso. Enquanto ensinava em Trattenbach, Wittgenstein levou os alunos numa viagem de estudo a Viena. A estação mais próxima era Gloggnitz, a dezanove quilómetros, por isso a viagem começou com uma caminhada pedagógica em que atravessaram a floresta, e em que se pedia às crianças que identificassem plantas e pedras que haviam estudado na aula. Em Viena passaram dois dias a fazer o mesmo com vários exemplos de arquitetura e tecnologia. Depois apanharam o comboio de volta a Gloggnitz. Quando ele chegou, caía a noite. Lançaram-se na caminhada de regresso, dezanove quilómetros. Wittgenstein, sentindo que muitas das crianças estavam assustadas, abeirou-se de cada uma e disse calmamente: «Estás com medo? Bom, então tens de pensar unicamente em Deus.» Encontravam-se, literalmente, numa floresta escura. «Vá, acredita! Mal não faz.» E provavelmente não fez. Pelo menos, um Deus inexistente proteger-nos-á de gnomos e duendes e demónios da floresta inexistentes, ainda que não dos lobos e dos ursos (e leoas) existentes.
Um estudioso de Wittgenstein sugere que, embora o filósofo não fosse «uma pessoa religiosa», havia nele, «em certo sentido, a possibilidade da religião»; apesar de a sua ideia sobre ela ter menos a ver com a crença num criador do que com o sentido do pecado e desejo de julgamento. Ele pensava que «A vida pode ensinar-nos a crença em Deus». Esta é uma das suas últimas notas. Também imaginava que lhe perguntavam se sobreviveria ou não à morte e ele respondia que não sabia: não pelas razões que vocês ou eu poderíamos dar, mas porque «Não tenho uma ideia clara do que estou a dizer quando digo “Eu não deixo de existir”». Não me parece que muitos de nós a tenham, com exceção dos fundamentalistas que se imolam, esperando recompensas muito específicas. Mas o que significa, mais do que aquilo que pode implicar, está certamente ao nosso alcance.
Se me intitulei ateu aos vinte e agnóstico aos cinquenta e aos sessenta, não é porque tenha entretanto adquirido mais saber: apenas mais consciência da ignorância. Como podemos estar certos de que sabemos o bastante para saber? Na qualidade de materialistas neodarwinistas do século XX, convencidos de que o significado e o mecanismo da vida só ficaram inteiramente claros a partir do ano de 1859, julgamo-nos categoricamente mais sábios do que os crédulos que se ajoelham e que, ainda há pouco tempo, acreditavam no desígnio divino, num mundo ordenado, na ressurreição e no Juízo Final. Mas, apesar de estarmos mais informados, não somos mais evoluídos nem certamente mais inteligentes do que eles. O que nos convence de que o nosso saber é tão definitivo?
A minha mãe teria dito, e disse, que era «da idade», como se, agora que o fim está mais perto, a prudência metafísica e um medo bruto enfraquecessem a minha decisão. Mas ter-se-ia enganado. A consciência da morte apareceu cedo, quando eu tinha treze ou catorze anos. O crítico francês Charles du Bos, amigo e tradutor de Edith Wharton, criou uma frase útil para este momento: le réveil mortel. Qual a melhor maneira de a traduzir? «O despertar para a mortalidade» faz lembrar serviço de hotel. «Conhecer a morte»? «Despertar para a morte»? É demasiado germânico. «A consciência da morte»? Mas isso sugere mais um estado do que uma particular revelação cósmica. De certa maneira, a (primeira) má tradução da frase de Du Bos é a melhor: é como estar num quarto de hotel desconhecido, em que o despertador ficou regulado para o anterior ocupante e, a uma hora imprópria, somos subitamente arremessados do sono para a escuridão, para o pânico e para a consciência cruel de que este mundo é alugado.
Há pouco tempo, o meu amigo R. perguntou-me se penso muitas vezes na morte e em que circunstâncias. Pelo menos uma vez por dia, respondi; e depois há os ataques noturnos, intermitentes. Muitas vezes a mortalidade entra sem ser convidada, quando o mundo exterior apresenta um paralelo óbvio: quando a tarde cai, quando os dias diminuem ou no final de um longo dia de marcha. Com um pouco mais de originalidade, talvez, o meu toque de despertar dispara muitas vezes no começo dum evento desportivo na televisão, e principalmente, não sei porquê, durante o Torneio de Râguebi das Cinco Nações (agora são Seis). Disse isto tudo a R. e desculpei-me pelo que podia parecer uma insistência egocêntrica e complacente sobre o tema. Ele respondeu: «Os teus pensamentos sobre a morte parecem-me SAUDÁVEIS. Não são doentios como os do G. (nosso amigo comum). Os meus são muito, muito doentios. Sempre foram do tipo AGE AGORA. Espingarda na boca. Melhorou muito desde que a Polícia do Vale do Tamisa apareceu e me tirou a arma calibre doze, porque me tinham ouvido nos Desert Island Discs. Agora só tenho a pressão de ar (é do filho). Não presta. Não dispara. Por isso VAMOS PASSAR A VELHICE JUNTOS.»
Dantes, as pessoas falavam mais facilmente sobre a morte: não morte e vida futura, mas morte e extinção. Nos anos vinte, Sibelius costumava ir ao Restaurante Kämp, em Helsínquia, e juntava-se à chamada «mesa limão»: sendo o limão o símbolo chinês da morte. Ele e os companheiros do jantar — pintores, industriais, médicos e advogados — não só tinham permissão como lhes era pedido que falassem sobre a morte. Em Paris, algumas décadas antes, o desregrado grupo de escritores dos jantares Magny — Flaubert, Turgueniev, Edmond de Goncourt, Daudet e Zola — costumavam discutir o tema de maneira metódica e sociável. Eram todos ateus ou agnósticos sinceros; temiam a morte mas não a evitavam. «Pessoas como nós», escreveu Flaubert, «deviam ter a religião do desespero. Devemos ser iguais ao nosso destino, ou seja, impassíveis como ele. À força de dizer “É assim! É assim!” e de fitar lá em baixo o fosso escuro, ficamos calmos.»
Nunca desejei sentir o gosto duma espingarda na boca. Comparado com isso, o meu temor da morte é menor, razoável e prático. E um dos problemas de formar uma nova «mesa limão» ou um jantar Magny para discutir o tema seria que alguns dos presentes se tornariam rivais. Porque é que a condição mortal seria para a bazófia masculina tema menor do que os carros, o salário, as mulheres, o tamanho da pila? «Suores noturnos, gritar “Ah!”, são coisas de escola primária. Espera até lá chegares…» E assim a nossa angústia íntima podia ser exibida não só como banal mas com fraca potência. O MEU MEDO DA MORTE É MAIOR DO QUE O VOSSO E CONSIGO SENTI-LO MAIS VEZES.
Por outro lado, seria uma ocasião em que perderíamos de bom grado, na sessão de bazófia viril. Uma das poucas consolações da consciência da morte é que há sempre — quase sempre — alguém pior do que nós. Não só R., mas também o nosso amigo comum G. Há muito que detém a medalha de ouro dos que sofrem de fobia da morte, por ter conhecido le réveil mortel aos quatro anos. (Quatro! Sacana!) A novidade afetou-o tão profundamente que passou a infância em presença da eterna não existência e da terrível infinitude. Na idade adulta, continua muito mais assombrado pela morte do que eu; propenso também a depressões muito mais profundas. Há nove critérios básicos para um episódio de depressão maior (do humor depressivo durante a maior parte do dia, passando pela insónia e sentimento de inutilidade, até às ideias recorrentes de morte e suicídio). Apresentar cinco deles durante mais de duas semanas é suficiente para um diagnóstico de depressão. Há cerca de uma década, G. contactou o hospital após conseguir registar os nove. Contou-me esta história sem nenhum tom de competição (eu há muito que deixei de competir com ele), mas com uma certa sensação de triunfo sombrio.
Todos os que têm fobia da morte precisam do consolo temporário de um caso pior que o seu. Eu tenho G., ele tem Rachmaninov, homem ao mesmo tempo aterrorizado com a morte e com a possibilidade de sobrevivência depois dela; compositor que introduziu o Dies Irae na sua música mais vezes do que qualquer outro; frequentador de cinema que fugiu da sala apavorado durante a cena inicial de Frankenstein, no cemitério. Rachmaninov só surpreendia os amigos quando não queria falar da morte. Uma ocasião típica: em 1915, foi visitar a poetisa Marietta Shaginyan e a mãe dela. Primeiro pediu à mãe que lhe lesse o futuro nas cartas, para (claro está) descobrir quanto tempo lhe restava de vida. Depois pôs-se a falar à filha sobre a morte: sendo que nesse dia o texto escolhido foi um conto de Artsybashev. Havia um prato com pistácios salgados em cima da mesa. Rachmaninov comeu uma mão-cheia, falou sobre a morte, deslocou a cadeira para ficar mais perto da tigela, comeu outra mão-cheia, falou sobre a morte. De repente desatou a rir. «Os pistácios fizeram desaparecer o meu medo. Sabem para onde?» Nem a poetisa, nem a mãe souberam responder à pergunta; mas, quando Rachmaninov partiu para Moscovo, deram-lhe um saco cheio de pistácios para a viagem, «para lhe curar o medo da morte».
Se G. e eu representássemos os compositores russos, eu igualaria (ou subiria) a parada citando Chostakovich, grande compositor igualmente preocupado com a morte. «Devíamos pensar mais nela», disse, «e habituarmo-nos à ideia da morte. Não podemos deixar que o medo da morte nos apanhe de surpresa. Temos de tornar o medo familiar, e uma maneira de o conseguir é escrever sobre ele. Não acho que escrever e pensar na morte seja característico só de velhos. Acho que, se as pessoas começassem a pensar mais cedo na morte, cometeriam menos erros ridículos.»
Disse também: «O medo da morte é capaz de ser a emoção mais intensa de todas. Às vezes penso que não existe sentimento mais profundo.» Estas opiniões não eram expressas em público. Chostakovich sabia que a morte — a menos que chegasse sob a forma de martírio heroico — não era um tema adequado à arte soviética, que isso «equivalia a assoar o nariz à manga em público». Não podia fazer o Dies Irae ressoar nas suas partituras; tinha de ser musicalmente dissimulado. Mas, progressivamente, o compositor prudente encontrou coragem para passar a manga nas narinas, sobretudo na música de câmara. As suas últimas obras contêm quase sempre longas, lentas e meditativas invocações da mortalidade. O altista do Quarteto Beethoven recebeu uma vez do compositor o seguinte conselho sobre o primeiro movimento do décimo quinto quarteto: «Toque de modo a que as moscas caiam mortas em pleno voo.»
Quando o meu amigo R. falou sobre a morte em Desert Island Discs, a polícia tirou-lhe a caçadeira. Quando eu o fiz, recebi várias cartas a comentar que os meus temores se curariam se olhasse para dentro de mim, se me abrisse à fé, se fosse à igreja, se aprendesse a rezar, e por aí fora. A tigela metafísica dos pistácios. Os meus correspondentes não eram propriamente paternalistas — uns eram piegas, outros inflexíveis — mas pareciam acreditar que essa solução era para mim novidade. Como se eu fosse membro duma tribo da floresta tropical (e se o fosse não deixaria de ter as minhas próprias crenças e rituais) e não alguém que fala num momento em que, no meu país, a religião cristã está à beira da extinção, em parte porque as famílias como a minha não acreditam nela há mais de um século.
Um século é mais ou menos até onde consigo reconstituir a história da minha família. À falta de melhor, tornei-me no nosso arquivista. Numa gaveta baixa, a poucos metros do sítio onde escrevo, estão todos os documentos: certidões de nascimento, casamento e óbito; testamentos e provas autenticadas; qualificações profissionais, referências e atestados; passaportes, senhas de racionamento, bilhetes de identidade (e cartes d’identité); álbuns, agendas e lembranças. Estão lá os textos das canções que o meu pai escrevia (para as interpretar de smoking, encostado ao piano, enquanto um colega da escola ou do serviço militar fazia um acompanhamento lânguido, de clube noturno), as ementas assinadas, os programas de teatro e as fichas de críquete semipreenchidas. Está lá o livro dos convidados da minha mãe, as suas listas de Natal e as tabelas da Bolsa de Valores. Estão lá os telegramas e os aerogramas do tempo da guerra trocados entre ambos (mas não há cartas). Estão lá os boletins escolares dos filhos e as cadernetas de desenvolvimento físico, programas dos dias da entrega de prémios e certificados de natação e atletismo. Vejo que, em 1955, fiquei em primeiro lugar no salto em comprimento e em terceiro na corrida de botas sem atacadores, e que o meu irmão chegou uma vez em segundo na corrida com carro de mão, disputada com um tal Dion Shirer — juntamente com a prova de êxitos há muito esquecidos, como o meu certificado de excelente assiduidade durante um período, na primária. Também lá estão as medalhas do avô, da Primeira Guerra Mundial, e as provas de presença em França em 1916-17, período de que nunca falava.
Esta gaveta pouco funda tem ainda capacidade para conter o arquivo fotográfico da família. Pacotes etiquetados: NÓS, OS RAPAZES e ANTIGUIDADES, com a caligrafia do meu pai. Está lá o pai com a capa de professor, com o uniforme da RAF, de smoking, em calções de passeio e com o fato branco de críquete, geralmente de cigarro na mão ou cachimbo na boca. Está lá a mãe com roupas chiques feitas em casa, fato de banho de duas peças pouco decotado e traje aperaltado para um jantar dançante da Maçonaria. Está lá o assistant francês que, provavelmente, fotografou «Maxim: le chien»; e o assistant que, mais tarde, ajudou a espalhar as cinzas dos meus pais na costa ocidental francesa. Estamos lá eu e o meu irmão, mais loiros e mais novos, exibindo várias peças de malha caseiras, acompanhados pelo cão, uma bola de praia e um carrinho de mão; estamos lá, encavalitados no mesmo triciclo; estamos lá num painel com múltiplas fotografias dispersas, emoldurado depois em cartão e a dizer RECORDAÇÕES DA PLAYLAND NESTLÉ, OLÍMPIA, 1950.
Está lá também o álbum fotográfico do avô, encadernado em tecido vermelho e intitulado CENAS DE ESTRADAS GRANDES E PEQUENAS, comprado em Colwyn Bay, em agosto de 1913. Abrange o período de 1912 a 1917 e depois, ao que parece, ele abandonou a máquina fotográfica. Estão lá Bert e o seu irmão Percy, Bert e a sua noiva Nell, depois os dois no dia do casamento: 4 de agosto de 1914, o dia em que eclodiu a Primeira Guerra Mundial. Lá, de repente, entre as cópias a sépia de parentes e amigos não identificados, há uma obliteração: a fotografia de uma mulher de blusa branca, sentada numa cadeira de convés, datada de «Set. 1915». Ao lado da data, uma marca a lápis (um nome? um lugar?) foi mais ou menos apagada. O rosto da jovem foi maldosamente cortado e esburacado, até só se ver o queixo e o cabelo crespo. Não sei quem fez aquilo, nem porquê, nem a quem.
Na adolescência tive a minha fase fotográfica, que incluía a simples revelação caseira: tina de revelação em plástico, luz vermelha para câmara escura e prancha para imprimir folhas de contacto. A dado momento, no meio de todo o entusiasmo, respondi ao anúncio duma revista acerca dum produto barato mas mágico, que prometia transformar as minhas humildes provas a preto e branco em cor viva e exuberante. Não me lembro se consultei os meus pais antes de encomendar, ou se fiquei desapontado ao constatar que o material prometido consistia afinal num pequeno pincel e em alguns losangos coloridos duma tinta que aderia ao papel fotográfico. Mas deitei mãos à obra e tornei o registo da minha família mais brilhante, se não mais verdadeiro. Cá está o meu pai, de bombazina amarelo-vivo e camisola de lã verde, com um jardim monocromático em fundo; o avô com calças do mesmíssimo verde, a avó com uma blusa verde deslavada. Os três têm mãos e caras de um rosa quente, sobrenatural.
O meu irmão desconfia da verdade essencial das memórias; eu desconfio do modo como as colorimos. Cada um tem a sua própria caixa de tintas baratas encomendadas por correio e os seus tons preferidos. Assim, algumas páginas atrás, lembrei a avó como «pequena e pouco opiniosa». O meu irmão, quando inquirido, pega no pincel e contrapõe «baixa e mandona». O álbum mental dele também contém mais instantâneos do que o meu: uma rara excursão com as três gerações, à ilha de Lundy, no início dos anos cinquenta. Para a avó foi quase de certeza a única vez em que abandonou o território britânico; para o avô, a primeira desde o regresso de França, em 1917. Nesse dia o mar estava picado, a avó tremendamente enjoada e, quando chegámos a Lundy, disseram-nos que havia demasiada agitação para podermos desembarcar. As minhas recordações de tudo isto são sépia desbotada, as do meu irmão ainda têm cor. Ele conta que a avó passou toda a viagem no convés a vomitar para copos de iogurte, uns atrás de outros, enquanto o avô, de boné enterrado até às sobrancelhas, recebia firmemente cada recetáculo cheio. Em vez de os deitar fora, alinhava todos os copos em cima duma prateleira, como se quisesse envergonhá-la. Acho que esta é a recordação de infância preferida do meu irmão.
Pequena ou simplesmente baixa, pouco opiniosa ou mandona? Os nossos adjetivos divergem e refletem memórias fragmentadas de sentimentos meio esquecidos. Não tenho maneira de saber porque é que preferia a avó ou ela a mim. Receava o autoritarismo do avô (embora ele nunca me batesse) e achava o seu exemplo de masculinidade mais grosseiro que o do meu pai? Era simplesmente atraído pela avó como presença feminina, visto que havia tão poucas na família? Apesar de o meu irmão e eu privarmos com ela durante vinte anos, mal conseguimos lembrar-nos do que dizia. Os dois exemplos que ele apresenta são ambos de ocasiões em que ela exasperou a nossa mãe; assim, as palavras podem ter permanecido mais pelo efeito aprazível do que pelo seu conteúdo intrínseco. A primeira foi numa noite de inverno, quando a mãe se aquecia à lareira. A avó aconselhou: «Não te sentes tão perto, faz-te mal às pernas.» A segunda teve lugar quase uma geração depois. Ofereceram à filha do meu irmão, C., então com cerca de dois anos, uma fatia de bolo, que ela aceitou sem agradecer. «Diz bigada, querida», sugeriu a bisavó, ao que «a nossa mãe perdeu a cabeça, por alguém ser capaz de dizer tal idiotice».
Estes fragmentos dizem mais sobre a minha avó, a nossa mãe ou o meu irmão? Indicam autoritarismo? Consigo entender que a minha única prova da sua índole «pouco opiniosa» é de facto inexistente; mas também já talvez o fosse, por definição. E embora reviste a memória, não consigo encontrar uma única citação direta dessa mulher que penso ter amado em criança; só uma, indireta. Muito depois de a avó ter morrido, a mãe transmitiu-me um exemplo da sabedoria que recebera dela. Ela costumava dizer: «No mundo não existiriam homens maus se não existissem más mulheres.» O aval da avó ao pecado de Eva foi-me relatado com considerável desprezo.
Quando desmontava o chalé dos meus pais, descobri uma pequena pilha de postais que datavam das décadas de trinta a oitenta. Todos tinham sido enviados do estrangeiro; era óbvio que os provenientes de Inglaterra, por mais interessante que fosse o conteúdo, haviam a dada altura sido eliminados. O meu pai escrevia à mãe dele, nos anos trinta: «Saudações calorosas de Bruxelas gelada» e «Fala da Áustria!»; o meu pai da Alemanha à minha mãe, então sua namorada (?), noiva (?), em França: «Gostava de saber se recebeste todas as cartas que escrevi de Inglaterra. Recebeste?»; o meu pai aos filhos pequenos, em casa: «Espero que façam os trabalhos e ouçam o jogo internacional de râguebi», ao mesmo tempo que anunciava a aquisição de selos para mim e caixas de fósforos para o meu irmão. (Tinha-me esquecido das caixas de fósforos, só me lembrava que ele colecionava papéis cor de laranja.) Depois há postais meus e do meu irmão, cheios de graçolas adolescentes. De mim para ele, de França: «As férias começaram com a magnífica explosão de cinco catedrais. Amanhã arderão depressa os castelos do Loire.» Ele para mim de Champéry, onde o pai o levara numa excursão da escola: «Chegámos bem e, tirando as sanduíches de fiambre, satisfeitos com a viagem.»
Não consigo datar os postais mais antigos, pois os selos haviam sido descolados com vapor, sem dúvida para a minha coleção, e, com eles, os carimbos do correio. Mas reparo nas várias maneiras que o meu pai tinha de se despedir da mãe dele: «Leonard», «Sempre teu, Leonard», passando por «Amor, Leonard» e até «Amor e beijos, Leonard». Nos postais para a minha mãe, é «Pip», «Teu Pip», «Como sempre, Pip», «Amor e saudades, Pip» e «Com todo o meu amor, Pip». Progressão em crescendo dos dias longínquos do namoro, que levou à minha existência. Sigo o rasto do meu pai através dos seus nomes sempre em mudança. Foi batizado Albert Leonard e para os pais e irmãos era Leonard. Quando se tornou professor, o Albert levou a melhor e, durante quarenta anos, foi conhecido nas salas de reunião como «Albie» ou «Caro Albie» — mas isso podia derivar das suas iniciais A.L.B. — e, ocasional e satiricamente, como «Wally», por causa do defesa lateral do Arsenal, Wally Barnes. A minha mãe não gostava de nenhum dos nomes próprios (nem de Wally, certamente) e decidiu chamar-lhe Pip. Por causa das Grandes Esperanças? Mas nem ela se parecia com Estella, nem ele com Philip Pirrip. Durante a guerra, quando esteve na Índia com a RAF, voltou a mudar. Tenho duas das suas canetas de aparo, decoradas à mão por um artesão local. Um Sol vermelho-sangue põe-se sobre um templo com minarete e também sobre o nome do meu pai: «Rickie Barnes 1944 Allahabad.» Donde surgiu aquele Rickie e para onde é que ele foi? No ano seguinte, o meu pai regressou a Inglaterra e voltou a ser Pip. É verdade que havia nele qualquer coisa de pueril, mas o nome assentava-lhe cada vez pior à medida que fazia sessenta, setenta, oitenta…
Trouxe vários artefactos da Índia: a bandeja de latão, a cigarreira embutida, a faca de papel em marfim encimada pelo elefante, e o par de mesinhas desmontáveis que muitas vezes se desarticulavam. E havia um objeto que, na minha infância, parecia tão desejável como exótico: o pufe redondo em couro. Quem é que, em Acton, tinha um pufe em couro indiano? Eu ganhava balanço e atirava-me para cima dele; mais tarde, quando nos mudámos do subúrbio próximo para o subúrbio distante e eu já era muito grande para coisas de criança, deixava-me cair nele com todo o meu peso adolescente e uma espécie de afeição agreste. Daí resultava um vago som de peido, visto que o ar saía a custo pelas costuras. Estas acabaram por ceder aos maus-tratos e eu fiz o género de descoberta que faria as delícias dos psicanalistas. Porque o que Rickie Barnes trouxera de Allahabad ou Madrasta não era, é claro, um pufe volumoso e cheio, mas um invólucro de couro lavrado que ele — já novamente Pip — e a mulher tiveram de encher.
Encheram-no com as cartas de namoro e dos primeiros anos de casados. Eu era um adolescente idealista, que enveredava facilmente pelo cinismo quando confrontado com as realidades da vida; esse momento foi uma delas. Como foram capazes de pegar nas cartas de amor, atadas decerto em maços com fitas, rasgá-las em mil bocados e ver depois os rabos gordos de outras pessoas aninhar-se-lhes em cima? Por «foram» refiro-me, é claro, à minha mãe, pois tal reciclagem prática ajustava-se à leitura que eu fazia dela, mais do que àquilo que me parecia ser a natureza mais sentimental do meu pai. Como imaginar essa decisão e essa cena? Rasgaram as cartas juntos ou ela fê-lo enquanto ele estava no trabalho? Discutiram, concordaram, um deles ficou secretamente magoado? E, mesmo supondo que concordaram, como é que trataram do assunto? Aqui está um inquietante «preferimos o quê». Preferimos rasgar as nossas próprias cartas de amor ou aquelas que recebemos?
Agora, na companhia doutras pessoas, baixava-me com suavidade até ao pufe; sozinho, deixava-me cair em peso, para que o ar exalado lançasse um pedacinho de papel azul de correio aéreo com a caligrafia juvenil de um dos meus progenitores. Se isto fosse um romance, eu teria descoberto algum segredo de família — mas ninguém vai saber que a criança não é tua, ou agora nunca encontrarão a faca, ou sempre desejei que o J. fosse uma rapariga — e a minha vida transformar-se-ia para sempre. (De facto, a minha mãe queria que eu fosse uma rapariga e tinha preparado o nome Josephine, portanto, isso não seria segredo.) Ou, por outro lado, podia ter descoberto só as melhores palavras, as expressões mais ternas de devoção verdadeira que os corações dos meus pais encontraram um para o outro. E nenhum mistério.
A certa altura, o pufe exaurido foi deitado fora. Mas, em vez de ir para o lixo, foi atirado para o fundo do quintal, onde ficou pesado, ensopado de chuva e cada vez com menos cor. Ao passar dava-lhe às vezes um pontapé, a minha bota expulsava mais uns farrapos azuis, a tinta escorria e diminuía ainda mais a probabilidade de serem revelados segredos legíveis. Os meus pontapés eram os dum romântico desanimado. Então afinal é a isto que tudo se resume?
Trinta e cinco anos mais tarde, confrontei-me com as últimas sobras das vidas dos meus pais. Eu e o meu irmão queríamos algumas coisas; as minhas sobrinhas tiveram oportunidade de escolher; depois chegou o antiquário. Era um tipo correto, bem informado, que falava com os objetos enquanto os manuseava. Suponho que este hábito terá sido no início uma maneira de preparar suavemente o cliente para uma deceção, mas transformou-se numa espécie de conversa entre ele e o objeto que tinha nas mãos. Também reconhecia que o que seria em breve regateado friamente na loja era agora, aqui e pela última vez, uma coisa que um dia fora escolhida e depois esfregada, espanada, polida, reparada, amada. Assim, encontrava elogios onde podia: «Isto é bonito, não é valioso mas é bonito.» Ou: «Vidro moldado vitoriano, já se torna raro, não é valioso, mas já se torna raro.» Escrupulosamente delicado para com as coisas agora sem dono, evitava a crítica e a rejeição e preferia o pesar ou a esperança a longo prazo. De uns vidros Melba dos anos vinte (que eu achava horríveis): «Há dez anos estavam muito na moda; agora ninguém os quer.» De um simples vaso Heal, aos quadrados verdes e brancos: «Para isto temos de esperar quarenta anos.»
Levou o que era vendável e partiu, deixando algumas notas de cinquenta libras. Depois foi só encher a traseira do carro e fazer várias viagens até ao centro de reciclagem local. Sendo filho da minha mãe, eu comprara para o efeito vários sacos de plástico verdes, grossos. Levei o primeiro saco até ao grande contentor amarelo e percebi — cada vez mais filho da minha mãe — que os sacos eram demasiado úteis para deitar fora. E assim, em vez de deixar os restos finais das vidas dos meus pais confidencialmente embalados, deitei no contentor o que o antiquário não quis e guardei os sacos. (Era o que a minha mãe teria desejado?) Uma das últimas coisas foi um estúpido chocalho de vaca, em metal, que o meu pai comprara em Champéry, na viagem em que o meu irmão se referira a umas dececionantes sanduíches de fiambre; chocalhou e fez dlim-dlão pelo contentor abaixo. Olhei a imensidão de tralha aos meus pés e, embora nada houvesse de incriminatório ou indiscreto, senti-me ligeiramente reles: como se tivesse enterrado os meus pais numa saca de papel e não num caixão decente.
A propósito, isto não é «a minha autobiografia». Nem ando «à procura dos meus pais». Sei que ser filho de alguém implica ao mesmo tempo uma sensação de familiaridade nauseante e grandes áreas interditas de desconhecimento, se é que a minha família serve como termo de avaliação. E, embora eu continuasse a querer uma cópia do conteúdo do pufe, acho que os meus pais não tinham quaisquer segredos fora do comum. Em parte, o que estou a fazer e pode parecer desnecessário, é tentar perceber em que medida estão mortos. O meu pai morreu em 1992, a minha mãe em 1997. Sobrevivem geneticamente em dois filhos, duas netas e duas bisnetas: uma ordem demográfica quase indecente. De um ponto de vista narrativo, sobrevivem na memória, mais credível para uns e para outros menos. O meu irmão expressou pela primeira vez a sua desconfiança quanto a essa faculdade, quando lhe fiz perguntas sobre o que comíamos lá em casa. Depois de confirmar papas de aveia, bacon e afins, continuou:
Pelo menos na minha memória as coisas são assim. Mas tu lembra-las sem dúvida de maneira diferente e não acho que a memória seja um bom guia do passado. Conheci o meu colega e amigo Jacques Brunschwig em 1977. Foi numa conferência em Chantilly. Não saí na estação certa, desci do comboio em Créteil; daí apanhei um táxi (muito caro) e cheguei atrasado ao local da conferência, onde Jacques me recebeu. Tudo isto é maravilhosamente claro na minha memória. Numa entrevista publicada no seu Festschrift6, Jacques fala um pouco sobre alguns amigos. Conta como me conheceu, em 1977, numa conferência em Chantilly: esperou-me na estação e reconheceu-me mal eu desci do comboio. Tudo isto é maravilhosamente claro na sua memória.
Bem, pensam vocês, os filósofos profissionais são assim: demasiado ocupados a teorizar no abstrato para repararem em que estação se encontram, e ainda menos no mundo não abstrato onde vivem os outros. O escritor francês Jules Renard observou uma vez que «Talvez as pessoas com uma memória muito boa não consigam ter ideias gerais». Sendo assim, o meu irmão pode ficar com a memória duvidosa e as ideias gerais, enquanto eu fico com a memória fiel e as ideias particulares.
Também tenho na gaveta baixa a documentação familiar, para me apoiar. Estão aqui, por exemplo, os resultados do meu diploma escolar, passado quando eu tinha quinze anos. A memória não me diria certamente que a minha melhor nota foi a Matemática e a pior a Inglês, para meu embaraço. Setenta e sete por cento no exame de língua inglesa e uns humilhantes cinquenta por cento em redação.
A seguir, as minhas piores notas foram, como era de prever, em Ciências Naturais. A prova de Biologia do exame incluía tarefas como desenhar a secção transversal dum tomate e descrever o processo de fertilização, tal como o desfrutam estames e gineceus. Em casa também não íamos muito mais longe: o pudor parental reiterava o silêncio do programa escolar. Em consequência disso, cresci a saber pouco sobre a maneira como o corpo funcionava; a minha compreensão das questões sexuais tinha o claro desequilíbrio do autodidata sem uma irmã, numa escola só de rapazes; e embora os medianos progressos académicos que fiz na escola e na universidade se devessem ao meu cérebro, não fazia a menor ideia de como esse órgão funcionava. Desemboquei na idade adulta com a crença irracional de que, tal como não precisávamos de saber mecânica para conduzir um carro, também não precisávamos de saber biologia para viver. Havia sempre hospitais e oficinas, quando as coisas corriam mal.
Lembro-me de ficar surpreendido quando soube que as células do meu corpo não duravam a vida inteira e se renovavam regularmente (mas não podíamos reconstruir um carro recorrendo a peças soltas?). Não conhecia ao certo a frequência com que tais transformações ocorriam, mas o conhecimento da renovação celular dava azo a piadas do género: «Ela já não era a mulher por quem ele se apaixonara.» Não me parecia nada que fosse motivo para pânico: ao fim e ao cabo, os meus pais e avós deviam ter passado por uma, ou talvez duas, dessas renovações, e pareciam não ter sofrido qualquer fratura sísmica; a verdade é que continuavam a ser excessiva e inabalavelmente eles próprios. Não me lembro de pensar que o cérebro fazia parte do corpo e que, portanto, os mesmos princípios se lhe aplicavam. Poderia ter pendido um pouco mais para o pânico se tivesse descoberto que a estrutura básica e molecular do cérebro, longe de se renovar prudentemente quando e à medida que surge a necessidade, é de facto incrivelmente instável; que as gorduras e as proteínas se desagregam quase no instante em que são feitas; que cada molécula ao redor duma sinapse é substituída de hora a hora e algumas moléculas de minuto a minuto. Que, efetivamente, o cérebro que tínhamos no ano passado terá sido reconstituído muitas vezes até agora.
A memória na infância, pelo menos como a lembro, raramente é um problema. Não só devido ao mais curto período de tempo entre o acontecimento e a sua evocação, mas devido à própria natureza das memórias: afiguram-se ao cérebro jovem como simulacros rigorosos, em vez de versões processadas e coloridas do que aconteceu. A idade adulta traz aproximação, dúvida e instabilidade; e afastamos a dúvida recontando a história familiar, com pausas e períodos calculados, fingindo que a solidez da narrativa é uma prova da verdade. Mas a criança ou o adolescente duvida raramente da veracidade e precisão dos fragmentos claros e brilhantes de passado que possui e celebra. Assim, nessa idade, parece lógico ver as nossas memórias armazenadas num depósito de bagagem, que podemos recuperar se apresentarmos o talão necessário; ou (para o caso de parecer uma comparação antiquada, que sugere comboios a vapor e carruagens só para senhoras) mercadorias deixadas numa dessas unidades de autoarmazenagem que vemos atualmente ao longo das artérias rodoviárias. Sabemos que contamos com o paradoxo aparente da velhice, em que começaremos a recordar segmentos perdidos dos nossos primeiros anos, que se tornarão mais vívidos que os da meia-idade. Mas isso só parece confirmar que realmente está lá tudo, numa qualquer unidade cerebral metodicamente armazenada, quer possamos ou não aceder-lhe.
O meu irmão não se lembra que, há mais de meio século, ficou em segundo lugar numa corrida de carrinho de mão com Dion Shirer, e por isso é incapaz de precisar qual dos dois fazia de carro e qual era o que empurrava. Nem se lembra das intragáveis sanduíches de fiambre, na viagem à Suíça. Mas lembra-se de assuntos que não mencionou no postal: que foi a primeira vez que viu uma alcachofra e a primeira vez que foi «abordado sexualmente por outro tipo». Reconhece também que, com o passar dos anos, transpôs toda a ação para França: confusão talvez entre a menos conhecida Champéry na Suíça (berço dos chocalhos de vaca) e a mais familiar Chambéry em França (berço do aperitivo). Falamos das nossas memórias mas devíamos falar talvez mais dos nossos esquecimentos, ainda que seja uma proeza mais difícil — ou logicamente impossível.
Se calhar devia avisar-vos (sobretudo se forem filósofos, teólogos ou biólogos) que parte deste livro vos chocará por ser material amador, do tipo «faça você mesmo». Mas também somos todos amadores das e nas nossas vidas. Quando nos lançamos nos campos profissionais das outras pessoas, esperamos que o mapa do nosso relativo entendimento coincida vagamente com o mapa do conhecimento delas; mas não podemos contar com isso. Também devia avisar-vos que vai haver uma data de escritores neste livro. Quase todos mortos e uns quantos franceses. Um é Jules Renard, que disse: «É quando nos defrontamos com a morte que nos tornamos mais livrescos.» Também vai haver alguns compositores. Um deles é Stravinsky, que disse: «A música é a melhor maneira de digerir o tempo.» Estes artistas, estes artistas mortos, são meus companheiros diários, mas também meus antepassados. Eles são a minha verdadeira linhagem de sangue (espero que o meu irmão sinta o mesmo em relação a Platão e Aristóteles). A ascendência pode ser indireta ou impossível de provar — ligações extramatrimoniais e tudo — mas, mesmo assim, reivindico-a.
O meu irmão esquece as sanduíches de fiambre, lembra a alcachofra e a proposta sexual e suprimiu a Suíça. Sentem despontar uma teoria? Talvez a aspereza agreste da alcachofra se tenha ligado à memória da proposta sexual. Nesse caso, a ligação pode ter feito com que, depois disso, lhe repugnem as alcachofras (e a Suíça). Só que o meu irmão come alcachofras e trabalhou durante vários anos em Genebra. Ah, então se calhar aceitou a proposta? Perguntas interessantes, ociosas, respondidas com um clique de e-mail. «Se bem me lembro, nem a aceitei nem a achei repugnante, só bizarra. Depois disso, na linha metropolitana [suburbana], adotei a estratégia do “trabalho de geometria”.»
Parece de certeza mais confiante e prático do que eu quando, no aperto matinal do metro, um brutamontes de fato me enfiou a coxa entre as pernas, como se não houvesse mesmo outro sítio para a pôr. Ou quando Edwards (não era esse o nome), um rapaz mais velho e cheio de borbulhas, tentou o que foi mais abuso do que sedução numa carruagem da Linha Sul, no regresso do râguebi. Achei aquilo desagradável e, se não nojento, pelo menos inquietante. E consegui lembrar-me sempre com exatidão das palavras que empreguei ao dispensar a sua atenção. «Não sejas sexy, Edwards», disse-lhe (embora ele não fosse Edwards). As palavras resultaram, mas eu lembrava-as não tanto pela eficácia mas porque, mesmo assim, não me soaram bem. O que ele fizera — uma batida rápida com o dedo nos tomates, por cima das calças — não era nem de longe o que eu considerava sexy (e que implicava seios, para começar), e senti que a minha resposta sugerira algo que não correspondia à verdade.
Em Oxford, li pela primeira vez Montaigne. É nele que começa o nosso pensamento moderno sobre a morte; ele é a ligação entre os sábios exemplos do mundo antigo e a nossa tentativa de encontrar uma aceitação moderna, adulta, não religiosa do nosso fim inevitável. «Philosopher, c’est apprendre à mourir.» «Ser filósofo é aprender a morrer.» Montaigne cita Cícero que, por sua vez, refere Sócrates. As suas páginas eruditas e famosas sobre a morte são estoicas, livrescas, anedóticas, epigramáticas e consoladoras (pelo menos é a sua intenção); também são urgentes. Como a minha mãe fazia notar, antigamente as pessoas não viviam nem metade. Quarenta já era bem bom, dada a peste e a guerra, e com o médico a matar mais do que a curar.
Philippe Ariès comentou que, quando a morte começou realmente a ser temida, deixou de se falar nela. O aumento da longevidade agravou isso: como a questão parece menos imediata e premente, abordá-la tornou-se mórbido e de mau gosto. A maneira como nos esforçamos e adiamos o pensar sobre a morte faz-me lembrar o anúncio duma seguradora, Pearl Insurance, que durou muito tempo e que eu e o meu irmão gostávamos de citar um ao outro. Reformas, bem como dentes postiços e calistas, eram uma coisa de tal forma distante que, em grande parte, se tornava cómica. O que era até certo ponto confirmado pelos desenhos ingénuos de um homem com um rosto cada vez mais ansioso. Aos vinte e cinco anos, a cara é alegre e satisfeita: «Dizem que o emprego não dá direito a reforma.» Aos trinta e cinco, uma pequena dúvida começou a insinuar-se: «Infelizmente, o meu emprego não dá reforma.» E por aí fora, com a palavra «reforma» sempre no meio dum retângulo cinzento, como uma advertência, até aos sessenta e cinco: «Sem reforma, realmente, não sei o que vou fazer.» Sim, diria Montaigne, é claro que devias ter começado a pensar na morte um bocadinho mais cedo.
No tempo dele a questão punha-se constantemente, a menos que se lhe desse o remédio das pessoas comuns que, segundo Montaigne, fingiam que ela não existia. Mas os filósofos e os mentalmente curiosos olhavam para a História, e para os antigos, à procura da melhor maneira de morrer. Hoje em dia, as nossas ambições tornaram-se mais débeis. «Coragem», escreveu Larkin em Aubade, o seu grande poema sobre a morte, «significa não apavorar os outros.» Dantes não significava isso. Significava muito mais: mostrar aos outros a maneira de morrer com honra, sabedoria e constância.
Um dos exemplos-chave de Montaigne é a história de Pompónio Ático, correspondente de Cícero. Quando Ático adoeceu e as tentativas médicas para lhe prolongar a existência só lhe prolongaram a dor, ele decidiu que a melhor solução era morrer à fome. Nesse tempo não era preciso uma petição em tribunal, a invocar deterioração final da «qualidade de vida». Ático, como cidadão livre, limitou-se a informar os amigos e a família da sua intenção, depois recusou a comida e esperou pelo fim. Mas foi grande a sua perplexidade. Milagrosamente, a abstinência revelou-se a melhor cura para a doença (desconhecida); e, em breve, o doente convalescia, era inegável. Houve grande júbilo e festejos; talvez até os médicos tenham desistido de apresentar a conta. Mas Ático interrompeu a diversão. «Já que todos temos de morrer um dia», anunciou, «e já que dei um grande passo nessa direção, não desejo agora fazer meia-volta, para ter de recomeçar noutra ocasião.» E assim, para consternação e espanto dos que o rodeavam, Ático continuou a recusar a comida e foi ao encontro da sua morte exemplar.
Montaigne acreditava que, já que não podemos derrotar a morte, a melhor forma de contra-ataque é tê-la constantemente em mente: pensar na morte sempre que o nosso cavalo cai ou cai uma telha dum telhado. Devíamos ter o sabor da morte na boca e o seu nome na língua. Antecipar assim a morte é soltarmo-nos da sua servidão: além disso, se ensinamos uma pessoa a morrer, ensinamo-la a viver. Esta constante consciência da morte não torna Montaigne melancólico; antes o dispõe ao devaneio extravagante, à fantasia. Ele espera que a morte, sua companheira, sua parente, lhe faça a última visita quando ele estiver a meio duma tarefa comum — como plantar couves.
Montaigne conta a história instrutiva de um césar romano que é abordado por um soldado decrépito e idoso. O homem já em tempos o servira e procura agora obter permissão para se livrar do fardo da vida. César olha-o de alto a baixo e pergunta, com a vivacidade rude que o generalato parece inspirar: «O que te leva a pensar que a coisa que tens neste momento é vida?» Para Montaigne, a morte dum jovem, que quase sempre passa despercebida, é a morte mais dura; aquilo que habitualmente referimos como «morte» mais não é do que a morte da velhice (quarenta e tal na época dele, setenta e mais na nossa). O salto da sobrevivência ténue e senil para a não existência é muito mais fácil do que a transição sorrateira da juventude desatenta para a idade complicada e dolorosa.
Mas Montaigne é um escritor exaustivo e, se este argumento não convence, ele tem muitos outros. Por exemplo: se vivemos bem, se usámos a vida plenamente, ficaremos felizes ao deixá-la ir; e se desperdiçámos a vida e a achámos má, também não deveremos lamentar que ela passe. (Uma afirmação que me parece totalmente reversível: os que estão na primeira categoria podem querer que as suas vidas felizes continuem indefinidamente, os que estão na segunda podem esperar que a sorte mude.) Ou: se vivemos a sério num só dia, no sentido mais pleno, então vimos tudo. (Não!) Ou ainda: se vivemos plenamente um ano inteiro, vimos tudo. (Também não.) De qualquer maneira, temos de dar lugar a outros na Terra, tal como outros nos deram lugar a nós. (Sim, mas eu não lhes pedi.) E para quê queixarmo-nos de sermos levados, quando todos são levados? Pensemos em quantas pessoas vão morrer no mesmo dia que nós. (É verdade, e algumas ficarão tão chateadas quanto eu.) Também, e por último, o que queremos ao certo quando nos queixamos da morte? Queremos uma imortalidade passada aqui na Terra, nos termos e condições atualmente em vigor? (Percebo o argumento, mas que tal um bocado de imortalidade? Metade? Está bem, aceito um quarto.)
O meu irmão faz notar que a primeira anedota sobre renovação celular data do século V a.C. e é sobre «um tipo que se recusava a continuar a pagar uma dívida, alegando que já não era o mesmo a quem o dinheiro fora emprestado». Faz ainda notar que eu interpretei erradamente a frase de Montaigne: «Philosopher, c’est apprendre à mourir.» O que Cícero queria dizer não era que pensar regularmente na morte nos faz receá-la menos, mas sim que o filósofo, quando filosofa, se treina para a morte — no sentido em que gasta tempo com o espírito e ignora o corpo que a morte extinguirá. Para os platónicos, após a morte tornamo-nos almas puras, libertas do entrave corpóreo e, assim, mais capazes de pensar livremente e com clareza. Por isso, em vida, o filósofo tinha de se preparar para o estado pós-mortal, por meio de técnicas como o jejum e a autoflagelação. Os platónicos acreditavam que, depois da morte, as coisas começavam a melhorar. Os epicuristas, por sua vez, acreditavam que, depois da morte, não existia nada. Parece que Cícero (uso «parece» no sentido de «o meu irmão também me disse…») combinou as duas tradições num alegre e antigo ou/ou: «Após a morte, ou nos sentimos melhor ou não sentimos nada.»
Pergunto o que acontecerá à imensa população dos não filósofos no platónico mundo do além. Parece que todas as criaturas dotadas de alma, incluindo os animais e os pássaros — e talvez até as plantas — são julgadas pelo seu comportamento na vida que acabaram de deixar. Os que não são bem-sucedidos regressam à Terra para mais uma partida corpórea, talvez avançando ou recuando na hierarquia das espécies (tornando-se, digamos, uma raposa ou um ganso) ou só dentro da espécie (sendo promovidos, por exemplo, de fêmea a macho). Os filósofos, como explica o meu irmão, não ganham automaticamente a libertação do corpo: para isso é preciso ser bom tipo. Mas se a ganham, então partem com vantagem sobre as multidões dos não filósofos — para não falar dos nenúfares e do dente-de-leão. Também superam melhor, é claro, as coisas nesta vida, por já estarem tão próximos do supremo estado ideal. «Sim», continua ele. «Há algumas questões que poderás querer levantar (por exemplo, de que serve partir com vantagem numa corrida que nunca acaba?). Mas não vale realmente a pena perder tempo a pensar no assunto; é (em jargão filosófico-técnico) uma total carrada de asneiras.»
Peço-lhe que me explique a sua «lamechice», rejeição da frase: «Não acredito em Deus, mas sinto a Sua falta.» Ele reconhece que não tem de facto a certeza quanto à minha afirmação: «Acho que é uma maneira de dizer “Não acredito que haja deuses, mas quem me dera que houvesse” (ou talvez: “Quem me dera acreditar”). Consigo entender que alguém possa dizer uma coisa dessas (tenta pôr “dodós” ou “homens das neves” em vez de “deuses”), embora pela minha parte esteja perfeitamente satisfeito com as coisas tal qual são.» Vê-se logo que ensina Filosofia, não vê? Faço-lhe uma pergunta sobre um tema específico, ele decompõe logicamente a proposição e apresenta substantivos alternativos para expor o seu absurdo, fraqueza ou lamechice. Mas a resposta dele parece-me tão estranha como a minha pergunta lhe pareceu a ele. Não lhe perguntei o que pensava de alguém sentir a falta de dodós ou homens das neves (ou mesmo deuses em minúscula e no plural), mas de Deus.
Pergunto-lhe se alguma vez teve sentimentos ou anseios religiosos. A resposta é NÃO e NÃO. «A menos que isso signifique ficar comovido com o Messias ou com os sonetos sagrados de Donne.» Não sei se esta certeza passou para as duas filhas, agora na casa dos trinta. Têm sentimentos religiosos, fé, anseios espirituais, pergunto. «Não, nunca, nada de nada», responde a mais nova. «A menos que consideres não pisar os traços do passeio um anseio sobrenatural.» Concordamos que não. A irmã confessa «o breve anseio de ser religiosa quando tinha uns onze anos. Mas isso foi porque as minhas amigas o eram, e porque eu queria rezar para conseguir coisas, e porque as guias nos pressionavam para sermos cristãs. Mas desapareceu depressa, quando as minhas preces ficaram sem resposta. Acho que sou agnóstica ou mesmo ateia».
Estou contente por ela manter a tradição familiar de desistir da religião por motivos banais. O meu irmão porque desconfiava que Jorge VI não tinha ido para o Céu; eu para não me desconcentrar da masturbação; a minha sobrinha porque as coisas que pedia não foram logo realizadas. Mas suspeito que uma tão alegre ausência de lógica seja bastante normal. Eis, por exemplo, o que diz o biólogo Lewis Wolpert: «Eu era uma criança muito religiosa, todas as noites rezava as minhas orações e pedi ajuda a Deus em várias ocasiões. Não tive ajuda nenhuma e desisti daquilo tudo por volta dos dezasseis anos. Desde então sou ateu.» Nenhum de nós pensou que talvez o objetivo de Deus, caso existisse, não fosse ser linha de apoio a adolescentes, fornecer mercadorias ou reprimir a masturbação. Não, despachámo-lo de uma vez por todas.
Uma reação comum em estudos sobre comportamento religioso é dizer algo do género: «Não vou à igreja, mas tenho cá a minha ideia de Deus.» Este tipo de afirmação faz-me reagir como filósofo. «Lamechas!», exclamo. Podes ter lá a tua ideia de Deus, mas Deus terá uma ideia sobre ti? Porque isso é que interessa. Seja Ele um velho de barbas brancas sentado no Céu, uma força vital, uma causa primeira desinteressada, um relojoeiro, uma mulher, uma nebulosa força moral ou absolutamente nada, o que conta é a ideia que Ele ou Ela ou Uma Coisa ou Nada faz de nós e não a ideia que nós fazemos dela. É grotesca a ideia de transformar a divindade em algo que nos convém. Também não importa se Deus é benévolo ou mesmo atento — a prova parece assustadoramente pequena. Importa é se Ele existe.
O único velho de barbas brancas que conheci quando era novo foi o meu bisavô, pai do pai da minha mãe: Alfred Scoltock, homem do Yorkshire e (fatalmente) mestre-escola. Há uma fotografia minha e do meu irmão em pé, cada um ao lado dele, num quintal que hoje não conseguimos identificar. O meu irmão tem uns sete ou oito anos, eu tenho quatro ou cinco e o bisavô é velhíssimo. A sua barba não é longa e esvoaçante como nas ilustrações de Deus, mas curta e hirsuta. (Não sei se chegou a arranhar a minha face infantil ou se é só a lembrança duma apreensão.) Eu e o meu irmão estamos elegantes e sorridentes — eu mais sorridente do que ele — com camisas de manga curta muito bem passadas pela nossa mãe; os meus calções ainda têm vincos decentes, mas os dele estão escandalosamente amarrotados. O bisavô não sorri e aos meus olhos parece vagamente aflito, como quem tem consciência de ser registado para a posteridade que está mesmo, mesmo a começar. Um amigo, ao ver a fotografia, disse que ele era o meu «antepassado chinês», e há algo nele que lembra ligeiramente Confúcio.
Não faço ideia se era sábio. Segundo a minha mãe, que preferia os machos da família, era um autodidata muito inteligente. Eram dados dois exemplos, de forma ritual: aprendera xadrez sozinho e conseguia jogar a um nível alto; e quando a minha mãe, que estudava Línguas Modernas na Universidade de Birmingham, foi a Nancy num intercâmbio, o bisavô aprendera francês sozinho, num livro, de modo a poder conversar com a correspondente dela, quando as duas jovens voltassem.
O meu irmão viu-o várias vezes, mas as suas memórias são menos lisonjeiras, e se calhar explicam porque é que o sorriso dele na fotografia é mais contido que o meu. O Confúcio da família «tinha um cheiro horrível» e era acompanhado «pela filha (tia Edie) que era solteira, um pouco apatetada e cheia de eczema». O meu irmão não se lembra de nenhum jogo de xadrez nem de ouvir falar francês. Na sua memória só existe a aptidão para fazer as palavras cruzadas do Daily Mail sem preencher um único quadrado. «Dormitava depois de almoço, murmurando aardvark ou zebu.»
«Não sei se Deus existe mas, para a Sua reputação, era melhor que não existisse.» «Deus não acredita no nosso Deus.» «Sim, Deus existe, mas também não sabe mais do que nós.» As variadas suposições de Jules Renard, um dos meus familiares mortos, franceses, não de sangue. Nascido em 1864, cresceu em Nièvre, uma zona rústica e pouco visitada da Borgonha Setentrional. O pai, François, era um construtor que chegou a presidente da Junta da sua povoação, Chitry-les-Mines. Era taciturno, anticlerical e rigidamente verdadeiro. A mãe, Anne-Rosa, era loquaz, intolerante e embusteira. A morte do primogénito tornou François tão amargo, que mal se preocupou com os três seguintes: Amélie, Maurice e Jules. Após o nascimento do mais novo, François deixou de falar a Anne-Rosa e não voltou a dirigir-lhe a palavra durante os trinta anos de vida que lhe restaram. Nessa guerra silenciosa, Jules — cuja simpatia ia para o pai — era quase sempre utilizado como mensageiro e porta-voz: papel pouco invejável para uma criança, se bem que instrutivo para um futuro escritor.
Grande parte dessa educação é transposta para a obra mais conhecida de Renard, Poil de Carotte. Em Chitry, muitos não gostaram deste roman-à-clef: Jules, o aldeão ruivo, fora para Paris, tornara-se sofisticado e escrevera um livro sobre um aldeão ruivo que denunciava a própria mãe. O mais importante é que Renard denunciava, e ajudava a pôr fim, a toda a imagem sentimental da infância, herdada de Victor Hugo. A injustiça rotineira e a crueldade instintiva são a norma; os momentos de doçura idílica a exceção. Renard nunca satisfaz o seu alter ego infantil com uma autopiedade retrospetiva, emoção que surge normalmente na adolescência, mas que pode durar para sempre e torna falsas muitas evocações da infância. Para Renard, uma criança era «um pequeno animal necessário, menos humano que um gato». Esta observação vem da sua obra-prima, o Journal, que ele escreveu de 1887 até à morte, em 1910.
Apesar da fama parisiense, tinha as raízes no Nièvre. Em Chitry e na aldeia vizinha de Chaumot, onde viveu em adulto, Renard conheceu camponeses que ainda viviam como há séculos: «O camponês é a única espécie de ser humano que não gosta do campo e nunca olha para ele.» Ali estudou pássaros, animais, insetos, árvores e assistiu à chegada do comboio e do automóvel que, um e outro, iriam mudar tudo. Em 1904, foi por sua vez eleito presidente da Câmara de Chitry. Apreciava as funções cívicas, entregar prémios escolares, celebrar casamentos. «O meu discurso fez chorar as mulheres. A noiva deu-me a face a beijar e até a boca; custou-me vinte francos.» Na política era socialista, partidário de Dreyfus, anticlerical. Escreveu: «Como presidente da Câmara, sou responsável pela conservação das estradas rurais. Como poeta, preferia deixá-las ao abandono.»
Em Paris conheceu Rodin e Sarah Bernhardt, Edmond Rostand e Gide. Tanto Bonnard como Toulouse-Lautrec ilustraram as suas Histoires Naturelles, enquanto Ravel musicou algumas. Uma vez foi testemunha num duelo e a outra testemunha era Gauguin. Mas podia ser uma presença sombria na companhia dessas pessoas, implacável e rude. Disse um dia a Daudet, que fora generoso com ele: «Não sei se o amo ou detesto, mon cher maître.» «Odi et amo», retorquiu Daudet impassível. A sociedade parisiense achava-o por vezes insondável. Uma vez um elegante descreveu-o como «criptograma rústico» — uma daquelas marcas secretas que os vagabundos escreviam a giz nos alpendres e telheiros, só decifráveis pelos outros vagabundos.
Renard começou a escrever prosa numa altura em que o romance parecia estar acabado, em que o grande projeto descritivo e analítico de Flaubert, Maupassant, Goncourt e Zola esgotara o mundo e não deixara nada para a ficção. A única maneira de avançar, concluiu Renard, era pela redução, pelo comentário, pelo pontilhismo. Sartre, numa homenagem altiva e bastante rancorosa ao Journal, vitoriou o dilema de Renard mais do que a solução que ele encontrou: «Ele está na origem de muitas tentativas mais modernas de apreender a essência da coisa singular.» E: «Se está na origem da literatura moderna, é porque teve o vago sentimento dum domínio que proibiu a si próprio.» Gide, cujo Journal coincide, durante muitos anos, com o mesmo período de Renard, queixou-se (talvez por rivalidade) que o deste último «não era um rio, era uma destilaria»; mas confessou mais tarde que o lera «extasiado».
Queremos uma destilaria ou um rio? A vida apresentada em gotas de matéria-prima ou num litro de sidra da Normandia? São opções para o leitor. O escritor tem pouco controlo sobre o temperamento pessoal, nenhum sobre o momento histórico e só em parte se encarrega da sua própria estética. A destilação foi ao mesmo tempo a reação de Renard à literatura que acontecera antes e a expressão da sua natureza pouco expansiva. Em 1898, comentou: «De quase todas as obras da literatura se pode dizer que são demasiado longas.» Esta observação figura na página quatrocentos do Journal, uma obra que teria outra metade, se a viúva de Renard não tivesse queimado as páginas que não queria que outros lessem.
No Journal, ele observa o mundo natural com extrema precisão e descreve-o com admiração, sem sentimento. Observa os humanos com a mesma precisão e descreve-os com ceticismo e ironia. Mas também entendeu o que muitos não entendem: a natureza e a função da ironia. A 26 de dezembro de 1899, justamente quando o século que mais dela iria precisar estava prestes a começar, escreveu: «A ironia não seca. Só queima as ervas daninhas.»
Um amigo de Renard, Tristan Bernard, dramaturgo e homem de espírito, mandou um dia parar um carro fúnebre como se fosse um táxi. Quando o veículo parou, inquiriu alegremente: «Está livre?» Renard ouviu várias vezes o chamamento da morte antes que a sua chegasse, aos quarenta e seis anos de idade. Eis as ocasiões em que lhe dedicou uma atenção particular:
1) Em maio de 1897, o irmão Maurice tira da mesa de cabeceira o revólver do pai, a pretexto de o limpar. Segue-se uma discussão familiar. François Renard não se convence com o ato do filho nem com a desculpa que ele dá. «Mente. Tem medo que eu me mate. Mas, se eu quisesse fazê-lo, não usaria esse instrumento. Provavelmente deixar-me-ia inválido.» A mulher de Jules fica chocada e protesta: «Pare de falar dessa maneira.» Mas o presidente da Câmara de Chitry é implacável: «Não, não faria esse disparate. Pegava na caçadeira.» Jules sugere com ironia: «Seria bem melhor que tomasse um clister.»
François Renard, porém, sabe ou acredita que está irremediavelmente doente. Quatro semanas depois tranca a porta do quarto, pega na caçadeira e usa uma bengala para pressionar o gatilho. Consegue disparar os dois canos, por via das dúvidas. Jules é chamado; arromba a porta. Há fumo e cheiro a pólvora. Ao princípio pensa que o pai está a brincar; depois é obrigado a acreditar na figura estatelada, nos olhos que não veem e no «ponto escuro acima da cintura, como um pequeno fogo apagado». Pega nas mãos do pai; ainda estão quentes, maleáveis.
François Renard, anticlerical e suicida, é a primeira pessoa a ser enterrada no cemitério de Chitry sem representação do clero. Jules considera que o pai morreu heroicamente, mostrando virtudes romanas. Comenta: «Em suma, esta morte fortalece o meu orgulho.» Seis semanas após o funeral, conclui: «A morte do meu pai faz-me sentir como se tivesse escrito um belo livro.»
2) Em janeiro de 1900, Maurice Renard, aparentemente saudável, com trinta e sete anos e fiscal de obras do Departamento de Estradas, sofre um colapso no seu escritório de Paris. Sempre se queixara do sistema de aquecimento do prédio. Um dos tubos principais passa mesmo por trás da secretária e a temperatura chega muitas vezes aos vinte graus. «Matam-me com este aquecimento central», previa o rapaz do campo; mas a angina revelou ser maior ameaça. Maurice está quase a deixar o escritório ao fim do dia, quando desmaia à secretária. É levado da cadeira para um sofá, tem dificuldade em respirar, não diz palavra e morre em poucos minutos.
Jules, nessa altura em Paris, volta a ser chamado. Vê o irmão atravessado no sofá, com um joelho fletido; a pose exausta lembra-lhe a morte do pai. O escritor não pode deixar de reparar na almofada improvisada sobre a qual repousa a cabeça do irmão morto: uma lista telefónica de Paris. Jules senta-se e chora. A mulher abraça-o e sente nela o medo de que seja ele o próximo. O olhar capta um anúncio impresso a letras pretas na margem da lista telefónica; tenta lê-lo à distância.
Jules e a mulher velam o corpo, nessa noite. De vez em quando, Jules ergue o lenço que cobre o rosto do irmão e olha a boca entreaberta, na esperança de que ela comece de novo a respirar. À medida que as horas passam, o nariz parece tornar-se mais carnudo e as orelhas tornam-se duras como conchas. Maurice fica muito frio e hirto. «A vida dele passou agora para a mobília e, de cada vez que há o menor estalido, arrepiamo-nos.»
Três dias depois, Maurice é enterrado em Chitry. O padre espera ser chamado mas é recusado. Jules caminha atrás do carro funerário, vê as coroas a balançar e parece-lhe que, nessa manhã, o cavalo foi esfregado com uma camada especial de tinta suja e preta. Quando baixam o caixão à funda cova familiar, repara num verme gordo que parece exultar à beira da sepultura. «Se um verme conseguisse empertigar-se, este fá-lo-ia.»
Jules conclui: «O que sinto é uma espécie de ira contra a morte e os seus truques imbecis.»
3) Em agosto de 1909, um rapazinho, empoleirado numa carroça no meio de Chitry, avista uma mulher sentada na pedra dum poço e de repente vê-a cair para trás. É a mãe de Renard que, nos últimos anos, tem vindo a perder o juízo. Jules é chamado uma terceira vez. Vem a correr, lança por terra o chapéu e a bengala e espreita o poço: vê umas saias a flutuar e «um ligeiro remoinho, familiar para quem já afogou um animal». Tenta descer usando o balde; quando se mete lá dentro, repara que as botas são ridiculamente compridas e enroladas na ponta, como peixe numa selha. Chega então alguém com uma escada; Jules sai do balde, desce os degraus, só consegue molhar os pés. Dois aldeões eficientes vão lá abaixo e recuperam o corpo; não tem um único arranhão.
Renard não consegue determinar se foi acidente ou mais um suicídio; chama à morte da mãe «impenetrável». Argumenta: «Talvez o facto de Deus ser incompreensível seja o argumento mais forte a favor da Sua existência.» Conclui: «A morte não é artista.»
Enquanto vivi com os padres na Bretanha, descobri a obra do grande cantor e compositor belga Jacques Brel. Nos anos de juventude era conhecido por «Abbé Brel», devido ao tom moralista; e, em 1958, gravou uma faixa chamada «Dites, si c’était vrai» («E se fosse verdade?»). É mais um poema entoado com voz trémula e ronco de órgão em fundo do que propriamente canção. Brel pede-nos que imaginemos como as coisas seriam «se fosse verdade». Se Cristo tivesse mesmo nascido naquele estábulo em Belém… E se fosse verdade o que os evangelistas escreveram… Se o coup de théâtre das bodas de Caná tivesse realmente acontecido… ou aquele outro milagre com Lázaro… Se fosse tudo verdade, conclui Brel, diríamos que sim, pois é tudo tão lindo quando acreditamos que é verdade.
Agora acho que é uma das piores faixas que Brel alguma vez gravou; e o cantor adulto tornar-se-ia tão pouco religioso e tão trocista quanto o seu eu mais jovem se preocupava com Deus. Mas esta canção antiga, nervosa e sincera, põe o dedo na ferida. Se fosse verdade, seria lindo; e, por ser lindo, seria tanto mais verdadeiro; e, quanto mais verdadeiro, mais lindo; e por aí fora. «SIM, MAS NÃO É VERDADE, Ó IDIOTA!», ouço o meu irmão exclamar. Essas divagações ainda são piores que os desejos hipotéticos que atribuis à nossa mãe defunta.
Sem dúvida; mas a religião cristã não durou tanto tempo só porque toda a gente acreditava nela, porque era imposta pelos governantes e pelo clero, porque era um meio de controlo social, porque era a única história a circular e porque, se não acreditássemos nela — ou descrêssemos com clamor excessivo —, a nossa vida podia ser rapidamente encurtada. Durou também porque era uma bela mentira, porque as personagens, o enredo, os vários coups de théâtre, a luta omnipresente entre o Bem e o Mal davam um grande romance. A história de Jesus — missão nobre, confronto com o opressor, perseguição, traição, execução, ressurreição — é o exemplo perfeito dessa fórmula que Hollywood tão furiosa e eminentemente persegue: uma tragédia com final feliz. Ler a Bíblia como «literatura», como o velho professor mordaz tentava mostrar-nos, é muito inferior a ler a Bíblia como verdade, uma verdade sancionada pela beleza.
Fui a um concerto em Londres com o meu amigo J. A peça coral de música sacra que ouvimos varreu-se-me da memória, mas não a pergunta que ele me fez a seguir: «Durante o concerto, quantas vezes pensaste em Nosso Senhor ressuscitado?» «Nenhuma», respondi. Não sabia se J. tinha pensado em Nosso Senhor ressuscitado; afinal, é filho dum pastor e tem o hábito (único entre aqueles que conheço) de dizer «Fica com Deus», quando se despede. Isso poderá indicar uma crença residual? Ou é só um vestígio linguístico, como dizer «Grüss Gott» em certas regiões da Alemanha?
Para mim, a falta de Deus torna-se evidente pela ausência de fé e convicção subjacentes, quando me confronto com arte religiosa. É uma das hipóteses obsessivas para o não crente: como seria «se fosse verdade»… Imaginem-se a ouvir o Requiem de Mozart numa grande catedral — ou, já agora, a Suíte dos Pescadores de Fauré, numa capela sobre uma escarpa junto ao mar — e a tomar o texto como verdade absoluta; imaginem-se a ler a devota banda desenhada de Giotto na capela de Pádua como algo que não é ficção; imaginem-se a ver num Donatello a face real de Cristo sofredor ou de Madalena chorosa. Acrescentava — e eu não quero exagerar — um bocadinho de ação, não acrescentava?
Este pode parecer um desejo irrelevante e vulgar — de mais gasolina no depósito, mais álcool no vinho; de melhor (ou até maior) experiência estética. Mas é mais do que isso. Edith Wharton compreendeu a sensação, e a desvantagem, de admirar igrejas e catedrais quando já não acreditamos no que esses edifícios representam; e descreveu o processo de tentarmos imaginar-nos uns séculos atrás, para entendermos e sentirmos isso. Mas nem o mais dotado no exercício da imaginação consegue sentir exatamente o que um cristão terá sentido ao contemplar os vitrais acabados de instalar na catedral de Burges, ao ouvir uma cantata de Bach na Igreja de São Tomás, em Leipzig, ou ao reler uma história bíblica narrada há muito numa água-forte de Rembrandt. Esse cristão estaria, provavelmente, mais interessado na verdade do que na estética; ou, pelo menos, a sua avaliação da grandeza de um artista dependeria da eficácia e da originalidade (ou da familiaridade) com que os dogmas da religião eram expostos.
Que diferença faz tirarmos a religião da arte religiosa, reduzirmo-la esteticamente a meras cores, estruturas, sons e deixarmos o seu significado essencial tão distante como uma memória de infância? Ou essa questão é inútil, já que não temos escolha? Fingir, durante o Requiem de Mozart, crenças que não temos é como fingir achar graça às piadas brejeiras de Shakespeare (embora alguns espectadores ainda riam, implacáveis). Há poucos anos estive na Galeria de Arte da cidade de Birmingham. Num canto envidraçado, há uma pintura pequena e intensa de Petrus Christus, que representa Cristo mostrando as suas feridas: de polegar e indicador estendidos, ele mostra onde a lança entrou — convida-nos mesmo a medir o golpe. A sua coroa de espinhos floriu num halo de glória, dourado, semelhante a algodão-doce. Dois santos, um com um lírio e outro com uma espada, assistem-no e afastam os cortinados de veludo verde dum palco estranhamente doméstico. Quando me retirava depois de ter examinado o quadro, reparei num pai em fato de treino com um filho pequeno, que vinham na minha direção, com a atitude de quem odeia arte. O pai, equipado com melhores sapatilhas e mais energia, vinha um ou dois metros à frente. O rapaz olhou de relance a obra e perguntou, com um forte sotaque de Birmingham: «Porque é que o homem está agarrado ao peito, papá?» O pai, sem abrandar a marcha, conseguiu olhar para trás e para o lado, e respondeu logo: «Não sei.»
Por muito prazer e verdade que retiremos da arte não religiosa criada sobretudo para nós, por mais plenamente que ela interpele a parte estética do nosso ser, seria uma pena que a nossa reação àquilo que a precedeu ficasse definitivamente reduzida a um «Não sei». Mas claro, é isto que acontece. As legendas nas paredes das galerias explicam cada vez mais os eventos como Anunciação ou Assunção da Virgem — mas raramente a identidade de todos os batalhões de santos portadores de símbolos. Eu precisaria do meu próprio dicionário iconográfico, se alguém me pedisse que nomeasse os dois assistentes de Petrus Christus.
Como será quando o cristianismo se juntar à lista das religiões extintas e for ensinado nas universidades como parte do programa escolar sobre os costumes? Quando a blasfémia se tornar, não legal ou ilegal, mas impossível, simplesmente? Será um pouco assim. Estive há pouco tempo em Atenas, onde vi pela primeira vez estatuetas de mármore das Cíclades. Foram feitas entre 3000 e 2000 a.C., são na maioria femininas e apresentam dois tipos principais: formas de violino semiabstratas e representações mais naturalistas, com um corpo estilisticamente alongado. As segundas têm geralmente: nariz longo numa cabeça semelhante a um escudo e desprovida de outros traços; pescoço alongado; braços cruzados sobre o estômago, o esquerdo invariavelmente sobre o direito; esboço do triângulo púbico; cinzelada a divisão entre as pernas; posição em bicos de pés.
São imagens de singular pureza, gravidade e beleza, que nos chegam como uma nota serena e constante, que cruza uma sala de concertos silenciosa. Assim que vemos uma dessas formas, e a maioria não mede mais que um palmo, parece que as entendemos esteticamente; e parecem aliar-se para nos incitar a ignorar toda a informação histórica e arqueológica que está na parede. É em parte porque elas evocam os seus descendentes modernistas: Picasso, Modigliani, Brancusi. Ao mesmo tempo evocam e ultrapassam: é bom ver os admiráveis tiranos do modernismo tornados menos originais por uma comunidade de escultores desconhecidos de Cíclades; também é bom que nos lembrem que a história da arte é ao mesmo tempo circular e linear. Passado esse momento breve de satisfação vagamente pugilística, abrimo-nos à serenidade e à contenção simbólica das figuras. Ocorrem-nos agora comparações diversas: Piero ou Vermeer. Estamos em presença duma simplicidade majestosa e duma calma transcendente que parece conter todas as profundezas do Egeu e fazer uma advertência ao nosso frenético mundo moderno. Um mundo que foi admirando cada vez mais estas peças e as desejou em maior número do que alguma vez poderá existir. A falsificação, como a hipocrisia, é a homenagem que o vício presta à virtude e, neste caso, muita homenagem tem sido prestada.
Mas exatamente para onde temos nós, ou melhor, eu — sim, é melhor assumir aqui a responsabilidade — estado a olhar? E as minhas reações, por muito admirativas e autênticas que fossem, foram relevantes face aos objetos que tinha à minha frente? (Ou os objetos estéticos, com o tempo, acabam por se reduzir às reações que temos face a eles?) Toda aquela palidez aveludada, que empresta um ar de tanta serenidade, não deveria existir na origem: as cabeças, pelo menos, seriam pintadas em cores vivas. A incisão minimalista — e protomodernista — é, pelo menos em parte, uma consequência prática de o mármore ser extremamente difícil de esculpir. A presença vertical, a maneira como as pequenas imagens se erguem em bicos de pés e vêm ao nosso encontro e, dessa maneira, parecem dominar-nos calmamente, é uma invenção de curador, já que a maioria se destinava a ser colocada na horizontal. Quanto à serena advertência que delas emana, tem muito da quietude e rigidez dum túmulo. Podemos olhar esteticamente as estatuetas das Cíclades — não podemos fazer outra coisa —, mas a sua função era funerária. Valorizamo-las ao exibi-las em museus sob uma luz cuidadosamente preparada; os seus criadores tê-las-iam valorizado enterrando-as no chão, invisíveis a todos exceto aos espíritos dos mortos. E em que acreditavam exatamente — ou mesmo aproximadamente — as pessoas que produziram tais objetos? Não sei.
É claro que a arte é só um começo, uma metáfora, como sempre. Larkin, ao visitar uma igreja vazia, pensa no que acontecerá quando «as igrejas caírem totalmente em desuso». Iremos «conservar / Algumas catedrais cronicamente expostas» (o «cronicamente» produz sempre uma ponta de inveja no autor deste texto) ou «Evitá-las-emos como lugares de mau agoiro»? Larkin conclui que continuaremos — sempre — a sentir atração por esses locais abandonados, porque «para sempre alguém irá surpreender / O desejo em si de ser mais sério».
É isto que subjaz ao sentimento de falta? Deus está morto e sem Ele os seres humanos podem enfim erguer-se da posição ajoelhada e assumir a sua estatura plena; e, no entanto, essa estatura revela-se bastante anã. Emile Littré, lexicógrafo, ateu, materialista (e tradutor de Hipócrates), concluiu que «o Homem é um composto muito instável e a Terra um planeta decididamente inferior». A religião costumava oferecer consolação para os trabalhos árduos da vida e, no fim, recompensa para os fiéis. Mas, além dessas benesses, dava sentido à vida humana e, daí, seriedade. Fazia com que as pessoas se portassem melhor? Às vezes sim, às vezes não; crentes e não crentes têm sido igualmente engenhosos e abjetos nas práticas criminais. Mas ela era verdadeira? Não. Então porque havemos de sentir a sua falta?
Porque era uma ficção suprema, e é normal sentir a perda ao fechar um grande romance. Na Idade Média era costume levar animais a julgamento — gafanhotos que destruíam colheitas, térmitas que roíam vigas de igrejas, porcos que devoravam bêbados caídos nas valetas. Por vezes o animal era levado a tribunal, por vezes (como no caso dos insetos) era julgado necessariamente in absentia. Havia um verdadeiro processo, com acusação, defesa e juiz paramentado, que podia aplicar uma variedade de castigos: liberdade condicional, desterro e até excomunhão. Às vezes havia mesmo execução: um porco podia ser pendurado pelo pescoço até morrer, por um oficial de diligências com luvas e encapuzado.
Tudo isso nos parece agora extravagante e louco, uma manifestação do inacessível espírito medieval. E, no entanto, era perfeitamente racional e perfeitamente civilizado. O mundo foi feito por Deus e, por conseguinte, tudo o que nele acontecia era, ou expressão da vontade divina, ou consequência do livre-arbítrio concedido por Deus às suas criaturas. Nalguns casos, Deus podia servir-se do reino animal para admoestar a sua criação humana: por exemplo, enviando como castigo uma praga de gafanhotos que, por isso, o tribunal era legalmente obrigado a declarar inocentes. Mas se um bêbado atordoado caísse numa valeta, ficasse com metade da cara comida por um porco e isso não pudesse ser interpretado como um plano divino? Era preciso encontrar outra explicação. Se calhar o porco estava possuído por um demónio, a quem o tribunal podia ordenar que se afastasse. Ou talvez o porco, se bem que desprovido de livre-arbítrio, pudesse ser julgado causalmente responsável pelo sucedido.
Isto pode parecer-nos mais uma prova da bestialidade inventiva do homem. Mas há outra forma de ver a questão, que é o elevar do estatuto dos animais. Eles faziam parte da criação de Deus e da vontade de Deus, não eram postos na Terra só para utilidade e prazer dos homens. As autoridades medievais levavam os animais a tribunal e avaliavam seriamente os seus delitos; nós pomos os animais em campos de concentração, enchemo-los de hormonas e cortamo-los aos bocadinhos, para que nos façam lembrar o menos possível uma coisa que já cacarejou ou baliu ou mugiu. Qual dos mundos é mais sério? Qual é moralmente mais avançado?
Os autocolantes nos para-choques dos automóveis e os ímanes nos frigoríficos lembram-nos que a vida não é um ensaio. Incitamo-nos uns aos outros a atingir o paraíso secular e moderno da autossatisfação: o desenvolvimento da personalidade, as relações que ajudam a definir quem somos, a profissão que dá estatuto, os bens materiais, a obtenção de património, as férias no estrangeiro, a aquisição de poupanças, a acumulação de proezas sexuais, as idas ao ginásio, o consumo cultural. Tudo contribui para a felicidade, não é — não é? É o mito que escolhemos e um delírio quase tão grande como aquele que prometia a realização e o êxtase quando soasse a última trombeta e as sepulturas se abrissem, quando as almas curadas e já perfeitas se juntassem à comunidade dos santos e dos anjos. Mas se a vida for vista como um ensaio, uma preparação, uma antecâmara ou qualquer que seja a metáfora que preferimos, mas sempre contingente e dependente duma realidade superior, então ela torna-se ao mesmo tempo menos valiosa e mais séria. As partes do mundo onde a religião está a desaparecer e onde existe um reconhecimento geral de que este breve período de tempo é tudo quanto temos, não são, no geral, lugares mais sérios do que aqueles onde o sino da catedral ou o muezim no minarete ainda fazem virar as cabeças. No geral, entregam-se a um materialismo frenético, embora o engenhoso animal humano seja perfeitamente capaz de construir civilizações onde a religião coexiste com o materialismo frenético (onde a primeira até pode ser uma consequência emética do segundo): veja-se a América.
«E então?», podemos responder. O que importa é aquilo que é verdadeiro. Preferimos curvar-nos diante de balelas e corromper a nossa vida ao capricho do clero, tudo em nome de uma suposta seriedade? Ou preferimos atingir a nossa plena estatura de anões e satisfazer as nossas necessidades e desejos triviais, em nome da liberdade e da verdade? Ou este é um falso antagonismo?
O meu amigo J. lembra-se da obra que ouvimos naquele concerto, há uns meses: uma missa de Haydn. Quando faço alusão à conversa que tivemos em seguida, ele sorri como um gnomo. Por isso pergunto: «Durante o concerto, quantas vezes pensaste em Nosso Senhor ressuscitado?» «Penso nele constantemente», responde. Como não posso saber se está a ser inteiramente sério ou inteiramente frívolo, faço uma pergunta que não me lembro de alguma vez ter feito a nenhum dos meus amigos adultos: «Tu és, ou até que ponto és crente?» É melhor tirar isto a limpo, depois de o conhecer há trinta anos. Um riso baixo e prolongado: «Sou descrente.» E depois corrige-se: «Sou muito descrente.»
Montaigne observou que «o mais sólido fundamento da religião é o desprezo pela vida». Ter má opinião deste mundo alugado era lógico e até essencial para um cristão: um apego excessivo à Terra, e ainda mais o desejo de qualquer forma de imortalidade terrestre, seria uma impertinência para com Deus. O equivalente britânico mais próximo de Montaigne, Sir Thomas Browne, escreveu: «Para um pagão pode haver alguns motivos para se apaixonar pela vida mas, se um cristão fica espantado [ou seja, aterrado] com a morte, não sei como pode escapar a este dilema: ou está demasiado agarrado a esta vida ou desesperando da que há de vir.» Por isso, Browne venera todos os que desprezam a morte: «Nem posso gostar muito de qualquer um que a receie: isso faz-me amar naturalmente os soldados e glorificar os regimentos andrajosos que morrem às ordens dum sargento.»
Browne observa também: «É sintoma de melancolia recear a morte, mas também por vezes desejá-la.» De novo Larkin, um melancólico que define perfeitamente o medo da morte: «Não estar aqui, / Não estar em parte alguma, / E em breve: nada mais terrível, nada mais verdadeiro.» E noutra ocasião, como que a confirmar Browne: «Sob tudo isto, corre o desejo de esquecimento.» Este verso deixou-me perplexo quando o li pela primeira vez. Eu próprio sou certamente melancólico e, por vezes, acho que a vida é uma maneira sobrevalorizada de passar o tempo; mas nunca quis deixar de ser eu, nunca desejei o esquecimento. Não estou tão convencido da nulidade da vida, que a promessa de um novo romance ou de um novo amigo (ou velho romance ou velho amigo), ou um jogo de futebol na televisão (ou até a repetição dum jogo antigo) não volte a despertar o meu interesse. Sou o cristão medíocre de Browne — «demasiado agarrado a esta vida ou desesperando da que há de vir» — só que… eu não sou cristão.
Talvez a distinção importante não seja entre religioso e não religioso, mas entre os que temem a morte e os que a não temem. Dividimo-nos assim em quatro categorias e vemos logo quais as duas que se consideram superiores: as que não receiam a morte porque têm fé e as que não receiam a morte apesar de não terem fé. Estes grupos ocupam a mais alta posição moral. Em terceiro lugar vêm os que, apesar de terem fé, não conseguem livrar-se do velho medo visceral, racional. E depois, já longe das medalhas, abaixo de tudo, na miséria, vêm aqueles de nós que temem a morte e que não têm fé.
Tenho a certeza que o meu pai receava a morte e estou quase certo que a minha mãe não a receava: receava mais a incapacidade e a dependência. E se o meu pai era um agnóstico que temia a morte e a minha mãe uma ateia intrépida, essa diferença reproduziu-se nos dois filhos. Agora o meu irmão e eu já temos mais de sessenta anos, e só agora lhe perguntei — há meia dúzia de páginas — o que pensa da morte. Quando respondeu: «Contento-me com as coisas tal como são», queria dizer que está satisfeito com o seu próprio desaparecimento? E a sua imersão na filosofia reconciliou-o com a brevidade da vida e o fim inevitável que, para ele, será dentro dos próximos, digamos, trinta anos?
«Trinta anos é bastante generoso», responde (eu aumentara o número, para meu conforto e dele). «Espero estar morto nos próximos quinze. Se estou reconciliado com o facto? Estou reconciliado com o facto de o choupo grandioso que vejo da janela ir cair e apodrecer nos próximos cinquenta anos? Não tenho a certeza de que reconciliação seja o mot juste: sei que vai acontecer e não posso fazer nada. É algo que não recebo propriamente com prazer mas que também não me preocupa — e na verdade não consigo imaginar nada mais satisfatório. Uma vida quase eterna acompanhada de santos é que não, de certeza; haverá algo menos aliciante?»
A rapidez com que ele e eu — filhos da mesma carne, produtos da mesma escola e da mesma universidade — divergimos! E embora a maneira como o meu irmão discute a mortalidade seja (em ambos os sentidos) filosófica, embora ele ponha a sua própria dissolução final à distância através da comparação com um choupo, acho que não foi a sua vida na e com a filosofia que forjou a diferença. Desconfio que ele e eu estamos como estamos nesta matéria porque fomos sempre assim, desde o início. Não parece, é claro. Vimos ao mundo, olhamos em volta, fazemos certas deduções, livramo-nos das velhas patranhas, aprendemos, pensamos, observamos, concluímos. Acreditamos nos nossos próprios poderes e na nossa autonomia; transformamo-nos na nossa própria obra. Ao longo dos anos, o meu medo da morte tornou-se parte essencial de mim e posso atribuí-lo ao exercício da imaginação; já a indiferença do meu irmão perante a morte é parte essencial dele próprio, que ele atribui provavelmente ao exercício do pensamento lógico. Mas talvez eu só seja assim por causa do nosso pai e ele seja assim por causa da nossa mãe. Obrigado pelo gene, pai.
«Não consigo mesmo imaginar nada mais satisfatório [do que a extinção]», diz o meu irmão. Pois eu consigo imaginar toda a espécie de coisas mais satisfatórias do que a pura obliteração dentro dos quinze (o cálculo é dele) ou trinta (é o meu dote fraterno) anos mais próximos. Para começar, que tal viver mais tempo do que o choupo? E que tal darem-nos a hipótese de morrer quando nos apetecer, quando estivermos fartos? Continuar durante duzentos, trezentos anos, e depois termos permissão para proferir o nosso próprio e eutanásico «Então vamos lá acabar com isto» num momento à nossa escolha? Porque não imaginar uma quase vida eterna passada a conversar com os grandes filósofos ou os grandes romancistas? Ou uma forma de reencarnação — uma mistura de budismo e Feitiço do Tempo — na qual conseguimos viver de novo a nossa vida, conscientes do modo como aconteceu da primeira vez, mas capazes de fazer correções a esse ensaio? O direito a tentar de novo e fazer de outra maneira. Da próxima vez, eu podia resistir à primogénita e filatélica afirmação do meu irmão e colecionar qualquer coisa diferente do Resto do Mundo. Podia tornar-me judeu (ou tentar, ou simular). Podia sair de casa mais cedo, viver no estrangeiro, ter filhos, não escrever livros, plantar choupos, aderir a uma comunidade utópica, dormir com todas as pessoas desaconselháveis (ou, pelo menos, com pessoas desaconselháveis diferentes), tornar-me toxicodependente, encontrar Deus, não fazer nada. Podia descobrir géneros completamente novos de deceção.
A minha mãe contou-me que o avô lhe dissera um dia que o pior sentimento da vida era o remorso. «A que é que estaria a referir-se?», perguntei. Ela disse que não fazia ideia, pois o pai fora um homem da máxima honradez (aqui não há pufes indiscretos). E por isso o comentário — tão pouco característico do meu avô — fica a pairar no tempo, sem resposta. Sofro pouco de remorsos, mas eles poderão vir a caminho e, enquanto espero, contento-me com os parentes próximos: mágoa, culpa, memória do fracasso. Mas sinto uma curiosidade crescente acerca das vidas não vividas e já impossíveis de viver, e talvez o remorso se esconda na sombra delas.
Arthur Koestler, antes de cometer suicídio, deixou uma nota em que expressava «alguma esperança ténue noutra vida despersonalizada». Tal desejo não surpreende — Koestler dedicou uma grande parte dos derradeiros anos à parapsicologia — mas, para mim, é claramente desinteressante. Como desinteressante parece ser uma religião que é um mero evento social semanal (sem falar, é claro, nos normais prazeres do evento), por oposição a uma religião que nos diz como viver exatamente, que dá tonalidade e cor a tudo, que é séria, por isso eu queria que a minha outra vida, se ma dessem, fosse um aperfeiçoamento, de preferência substancial, da sua antecessora terrestre. Posso perfeitamente imaginar-me a flutuar semi-inconsciente num viscoso caldo molecular, mas não consigo ver qualquer vantagem em relação à extinção total. Para quê ter esperança, ainda que ténue, de um tal estado? Ó rapaz, mas não se trata do que tu preferes, trata-se daquilo que é verdade. A discussão-chave sobre este assunto deu-se entre Isaac Bashevis Singer e Edmund Wilson. Singer disse a Wilson que acreditava num género qualquer de sobrevivência após a morte. Wilson disse que, por ele, não queria sobreviver, obrigado. Singer respondeu: «Mas se a sobrevivência está prevista, você não tem opção.»
A fúria do ateu ressuscitado: seria digno de se ver. Já que falamos no assunto, acho que a companhia dos santos seria francamente interessante. Muitos levaram vidas emocionantes — escaparam a assassinos, afrontaram tiranos, pregaram em esquinas medievais, foram torturados — e até os mais discretos poderiam falar-nos de apicultura, de produção de lavanda, de ornitologia da Úmbria e por aí fora. Dom Pérignon era monge, aliás. Poderíamos aspirar a uma companhia social mais variada mas, se alguma coisa «está prevista», então os santos confortar-nos-ão por muito mais tempo do que imaginámos.
O meu irmão não teme a extinção. «Digo-o francamente, e não só porque seria irracional ter semelhante medo.» (Perdão — interrupção — irracional? IRRACIONAL? É a coisa mais racional do mundo — como pode a razão razoavelmente não detestar e recear o fim da razão?) «Três vezes na minha vida me convenci que estava à beira da morte (da última recuperei os sentidos numa sala de reanimação); tive, em cada uma dessas ocasiões, uma reação emocional (duma vez uma fúria violenta contra mim, que me colocara naquela situação, doutra vez vergonha misturada com aflição à ideia de ter deixado os meus assuntos por tratar), mas nunca uma reação de medo.» Chegou mesmo a ensaiar as últimas palavras que iria proferir no leito de morte. «Da última vez que estive quase a morrer, as minhas quase últimas palavras foram: “Vê se o Ben recebe o meu exemplar do Aristóteles de Bekker.”» Acrescenta que a mulher achou aquilo «desprovido de afeto».
Reconhece que hoje em dia pensa mais na morte, «em parte porque os velhos amigos e colegas estão a morrer». Pensa nisso calmamente uma vez por semana; enquanto eu me esforcei durante tantos anos, qual atleta de maratona e pesos pesados, sem ganhar serenidade nem filosofia. Podia tentar improvisar argumentos a favor da sensibilização para a morte, mas não tenho a certeza se seriam convincentes. Não posso ter a pretensão de que enfrentar a morte (não, isto tem um ar demasiado ativo, de pretenso heroísmo — a forma passiva é melhor: não posso ter a pretensão de que ser confrontado com a morte) me tenha feito adaptar melhor a ela e muito menos ganhar sabedoria, seriedade ou… seja o que for, de facto. Podia tentar argumentar que não conseguimos apreciar verdadeiramente a vida sem a habitual consciência da extinção: são as gotas de limão, a pitada de sal que intensifica o sabor. Mas pensarei eu de facto que os meus amigos que não se ralam com a morte (ou que são religiosos) apreciam menos do que eu este ramo de flores, esta obra de arte, este copo de vinho? Não.
Por outro lado, não é só uma questão visceral. As suas manifestações — do arrepio de apreensão ao terror que esvazia a mente, do brutal som do alarme no quarto de hotel desconhecido aos cláxones estridentes da cidade — talvez. Mas repito e insisto que sofro de temor racional (sim, RACIONAL). A primeira Dança da Morte conhecida, pintada num muro do Cemitério dos Inocentes em Paris, em 1425, tinha um texto que começava por «Ô créature roysonnable / Qui desires vie eternelle» [«Ó criatura racional / Que desejas vida eterna»]. Medo racional: o meu amigo e romancista Brian Moore gostava de citar a velha definição jesuíta do homem, «un être sans raisonnable raison d’être» [«um ser sem razoável razão de ser»].
A consciência da morte estará ligada ao facto de eu ser escritor? Pode ser. Mas, se é assim, não quero saber nem investigar. Lembro-me do caso dum comediante que, após anos de psicoterapia, compreendeu finalmente porque é que precisava de ser cómico; e quando compreendeu, parou. Por isso eu não quero arriscar. Mas consigo imaginar uma daquelas opções do estilo «preferimos o quê». «Mr. Barnes, estudámos o seu caso e concluímos que o seu medo da morte está intimamente ligado aos seus hábitos literários que não passam, como para muitos da sua profissão, duma reação banal à sua condição mortal. Inventa histórias para que o seu nome e uma incalculável percentagem da sua individualidade continue após a morte física, e essa esperança traz-lhe algum consolo. E mesmo que intelectualmente tenha percebido que pode perfeitamente ser esquecido antes de morrer, ou logo a seguir, e que todos os escritores acabarão por ser esquecidos, assim como toda a raça humana, ainda assim parece-lhe que vale a pena. Não podemos ter a certeza se escrever é para si uma reação visceral ao medo racional ou uma reação racional ao medo visceral. Mas tem aqui uma coisa para pensar. Aperfeiçoámos uma nova operação ao cérebro, que elimina o medo da morte. É um procedimento simples que não necessita de anestesia geral — pode, aliás, seguir o resultado no monitor. Não perca de vista o ponto luminoso cor de laranja e veja-o esbater-se gradualmente. Mas é claro, descobrirá que a operação lhe tira a vontade de escrever; muitos dos seus colegas, porém, optaram por este tratamento e acharam-no muito benéfico. No geral, a sociedade também não se queixou por haver menos escritores.»
Tinha de pensar no assunto, é claro. Perguntaria a mim próprio se as obras publicadas eram suficientes e se a próxima ideia é de facto tão boa quanto imagino. Mas espero recusar — ou pelo menos negociar, tentar que façam uma oferta melhor. «E se eliminassem não o medo da morte, mas a própria morte? Seria verdadeiramente tentador. Vocês despacham a morte e eu desisto de escrever. Que tal esse negócio?»
O meu irmão e eu herdámos algumas coisas em comum. Das nossas quatro orelhas brotaram três aparelhos auditivos. A minha surdez é do lado esquerdo. Jules Renard, Journal, 25 de julho de 1892: «Ele é surdo do ouvido esquerdo: do lado do coração não ouve.» (Sacana!) Quando o otorrinolaringologista diagnosticou o meu problema, perguntei se teria feito alguma coisa para o provocar. «Não podemos provocar a doença de Ménière», replicou. «É congénita.» «Ah, ótimo!», disse eu. «Uma coisa que posso censurar aos meus pais.» Não que o faça. Eles limitaram-se a cumprir o dever genético, a passar o que lhes fora passado a eles, toda a matéria antiga oriunda do lodo, do pântano, da caverna — a matéria evolutiva, sem a qual o meu eu queixoso nunca teria nascido.
A poucos milímetros destas orelhas congenitamente avariadas reside, no interior do meu próprio crânio, o medo da morte e, no do meu irmão, a ausência de medo. Onde é que, aí perto, poderá encontrar-se a religião ou a falta dela? Em 1987, um neurologista americano declarou ter encontrado exatamente o local do cérebro onde uma certa instabilidade elétrica desencadeia sentimentos religiosos: o chamado «ponto Deus», uma forma diferente e ainda mais potente do ponto G. Recentemente, este investigador inventou também um «capacete Deus», que estimula os lóbulos temporais com um campo magnético fraco e, supostamente, induz estados religiosos. De forma corajosa — ou temerária — experimentou-a no ente talvez menos sugestionável do planeta, Richard Dawkins7 que, a seu tempo, anunciou não sentir o mínimo vislumbre duma presença imanente.
Outros investigadores acreditam que não se pode localizar um único «ponto Deus». Numa experiência, foi pedido a quinze freiras carmelitas que recordassem as suas experiências místicas mais profundas: os exames mostraram atividade elétrica e níveis de oxigénio no sangue mais elevados em pelo menos doze regiões diferentes do cérebro. Mas a mecânica neurológica da fé não encontrará nem provará a existência (ou inexistência) de Deus, nem estabelecerá a razão subjacente da crença da nossa espécie em divindades. Isso chegará talvez quando a psicologia da evolução demonstrar a utilidade adaptativa ao indivíduo e ao grupo. Mas isso eliminará Deus, o grande fugitivo? Não contem com isso. Ele baterá taticamente em retirada, como faz há uns cento e cinquenta anos, até à próxima zona insondável do universo. «Talvez o facto de Deus ser incompreensível seja o mais forte argumento da Sua existência.»
Diferenças entre irmãos: quando eu estava na idade da máxima perturbação adolescente, um amigo dos meus pais perguntou ao meu pai, à minha frente, qual dos seus filhos era o mais inteligente. O meu pai olhou-me com o seu olhar benévolo, liberal e, com prudência, respondeu: «Talvez o Jonathan. O Julian é bom em tudo e multifacetado, não concordas, Ju?» Vi-me obrigado a validar a apreciação (com a qual até talvez concordasse, aliás). Mas também reconheci o eufemismo. Resto do Mundo, Voz Baixa, Bom em Tudo: humm…
As diferenças que a minha mãe via nos seus dois filhos agradavam-me mais. «Quando eram pequenos, se eu estava doente, o Julian saltava para a cama e aninhava-se ao pé de mim, enquanto o irmão me trazia uma chávena de chá.» Outra diferença que ela relatava: uma vez o meu irmão descuidou-se nas calças e reagiu dizendo: «Nunca mais volta a acontecer» — e não voltou; ao passo que eu, quando em bebé não conseguia controlar os intestinos, era apanhado a esfregar alegremente o cocó nas gretas do soalho. A minha diferenciação preferida, no entanto, foi feita muito mais tarde pela minha mãe. Nessa altura, os filhos estavam ambos instalados nos seus domínios próprios. E era assim que ela expressava o orgulho neles: «Um dos meus filhos escreve livros que eu posso ler mas não consigo entender, e o outro escreve livros que eu consigo entender mas não posso ler.»
Sempre que refletia nas nossas naturezas divergentes, atribuía quase sempre isso a um pormenor puerperal. Após o nascimento do meu irmão, a nossa mãe adoecera com uma infeção por estreptococos. Sem poder amamentá-lo, alimentou-o com a farinha para biberão que era possível encontrar em tempo de guerra, na Inglaterra de 1942. Eu sabia que o meu nascimento, em 1946, ocorrera sem complicações médicas e, por isso, devo ter sido amamentado. Nos momentos de rivalidade fraterna, eu retomava esse facto essencial. Ele era o inteligente, com o intelecto frio e a inteligência prática, o que retinha as fezes e levava o chá; eu era o pau para toda a obra, que procurava carinho e esfregava o cocó, o emocional. Ele tinha o cérebro, tal como tinha o Império Britânico; eu tinha o Resto do Mundo, com toda a riqueza e diversidade. Era pateticamente redutor, é claro, e sempre que os críticos e comentadores aplicavam à arte um reducionismo semelhante (El Greco reduzido a um caso de astigmatismo, a música de Schumann ao prenúncio da loucura), eu ficava muito irritado. Mas agarrei-me a essa explicação numa época em que precisei dela — uma época em que os observadores da minha vida emocional terão concluído que eu não colecionava muito o Resto do Mundo e me especializava mais em postais raros da Noruega e das ilhas Faroé.
O medo da morte substitui o medo de Deus. Mas o medo de Deus — um princípio primitivo inteiramente razoável, dado o risco de viver e a nossa vulnerabilidade a raios e meteoritos de origem desconhecida — permitia ao menos negociar. Nós queríamos convencer Deus a deixar de ser o Vingador e rotulámo-lo de Infinitamente Misericordioso; passámo-lo de Antigo a Novo, como o Testamento e o Partido Trabalhista. Montámos a Sua imagem numa calha e arrastámo-la para um lugar com mais sol. Não podemos fazer o mesmo com a morte. Com a morte não podemos regatear, nem negociar nada; ela recusa-se simplesmente a chegar à mesa das negociações. Não precisa de fingir que é Vingativa nem Misericordiosa, nem mesmo Infinitamente Cruel. É insensível ao insulto, à queixa ou à condescendência. «A morte não é artista»: não, e nunca pretenderia sê-lo. Os artistas são inconstantes, ao passo que a morte nunca nos abandona, fica a postos sete dias por semana e adora fazer três turnos seguidos de oito horas. Compraríamos ações da morte, se as houvesse; apostaríamos nela, por baixa que fosse a cotação. Quando eu e o meu irmão éramos pequenos, havia uma celebridade menor chamada Barbara Moore, atleta de marcha e vegetariana propagandista, que pensava poder desafiar a natureza; declarou uma vez a um jornal, um tanto ambiciosamente, que teria um bebé aos cem anos e viveria até aos cento e cinquenta. Não chegou nem a metade. Morreu aos setenta e três anos e não foi a instâncias dum corretor de apostas ansioso. Estranhamente, poupou trabalho à morte e deixou-se morrer à fome. Para a morte foi um dia alto na Bolsa.
Os ateus da primeira categoria, moralmente superior (nem Deus, nem medo da morte), comprazem-se em dizer-nos que a falta duma divindade não deveria de modo algum diminuir o nosso sentimento de admiração face ao universo. Poderia parecer milagroso e prático quando imaginávamos que Deus o criara especialmente para nós, desde a harmonia do floco de neve e da alusão complexa da flor-da-paixão à produção espetacular de um eclipse do Sol. Mas, se tudo continua a funcionar sem causa primeira, porque havia de ser menos maravilhoso e menos belo? Porque é que temos de ser crianças e precisar dum professor que nos mostre as coisas, como se Deus fosse uma versão superior do especialista de televisão em vida selvagem? O pinguim-imperador, por exemplo, é tão majestoso e cómico, tão gracioso e tão desajeitado antes como depois de Darwin. Sejamos adultos e examinemos juntos o fascínio da dupla hélice, o vislumbre sombrio do espaço sideral, as infinitas variações de plumagem que demonstram as leis da evolução e o mecanismo compacto e inconcebível do cérebro humano. Porque é que precisamos de um Deus que nos ajude a maravilharmo-nos com tais coisas?
Não precisamos. De facto não. E, no entanto… Se tudo o que aí está veio do nada, se tudo se desenrola mecanicamente segundo um programa estabelecido por ninguém e se as perceções que dele temos são meros instantes de atividade bioquímica, o mero estalar e crepitar de algumas sinapses, então de que vale o sentimento de admiração? Não deveríamos desconfiar um pouco mais dele? Um escaravelho-do-estrume pode muito bem ter uma sensação primitiva de reverência para com a grandiosa bola de esterco que percorre. Esta nossa admiração não é simplesmente uma versão mais chique? Talvez, poderá responder o ateu da primeira categoria, mas ao menos baseia-se num conhecimento da verdade. Comparem as fantasias patetas daquele discípulo de Rousseau, que afirmava que as estrias na casca do melão eram obra de Deus — o Todo-Poderoso à laia de ama, a dividir o fruto em porções justas e iguais para os Seus filhos. Querem voltar a essas noções absurdas, ao sofisma ridículo do gastrónomo? Onde está o vosso sentido da verdade?
Ainda existe, espero. Mas, só por curiosidade, seria útil saber se o sentido de admiração dum ateu face ao universo é quantificável e tão grande como o dum crente. Não há razão para que não possamos medir tais coisas (se agora não é possível, sê-lo-á em breve). Já podemos comparar o número de sinapses que disparam durante o orgasmo feminino e masculino — péssima notícia para os machões… Então porque não experimentamos uma prova semelhante? Descobrir um anacoreta que ainda acredite que a flor-da-paixão ilustra o sofrimento de Cristo: que a folha simboliza a lança, as cinco anteras as cinco feridas, as gavinhas os chicotes, o pistilo o madeiro da cruz, os estames os martelos, os três estiletes os três pregos, os filamentos salientes no interior da flor a coroa de espinhos, o cálice o resplendor, o tom branco a pureza e o tom azul o céu. Este monge também acreditaria que a flor se mantém aberta durante exatamente três dias, um por cada ano do ensinamento de Cristo. Apliquemos-lhe elétrodos lado a lado com um botânico da televisão e veremos quem dispara mais sinapses. Levemos depois o equipamento para uma sala de concertos e submetamos à mesma prova o meu amigo J., «muito descrente», e um crente que ouvirá naquela missa de Haydn a expressão plena da verdade eterna, bem como — ou em vez de — uma grande peça musical. Conseguiremos então ver, e medir, o que acontece quando tiramos a religião da arte religiosa e Deus do universo.
Isto pode parecer loucura às mentes frias que exultam ainda mais com a beleza das leis naturais, justamente porque elas não são obra de Deus. Mas se parece nostalgia, é de algo que nunca conheci, o que, admitamo-lo, é a forma mais tóxica de nostalgia. Talvez outra parte do meu problema seja a inveja dos que perderam a fé — ou encontraram a verdade — no tempo em que perder a fé era moderno, novo, arrojado e perigoso. François Renard, suicida e anticlerical, foi a primeira pessoa a ser sepultada no cemitério de Chitry sem a assistência e conforto dum padre. Imagine-se o choque de tal coisa na Borgonha remota e rural de 1897; imagine-se o orgulho da descrença. Se calhar sofro de… bom, chamemos-lhe remorso histórico, para que o meu avô possa concordar.
«Um ateu feliz.» A data que eu podia ter indicado ao capelão da faculdade e ao capitão da equipa de remo como sendo o momento crucial em que o arrebatamento estético começou a substituir o sentimento religioso é janeiro de 1811; o lugar, Florença. Foi poucos dias antes do vigésimo oitavo aniversário de Stendhal — ou melhor, o vigésimo oitavo aniversário de Henri Beyle, que ainda não se transformara no seu nom de plume. Beyle/Stendhal não acreditava em Deus e afetava uma ignorância lógica da Sua existência. «Enquanto espero que Deus se revele, creio que o seu primeiro-ministro, o Acaso, governa este triste mundo tão bem como ele.» E continuava: «Sinto que sou um homem honesto e que me seria impossível não o ser, não para agradar a um Ser Supremo que não existe, mas por mim próprio, que preciso de viver em paz com os meus hábitos e preconceitos e dar sentido à minha vida e alimento aos meus pensamentos.»
Em 1811, Beyle era o autor empobrecido de biografias musicais em jeito de plágio e começara uma história da pintura italiana que nunca completaria. Tinha chegado pela primeira vez a Itália com dezassete anos, no trem do exército de Napoleão. Quando o exército em campanha chegou a Ivrea, Beyle foi logo à procura do teatro lírico da cidade. Encontrou um teatro de terceira categoria, com uma companhia decrépita, que representava O Matrimónio Secreto de Cimarosa, mas que foi para ele uma revelação: «un bonheur divin», relatou à irmã. A partir desse momento, tornou-se um profundo e exaltado admirador de Itália, sensível a todos os seus aspetos: uma vez, ao regressar a Milão ao fim de muitos anos, notou que «nas ruas o cheiro muito particular a bosta de cavalo» o fez chorar de emoção.
E agora chega pela primeira vez a Florença. Vem de Bolonha; a carruagem atravessa os Apeninos e inicia a descida para a cidade. «O meu coração batia com força. Que infantilidade!» Numa volta da estrada avista a catedral, com a famosa cúpula de Brunelleschi. Às portas da cidade abandona a carruagem — e a bagagem — e entra em Florença a pé, como um peregrino. Vai dar à Igreja de Santa Croce. Vê os túmulos de Miguel Ângelo e de Galileu e, ali perto, o busto de Canova, de Alfieri. Pensa nos outros grandes da Toscana: Dante, Boccaccio, Petrarca. «A minha emoção foi tão avassaladora e tão profunda, que não se distingue do temor religioso.» Pede a um frade que lhe abra a Capela Niccolini e o deixe contemplar os frescos. Senta-se «no degrau dum genuflexório, com a cabeça para trás e apoiada no tampo, para poder olhar longamente o teto». A cidade e a proximidade dos seus filhos célebres já puseram Beyle num estado próximo do transe. Fica agora «absorto na contemplação da beleza sublime»; alcança «o grau supremo da sensibilidade em que as intimações divinas da arte se unem à sensualidade exaltada da emoção». Os itálicos são dele.
A consequência física de tudo isto é o desmaio. «Quando saí do portal de Santa Croce, fui acometido de violento palpitar do coração… a fonte da vida secava dentro de mim, e eu caminhava no temor constante de cair por terra.» Beyle (que era Stendhal na época em que publicou este relato em Roma, Nápoles e Florença) sabia descrever os seus sintomas mas não sabia dar nome ao seu estado. Mas a posteridade sabe, porque a posteridade sabe sempre mais. Beyle sofria, podemos agora dizer-lhe, da síndrome de Stendhal, um mal identificado em 1979 por um psiquiatra florentino que verificara quase cem casos de vertigens e náuseas, causadas pela exposição aos tesouros artísticos da cidade. Um número recente de Firenze Spettacolo apresenta uma lista útil dos principais sítios a evitar, no caso de sermos suscetíveis a esta síndrome — ou, pelo contrário, a visitar, se queremos consolidar a nossa resistência estética. Os três principais são «a Capela Niccolini em Santa Croce, com os frescos de Giotto, a Accademia, pelo David de Miguel Ângelo, e a Galeria dos Ofícios, pel’A primavera de Botticelli».
Os céticos podem questionar se esses cem visitantes entontecidos do século XX sofreriam realmente duma reação estética violenta, ou simplesmente dos rigores da vida do turista moderno: confusão citadina, stresse de horários, ansiedade perante as obras-primas, demasiada informação e excesso de sol escaldante combinado com climatização gelada. Os muito céticos podem questionar se o próprio Stendhal sofria verdadeiramente da síndrome de Stendhal. O que ele descreve poderá ter sido o efeito cumulativo de emoções sucessivas e intensas: as montanhas, a cúpula, a chegada, a igreja, os génios do passado, a grande arte. Daí o desmaio final. Mais do que psiquiátrica, uma opinião médica também poderia ser útil: se nos sentamos com a cabeça para trás, a olhar fixamente e durante muito tempo uma superfície pintada, e depois nos levantamos e passamos da penumbra fria duma igreja para a claridade, o pó e a agitação frenética da cidade, não é natural sentirmo-nos um pouco tontos?
No entanto, a história persiste. Beyle/Stendhal é o precursor e a justificação do moderno amador da arte. Foi a Florença e desmaiou diante da grande arte. Estava numa igreja mas não era um homem religioso e o seu êxtase era puramente secular e estético. E quem não entenderia e invejaria um homem que desfalece ao ver os Giottos de Santa Croce, tanto mais que os vê com alma e olhos novos, livres de anteriores reproduções? A história é verdadeira, sobretudo porque queremos e precisamos que o seja.
Peregrinos verdadeiros, ao chegarem a Santa Croce cinco séculos antes de Beyle, teriam visto nos frescos recém-pintados de Giotto, que representavam a vida de São Francisco, uma arte que lhes dizia a verdade absoluta e podia salvá-los, neste mundo e no outro. Teria sido assim com os primeiros leitores de Dante ou com os que pela primeira vez ouviram Palestrina. Quanto mais verdadeiro, mais belo; quanto mais belo, mais verdadeiro: multiplicação rejubilante e contínua numa eternidade de espelhos paralelos. Num mundo secular, onde nos persignamos e ajoelhamos diante de grandes obras de arte de um modo puramente metafórico, temos tendência a acreditar que a arte nos fala verdade, ou seja, num universo relativista, mais verdade do que qualquer outra coisa e que, por sua vez, essa verdade pode salvar-nos (até certo ponto), ou seja, esclarecer-nos, comover-nos, elevar-nos e até curar-nos — mas só neste mundo. Quão mais simples era dantes, e não só gramaticalmente!
Flaubert censurava a Louise Colet o facto de ela ter «o amor da arte» mas não «a religião da arte». Alguns veem na arte o substituto psicológico da religião; ela continua a dar um sentimento de transcendência às criaturas abatidas que já não sonham com o Paraíso. Um crítico moderno, o professor S., de Cambridge, defende que a arte é essencialmente religiosa porque o artista aspira à imortalidade, ao evitar «a banal democracia da morte». Esta afirmação grandiosa é refutada pelo professor C., de Oxford. Ele salienta que nem a maior arte dura mais do que um abrir e fechar de olhos, à escala geológica. As duas afirmações são, acho eu, compatíveis, pois a motivação do artista pode ignorar a realidade cósmica ulterior. Mas o professor C. faz também uma declaração grandiosa, a saber: «A religião da arte torna as pessoas piores, porque encoraja o desprezo pelos que não são considerados artistas.» Pode haver nisto alguma verdade, embora o problema maior, pelo menos na Grã-Bretanha, seja o desprezo de sinal contrário: o dos filisteus contentes consigo próprios, em relação aos que praticam e prezam as artes. E esses sentimentos fazem deles pessoas melhores?
«A religião da arte»: quando Flaubert usou a expressão, estava a falar da prática empenhada, não do culto snobe da arte. A necessária atitude monacal, a corda e o cilício, a meditação silenciosa e solitária antes do ato. Se a arte deve ser comparada a uma religião, não é certamente à maneira católica tradicional, com o autoritarismo papal em cima e a servidão obediente em baixo. É algo como a Igreja primitiva: fértil, caótica e cismática. Por cada bispo há um blasfemo; por cada dogma um herético. Agora na arte, como então na religião, abundam os falsos profetas e os falsos deuses. Na arte há capelas (reprovadas pelo professor C.) que procuram excluir os não iniciados e se perdem no intelectualismo hermético e no esmero inacessível. Por outro lado (e reprovada pelo professor S.) há a falta de autenticidade, o mercantilismo e o populismo infantil; artistas que bajulam e transigem, que trapaceiam para obter votos (e numerário) como os políticos. Puros ou impuros, nobres ou corruptos, todos — tanto as meninas e meninos bonitos como os limpa-chaminés — se tornarão em pó, e logo depois a sua arte, se não for antes. Mas a arte e a religião irão sempre a par, através das palavras abstratas que ambas invocam: verdade, seriedade, imaginação, simpatia, transcendência, moralidade.
Sentir a falta de Deus é para mim um pouco como ser inglês: um sentimento instigado sobretudo pelo ataque. Quando o meu país é maltratado, um patriotismo dormente, para não dizer comatoso, agita-se. E quando se trata de Deus, sinto-me mais provocado pelo absolutismo ateu do que por, digamos, a confiança quase sempre insípida e hesitante da Igreja Anglicana. No mês passado, estive num jantar com vizinhos. Éramos uma dúzia, à volta duma mesa suficientemente comprida para sentar Cristo e os discípulos. Desenrolavam-se várias conversas ao mesmo tempo, quando de repente uma discussão subiu de tom e um jovem (filho dos anfitriões) gritou sarcasticamente: «Mas porque é que Deus havia de fazer aquilo pelo filho Dele e não pelos outros, que somos nós?» Dei por mim, de forma pouco cortês, a desviar-me da minha própria conversa e a bradar: «Porque Ele é Deus, que diabo!» A discussão alastrou; o meu anfitrião, C., velho amigo conhecido pelo seu racionalismo, apoiou o filho: «Há um livro a explicar que as pessoas sobreviviam por vezes à crucifixão, que por vezes não estavam mortas quando as tiravam da cruz. Os centuriões podiam ser subornados.» Eu: «E o que é que isso tem a ver?» Ele (racionalista exasperado): «A questão é que aquilo não pode ter acontecido. Aquilo não pode ter acontecido.» Eu (racionalista exasperado com a racionalidade): «Mas esse é o centro da questão — aquilo não pode ter acontecido. E a questão é que, se somos cristãos, aquilo aconteceu.» Eu podia ter acrescentado que o argumento dele era tão velho como… bom, pelo menos tão velho como a Madame Bovary, onde Homais, o materialista fanático, declara que a ideia da Ressurreição é não só «absurda», mas também «contrária a todas as leis da física».
Tais objeções e «explicações» científicas — Cristo não caminhou «realmente» sobre a água, mas sobre uma fina camada de gelo que, sob certas condições meteorológicas… me teria convencido na juventude. Agora parecem totalmente irrelevantes. Como disse Stravinsky, a prova lógica (logo, a refutação) está para a religião como os exercícios de contraponto estão para a música. A fé consiste em acreditar precisamente naquilo que, segundo todas as regras conhecidas, «não pode ter acontecido». A Imaculada Conceição, a Ressurreição, Maomé a saltar para o Paraíso e a deixar uma pegada na rocha, a vida no Além. Não pode ter acontecido, segundo a nossa compreensão. Mas aconteceu. Ou acontecerá. (Ou, é óbvio, não aconteceu de certeza e decerto não acontecerá.)
Os escritores precisam de ter certas respostas prontas para certas perguntas tipo. Quando me perguntam «O que diz o romance», tenho tendência a responder: «Diz mentiras lindas e perfeitas, que encerram verdades duras e exatas.» Falamos da suspensão da descrença como pré-requisito mental para apreciar a ficção, o teatro, o cinema, a pintura figurativa. São só palavras sobre a página, atores no palco ou no ecrã, cores sobre um pedaço de tela. Estas pessoas não existem, nunca existiram ou, se existiram, aqueles não passam de meras cópias, simulacros momentaneamente convincentes. Mas enquanto lemos, enquanto os nossos olhos exploram, acreditamos: que Ema vive e morre, que Hamlet mata Laertes, que este homem pensativo em vestes debruadas de pele e a sua mulher vestida de brocado poderiam sair do retrato pintado por Lotto e falar-nos no italiano de Bréscia, no século XVI. Nunca aconteceu, nunca podia ter acontecido, mas nós acreditamos que podia acontecer e que aconteceu. Tal suspensão da descrença não está longe da admissão ativa da crença. Mas não estou a sugerir que a leitura de obras de ficção possa sensibilizar-nos para a religião. Pelo contrário — muito pelo contrário: as religiões foram as primeiras grandes invenções dos escritores de ficção. Uma representação convincente e uma explicação plausível do mundo, para mentes compreensivelmente confusas. Uma história linda e perfeita, que encerra mentiras duras e exatas.
Outra semana, outra refeição: sete escritores encontram-se na sala do primeiro andar de um restaurante húngaro do Soho. Este almoço às sextas-feiras foi instituído há mais de trinta anos: reunião cheia de ruído, discussão, fumo e bebidas, frequentada por jornalistas, romancistas, poetas e cartunistas, no final de mais uma semana de trabalho. Com o passar dos anos o local de reunião mudou várias vezes e o número de pessoas diminuiu por morte ou alteração de residência. Agora somos só sete, o mais velho com cerca de setenta e cinco anos e o mais novo perto, muito perto, dos sessenta.
É o único evento masculino que frequento consciente e voluntariamente. De semanal, aos poucos passou a anual; às vezes é quase a memória dum evento. Ao longo dos anos, também o tom se alterou. Grita-se menos e ouve-se mais, há menos bazófia e rivalidade, mais travessura e benevolência. Hoje em dia ninguém fuma nem vai com a firme intenção de se embebedar, coisa que antigamente, só por si, já valia a pena. Precisamos de uma sala só para nós, e não por arrogância ou medo de que as melhores réplicas nos sejam roubadas por curiosos, mas porque metade são surdos — uns colocam abertamente o aparelho no momento em que se sentam, outros ainda se recusam a admiti-lo. Perdemos cabelo, precisamos de óculos; as próstatas dilatam lentamente e o autoclismo ao virar da escada farta-se de trabalhar. Mas no geral estamos bem-dispostos e ainda trabalhamos todos.
A conversa segue caminhos familiares: mexericos, negócio e crítica de livros, música, filmes e política (alguns fizeram a ritual mudança à direita). Não é uma «mesa limão» e não me lembro que a morte, em termos gerais, tenha sido alguma vez discutida. Nem a religião, aliás, apesar de um de nós, P., ser católico. Durante anos, contámos sempre com ele para lançar a questão incómoda, moralmente persuasiva. Quando um dos convivas mais mulherengo se pôs a ruminar sobre a sua inflamada e recente dedicação à mulher, foi P. quem o interrompeu para perguntar: «É amor, em tua opinião, ou é da idade?» (e a resposta encontrada foi que, infelizmente, devia ser da idade).
Desta vez, porém, temos um assunto de doutrina que queremos apresentar a P. O novo papa — alemão — acaba de anunciar a abolição do Limbo. Primeiro pedimos um esclarecimento: sobre o que era, onde era, quem é que para lá ia e se havia alguém excluído. Há um breve efeito na pintura, em particular na de Mantegna (embora o Limbo nunca fosse um tema popular e não deva constituir grande perda para eventuais pintores católicos que ainda por aí andem). Constatamos a mutabilidade destes destinos finais: até o Inferno foi sendo desclassificado ao longo do tempo, tanto em probabilidade como em «infernalidade». Concordamos afavelmente que «O Inferno são os outros» de Sartre é um absurdo. Mas o que realmente queremos perguntar a P. é se, e até que ponto, ele acredita na realidade desses destinos; e se, especificamente, acredita no Paraíso. «Sim», responde. «Espero que sim. Espero que exista o Paraíso.» Mas, para ele, tal crença está longe de ser francamente consoladora. Explica que lhe é doloroso pensar que, se a eternidade e o Paraíso da sua fé existem, isso pode implicar a separação face aos seus quatro filhos, que abandonaram todos a religião na qual foram educados.
E não só em relação a eles: também tem de pensar em ficar separado da que é sua mulher há mais de quarenta anos. Mas temos, diz, de esperar a graça divina. Está longe de ser certo que os crentes declarados serão necessariamente salvos, ou que as boas ações dos não crentes e apóstatas não lhes permitirão reunir-se com cônjuges e pais que, apesar de serem crentes, estão longe da perfeição. P. dá então um pormenor conjugal que, até aí, eu desconhecia. A sua mulher E. fora educada na fé anglicana e quando era estudante, aos treze anos, mandaram-na viver — à maneira de Daniel — no antro ateu do filósofo A.J. Ayer. Depressa ela perdeu a fé e nem quarenta anos de exemplo conjugal conseguiram abalar-lhe o agnosticismo.
Nesta altura, é proposto um referendo sobre a crença numa vida futura. Dos seis que restam, cinco e três quartos não acreditam; o representante da fração chama à religião «vigarice cruel», mas confessa que «não se importava que fosse verdade». Mas se em décadas passadas isto poderia levar-nos a zombar afetuosamente do nosso amigo católico, temos agora a sensação de estarmos muito mais perto do vazio em que acreditamos, enquanto ele, ao menos, tem uma esperança moderada no Céu e na salvação. Parece-me — embora sobre isto não tenha havido referendo — que o invejamos em silêncio. Não acreditamos, insistimos em não acreditar durante décadas, nalguns casos durante mais de meio século; mas não gostamos do que vemos e os nossos recursos para lidar com isso não são tão bons como poderiam ser.
Não sei se P. ficaria consolado, ou alarmado, se eu lhe citasse Jules Renard (Journal, 26 de janeiro de 1906): «Acredito de bom grado em tudo o que quiserem, mas a justiça deste mundo não me tranquiliza propriamente sobre a justiça no outro. Receio que Deus continue com os disparates: a acolher os maus no Céu e a despachar os bons para o Inferno.» Mas o dilema do meu amigo P. — não conheço ninguém que faça cálculos tão precisos e angustiados sobre a sua possível vida futura — faz-me reconsiderar algo que sempre defendi com demasiada ligeireza (fi-lo umas páginas atrás). Os agnósticos e os ateus, que observam a religião de fora, têm tendência a não se impressionar com crenças balofas. De que serve a fé se nós e ela não formos sérios — seriamente sérios —, se a religião não nos encher, governar, colorir e sustentar a vida? Mas sério, na maior parte das religiões, significa invariavelmente punitivo. E assim queremos para os outros o que não quereríamos para nós.
Seriedade: eu não gostaria nada, por exemplo, de ter nascido nos Estados Pontifícios, por volta de 1840. A educação era tão desencorajada, que só dois por cento da população sabia ler; os padres e a polícia secreta dirigiam tudo; os «pensadores» de toda a espécie eram considerados uma classe perigosa, enquanto «a descrença em tudo o que não fosse medieval levou Gregório XVI a proibir a intrusão do caminho de ferro e do telégrafo nos seus domínios». Não, tudo isto tem um ar «sério» da maneira mais errada. E depois há o mundo decretado no Syllabus de 1864, de Pio IX, no qual ele reclamava para a Igreja o controlo sobre toda a ciência, cultura e educação, enquanto rejeitava a liberdade de culto para as outras fés. Não, disso também não gostaria. Primeiro atacam os dissidentes e heréticos, depois as outras religiões, a seguir pessoas como eu. E quanto à sorte das mulheres na maior parte dos credos…
A religião tende para o autoritarismo, como o capitalismo tende para o monopólio. E se pensamos que os papas são um alvo fácil — ou entronizado —, pensemos em alguém tão pouco papal quanto um dos seus famosos inimigos: Robespierre, o Incorruptível, adquiriu pela primeira vez relevo nacional em 1789, com um ataque à luxúria e apego aos bens materiais da Igreja Católica. Num discurso aos Estados Gerais, exortou o clero a reencontrar a austeridade e a virtude dos primeiros cristãos, pelo meio óbvio de vender todos os bens e distribuir o produto dessa venda aos pobres. A Revolução, sugeria ele, teria gosto em ajudar, caso a Igreja se mostrasse relutante.
Quase todos os chefes revolucionários foram ateus ou seriamente agnósticos; e o novo regime depressa se livrou do Deus católico e dos seus representantes locais. Robespierre, porém, foi a exceção, como deísta que considerava quase insano o ateísmo numa figura pública. O seu vocabulário político misturava-se com o vocabulário teológico. Numa frase sonante, declarou que «o ateísmo é aristocrático»; já a ideia de um Ente Supremo que vigia a inocência humana e protege a nossa virtude — e, provavelmente, sorri quando cabeças não virtuosas rolam — «não podia ser mais democrática». Robespierre até citou (a sério) a máxima (irónica) de Voltaire: «Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo.» Com tudo isto poderíamos imaginar que, quando a Revolução introduzisse um sistema de fé atualizado, o extremismo do que ela substituía seria evitado; seria racional, pragmático, até liberal. Mas a invenção de um Ente Supremo novo e resplandecente levou a quê? No começo da Revolução, Robespierre presidiu à chacina dos padres; no final, presidiu à chacina dos ateus.
Com vinte e poucos anos, li muito Somerset Maugham. Admirava o pessimismo lúcido e a geografia ordenada das suas histórias e romances; e também as reflexões sensatas sobre a arte e a vida em livros como Exame de Consciência e A Writer’s Notebook. Agradava-me ser espicaçado e chocado pela sua veracidade e pelo seu cinismo civilizado. Não invejava ao escritor o dinheiro, os smokings ou a casa na Riviera (embora não me importasse de ter a sua coleção de arte); o que lhe invejava era o conhecimento do mundo. Sabia tão pouco, e envergonhava-me da minha ignorância. No meu segundo trimestre em Oxford, decidira desistir das Línguas Modernas e estudar coisas mais «sérias», Filosofia e Psicologia. O meu professor de Francês, um afável estudioso de Mallarmé, inquiriu cortesmente as razões da minha decisão. Dei-lhe duas. A primeira era prosaica (literalmente: a rotina semanal de verter nacos de prosa inglesa para francês e vice-versa), a segunda mais dominante. Como, perguntei, podiam esperar que eu compreendesse ou tivesse qualquer opinião razoável duma peça como a Fedra, quando tinha só uma experiência longínqua das emoções vulcânicas lá representadas? Ele fez-me um sorriso irónico e pedante. «Bem, quem de entre nós pode alguma vez dizer que a tem?»
Nesse tempo eu tinha uma caixa com fichas verdes, nas quais copiava epigramas, graças, excertos de diálogos e aforismos que valia a pena guardar. Alguns deles impressionam-me agora enquanto generalizações espaventosas que a juventude (como é natural) aprova. Mas também há isto, duma fonte francesa: «O conselho dos velhos é como o sol de inverno, dá luz mas não aquece.» Dado que alcancei a idade de dar conselhos, penso que isso pode ser profundamente verdadeiro. E havia dois aforismos de Maugham que, durante anos, tiveram eco em mim, provavelmente porque nunca deixei de os questionar: o primeiro era a afirmação de que «A beleza é uma chatice». O segundo, do Capítulo 77 do Exame de Consciência (a informação está numa ficha verde), dizia: «A grande tragédia da vida não é os homens perecerem, mas deixarem de amar.» Não consigo lembrar-me da minha reação na altura, mas suspeito que terá sido: «Fala por ti, velho.»
Maugham era um agnóstico que achava que na vida o melhor estado de espírito era a resignação aliada ao humor. No Exame de Consciência, enumera os vários argumentos pouco convincentes — da causa primeira, do desígnio, da perfeição — que persuadiram outras pessoas da realidade de Deus. Mais plausível do que esses, em sua opinião, era o argumento há muito caído em desuso, e consensu gentium, «do consenso geral». Desde os primórdios da humanidade, a grande maioria das pessoas, incluindo os mais ilustres e os mais sábios, de culturas muito diferentes, desenvolveu algum tipo de crença num Deus. Como é que um instinto tão generalizado podia existir sem uma possibilidade de satisfação?
Apesar de toda a sua experiência e conhecimento do mundo — e apesar de toda a sua fama e dinheiro —, Maugham não conseguiu conservar o espírito de resignação bem-humorada. A sua velhice não foi nada serena: foi só espírito vingativo, testamentos hostis e glândulas de macaco. O corpo e a libido conservaram-se vigorosos, enquanto o coração endureceu e o espírito começou a declinar; tornou-se um homem rico e vazio. Se quisesse acrescentar uma adenda ao seu próprio conselho invernoso e frio, teria sido: a outra tragédia da vida é que não morremos na altura própria.
No entanto, enquanto Maugham estava lúcido organizou um encontro do qual, infelizmente, não há registo pormenorizado, nem sequer o plano mais rudimentar. Em épocas de devoção, príncipes e burgueses ricos tinham o hábito de chamar padres e prelados, para os tranquilizarem quanto à certeza do Paraíso e das recompensas que as suas preces e oferendas pecuniárias deviam assegurar-lhes. O agnóstico Maugham fazia agora o contrário: convocou A.J. Ayer, o filósofo mais intelectual e socialmente em voga do seu tempo, para lhe garantir que a morte era mesmo final, e que nada, mas mesmo nada se seguiria. A necessidade dessa garantia podia ser explicada por uma passagem do Exame de Consciência. Nela, Maugham relata como perdeu a fé em Deus quando era jovem, mas ficou ainda durante algum tempo com o medo instintivo do Inferno; foi preciso mais um encolher de ombros metafísico para o desalojar. Se calhar ainda continuava a olhar por cima do ombro.
Ayer e a mulher, a romancista Dee Wells, chegaram à Villa Mauresque em abril de 1961 para essa dádiva singularíssima e muito comovente. Se fosse um conto ou uma peça de teatro, os dois protagonistas poderiam começar por se sondar mutuamente e procurar estabelecer as regras do encontro; depois a narrativa evoluiria para a cena clássica no estúdio de Maugham, provavelmente na segunda noite, a seguir ao jantar. Copos de brande seriam servidos, agitados e cheirados; poderíamos equipar Maugham com um charuto e Ayer com um maço de cigarros franceses enrolados em papel amarelo. O romancista enumeraria as razões por que há muito tempo deixara de crer em Deus; o filósofo confirmaria a sua exatidão. O romancista podia invocar sentimentalmente o argumento e consensu gentium; o filósofo desmontá-lo-ia, sorridente. O romancista podia querer saber porque é que, mesmo sem Deus, não podia ainda, paradoxalmente, haver Inferno; o filósofo — refletindo de si para si que aquele medo podia conter vestígios de culpa homossexual — serená-lo-ia. Os copos de brande voltariam a encher, e então, a fim de completar a sua apresentação (e justificar o bilhete de avião) o filósofo apresentaria as provas mais recentes e mais lógicas da não existência de Deus e da finitude da vida. O romancista levantar-se-ia um pouco cambaleante, sacudiria alguma cinza do smoking e sugeriria que se juntassem às senhoras. De novo em boa companhia, Maugham declarar-se-ia profundamente satisfeito e ficaria alegre, quase brincalhão, durante o resto da noite; os Ayers trocariam olhares entendidos.
(Um filósofo profissional, ao considerar esta cena imaginária, poderia protestar contra a vulgarização grosseira da verdadeira opinião de Ayer. O professor Wykeham8 achava que toda a linguagem religiosa era essencialmente inverificável; assim, para ele, a afirmação «Deus não existe» era tão desprovida de sentido como a afirmação «Deus existe», não sendo nenhuma delas filosoficamente demonstrável. Ao que o escritor poderia responder invocando a necessidade literária; e também contrapor que, já que neste caso falava a um leigo e benfeitor, Ayer teria omitido as questões mais técnicas.)
Mas como a vida é isto, ou melhor, os vestígios dela a que os biógrafos têm acesso, não temos qualquer prova dessa audiência privada. Talvez tenha havido só uma conversa tranquilizadora, rápida e jovial à mesa do pequeno-almoço. Isto daria um conto melhor (mas peça não): a grande questão despachada em poucas frases entre o ruído dos talheres, talvez em contraponto com a discussão paralela sobre a atividade social do dia: quem queria ir às compras a Nice e qual o sítio exato, ao longo da Grande Corniche, onde o Rolls Royce de Maugham os levaria para almoçar. Mas, de qualquer modo, a discussão necessária aconteceu, Ayer e a mulher regressaram a Londres, enquanto Maugham, após essa rara absolvição profana, seguiu caminho em direção à morte.
Há alguns anos, traduzi as notas que Alphonse Daudet começou a escrever quando soube que a sua sífilis atingira o estado terciário e lhe traria inevitavelmente a morte. A dada altura, no texto, começa a despedir-se daqueles que ama: «Adeus, mulher, filhos, família, coisas do meu coração…» E acrescenta: «Adeus, meu querido eu, agora tão vago e indistinto.» Não sei se conseguiremos despedir-nos antecipadamente de nós próprios. Conseguiremos perder, ou pelo menos reduzir a sensação persistente de sermos especiais, até que já pouco haja para perder e menos ainda para deixar saudade? Mas o paradoxo, é claro, é o «eu» ficar encarregado de se reduzir a si próprio. Tal como o cérebro é o único instrumento que temos para investigar o funcionamento do cérebro. Tal como a teoria da morte do autor foi inevitavelmente enunciada… por um autor.
Perder ou, pelo menos, reduzir o «eu». Apresentam-se dois estratagemas. Primeiro, perguntar quanto vale, na escala habitual das coisas, esse «eu». Porque é que o universo terá necessidade de que ele continue a existir? Este «eu» já foi contemplado com várias décadas de vida e, na maior parte dos casos, já se reproduziu; como pode ser tão importante que justifique mais anos? Além disso, imaginem como esse «eu» se tornaria maçador, tanto para mim como para os outros, se continuasse indefinidamente (ver Bernard Shaw, autor de Back to Methuselah; ver também Bernard Shaw, velho, exibicionista incorrigível e cansativo publicitário de si próprio). Segundo estratagema: ver a morte do «eu» pelos olhos dos outros. Não dos que farão luto por nós e nos chorarão, nem dos que saberão da nossa morte e erguerão por instantes o copo pensando em nós; nem dos que dirão «Ótimo!» ou «Nunca gostei dele» ou «Que exagero, falarem tanto dele». Ver antes a morte do «eu» do ponto de vista dos que nunca ouviram falar de nós — e que, aliás, são quase todos. Um desconhecido morre: poucos o choram. É esse o nosso obituário aos olhos do resto do mundo. Por isso, quem somos nós para obedecer ao nosso egoísmo e fazer espalhafato?
Esta sabedoria glacial pode convencer por instantes. Quase fiquei convencido, enquanto escrevia o parágrafo anterior. Só que a indiferença do mundo raramente reduziu o egoísmo de alguém. E o julgamento do universo quanto ao nosso valor raramente coincide com o nosso. E nós temos dificuldade em acreditar que, se continuássemos a viver, maçaríamos os outros e a nós próprios (há tantas línguas estrangeiras e instrumentos musicais para aprender, tantas carreiras a experimentar e países para viver e pessoas para amar, e depois podemos sempre recorrer ao tango e ao esqui de fundo e à arte da aguarela…). E o outro obstáculo é que o simples facto de pensarmos na nossa individualidade, que antecipadamente choramos, reforça o sentimento da própria individualidade; abrimos assim um buraco cada vez maior, que acabará por ser o nosso túmulo. A própria arte que eu pratico também se opõe à ideia do adeus sereno a um eu reduzido. Seja qual for a conceção estética do escritor — de subjetiva e autobiográfica a objetiva, em que o autor fica oculto — o eu tem de ser reforçado e definido para produzir a obra. Assim, podemos dizer que, ao escrever esta frase, dificulto um pouco mais a mim próprio a tarefa de morrer.
Ou podem vocês dizer: «Vá, despacha-te lá com isso — morre e desaparece, e leva contigo o teu asqueroso eu artístico.» É o último Natal antes do meu sexagésimo aniversário, e há semanas o website belief.net («Conheça Solteiros Cristãos na Sua Zona»; «Conselhos de Saúde e Felicidade diariamente na Sua Caixa de Mensagens») perguntou a Richard Dawkins ou, como os subscritores do site passaram a tratá-lo, «Senhor Paradoxal», sobre o desespero que as implicações do darwinismo suscitam em alguns. Ele responde: «Se é verdade que isso faz com que as pessoas se sintam desesperadas, paciência. O universo não nos deve condolências nem consolação; não nos deve uma agradável sensação íntima de bem-estar. Se é verdade, é verdade, e o melhor é aprendermos a viver com isso. Morre e desaparece, é mesmo assim.» É claro que Dawkins tem razão com este argumento. Mas Robespierre também tinha: «O ateísmo é aristocrático.» E o tom altivo faz lembrar os partidários da linha dura, os vingadores do antigo cristianismo. O universo não foi organizado por Deus para nosso conforto. Não gostamos? Paciência. Tu — alma não batizada — vai para o Limbo. Tu — masturbador blasfemo — já para o Inferno, para ti não existe casa de recuo nem cartão para sair da prisão. Nunca. Tu — marido católico — vem cá; vocês — filhos apóstatas e esposa que ficou em casa do ateu Ayer — para ali. Népia para vos confortar. Jules Renard imaginou um Deus assim, de terreiro militar, que lembraria constantemente aos que conseguissem enfim chegar ao Céu: «Vocês sabem que não estão aqui para se divertir.»
«Cresçam», diz Dawkins. Deus é um amigo imaginário. Quando morremos, morremos. Se queremos sentir reverência, contemplemos a Via Láctea com um telescópio. Neste momento, seguramos um caleidoscópio de criança contra a luz e fingimos que os losangos coloridos foram lá postos por Deus.
Cresçam. A 17 de julho de 1891, Daudet e Edmond de Goncourt discutiram durante um passeio matinal a ínfima probabilidade de uma vida futura. Por muito que desejasse voltar a ver o adorado e falecido irmão Jules, Edmond tinha a certeza de que somos «totalmente aniquilados na morte», somos «criaturas efémeras que só duram mais uns dias do que aquelas cuja vida é um dia só». Apresentou então um argumento original, baseado no número, como o e consensu gentium de Maugham, mas com uma conclusão contrária: mesmo que existisse Deus, esperar que a divindade providenciasse uma segunda vida após a morte para cada membro da raça humana era impor-lhe uma tarefa de contabilidade excessiva, enorme.
Talvez isto seja mais engraçado do que convincente. Se somos capazes de conceber um Deus, então a capacidade de lembrar, contabilizar, cuidar (e ressuscitar) cada um de nós é, penso eu, o mínimo que podemos esperar em matéria de competência. Não, o argumento mais convincente não provém da incapacidade de Deus, mas sim da nossa. Como diz Maugham, na sua primeira nota do ano de 1902, em A Writer’s Notebook: «Os homens, banais e medíocres, não me parecem talhados para enfrentar o feito descomunal da vida eterna. Com as suas pequenas paixões, pequenas virtudes e pequenos vícios, estão bastante bem adaptados ao mundo de todos os dias; mas o conceito de imortalidade é demasiado vasto para seres moldados em escala tão pequena.» Antes de se tornar escritor, Maugham estudara Medicina e vira morrer doentes pacífica ou tragicamente: «E nunca vi, no último momento, nada que sugerisse que o seu espírito era eterno. Morrem como morre um cão.»
Objeções possíveis: 1. Os cães também fazem parte da criação divina (e também são o Seu anagrama)9. 2. Porque é que um médico, que se concentra no corpo, havia de detetar a localização do espírito? 3. Porque é que a imperfeição humana excluiria a possibilidade duma vida espiritual futura? Quem somos nós para decidir que não a merecemos? Não se trata justamente da esperança de aperfeiçoamento, da salvação pela graça? É certo que somos medíocres, é certo que o caminho a percorrer é longo, mas não é essa a ideia? Senão para que serve um Paraíso? 4. Posição de recurso singeriana: «Se é que a sobrevivência está prevista…»
Mas Maugham tem razão: morremos como morrem os cães. Ou — devido aos avanços da medicina desde 1902 — morremos tão bem tratados e sedados quanto cães que tivessem boas apólices e seguros de saúde morreriam. Mas sempre caninamente.
Durante a minha infância no subúrbio londrino, tínhamos uma telefonia preta e branca, de baquelite, em cujos botões eu e o meu irmão não estávamos autorizados a mexer. O meu pai encarregava-se de ligar o aparelho, sintonizá-lo e certificar-se de que aquecia a tempo. Depois pegava por vezes no cachimbo, enchia-o e calcava-o, antes de riscar e soltar a chama do fósforo Swan Vesta. A minha mãe puxava do tricô ou da costura e às vezes consultava o Radio Times, na sua capa amovível de couro lavrado. A telefonia emitia as opiniões perfeitas dos convidados de Any Questions? — deputados loquazes, bispos mundanos, profissionais sérios como A.J. Ayer e sábios amadores, autodidatas. A minha mãe outorgava-lhes vistos exclamativos e aprovadores — «Faz todo o sentido» — ou cruzes de reprovação — desde «Imbecil!» até «Devia ser abatido». De outras vezes a telefonia debitava The Critics, um bando de críticos literários suaves, que falavam interminavelmente de peças que nunca veríamos e de livros que nunca entravam lá em casa. Eu e o meu irmão ouvíamos com uma espécie de tédio aturdido que, do presente, via já o futuro: se era neste dar e receber de opiniões que consistia a idade adulta, então ela parecia-nos não só inatingível como francamente indesejável.
Durante a minha adolescência na periferia de Londres, a telefonia ganhou um rival: um enorme televisor usado, comprado em leilão. Dentro dum móvel de nogueira, com portas duplas e inteiras que escondiam a sua função, tinha o tamanho dum pequeno armário e absorvia grandes quantidades de cera líquida. Em cima estava a Bíblia familiar, desproporcionada como o televisor e igualmente enganadora. Porque era a Bíblia doutra família, com os nomes deles, não os nossos, inscritos na primeira página. Também fora comprada em leilão e nunca fora aberta exceto quando o pai, todo satisfeito, a consultava para resolver palavras cruzadas.
As cadeiras estavam agora voltadas noutra direção, mas o ritual não mudara. O cachimbo seria fumado e apareceria a costura, ou talvez o estojo de manicura: lima, dissolvente de verniz, adesivo para unhas partidas, base, secante. O cheiro a verniz lembra-me por vezes as maquetas de aviões que eu construía mas, quase sempre, a minha mãe a arranjar as unhas. E em particular um momento emblemático da minha adolescência. Eu e os meus pais estávamos a ver uma entrevista com John Gielgud — ou melhor, a vê-lo transformar sem esforço as perguntas do interlocutor em pretextos para anedotas subtis, em que o alvo era ele próprio. Os meus pais gostavam de teatro, desde as peças de amadores às do West End, e certamente tinham visto algumas vezes Gielgud do galinheiro. A sua voz foi, durante meio século, um dos mais belos instrumentos nos palcos londrinos: uma voz sem força agreste mas de requintada versatilidade, do género que a minha mãe admirava, tanto por razões sociais como teatrais. Enquanto Gielgud revelava mais uma das suas reminiscências delicadas e ligeiramente despropositadas, apercebi-me dum ruído fraco mas insistente, como se o meu pai tentasse discretamente acender um fósforo, sempre em vão. As raspadelas secas sucediam-se, como um grafite sonoro a riscar a voz de Gielgud. Era, é claro, a minha mãe a limar as unhas.
O pequeno armário da televisão era mais divertido do que a telefonia, pois continha séries de filmes de cobóis: The Lone Ranger, naturalmente, mas também Wells Fargo, com Dale Robertson. Os meus pais preferiam combate para adultos, como Field Marshal Montgomery On Command In Battle, um programa em seis partes em que o general explicava como perseguira os Alemães pela Europa toda, desde o Norte de África até à sua rendição nas matas do Lüneberg; ou, como lembrou o meu irmão recentemente: «O pequeno Monty a preto e branco, a saracotear-se, execrável.» Havia igualmente The Brains Trust, uma espécie de versão para estudantes finalistas — ou seja, ainda mais estúpida — de Any Questions?, em que A. J. Ayer também era protagonista. Em conjunto, a família via programas de vida selvagem: Armand e Michaela Denis, com um sotaque belga cómico e casacos de safari cheios de bolsos; o comandante Cousteau de barbatanas; David Attenborough ofegante na floresta. Nesse tempo, os espectadores tinham de estar muito atentos, pois as criaturas monocromáticas movimentavam-se, camufladas, sobre um fundo monocromático de savana, fundo marinho ou selva. Hoje em dia tudo nos é facilitado, com a oferta da cor e do grande plano, e podemos ver com olhos de Deus toda a complexidade e beleza dum universo sem Deus.
Os pinguins-imperadores têm estado na moda, ultimamente; no cinema e na televisão os comentários em voz off incitam-nos ao antropomorfismo. Como podemos resistir à sua condição bípede encantadora e inábil? Vemos como descansam ternamente no peito uns dos outros, encobrem maternalmente um precioso ovo entre os pés, partilham a procura de alimento como nós partilhamos as compras do supermercado. Vemos como todo o grupo se junta para resistir à tempestade de neve, fazendo prova de altruísmo social. Estes pinguins-imperadores da Antártida sazonalmente monogâmicos e dedicados às crias, que dividem tarefas e criam os filhos em conjunto, não se parecem estranhamente connosco? Talvez; mas só na medida em que nos assemelhamos a eles de forma banal. Passamos tão facilmente como eles por criaturas de Deus e estamos, como eles, sujeitos aos impulsos implacáveis da evolução. E dado que assim é, o que pensar novamente da sugestão que o espanto, face ao universo natural mas vazio, substitui plenamente o espanto face às obras dum amigo imaginário que criámos para nós? Chegados à consciência de nós próprios enquanto espécie, não podemos voltar a ser pinguins ou outra coisa qualquer. Dantes, o espanto era o sentimento de gratidão balbuciante pela magnificência dum criador, ou o terror abjeto pela sua capacidade de provocar choque e temor. Agora, sozinhos, temos de pensar para que serve o nosso espanto sem Deus. Se não pode ser só ele, mais puro e mais verdadeiro. Deve ter alguma função prática, alguma utilidade biológica, como a de salvar ou prolongar a vida. Se calhar existe para nos ajudar a procurar outro lugar para viver, no dia em que tivermos destruído irremediavelmente o nosso planeta. Mas, em qualquer dos casos, como pode a redução não reduzir?
Uma pergunta e um paradoxo. A nossa história viu a ascensão gradual, embora turbulenta, do individualismo: da multidão ainda animal, da sociedade escrava, da massa de seres incultos controlada por padres e por reis até aos grupos mais livres, em que o indivíduo tem mais direitos e liberdades — direito a procurar a felicidade, reflexão e realização pessoal e satisfação dos desejos. Ao mesmo tempo, enquanto nos livramos das regras do padre e do rei, enquanto a ciência nos ajuda a entender as condições mais verdadeiras em que vivemos, enquanto o nosso individualismo se expressa de maneira mais grosseira e egoísta (para que serve a liberdade se não para isso?), descobrimos também que essa individualidade, ou ilusão de individualidade, é menor do que imaginávamos. Descobrimos com surpresa, tal como diz Dawkins de forma memorável, que somos «máquinas de sobrevivência, autómatos cegamente programados para preservar as moléculas egoístas chamadas “genes”». O paradoxo é que o individualismo — o triunfo dos artistas e cientistas livres-pensadores — nos conduziu a um estado de consciência em que podemos agora ver-nos como unidades de obediência genética. A minha noção adolescente da construção do eu — essa esperança britânica e vagamente existencialista da autonomia do eu — não podia estar mais longe da verdade. Eu pensava que o processo penoso do crescimento acabava com um homem só e de pé, finalmente — Homo erectus de corpo inteiro, sapiens com toda a sapiência — um tipo que agora fazia estalar o chicote por sua conta e risco. Esta imagem (torno-a um pouco melodramática, pois tais assomos de consciência e autoprojecção eram sempre inseguros e provisórios) tem de ser substituída pelo sentimento de que, longe de ter um chicote e de o fazer estalar, eu sou a ponta do chicote e o que me faz estalar é uma trança longa e inevitável de material genético, que não pode ser sacudida ou rejeitada. A minha «individualidade» ainda pode ser sentida e geneticamente demonstrável; mas pode ser mesmo o contrário da realização pela qual outrora a tomava.
É esse o paradoxo; eis a questão. Crescemos; trocamos o antigo sentimento de espanto por um novo: espanto face ao processo fortuito e cego que fortuita e cegamente nos produziu; não ficamos deprimidos com isso, como alguns ficariam, mas extasiados como o próprio Dawkins; apreciamos as coisas que Dawkins enumera como sendo as que fazem com que a vida valha a pena — música, poesia, sexo, amor (e ciência) — e talvez também a prática da resignação eivada de humor, que Somerset Maugham advogava. Fazemos tudo isso e lidamos melhor com o facto de morrer? Morreremos melhor, eu morrerei melhor, Richard Dawkins morrerá melhor do que os nossos antepassados genéticos, há centenas ou há milhares de anos? Dawkins manifestou uma esperança: «Quando eu estiver a morrer, gostava que me tirassem a vida com anestesia geral, exatamente como se fosse um apêndice doente.» Muito claro, mas ilegal; além de que a morte tem um modo obstinado de nos negar as soluções que imaginamos para nós próprios.
Do ponto de vista médico, e consoante o lugar do planeta onde habitamos, morremos certamente melhor e de forma menos canina. Excluamos isso. Excluamos também as coisas que poderíamos confundir com uma boa morte, como, por exemplo: não ter mágoas nem remorsos. Se aproveitámos o tempo, se assegurámos o futuro dos nossos dependentes e se temos poucos motivos de tristeza, ser-nos-á mais suportável pensar na vida passada. Mas outra coisa é enfrentar sem temor o que temos mesmo ali, à nossa frente: extinção total. Vamos saber lidar melhor com isso?
Não vejo razão para tal. Não vejo por que razão a nossa inteligência e a nossa lucidez tornariam as coisas melhores. Por que haviam esses genes, em cuja servidão silenciosa habitamos, de nos poupar o mínimo terror? Qual seria o seu interesse? Provavelmente nós não receamos a morte só por ela própria, mas porque isso nos é útil — ou é útil aos nossos genes egoístas, que não serão transmitidos se não recearmos suficientemente a morte; se cairmos, como outros já caíram, na armadilha da camuflagem natural do tigre; ou se comermos a planta amarga que as nossas papilas gustativas nos ensinaram — ou aprenderam por experiências e erros fatais — a evitar. Qual é, para esses novos donos, a possível utilidade ou vantagem do nosso bem-estar no leito de morte?
«Temos de estar à altura do destino, ou seja, impassíveis como ele. À força de dizer “É assim! É assim!”» e de contemplar o buraco negro, acalmamos.» A experiência de Flaubert do buraco negro começou cedo. O pai era cirurgião hospitalar e a família vivia por cima do estabelecimento; Achille Flaubert vinha quase sempre diretamente da mesa de operações para a mesa de jantar. O jovem Gustave subia a uma latada e ficava a ver o pai ensinar aos estudantes de Medicina a maneira de dissecar cadáveres. Via corpos cobertos de moscas e estudantes a pousarem com naturalidade os charutos acesos sobre os membros e os troncos que estavam a retalhar. Achille erguia os olhos, via a cara do filho à janela e, com o escalpelo, mandava-o embora. Uma morbidez pós-romântica infetou o adolescente; mas ele nunca perdeu a necessidade realista nem a exigência de olhar para o lugar de onde outros desviam os olhos. Era tanto um dever humano como um dever de escritor.
Em abril de 1848, tinha Flaubert vinte e seis anos, o amigo literário da sua juventude, Alfred Le Poittevin, morreu. Num memorando privado que acaba de ser divulgado, Flaubert testemunhou a maneira como via aquela morte e se via a observá-la. Velou o amigo morto durante duas noites consecutivas; cortou um anel de cabelo para a jovem viúva de Le Poittevin; ajudou a envolver o corpo na mortalha; sentiu o mau cheiro da decomposição. Quando os cangalheiros chegaram com o caixão, beijou o amigo na fronte. Dez anos depois, ainda lembrava esse momento: «Depois de beijarmos um cadáver na testa, fica-nos sempre alguma coisa nos lábios, uma amargura distante, um travo de vazio que nada apagará.»
Não foi essa a minha experiência depois de beijar a fronte da minha mãe; mas nessa altura eu tinha o dobro da idade de Flaubert e talvez o gosto amargo já estivesse nos meus lábios. Vinte e um anos após a morte de Le Poittevin, Louis Bouilhet, o amigo literário da maturidade de Flaubert, morreu; de novo ele redigiu um memorando privado, onde descreveu as suas ações e reações. Estava em Paris quando recebeu a notícia; voltou a Ruão; foi a casa de Bouilhet e abraçou a companheira do poeta morto. Podíamos pensar, se a contemplação do buraco negro resultasse, que a experiência anterior tornaria esta mais suportável. Mas Flaubert descobriu que não tolerava ver, velar, abraçar, amortalhar ou beijar o amigo a quem ele, por ser tão chegado, chamara uma vez «o meu testículo esquerdo». Passou a noite no jardim e dormiu duas horas no chão; e evitou a presença do amigo até o caixão já fechado ser levado de casa. No memorando, comparou especificamente a sua capacidade de enfrentar as duas mortes: «Não ousei vê-lo! Sinto-me mais fraco do que há vinte anos… Falta-me firmeza interior. Sinto-me gasto.» Para Flaubert, a contemplação do buraco negro não gerava calma, mas exaustão nervosa.
Quando eu andava a traduzir as notas de Daudet sobre a morte, dois amigos sugeriram, em separado, que devia ser um trabalho deprimente. De maneira nenhuma: achei estimulante aquele exemplo sério e adulto de contemplação do buraco negro — o olhar exato, a palavra exata, a recusa de engrandecer ou banalizar a morte. Quando, aos cinquenta e oito anos, publiquei uma coleção de contos que falavam dos aspetos menos serenos da velhice, perguntaram-me se não seria prematuro eu abordar tais temas. Quando mostrei as primeiras cinquenta páginas do livro à minha amiga íntima (e leitora atenta) H., ela perguntou, apreensiva: «Mas isto ajuda?»
Ah, a falácia terapêutica e autobiográfica! Por bem-intencionada que seja, irrita-me tanto como o hipotético desejo dos mortos irrita o meu irmão. Acontece na nossa vida uma coisa má — ou, no caso da morte, já está programada; escrevemos sobre ela; e sentimo-nos melhor em relação a essa coisa má. Em circunstâncias muito específicas, locais, posso imaginar que resulte. Jules Renard, Journal, 26 de setembro de 1903: «A beleza da literatura. Perco uma vaca. Escrevo sobre a morte dela e isso dá-me o suficiente para comprar outra vaca.» Mas resulta em sentido mais lato? Talvez com certas espécies de autobiografia: temos uma infância penosa, ninguém gosta de nós, escrevemos sobre isso, o livro é um êxito, ganhamos uma data de dinheiro e as pessoas gostam de nós. Uma tragédia que acaba bem! (Mas por cada momento destes à Hollywood tem de haver vários assim: temos uma infância penosa, ninguém gosta de nós, escrevemos sobre isso, o livro é impublicável e as pessoas continuam a não gostar de nós.) Mas com a ficção ou qualquer outra arte transformadora? Não sei porque é que havia de resultar nem porque é que o artista havia de querer que resultasse. Brahms descreveu os seus derradeiros intermezzi para piano como «as canções de embalar de todas as minhas lágrimas». Mas não acreditamos que lhe tenham servido de lenço de assoar. Nem o facto de escrever sobre a morte diminui ou aumenta o medo que tenho dela. Mas, quando estou desperto e vigilante na escuridão profética, envolvente, tento enganar-me com a ideia de que há pelo menos uma vantagem temporária. «Isto não é só mais um dos acessos habituais de timor mortis», digo a mim mesmo. «É pesquisa para o teu livro.»
Flaubert disse: «Temos de aprender tudo, até a falar e a morrer.» Mas não temos muita oportunidade de praticar a segunda. Também nos tornámos mais céticos em relação às mortes exemplares do género que Montaigne enumerou: cenas em que alguém revela dignidade, coragem e preocupação com os outros, profere as últimas palavras consoladoras e o triste evento desenrola-se sem interrupção burlesca. Daudet, por exemplo, morreu sentado à mesa de jantar, rodeado pela família. Ingeriu umas colheres de sopa e tagarelava feliz sobre a peça em que trabalhava, quando se ouviu o estertor da morte e ele caiu para trás na cadeira. Foi esta a versão oficial, e parece próxima da definição do seu amigo Zola de une belle mort — ser esmagado de repente, qual inseto sob um dedo de gigante. Até aí era verdade. Mas os redatores dos obituários não registaram o que aconteceu logo a seguir. Tinham sido chamados dois médicos e, durante hora e meia — hora e meia — tentaram a respiração artificial por um método que estava então na moda, a tração rítmica da língua. Como não resultou, o que não admira, mudaram para uma forma primitiva de desfibrilação elétrica, também sem sucesso.
Suponho que há nisto uma rude ironia profissional — sendo a langue o que deu fama a Daudet e sendo a langue aquilo que os médicos puxaram na tentativa de o salvar. Talvez ele (até) tivesse gostado. Suponho que até ao momento em que morreu, foi uma boa morte — sem contar, é claro, com os tormentos da sífilis que a antecederam. George Sand morreu simples e lucidamente, de forma encorajadora, na tranquilidade pastoral da sua casa em Nohant, a olhar as árvores que ela própria plantara havia muitos anos. Também foi uma boa morte — sem contar com as dores do cancro incurável que a precederam. Sou mais inclinado a acreditar na boa morte de Georges Braque, sobretudo porque se assemelha à sua arte (mas isto pode ser sentimentalismo). O seu morrer caracterizou-se pela «calma conseguida mais pelo domínio de si próprio do que pela apatia». Para o fim, quando já tinha falhas de consciência, pediu a paleta; e morreu «sem sofrer, calmamente, de olhar fixo até ao último instante nas árvores do seu jardim, cujos ramos mais altos se viam das grandes janelas do estúdio».
Não espero tanta sorte, nem tanta calma. Olhar para as árvores plantadas por nós? Só plantei uma figueira e uma groselheira, e nenhuma delas é visível da janela do quarto. Pedir a paleta? Estou em crer que serei desobedecido se, nos últimos instantes, pedir a minha máquina de escrever elétrica, uma IBM 196c tão pesada, que duvido que a minha mulher consiga levantá-la. Imagino que vou morrer mais ou menos como o meu pai, no hospital, a meio da noite. Imagino que uma enfermeira ou um médico dirão que «parti calmamente» e que alguém esteve comigo até ao fim, quer tenha estado ou não. Imagino que a minha partida será precedida de dores fortes, medo e exasperação face à linguagem imprecisa ou eufemística dos que me rodeiam. Espero que quem receber o saco do lixo com a minha roupa não descubra lá dentro um par de cuecas castanhas, com tiras de velcro, que nunca foram usadas. Talvez as minhas calças ainda venham a habitar um banco de parque ou algum lar sinistro durante uma ou duas épocas após a minha morte.
Encontro isto no meu diário, escrito há mais de vinte anos:
As pessoas dizem sobre a morte: «Não há nada a temer.» Dizem-no depressa, em tom casual. Ora vamos lá dizê-lo outra vez, lentamente e com ênfase: «Não há NADA a temer.»
Jules Renard: «A palavra mais verdadeira, mais exata, mais cheia de significado é a palavra “nada”.»
Quando deixamos o espírito deambular pelas circunstâncias da nossa própria morte, há geralmente uma atração magnética para o pior ou para o melhor cenário. As minhas piores conjeturas envolvem normalmente enclausuramento, água e um período de tempo a enfrentar a certeza da extinção iminente. Há, por exemplo, o cenário do ferry que se vira: a bolsa de ar, a escuridão, a água a subir lentamente, os gritos dos outros mortais e a luta para poder respirar. Depois há a versão solitária: amarrado na mala dum carro (talvez o nosso), enquanto os captores vão duma caixa multibanco a outra e então, quando finalmente o nosso cartão é recusado, a queda súbita e vertiginosa da margem do rio ou da escarpa sobre o mar, a pancada na água e o gluglu voraz que nos aguarda. Ou a versão selvagem, análoga, mas mais improvável: ser apanhado por um crocodilo e arrastado debaixo de água, perder os sentidos e recuperá-los num baixio acima da linha de água, no antro do crocodilo, e perceber que acabámos de nos transformar no conteúdo da sua despensa. (Caso duvidemos, estas coisas acontecem.)
Na minha fantasia, o melhor caso dependia dum diagnóstico médico que me dava tempo suficiente e suficiente lucidez para escrever o último livro, aquele que incluiria todos os meus pensamentos sobre a morte. Embora eu não soubesse se iria ser ou não ficção, já planeara a primeira linha e anotara há muitos anos: «Vamos então esclarecer esta coisa da morte.» Mas qual é o médico que dá o diagnóstico que convém às nossas exigências literárias? «Bem, há uma notícia boa e uma notícia má.» «Diga-me francamente, doutor, preciso de saber. Quanto tempo?» «Quanto tempo? Digamos que… umas duzentas páginas. Duzentas e cinquenta, se tiver sorte ou trabalhar depressa.»
Não, não vai acontecer assim, por isso é melhor ter o livro feito antes do diagnóstico. Claro, há uma terceira possibilidade (que alimento desde a primeira página): começamos o livro, estamos quase em metade — mais ou menos aqui, por exemplo — e recebemos o diagnóstico! Talvez a narrativa esteja um pouco frouxa, nessa altura, e então entram as dores no peito, o desmaio, as radiografias, a tomografia… Não sei se não parecerá um bocado forçado. (O grupo de leitores conferencia: «Sempre pensei que no fim ele morria — quer dizer, depois do fim. Vocês não?» «Não, eu pensei que podia ser rábula. Nem tinha a certeza que estivesse doente. Achei que podia ser — como se diz? — metaficção.»
Provavelmente também não vai acontecer assim. Quando imaginamos a nossa própria morte, seja no melhor ou no pior cenário, temos tendência a imaginar que morremos lucidamente, que morremos conscientes (demasiado conscientes) do que se passa, capazes de nos expressar e compreender os outros. Até que ponto conseguimos imaginar-nos a morrer — e o longo crescendo para o acontecimento — num estado de incoerência e confusão? Com a mesma dor e o mesmo medo original, é claro, mas com uma camada de agitação adicional. Não saber bem quem é quem, não saber quem está vivo ou morto, não saber onde nos encontramos. (Mas igualmente apavorados.) Lembro-me de ir ao hospital visitar uma amiga velha e demente. Ela voltava-se para mim e, na voz branda e delicada que eu tanto amara, dizia coisas do género: «Acho que serás lembrado como um dos piores criminosos da história.» Depois passava uma enfermeira e o seu humor mudava de repente. «Claro», assegurava-me, «aqui as criadas são tremendamente boas.» Às vezes eu deixava passar tais observações (para bem dela e meu), mas outras vezes corrigia-as. «São enfermeiras…» A minha amiga lançava-me um olhar matreiro, de surpresa face à minha ingenuidade. «Algumas são», admitia, «mas a maior parte são criadas.»
O meu pai teve uma série de tromboses que, ao longo dos anos, o transformaram de homem direito e da minha altura, primeiro numa figura curvada sobre um andarilho, de cabeça inclinada na posição estranha a que o aparelho obriga, depois em humilhado ocupante duma cadeira de rodas. Quando o pessoal dos serviços sociais veio avaliar o seu grau de incapacidade, explicaram que ele iria precisar, e eles pagariam, dum corrimão que o ajudasse a ir da cama à porta. A minha mãe desprezou a sugestão: «Não vou ter essa coisa horrível no quarto.» Afirmava que ia estragar a decoração do chalé; mas a sua recusa era, desconfio agora, uma maneira oblíqua de negar o que acontecera — e o que podia também esperá-la. Uma coisa que autorizou, para minha surpresa, foi uma alteração à cadeira do meu pai. Era a robusta Parker Knoll verde, de espaldar, onde o meu avô lia o Daily Express e confundia o estômago ruidoso da minha avó com o telefone. As quatro pernas foram aumentadas com encaixes de metal, para que o meu pai pudesse sentar-se e levantar-se mais facilmente.
A lenta deterioração física foi acompanhada pela erosão da fala: na articulação e na memória das palavras. (Ele tinha sido professor de Francês e agora a sua langue estava a desaparecer.) Revejo-o a arrastar os pés e a empurrar lentamente o andarilho da sala de estar até à porta da entrada, quando se despedia de mim: um lapso de tempo que parecia interminável e onde todos os tópicos de conversa soavam a falso. Eu fingia demorar-me a olhar com interesse uma jarra de flores sobre o aparador, ou parar para ver novamente um bibelô que sempre detestara. Chegávamos finalmente os três ao tapete da entrada. Um dia, as palavras de despedida do meu pai foram: «Da próxima vez traz… traz…» Depois ficou confuso. Eu não sabia se havia de esperar ou menear afirmativamente a cabeça, fingindo compreender. Mas a minha mãe disse com firmeza: «Traz quem?», como se a falibilidade mental do meu pai fosse uma coisa passível de ser corrigida por perguntas mais bem feitas. «Traz… traz…», a sua expressão era agora de frustração e fúria para com o próprio cérebro. «Traz quem?», repetia a minha mãe. Neste momento a resposta era tão óbvia e desnecessária que eu só queria fugir porta fora, saltar para o carro e arrancar. Subitamente, o meu pai encontrou maneira de contornar a afasia. «Traz… a mulher do Julian.» Ah, alívio! Mas não completamente. A minha mãe, num tom que aos meus ouvidos nada tinha de simpático, disse: «Ah, referes-te à P.», transformando assim o meu pai professor no aluno que chumbara no teste.
Ele ficava na soleira, curvado sobre o andarilho e o seu cesto de metal estúpido e vazio, preso aos manípulos do guiador; a cabeça torcida e levantada, como que a tentar impedir a ação da gravidade sobre o maxilar inferior. Eu despedia-me e percorria a dezena de metros até ao carro, quando — inevitavelmente — a minha mãe se «lembrava» de qualquer coisa, fazia à pressa a curva da pequena álea de alcatrão (o seu passo rápido acentuava a imobilidade do meu pai) e batia no vidro. Eu baixava-o contra vontade, adivinhando o que ela ia dizer. «O que é que achas? Piorou, não foi?» Eu olhava lá para trás, para o meu pai, que sabia que falávamos dele e sabia que eu sabia que ele sabia. «Não», respondia eu, geralmente por lealdade para com o meu pai, já que a única alternativa seria berrar: «Ele teve uma maldita trombose, mãe, o que é que espera, voleibol?» Mas ela achava que a minha resposta diplomática era uma prova de desatenção e, enquanto eu tirava lentamente o pé da embraiagem e avançava no asfalto, agarrava-se à janela e dava exemplos da deterioração que eu não conseguira ver.
Não quero dizer que fosse má para ele; mas a sua maneira de lidar com a doença do meu pai era sublinhar a sua própria contrariedade e o seu sofrimento, enquanto insinuava que o sofrimento do meu pai era um pouco mais por culpa dele do que as pessoas pensavam. «Claro, quando cai entra em pânico», queixava-se. «Eu não consigo levantá-lo, por isso tenho de chamar alguém da aldeia para ajudar. Mas ele fica em pânico porque não consegue levantar-se.» Má nota. Depois havia a questão da máquina de pedalar, que o fisioterapeuta do hospital providenciara. Ele devia sentar-se na Parker Knoll e fazer mover o pequeno fragmento de bicicleta reluzente. Se fingir que pedalava sentado na poltrona lhe parecia absurdo, ou se simplesmente decidira que não fazia qualquer diferença no seu estado, não sei. «É tão teimoso», queixava-se a minha mãe.
É claro que, quando chegou a vez dela, foi igualmente teimosa. O seu primeiro ataque foi muito mais incapacitante do que o primeiro do meu pai: ficou fortemente paralisada do lado direito e a fala foi mais afetada do que a dele. Mostrava-se muito coerente quando estava furiosa com o que acontecera. Com a mão boa, levantava o braço afetado. «Claro», dizia, por instantes igual ao que sempre fora, «esta coisa está completamente inútil.» Aquela coisa traíra-a, tal como o meu pai fizera. E então, tal como o meu pai, ela tratava os fisioterapeutas com ceticismo. «Empurram-me e puxam-me», queixava-se. Quando eu lhe dizia que empurravam e puxavam para a ajudarem a recuperar, respondia em tom satírico: «Sim, senhor.» Mas era admiravelmente firme e desprezava o que considerava falsos encorajamentos. «Dizem-nos para fazer uma coisa e depois dizem: “Muito bem.” É tão estúpido, eu sei que não está muito bem.» Por isso deixou de colaborar. A maneira de continuar a ser ela própria era troçar do otimismo profissional e recusar a suposta reabilitação.
A minha sobrinha C. foi visitá-la. Telefonei a perguntar como correra e como é que a mãe estava. «Completamente passada quando lá cheguei mas, assim que começámos a falar de maquilhagem, completamente normal.» Desconfiado da aspereza juvenil na avaliação da minha sobrinha, perguntei, talvez com certa severidade, de que forma é que ela se mostrara «passada». «Estava muito zangada contigo. Disse que a deixaste pendurada para ir jogar ténis durante três dias seguidos e a deixaste no corte a secar.» Sim, passada.
Não que a minha sobrinha se livrasse da censura. Houve uma vez em que ficámos sentados durante vinte minutos a aguentar um silêncio enigmático e furioso e a recusa obstinada em nos olhar. Por fim, a mãe virou-se para C. e disse: «És mesmo uma troca-tintas. Percebes porque é que eu tinha de te dar uma descasca, não percebes?» Talvez estas censuras fantasiosas lhe dessem a ilusão de controlar ainda a sua vida. Censuras que se estendiam também ao meu irmão, cuja ausência em França não o desculpava nem defendia. Cerca de duas semanas após a primeira trombose, eu e a minha mãe falávamos — ou melhor, falava eu, já que o discurso dela era praticamente incompreensível — sobre a forma como eu ia tratar dos assuntos enquanto ela estivesse no hospital. Enumerei as pessoas que poderia consultar e acrescentei que, se houvesse algum problema, podia sempre contar com o «excelente cérebro» do meu irmão. Lutando e parando entre cada palavra, a nossa mãe conseguiu formular a frase perfeita: «O excelente cérebro do teu irmão não pensa em mais nada senão em trabalho.»
Apesar de meses de não colaboração obstinada no hospital, recuperou parte da fala mas não o movimento. Como não era do género de se iludir, anunciou que não conseguia voltar a viver no chalé. Uma enfermeira chamada Sally veio avaliar a sua capacidade de funcionar na casa de repouso para onde C. e eu esperávamos levá-la. A mãe afirmava que já inspecionara o local e que o achava «catita»; mas suspeito que efabulara sobre ele depois de ler um folheto. Disse à enfermeira Sally que decidira tomar as refeições sozinha no quarto; não podia comer com os outros residentes porque não mexia o braço direito. «Oh, não seja tonta», disse a enfermeira. «Isso não tem importância.» A resposta da minha mãe foi imperiosa: «Quando eu digo que tem importância, é porque tem.» «Alguma vez foi professora?», respondeu Sally com argúcia.
Quando eu era novo, tinha pavor de voar. O livro que escolhia para ler no avião era o que achava apropriado para ser encontrado sobre o meu cadáver. Lembro-me de levar Bouvard e Pécuchet para um voo entre Paris e Londres, tentando convencer-me que, após o inevitável acidente: a) ainda haveria um corpo identificável sobre o qual o encontrariam; b) o Flaubert em livro de bolso francês sobreviveria ao impacto e às chamas; c) a minha mão milagrosamente intacta (embora talvez cortada) ainda o seguraria, com o indicador hirto a marcar uma passagem particularmente apreciada, que a posteridade lembraria. Uma história plausível… E eu, naturalmente, fiquei demasiado assustado durante o voo para me concentrar num romance cujas verdades irónicas, aliás, tendem a escapar aos jovens leitores.
Fiquei em grande parte curado do medo no aeroporto de Atenas. Tinha vinte e tal anos e chegara adiantado para o voo de regresso a casa — tão adiantado (tão ansioso por partir) que, em vez de várias horas, cheguei um dia e várias horas mais cedo. O bilhete não podia ser trocado; eu não tinha dinheiro para voltar à cidade e procurar um hotel; por isso acampei ali, no aeroporto. E volto a lembrar-me do livro — o companheiro de acidente — que levava: um volume do Quarteto de Alexandria de Durrell. Para matar o tempo, subi ao terraço panorâmico do terminal. Dali vi descolar avião atrás de avião e aterrar avião atrás de avião. Alguns, provavelmente, pertenciam a companhias duvidosas e eram pilotados por bêbados; mas nenhum se despenhou. Vi dezenas e dezenas de aviões que não se despenharam. E esta demonstração visual, mais do que estatística, da segurança de voo convenceu-me.
Poderia tentar de novo este estratagema? Se olhasse a morte mais de perto e com mais frequência — se arranjasse emprego numa agência funerária ou como empregado da morgue — poderia de novo, através da familiaridade, perder o medo? Possivelmente. Mas há aqui uma falácia que o meu irmão, como filósofo, se apressaria a sublinhar. (Embora provavelmente eliminasse a frase descritiva. Quando lhe mostrei as primeiras páginas deste livro, recusou a minha hipótese de que era «como filósofo» que desconfiava da memória. «É “como filósofo” que penso tudo isso? Então também é “como filósofo” que eu penso que nenhum vendedor de carros em segunda mão é de fiar.» Talvez; mas só a objeção já parece uma objeção de filósofo.) A falácia é esta: no aeroporto de Atenas, eu vi milhares e milhares de passageiros a não morrer. Numa agência funerária ou na morgue, eu confirmaria a minha pior suspeita: que a taxa de mortalidade da raça humana não se desvia um ponto dos cem por cento.
O melhor caso relativamente à morte, que eu descrevi, tem outro defeito. Imaginemos que o médico diz que viveremos o suficiente e com suficiente lucidez para completar o derradeiro livro. Quem não arrastaria o trabalho o mais possível? Xerazade nunca esgotava as histórias. «As gotas de morfina?» «Ah, não, ainda faltam uns capítulos. O facto é que há muito mais a dizer sobre a morte do que eu imaginava…» E assim o nosso desejo egoísta de sobrevivência agiria em detrimento da estrutura do livro.
Há alguns anos, um jornalista britânico, John Diamond, soube que tinha cancro e transformou a sua doença em crónica semanal. Condignamente, manteve o tom desenvolto que caracterizava o seu trabalho habitual; condignamente, confessou cobardia e pânico, a par da curiosidade e da eventual coragem. A narrativa parecia absolutamente autêntica: era aquilo que implicava o facto de viver com um cancro; e estar doente não tornava as pessoas diferentes nem as impedia de ter discussões conjugais. Como muitos outros leitores, eu encorajava-o em silêncio, semana a semana. Mas após um ano ou mais… bem, criava-se inevitavelmente alguma expectativa no decorrer do relato. Cura milagrosa! Enganei-vos a todos! Não, nenhum desses finais servia. Diamond tinha de morrer; e morreu devida e condignamente (em termos narrativos). Mas — como dizer? — um crítico literário severo poderia queixar-se de que à história faltava concisão, mais para o final.
Posso estar morto quando lerem esta frase. Nesse caso, quaisquer queixas sobre o livro não terão resposta. Por outro lado, agora podemos estar todos vivos (vocês por definição), mas vocês podem morrer antes de mim. Já tinham pensado nisso? Lamento falar no assunto, mas é uma possibilidade, pelo menos durante mais uns anos. Nesse caso, as minhas condolências aos vossos entes queridos. E, como diziam os convivas das sextas-feiras — ou nunca diziam, mas às vezes talvez pensassem — no restaurante húngaro: ou eu vou ao teu funeral, ou tu vais ao meu. Foi sempre assim, claro; mas este ou/ou sinistramente imutável torna-se mais definido e nítido à medida que os anos passam. Quanto a nós, supondo que não estou já definitivamente morto quando lerem isto, é mais provável, de facto, que vocês me vejam desaparecer do que o contrário. E ainda há aquela outra possibilidade — de eu morrer e deixar o livro a meio. O que seria insatisfatório para vocês e para mim — a menos que estivessem prestes a desistir no preciso momento em que a narrativa se interrompe. Eu até podia morrer a meio duma frase. Talvez mesmo a meio de uma pal
Estou a brincar. Mas não completamente. Nunca escrevi um livro, com exceção do primeiro, sem pensar que podia morrer antes de o completar. Tudo isto faz parte da superstição, do folclore, da mania ansiosa, do fetiche da profissão. Os bons lápis, as canetas de feltro, as esferográficas, os blocos, o papel, a máquina de escrever: necessidades que também correspondem objetivamente ao estado de espírito adequado. Que é criado pondo de lado tudo o que possa incomodar e perturbar, até só restar o que conta: eu, vocês, o mundo e o livro — e como torná-lo tão bom quanto possível. Lembrar-me da mortalidade (ou, mais exatamente, a mortalidade a fazer com que eu me lembre dela) é um estímulo útil e necessário.
Bem como os conselhos dos que já passaram pelo mesmo. Instruções, epigramas, máximas tomadas literal ou metaforicamente. Tanto William Styron como Philip Roth se conformaram ao preceito de Flaubert: «Sejamos regrados e normais na vida, como burgueses, para podermos ser violentos e originais na obra.» Talvez precisemos de nos libertar da apreensão face a futuras reações da crítica? Aqui Sibelius ajudar-nos-ia: «Nunca se esqueçam que não há uma única cidade na Europa que tenha uma estátua a um crítico.» Mas a minha preferida é a de Ford Madox Ford: «É fácil dizer que o elefante, por muito bom que seja, não é bom javali; porque a maior parte da crítica resume-se a isso.» Muitos escritores podiam tirar proveito desta frase de Jules Renard: «De quase todas as obras literárias se pode dizer que são grandes de mais.» Além disso, e por último, devem esperar ser mal-entendidos. Sobre isso, ainda Sibelius, com a instrução irónica e sentenciosa: «Desentendam-me corretamente.»
Quando comecei a escrever, impus a mim próprio a regra — que fazia parte da coordenação mental, da concentração, do aparato e carga psicológica — de escrever como se os meus pais estivessem mortos. Não porque quisesse especificamente usar ou abusar deles; mas o que não queria era pensar no que poderia ofendê-los ou agradar-lhes. (E nesse aspeto eles não eram só eles, representavam também amigos, colegas, amantes e os que invocavam javalis.) É estranho que eu, apesar de os meus pais terem morrido há anos, mais do que nunca precise agora desta regra.
Morrer a meio duma pal, ou a três quintos dum rom. O meu amigo romista Brian Moore também receava isso, mas por outra razão: «Porque há de aparecer um sacana que o vai acabar por nós.» Cá está o «preferimos o quê» do romancista. Preferíamos morrer a meio dum livro e que um sacana o acabasse por nós, ou deixar em aberto uma obra que nenhum sacana no mundo tivesse o menor interesse em acabar? Moore morreu enquanto escrevia um romance sobre Rimbaud. Que ironia: Rimbaud foi um escritor que garantiu que não morria a meio duma estrofe, a dois terços de um mo — quando abandonou a literatura meia vida antes de morrer.
A minha mãe, filha única que se tornou a única mulher numa família cujos membros masculinos tinham pouco instinto de comando, desenvolveu um egocentrismo que não diminuiu com a idade. Na viuvez, tornou-se ainda mais propensa ao monólogo do que no tempo em que uma resposta educada, terna e por vezes sarcástica saía da Parker Knoll. Inevitavelmente, tornou-se também mais repetitiva. Uma tarde eu estava sentado junto dela, com o espírito semiausente, quando ela me surpreendeu com uma ideia nova. Disse que refletira sobre as várias formas de decrepitude que talvez a aguardassem, e pensara se preferia ficar surda ou cega. Por um momento, ingenuamente, imaginei que me pedia opinião, mas ela não precisava de nenhum contributo externo: a surdez, disse-me, seria a sua escolha. Expressão de solidariedade com o pai e com os dois filhos? Nada disso. Fora assim que argumentara a questão, de si para si: «Se ficasse cega, como é que podia arranjar as unhas?»
A morte e o seu processo geram todo um questionário de «preferimos o quê». Para começar, preferíamos saber que estávamos a morrer, ou não saber? Preferíamos observar ou não observar? Aos trinta e oito anos, Jules Renard comentou: «Por favor, meu Deus, não me faças morrer muito depressa! Não me importo de ver como morro.» Escreveu isto a 24 de janeiro de 1902, no segundo aniversário do dia em que viajara de Paris para Chitry a fim de enterrar o irmão Maurice, um irmão que passou, em poucos minutos silenciosos, de fiscal de obras que se queixava do aquecimento central a cadáver com a cabeça em cima da lista telefónica parisiense. Um século mais tarde, pediram ao historiador de medicina, Roy Porter, que refletisse sobre a morte: «Bem, acho interessante estarmos conscientes quando morremos, porque devemos passar pelas transformações mais extraordinárias. Pensar: “Agora estou a morrer…” Acho que gostava de estar plenamente consciente disso tudo. Porque senão estaremos a perder qualquer coisa.» Esta curiosidade terminal tem uma longa tradição. Em 1777, o fisiólogo suíço Albrecht von Haller foi assistido no leito de morte por um colega. Haller ia controlando o seu próprio pulso à medida que ele enfraquecia, e morreu como fisiólogo, com estas últimas palavras: «Meu amigo, a artéria deixou de bater.» No ano seguinte, Voltaire tomou igualmente o seu próprio pulso, até ao momento em que abanou lentamente a cabeça e, daí a minutos, morreu. Uma morte admirável — sem padre à vista — digna do catálogo de Montaigne. Não que impressionasse toda a gente. Mozart, então em Paris, escreveu ao pai: «Provavelmente já sabe que aquele herege mau e velhaco do Voltaire morreu como um cão, um animal — foi a recompensa!» Como um cão, de facto.
Preferimos recear a morte ou não a recear? Esta parece fácil. Então e esta? E se nunca tivéssemos pensado na morte, vivido a vida como se não houvesse amanhã (não há, de resto), gozado, trabalhado, amado a família e depois, quando finalmente fôssemos obrigados a admitir a nossa mortalidade, descobríssemos que esta nova consciência do ponto final no fim da frase significava que agora toda a história anterior não fazia qualquer sentido? Que, se tivéssemos percebido claramente no início que íamos morrer, e o que isso significava, teríamos vivido segundo princípios completamente diferentes?
E há ainda a situação oposta, talvez a minha: se vivêssemos até aos sessenta ou setenta anos, sempre a olhar para o buraco negro que não para de crescer e depois, à medida que a morte se acercava, descobríssemos que não há, afinal, nada a temer? E se começássemos a sentir satisfação em fazermos parte do grande ciclo da natureza (recebe, por favor, os meus átomos de carbono)? E se estas metáforas calmantes, de repente ou mesmo aos poucos, começassem a convencer-nos? O poeta anglo-saxónico comparou a vida humana a um pássaro que sai da escuridão, entra numa sala de banquete vivamente iluminada e sai de novo para a escuridão do outro lado: talvez esta imagem aquiete a nossa angústia de sermos humanos e mortais. Ainda não posso dizer que resulte para mim. É muito bonito, mas o meu lado pedante insiste em salientar que qualquer pássaro sensato que entrasse a voar numa sala de banquete acolhedora ficaria empoleirado nas traves o máximo de tempo que pudesse, em vez de sair logo a correr. Além de que o pássaro, na sua pré e pós-existência de cada lado da sala do festim, pelo menos voa, que é mais do que pode ou poderá dizer-se de nós.
Quando tive pela primeira vez a consciência de ser mortal, era simples: estávamos vivos, depois morríamos e dizíamos adeus à divindade: a Deus. Mas quem é que pode dizer como a idade nos afetará? Quando era um jovem jornalista, entrevistei o romancista William Gerhardie. Ele era então um octogenário fraco e acamado; a morte já não estava longe. A dada altura, tirou da mesa de cabeceira uma antologia sobre a imortalidade e mostrou-me um relato, muito sublinhado, duma experiência extrassensorial. Que era idêntica, explicou, a uma que tivera enquanto soldado na Primeira Guerra Mundial. «Eu acredito na ressurreição», disse simplesmente. «Acredito na imortalidade. Você acredita na imortalidade?» Fiquei embaraçosamente silencioso (e não me lembrei da minha própria experiência extrassensorial, quando era estudante). «Pois não, eu também não acreditava quando tinha a sua idade», acrescentou em tom simpático. «Mas agora acredito.»
Por isso talvez mude de ideias (mas duvido). O que é mais provável é que a escolha se baralhe. Vida versus Morte torna-se, como Montaigne salientou, Velhice versus Morte. Aquilo a que nós — ou eu — nos agarraremos não serão mais alguns minutos num confortável salão senhorial com cheiro a galinha assada e som alegre de pífaros e tambores, não serão mais uns dias e horas de vida real; serão mais uns dias e horas de decrepitude, espírito ausente, músculos gastos, incontinência urinária. «O que te faz pensar que o que tens agora é vida?», disse o impiedoso César a um antigo legionário. E, no entanto — ainda pior —, imaginemos esse corpo débil ainda mais receoso do aniquilamento do que quando era forte e saudável e podia distrair-se da contemplação desse aniquilamento com atividade física e mental, serviço social e a companhia de amigos. As divisões do espírito começam a fechar-se uma a uma, a lucidez desaparece, e a linguagem, e o reconhecimento dos amigos, e a memória também, trocada por um mundo fantasioso de troca-tintas e parceiros de ténis inconstantes. Tudo o que fica — a última parte do motor ainda com alguma força — é a divisão que nos faz recear a morte. Sim, esse bocadinho de atividade cerebral continua a trabalhar, a lançar baforadas de pânico, a enviar calafrios de terror para todo o sistema. Dão-nos morfina para a dor — depois talvez um pouco mais do que na verdade precisamos, e depois o excesso necessário — mas não há nada que possam dar-nos para impedir esse terrível grupo de células cerebrais de nos pregar um cagaço (talvez mesmo dessa cor) até ao fim. Poderíamos então lamentar o facto de alguma vez termos pensado, como Renard: «Por favor, meu Deus, não me faças morrer muito depressa!»
O escritor e encenador Jonathan Miller estudou Medicina. Apesar de ter dissecado corpos rígidos e manuseado aqueles, maleáveis e cor de cera, que o sopro da vida abandonara, já tinha mais de quarenta anos quando, como ele disse: «Comecei a pensar, espera aí — isto é uma coisa que um dia me vai acontecer.» Entrevistado aos cinquenta e tal anos, declarou-se ainda pouco inquieto com as consequências a longo prazo. «O medo de já não existir — não, não tenho nada disso.» O que confessou foi o medo do processo da morte: a agonia, o delírio, as alucinações torturantes e a família a lamentar-se e a preparar-se para a despedida. Parece-me uma boa descrição, mas não como alternativa, só como complemento ao medo verdadeiro e adulto de «já não existir».
Miller pensa, como Freud, que «não consegue realmente conceber, não consegue ver sentido no aniquilamento total». E assim, ao que parece, a sua capacidade de terror é transferida, primeiro para o processo e as humilhações da agonia, e em seguida para os vários estados possíveis de semiexistência ou quase existência, que podem ocorrer perto ou depois da morte. Ele receia «essa consciência residual que não se extingue totalmente» e imagina uma experiência extrassensorial em que vê o seu próprio funeral: «ou não o vê, de facto, pois está imobilizado no caixão». Consigo imaginar esta nova variante do velho medo de ser enterrado vivo, mas não consigo achá-lo particularmente sinistro. Se houver uma consciência residual que vê o nosso próprio funeral e se agita dentro do caixão, porque terá de ser necessariamente uma consciência que receia a clausura?
A maior parte de nós pensou ou disse sobre a morte: «Bem, depois se vê», enquanto reconhece a quase certeza de que nunca «veremos» o nada que imaginamos. Uma consciência residual poderá lá estar para nos dar a resposta. Poderá ser uma maneira suave de dizer que não. Poderá assistir pairando ao funeral ou à cremação, dizer adeus a este nosso corpo incómodo e à vida que existiu nele, e (supondo que ainda está de alguma forma ligada ou a representar o eu) permitir-nos sentir que aquilo que está a acontecer é adequado. Poderá produzir uma sensação calmante, um repouso merecido, uma consolação, uma doce «noite feliz», uma bebidazinha ontológica antes de adormecer.
Tenho uma amiga sueca, K., que uma vez, muito afável e delicadamente, murmurou a um amigo mútuo, que estava há muito tempo a morrer de cancro: «Está na hora de te deixares ir.» Sempre brinquei com ela dizendo que saberei que as coisas me estão a correr mal, quando ouvir aquela leve inflexão de voz e as muito ensaiadas palavras de advertência. Talvez a consciência residual que Miller receia acabe por se revelar útil e benéfica, um ajuste de contas proferido com ligeiro sotaque sueco.
O pássaro medieval sai da escuridão para o salão iluminado e volta às trevas. Um dos argumentos muito, muito sensatos contra a ansiedade da morte é: se não receamos e odiamos a eternidade que precedeu o nosso momento de vida iluminado e breve, porque havemos de sentir outra coisa pela segunda parte da escuridão? Porque, é claro, durante a primeira fase de trevas o universo — ou, pelo menos, uma parte dele muito, muito insignificante — evoluiu e deu lugar à criação duma coisa francamente interessante que, dispondo os seus genes de forma adequada e abrindo caminho através duma sucessão de antepassados simiescos, que manobravam utensílios primitivos e grunhiam, deu o salto e cuspiu as três gerações de mestres-escolas que me fizeram… a mim. Portanto, essa escuridão teve alguma finalidade — pelo menos, do meu ponto de vista egocêntrico; enquanto a segunda escuridão nada tem a seu favor.
Suponho que podia ser pior. Quase sempre pode — o que constitui fraca consolação. Podíamos temer o abismo pré-natal como tememos o abismo pós-morte. Estranho, mas não impossível. Nabokov, na sua autobiografia, descreve um «cronofóbico» que sentia pânico ao ver filmes caseiros dos meses anteriores ao seu nascimento: a casa onde ia habitar, a futura mãe debruçada à janela, um carro de bebé vazio à espera do ocupante. Quase nenhum de nós ficaria alarmado, mas sim alegre com tudo isto; o homem com fobia só via um mundo no qual ele não existia, uma terra sem ele. Nem constituía consolação o facto de essa ausência se mobilizar irresistivelmente para produzir a sua presença futura. Se essa fobia lhe reduziu o nível de ansiedade em relação ao pós-morte ou se, pelo contrário, o redobrou, Nabokov não diz.
Uma versão mais sofisticada do argumento do pássaro no salão vem de Richard Dawkins. Efetivamente, vamos todos morrer e a morte é absoluta e Deus uma ilusão, mas temos sorte, ainda assim. A maior parte das «pessoas» — a imensa maioria dos seres potenciais — nem sequer nascem, e o seu número é maior do que todos os grãos de areia de todos os desertos da Arábia. «O número de indivíduos possíveis que o nosso ADN permite… excede em grande escala o número de pessoas reais. Com tão mínimas probabilidades de existir, somos nós, vocês e eu, com o que temos de banal, que aqui estamos.» Porque é que isto me parece um fraco consolo? Pior do que isso, um desconsolo? Pensemos em todo o trabalho da evolução, em todos os felizes acasos cósmicos sem registo, em todas as tomadas de decisão, na dedicação familiar de tantas gerações, em todas as escolhas que acabaram por me produzir, a mim e ao meu carácter único. A minha banalidade também, e a vossa, e a de Richard Dawkins, mas uma banalidade única, uma banalidade assombrosamente improvável. Isto torna mais difícil, e não mais fácil, encolher os ombros e dizer filosoficamente: «Ah, pois, podíamos nunca cá ter vindo parar, por isso é melhor aproveitarmos esta oportunidade que a outros não foi dada.» Mas também é difícil, a menos que sejamos biólogos, pensar nos triliões geneticamente hipotéticos, que não nasceram, como «indivíduos potenciais». Não tenho dificuldade em imaginar um nado-morto ou um aborto como indivíduo potencial, mas todas as combinações possíveis que nunca chegaram a existir? Receio que a minha simpatia humana não chegue tão longe — as areias da Arábia estão para lá do meu alcance.
Por isso não posso ser filosófico. Os filósofos são filosóficos? Os lacónicos eram mesmo lacónicos, os espartanos realmente espartanos? Imagino que só relativamente. Com exceção do meu irmão, o único filósofo que conheço bem é G., o meu amigo obcecado pela morte que, aos quatro anos, levava sobre mim uma década de avanço em relação à consciência da morte. Ele e eu tivemos uma vez uma longa conversa sobre o livre-arbítrio. Como toda a gente — amador na e da minha própria vida —, achei sempre que tinha livre-arbítrio e acho que sempre agi como se o tivesse. Profissionalmente, G. explicou o meu engano. Salientou que, embora possamos pensar que somos livres e agir como queremos, não podemos determinar bem o que queremos (e se deliberadamente decidimos que «queremos querer» alguma coisa, há o problema habitual da regressão a um «querer» primevo). Há um momento em que as nossas vontades só podem resultar do inato e do adquirido. Por isso, a ideia de alguém ser verdadeira e absolutamente responsável pelos seus atos é indefensável; na melhor das hipóteses, podemos ter uma responsabilidade temporária, superficial — e até essa, com o tempo, se revelará um equívoco. G. poderia igualmente ter-me citado a conclusão de Einstein: «Um ser dotado de maior visão e de inteligência mais perfeita, ao ver o homem e os seus atos, sorriria da ilusão que ele tem de agir por sua vontade.»
A dada altura reconheci que perdera, embora continuasse a comportar-me exatamente da mesma maneira (o que, pensando melhor, poderia ser uma prova útil para o argumento de G.). G. consolou-me ao dizer que, embora não possamos, na sua opinião filosófica, ter livre-arbítrio, o facto de o sabermos não muda rigorosamente nada na maneira como nos comportamos ou deveríamos comportar-nos. E assim continuei a fiar-me nessa ilusória construção mental para me ajudar neste caminho mortal, até ao ponto em que nenhuma vontade minha, livre ou entravada, jamais voltará a operar.
Há o que sabemos (ou achamos que sabemos) ser verdade, há o que acreditamos ser verdade (fiando-nos naqueles em quem confiamos), e há depois a maneira como nos comportamos. A moral cristã ainda governa vagamente a Grã-Bretanha, mas os fiéis diminuem e os edifícios das igrejas passam inexoravelmente a monumentos históricos — que despertam em alguns «o desejo de ser sério» — e a apartamentos tipo loft, sem divisórias. Essa influência também se estende a mim: o meu sentido da moral é influenciado pelo ensinamento cristão (ou, mais propriamente, por um comportamento tribal pré-cristão codificado pela religião); e o Deus em que não creio mas que me falta é naturalmente o Deus cristão da Europa Ocidental e da América não fundamentalista. Não sinto falta de Alá ou de Buda, como não sinto falta de Ódin ou de Zeus. E sinto mais falta do Deus do Novo Testamento do que do Deus do Antigo Testamento. Sinto falta do Deus que inspirou a pintura italiana e os vitrais franceses, a música alemã e as salas do capítulo inglesas e os montes de pedras em ruínas nos promontórios celtas, que já foram guias simbólicos na escuridão e nas trevas. Vejo também que este Deus que me falta, este inspirador de obras de arte, se afigurará a alguns uma indulgência tão irrelevante como a tal «ideia pessoal de Deus» muito reivindicada, que acima critiquei. Além de que, se Deus existisse, Ele poderia perfeitamente achar frívolas e presunçosas tais celebrações da Sua existência, e objeto da divina indiferença, quando não castigo. Poderia achar Fra Angelico piroso e ver nas catedrais góticas tentativas arrogantes para O impressionar, através duma criação que não soube adivinhar o modo como Ele preferia ser venerado.
Os meus amigos agnósticos e ateus em nada se distinguem dos meus amigos declaradamente religiosos em matéria de honestidade, generosidade, integridade e fidelidade — ou no contrário. Isso é uma vitória para eles ou para nós? Quando somos novos pensamos que inventamos o mundo, tal como nos inventamos a nós; mais tarde, descobrimos até que ponto o passado nos domina e sempre dominou. Fugi ao que me parecia o aspeto decoroso e monótono da minha família para descobrir, quando envelheci, que a minha semelhança com o meu pai me surpreende cada vez mais. É a maneira como me sento à mesa, o ângulo do maxilar, a calvície incipiente e um riso amável, que produzo em especial quando não estou muito divertido: estas (e sem dúvida muitas mais que não deteto) são réplicas genéticas e não certamente expressões de livre-arbítrio. O meu irmão acha o mesmo: fala cada vez mais como o nosso pai, usa o mesmo calão e frases incompletas e vê-se a «falar exatamente como ele e até a arrastar os pés nos chinelos, como ele fazia». Também começou a sonhar com o pai — ao fim de sessenta anos em que nenhum dos progenitores lhe invadia o sono.
A minha avó, na fase da demência, julgava que a minha mãe era uma sua irmã que morrera há cinquenta anos. Já a minha mãe voltou a ver todos os parentes que conhecera na infância e que, solícitos, acorriam a saber dela. A seu tempo, a nossa família virá saber de mim e do meu irmão (por favor, não mandem a minha mãe). Mas o passado alguma vez chegou a largar a presa? Vivemos em larga medida segundo os preceitos duma religião em que já não acreditamos. Vivemos como criaturas de livre e puro arbítrio, quando os filósofos e biólogos evolucionistas nos dizem que é tudo uma grande ficção. Vivemos como se a memória fosse um depósito de bagagens bem construído e com pessoal eficiente. Vivemos como se a alma — ou espírito, ou individualidade, ou personalidade — fosse uma entidade identificável e localizável, e não uma história que o cérebro conta a si mesmo. Vivemos como se a natureza e a educação fossem pais iguais, quando a evidência sugere que a natureza tem a faca e o queijo na mão.
Chegaremos a compreender isto? Quanto tempo levará? Alguns cientistas pensam que nunca decifraremos por completo os mistérios da consciência porque, para compreendermos o cérebro, só podemos utilizar o próprio cérebro. Talvez nunca abandonemos a ilusão do livre-arbítrio, porque seria necessário um ato do livre-arbítrio que nos falta para abandonarmos tal crença. Continuaremos a viver como se fôssemos donos absolutos de cada uma das nossas decisões. (As várias retificações de gramática e sentido que fiz na última frase, tanto ao escrevê-la como ao fim de certo tempo e reflexão, como posso «eu» não acreditar que fui «eu» quem as fez? Como posso acreditar que essas palavras e este parêntese que se lhes segue e toda a elaboração que levo a cabo, e as gralhas ocasionais, e a palavra seguinte, completa ou abandonada-a-meio-porque-pensei-melhor e deixada como pal , não são emanações de um eu coerente que toma decisões literárias por um processo de livre-arbítrio? Se não for assim, a minha cabeça não consegue dar a volta a isto.)
Talvez para vocês seja mais fácil ou, se não para vocês, para as gerações que vierem depois de vocês morrerem. Se calhar eu — e vocês — parecer-lhes-emos os «tipos (e as miúdas) de antigamente, com as trapalhadas do costume» do poema de Larkin. Se calhar acharão curiosa e indulgente a moral meio assumida, meio elaborada segundo a qual vocês e eu parecemos acreditar viver. Quando a religião começou a declinar na Europa — quando os «hereges maus e velhacos» como Voltaire se encontravam em atividade — houve uma apreensão natural com respeito à moral. Num mundo perigosamente desgovernado, cada aldeia podia produzir o seu Casanova, o seu Marquês de Sade, o seu Barba Azul. Havia filósofos que, ao mesmo tempo que rejeitavam o cristianismo para satisfação própria e do seu círculo intelectual, pensavam que o camponês e o ajudante de taberna deviam ficar fora desse saber, não fosse a estrutura social ruir e o problema dos criados ficar completamente descontrolado.
Mas a Europa tropeçou no porém. E se o dilema agora parece pôr-se de forma ainda mais aguda — qual é o significado dos meus atos num universo vazio, onde ainda mais certezas estão minadas? Para quê portar-me bem? Porque não hei de ser egoísta e ganancioso e pôr toda a culpa no ADN? — os antropólogos e biólogos evolucionistas são capazes de oferecer algum conforto (talvez até mesmo aos crentes). Apesar do que as religiões possam dizer, estamos geneticamente programados para funcionar como seres sociais. O altruísmo é útil do ponto de vista da evolução (ah! — lá se vai a nossa virtude — outra ilusão); por isso, haja ou não um padre com uma promessa do Paraíso e uma ameaça de fogo do Inferno, os indivíduos que vivem em sociedade agem geralmente de forma muito semelhante. A religião já não faz as pessoas comportarem-se melhor nem pior — o que pode ser uma deceção tanto para o ateu aristocrático como para o crente.
Quando estudei pela primeira vez Literatura Francesa, fiquei intrigado com o conceito de acte gratuit. Tal como a entendi, a ideia era esta: para podermos afirmar que agora somos nós os responsáveis pelo universo, temos de praticar uma ação espontânea, para a qual não há motivo ou justificação aparente, e fora de toda a moral convencional. O exemplo que recordo é o de Os Subterrâneos do Vaticano de Gide, e consistia no ato gratuito de empurrar um desconhecido para fora dum comboio em movimento. Ato puro, como se vê (e também, vejo eu agora, suposta prova de livre-arbítrio). Eu não via, ou não via o suficiente. Dava comigo a pensar no infeliz lançado à morte em pleno campo francês. O assassínio — ou talvez o que os espíritos burgueses ainda atolados em cristianismo decidiram chamar de assassínio — como meio de demonstrar uma tese filosófica parecia demasiado… demasiado teórico, demasiado francês, demasiado repelente. De resto, o meu amigo G. dizia que o autor do ato gratuito teria querido enganar-se a si próprio (limitando-se a «querer querer» alguma coisa). E penso que, se a sua afirmação de livre-arbítrio era um engano, a minha reação também o foi.
Seremos como os pinguins-imperadores da Antártida, ou serão eles como nós? Nós vamos ao supermercado, eles percorrem quilómetros no gelo a deslizar e a cambalear até ao mar, em busca de alimento. Mas há um pormenor que os programas de vida selvagem omitem. Quando os pinguins se aproximam da água, vagueiam e observam. Estão perto da comida, mas também do perigo; o mar tem peixe, mas também tem focas. A sua longa viagem poderia resultar não em comer mas em ser comido — e, nesse caso, os rebentos que ficaram lá atrás com o grupo morreriam de fome e o seu próprio material genético acabaria. Então é isto o que os pinguins fazem: esperam que um dos seus, mais faminto ou mais ansioso, vá até onde o gelo termina e olhe o oceano nutritivo mas mortal, e depois, como um bando de suburbanos no cais duma estação de metro, lançam ao mar a ave imprudente. Pois, era só para experimentar! É assim que eles «são mesmo», os pinguins amorosos e antropomórficos! E, se ficamos chocados, eles comportam-se pelo menos de maneira mais racional, mais útil e até mais altruísta, do que o ator gratuito da nossa própria espécie, que atira um homem do comboio.
Esse pinguim não tem direito ao «preferimos o quê». É mergulhar ou morrer — às vezes mergulhar e morrer. E alguns dos nossos «preferimos o quê» revelam-se igualmente hipotéticos: maneiras de simplificar o impensável, de fingir que se controla o incontrolável. A minha mãe pensava muito seriamente se preferia ficar surda ou cega. Preferir de antemão uma incapacidade parecia uma maneira supersticiosa de eliminar a outra. Só que, neste caso, a «escolha» nunca se deu. A trombose não lhe afetou o ouvido nem a visão e, no entanto, ela nunca mais arranjou as unhas durante o tempo de vida que lhe restou.
O meu irmão ambiciona a morte do avô: fulminado por uma trombose quando jardinava. (Era muito cedo para plantar couves como Montaigne: tentava pôr o motor recalcitrante a trabalhar.) Ele teme os outros exemplos familiares: a senilidade longa e prolongada da avó, a reclusão lenta e humilhante do pai, os delírios semiconscientes da mãe. Mas há tantas outras possibilidades à escolha — ou escolhidas para nós; tantas portas diferentes, se bem que todas digam saída. Nesse aspeto, a morte é escolha múltipla, não é «preferimos o quê»; é pródiga e democrática nas ofertas.
Stravinsky disse: «Gogol morreu a gritar e Diaghilev morreu a rir, mas Ravel morreu aos poucos. Isso é o pior.» Tinha razão. Houve mortes de artistas mais violentas, algumas marcadas pela loucura, pelo terror e pelo absurdo mais banal (Webern atingido a tiro por um GI quando, educadamente, saía para fumar um charuto no alpendre), mas poucas tão cruéis como a de Ravel. O pior é que tinha havido uma estranha prefiguração, um pré-eco musical, na morte dum compositor francês da geração anterior. Emmanuel Chabrier sucumbira em 1894 a uma sífilis terciária, no ano a seguir à estreia em Paris da sua única tentativa de ópera séria, Gwendoline. Esta ópera — talvez a única cuja ação se passa na Grã-Bretanha do século XVIIII — levara dez anos a ser montada; nessa altura a doença de Chabrier estava na fase terminal e ele já não tinha o juízo todo. Na estreia, sentado no camarote, agradecia os aplausos e sorria, «quase sem saber porquê». Às vezes esquecia-se de que a ópera era sua e segredava a um vizinho: «É ótima, é mesmo ótima.»
Esta história é bem conhecida entre os compositores franceses da geração seguinte. «Horrível, não é?», dizia Ravel. «Ir a uma representação de Gwendoline e não reconhecer a sua própria música!» Lembro-me da minha amiga Dodie Smith, com muita idade, a quem perguntavam em tom afetuoso e animador: «Dodie, lembra-se que foi uma dramaturga famosa?» Ao que ela respondia: «Sim, acho que sim» — no tom que imagino o meu pai terá usado quando disse à minha mãe: «Acho que és a minha mulher.» Uma modista pode não reconhecer o seu próprio chapéu, um operário, as suas bandas sonoras, um escritor, as suas palavras, um pintor, a sua tela; já é muito doloroso. Mas ainda é pior, para quem assiste, um compositor não reconhecer as suas próprias notas.
Ravel morreu aos poucos — levou cinco anos — e isso foi de facto o pior. No início, o declínio por causa da doença de Pick (uma forma de atrofia cerebral), embora alarmante, era atípico. As palavras fugiam-lhe; a capacidade motora descontrolava-se. Pegava no garfo ao contrário; tornara-se incapaz de assinar o seu nome; já não sabia nadar. Quando saía para jantar, a governanta pregava-lhe a morada no casaco, por precaução. Mas depois a doença tornou-se específica e maligna e atacou o Ravel compositor. Foi a uma gravação do seu Quarteto de Cordas, sentou-se na sala de controlo, fez várias correções e sugestões. Depois de cada andamento estar gravado, perguntavam-lhe se queria voltar a ouvi-lo, mas ele recusava. Assim a sessão avançou depressa, e no estúdio ficaram satisfeitos por tudo ficar feito numa tarde. No final, Ravel voltou-se para o produtor (e o facto de adivinharmos o que disse não consegue atenuar o impacto): «Foi realmente muito bom. Lembre-me o nome do compositor.» De outra vez, foi a um concerto de música sua para piano. Ouviu com manifesto prazer mas, quando todos na sala se voltaram para o ovacionar, ele pensou que se dirigiam ao colega italiano que estava a seu lado e juntou ao deles o seu aplauso.
Ravel foi levado a dois grandes neurocirurgiões franceses. Outro «preferimos o quê». O primeiro achou a doença inoperável e disse que deviam deixar a natureza seguir o seu curso. O segundo teria concordado, se o paciente não fosse Ravel. Se bem que talvez houvesse uma leve hipótese — para ele mais uns anos, para nós um pouco mais de música (que é «a melhor maneira de digerir o tempo»)… E assim o crânio do compositor foi aberto e viram que os danos eram extensos e irreparáveis. Dez dias mais tarde, no hospital, com a cabeça envolta num turbante de ligaduras, Ravel morria.
Há cerca de vinte anos, perguntaram-me se queria ser entrevistado para um livro sobre a morte. Recusei porque, como escritor, não queria revelar coisas de que poderia vir a precisar mais tarde. Nunca li o livro quando saiu, talvez por medo supersticioso — ou racional — de que algum dos seus colaboradores tivesse expressado melhor o que eu tentava lentamente aprender a formular. Não há muito tempo, comecei cautelosamente a folhear o primeiro capítulo, uma entrevista com um certo «Thomas». Mas foi logo evidente, ao fim de uma página, que esse «Thomas» não era senão o meu velho amigo G., obcecado com a morte e exterminador do livre-arbítrio.
O primordial «preferimos o quê» em relação à morte (ainda que, uma vez mais, não tenhamos escolha) é ignorância ou conhecimento? Preferimos receber le réveil mortel ou continuar a dormir na ignorância almofadada? A pergunta pode parecer fácil: na dúvida, optar pelo conhecimento. Mas é o conhecimento que causa estragos. Como diz «Thomas»/G.: «Acho que as pessoas que não têm medo não sabem o que a morte significa… A teoria comum da filosofia moral é que é um grande infortúnio uma pessoa ser subitamente ceifada [na flor da vida]; mas parece-me que o infortúnio é saber que isso vai acontecer. Se acontecesse sem sabermos, não importava.» Ou, pelo menos, tornar-nos-ia mais parecidos com os pinguins: o ingénuo que se aproxima demasiado da água — e é empurrado através dum ato não gratuito — pode temer a foca mas não pode conceptualizar as perenes consequências da foca.
G. não tem dificuldade em compreender nem acreditar que os seres humanos, em toda a sua complexidade, se limitam a desaparecer para sempre. Faz tudo parte do «desregramento da natureza», tal como a microengenharia dum mosquito. «Penso que é a maneira de a natureza dizimar e delapidar descontroladamente os seus dons; com os seres humanos é ainda o mesmo género de desregramento. Estes cérebros e sensibilidades extraordinários, produzidos aos milhões e depois eliminados, desaparecidos na eternidade. Não penso que o homem seja um caso especial, penso que a teoria da evolução explica tudo. É uma bela teoria, se pensarmos, uma teoria maravilhosa e inspiradora, embora tenha consequências terríveis para nós.»
Este é cá dos meus! E talvez o sentido da morte seja como o sentido de humor. Todos pensamos que aquele que temos (ou não temos) está perfeito, é o apropriado para uma correta compreensão da vida. Os outros é que estão fora do compasso. Acho que o meu sentimento da morte — que parece exagerado a alguns dos meus amigos — é totalmente proporcionado. Para mim, a morte é o facto horrível que define a vida; se não tivermos permanente consciência dela, não podemos esperar compreender o que é a vida; se não soubermos e sentirmos que os dias de vinho e rosas são limitados, que o vinho acabará por saber a madeira e as rosas murcharão na água fedorenta antes de apodrecerem no lixo para sempre — incluindo o recipiente —, deixa de haver contexto para os prazeres e interesses que encontramos a caminho da sepultura. Mas eu não podia dizer outra coisa, não é? O caso do meu amigo G. é pior, e eu acho a sua obsessão excessiva, para não dizer doentia (ah, a atitude «saudável» no meio disto tudo, onde podemos encontrá-la?).
Para G. a nossa única defesa contra a morte — ou melhor, contra o perigo de não sermos capazes de pensar em mais nada — consiste em ter «preocupações a curto prazo, das que valem a pena». Também cita, para nos consolar, um estudo que mostra que o medo da morte diminui após os sessenta anos. Bom, cheguei lá antes dele e posso reportar que ainda estou à espera da benesse. Ainda uma noite destas voltei a ter um desses momentos angustiados e alarmantes, em que sou acordado à força, só, completamente só, bato com o punho na almofada e grito: «Oh! não. Oh! não. OH! NÃO» num queixume sem fim, em que o horror do momento — os minutos — dominam o que poderia parecer, a uma testemunha objetiva, uma representação chocante de exibicionismo e autopiedade. Pouco claro, também: pois o que às vezes me envergonha é a extraordinária falta de palavras descritivas ou compreensivas que me saem da boca. «Por amor de Deus, és escritor», digo a mim próprio. «As palavras são o teu trabalho. Não consegues melhor do que isto? Não consegues dominar a morte — bom, nunca irás dominá-la, mas não consegues ao menos protestar contra ela — de maneira mais interessante?» Sabemos que a extrema dor física afugenta a linguagem; é desencorajante saber que a dor mental faz o mesmo.
Li uma vez que Zola também acordava em sobressalto e, do sono, era projetado para um terror mortal. Aos vinte e tal anos, sem nada publicado, eu pensava nele com um sentimento fraterno — e também com apreensão: se esta coisa ainda acontece a um escritor mundialmente famoso com mais de cinquenta anos, então para mim não há muita hipótese de vir a melhorar com o tempo. A romancista Elizabeth Jane Howard disse-me uma vez que as três pessoas mais apavoradas com a morte que ela conhecera eram o seu ex-marido Kingsley Amis, Philip Larkin e John Betjeman. É tentador concluir que pode ser uma coisa de escritores, uma coisa de escritores homens, até. Amis defendia — o que era cómico, dada a sua biografia — que os homens eram mais sensíveis do que as mulheres.
Duvido muito que seja uma coisa específica dos homens e dos escritores. Eu acreditava, quando era «só» leitor, que os escritores, porque escreviam livros onde se encontrava a verdade, porque descreviam o mundo, porque perscrutavam o coração humano, porque captavam tanto o particular como o geral e eram capazes de os recriar a ambos de forma livre mas estruturada, porque compreendiam, deviam ser por isso mais sensíveis — e menos vaidosos, menos egoístas — do que as outras pessoas. Depois tornei-me escritor, comecei a encontrar outros escritores, observei-os e concluí que a única diferença entre eles e as outras pessoas, a única coisa em que eram melhores, é que eram melhores escritores. Podiam ser de facto sensíveis, perspicazes, sábios, saber generalizar e particularizar — mas só sentados à secretária e nos seus livros. Quando se aventuram no mundo, geralmente comportam-se como se tivessem deixado toda a compreensão do comportamento humano nos seus originais dactilografados. E também não são só os escritores. Em que medida é que os filósofos são sábios, na vida privada?
«Nem um pingo de sabedoria a mais por serem filósofos», responde o meu irmão. «Pior, na sua vida semiprivada são menos sábios, de longe, do que muitas outras espécies de académicos.» Lembro-me de uma vez ter pousado a autobiografia de Bertrand Russell num momento, não de descrença, mas de crença horrorizada. É assim que ele descreve o princípio do fim do seu primeiro casamento: «Uma tarde fui andar de bicicleta e de repente, quando passava por uma estrada no meio do campo, percebi que já não amava Alys. Até esse momento, não fazia sequer ideia de que o meu amor por ela estivesse a diminuir.» A única resposta lógica a isto, às suas implicações e modo de expressão, seria: afastem os filósofos das bicicletas. Ou talvez: afastem os filósofos do casamento. Reservem-nos para discutir a verdade com Deus. Para isso, eu queria Russell ao meu lado.
No meu sexagésimo aniversário, almoço com T., um dos meus poucos amigos religiosos. Ou um dos que simplesmente professam a fé? De qualquer modo, ele é católico, usa uma cruz ao pescoço e, para susto de algumas antigas namoradas, tem um crucifixo na parede por cima da cama. Sim, eu sei, parece mais religião do que profissão de fé. T. vai em breve casar com R., que poderá ou não ter o poder de tirar o crucifixo. Como é o meu aniversário, permito-me uma maior amplitude nas interrogações, por isso pergunto-lhe a razão (tirando o facto de ter sido educado como católico) pela qual acredita no seu Deus e na sua religião. Ele pensa um instante e responde: «Acredito porque quero acreditar.» Parecendo talvez um pouco o meu irmão, contraponho: «Se me dissesses: “Gosto da R. porque quero gostar da R.”, eu não ficaria muito bem impressionado e ela também não.» Como é o meu aniversário, T. abstém-se de me atirar o copo à cara.
Quando volto a casa, encontro um pequeno pacote na caixa do correio. A minha primeira reação é de ligeira irritação, porque fui bem explícito: «Não quero presentes», e esta amiga em particular, conhecida por dar muitos presentes, foi avisada mais que uma vez. O pacote contém um emblema de lapela que funciona a pilhas, com pontos luminosos encarnados e azuis, que formam as palavras 60 hoje. O que o torna não só aceitável, mas também faz dele o presente perfeito e transforma imediatamente a minha irritação em bom humor, são as palavras do fabricante, impressas na parte detrás do cartão: ATENÇÃO: PODE INTERFERIR COM PACEMAKERS.
A seguir ao meu aniversário, uma das (possíveis) «preocupações a curto prazo, das que valem a pena» é uma viagem profissional à América. A chegada a Nova Iorque — o percurso do aeroporto à cidade — implica a passagem por um dos maiores cemitérios que eu já vi. Agrada-me sempre, em parte, este ritual memento mori, provavelmente porque nunca fui capaz de amar Nova Iorque. Toda a efervescência da mais eternamente agitada e narcisista das cidades resume-se a isto: Manhattan satirizada na verticalidade compacta das pedras tumulares. No passado, reparava meramente na extensão destes cemitérios e na aritmética da mortalidade (uma tarefa para o Deus contabilista em que Edmond de Goncourt não conseguia acreditar). Agora, pela primeira vez, impressiona-me outra coisa: o facto de não haver lá ninguém. Estes cemitérios são como o campo moderno: hectares de vazio que se estendem em todas as direções. E se não esperamos certamente ver um camponês com uma foice, um cortador de sebes ou um tipo a limpar fossas, a total ausência de atividade humana que a agroindústria trouxe aos antigos prados, pastagens e campos ladeados de sebes é uma outra espécie de morte: como se os pesticidas tivessem matado também todos os agricultores. Do mesmo modo, nestes cemitérios de Queens, nada mexe, nem um corpo, nem uma alma. Claro, faz sentido: os ex-atarefados mortos não têm visitas porque os novos atarefados que os substituíram estão demasiado ocupados nas suas tarefas. Mas se há coisa mais melancólica do que um cemitério, é um cemitério sem visitantes.
Alguns dias mais tarde, no comboio para Washington, algures a sul de Trenton, passo por outro cemitério. Apesar de também vazio de vivos, este parece menos sinistro: segue amavelmente ao lado da via e não dá a mesma sensação, perentória e injuriosa, de morto e enterrado. Aqui, parece que os mortos não estão tão mortos que os esqueçam, não tão mortos que não acolham novos vizinhos. E ali, na extremidade sul desta faixa de terra pouco ameaçadora, sorrimos ao ver um anúncio bem americano: a tabuleta que anuncia: CEMITÉRIO DE BRISTOL — LOTES DISPONÍVEIS. Dir-se-ia que o jogo de palavras com «lotes10» é intencional: venham, juntem-se a nós, temos mais espaço do que os nossos rivais. Lotes disponíveis. Publicidade até na morte — é a maneira americana. Enquanto na Europa Ocidental a velha religião está no declínio final, a América permanece um país cristão, e faz sentido que a crença ainda floresça por lá. O cristianismo, que resolveu o velho debate doutrinal judeu sobre se havia ou não havia vida depois da morte e que centralizou a imortalidade pessoal como atrativo teológico de venda, condiz bem com esta sociedade da recompensa e do sucesso. E, dado que na América todas as tendências são levadas ao extremo, instalaram atualmente o cristianismo extremo. A velha Europa adotou uma abordagem mais serena da chegada final ao Reino dos Céus — um longo apodrecer no túmulo, antes da ressurreição e do Juízo Final, tudo a seu tempo, quando Deus quiser. A América e o cristianismo extremo gostam de apressar as coisas. Porque é que a entrega do produto não segue a encomenda sem demora? Daí fantasias como A Vocação, em que os justos, enquanto andam nas tarefas diárias, são levados instantaneamente para o Céu, onde veem Jesus e o Anticristo a lutar cá em baixo, no campo de batalha do planeta Terra. A versão catastrófica, em filme de ação para adultos, sobre o fim do mundo.
Morte seguida de ressurreição: a «tragédia essencial com final feliz». Essa frase é normalmente atribuída a um desses realizadores de Hollywood considerados como estando na origem de todas as piadas com graça; mas eu encontrei-a primeiro na autobiografia de Edith Wharton, A Backward Glance. Ela atribui o dito ao seu amigo e romancista, William Dean Howells, que lho dedicou à laia de consolação depois de o público, numa noite de estreia, não ter apreciado uma adaptação teatral de A Casa da Felicidade. Isto faz remontar a criação da expressão a 1906, antes de todos os realizadores de cinema começarem a dizer piadas.
O sucesso de Wharton enquanto romancista é tanto mais surpreendente — e admirável — quanto a sua visão da vida se harmonizava pouco com o otimismo americano. Ela via poucos sinais de redenção. Achava a vida uma tragédia — ou, quando muito, uma comédia triste — com um fim trágico. Ou, por vezes, só um drama com fim dramático. (O seu amigo Henry James definia a vida como «uma complicação antes da morte». E o amigo dele, Turgueniev, acreditava que «a parte mais interessante da vida é a morte».)
A ideia de que a vida, quer seja trágica, cómica ou dramática, é necessariamente original, também não seduzia Wharton. A nossa falta de originalidade é algo que comodamente esquecemos, quando nos debruçamos sobre as nossas vidas sempre (para nós) fascinantes. O meu amigo M., quando trocou a mulher por outra mais nova, queixava-se: «As pessoas dizem-me que é um lugar-comum. Mas eu não o sinto como tal.» No entanto, era, e é. Como todas as nossas vidas provariam ser, se pudéssemos vê-las a uma maior distância — do ponto de vista, digamos, da criatura superior imaginada por Einstein.
Uma amiga biógrafa sugeriu uma vez colocar-se nessa posição um pouco mais distante e escrever a minha vida. O marido afirmou ironicamente que daria uma obra muito curta, já que todos os meus dias eram iguais. «Levantou-se», era a versão dele. «Escreveu livro. Depois saiu, comprou garrafa de vinho. Chegou a casa, fez o jantar. E bebeu o vinho.» Aprovei logo esta Vida Breve. Servirá tão bem como qualquer outra; é tão verdadeira ou tão falsa como outra mais longa. Faulkner disse que o obituário dum escritor devia dizer: «Escreveu livros e depois morreu.»
Chostakovich sabia que fazer arte de e sobre a morte «equivalia a assoar o nariz à manga do casaco em público». Quando o escultor Ilya Slonim fez o seu busto, o presidente do Comité Soviético para as Artes não ficou satisfeito com o resultado. «Do que nós precisamos», disse o apparatchik ao escultor (e por extensão ao escritor), «é dum Chostakovich otimista.» O compositor adorava repetir este contrassenso.
Para além de meditar muito e melancolicamente sobre a morte, também ridicularizava — em privado, necessariamente — as falsas esperanças, a propaganda estatal e a escória artística. Um alvo favorito era uma peça, êxito dos anos trinta, do canalha do regime Vsevolod Vishnevsky, esquecido há muito e sobre quem um estudioso do teatro russo escreveu recentemente: «Mesmo segundo os padrões do nosso herbário literário, este autor era um espécime muito venenoso.» A peça de Vishnevsky passava-se a bordo dum navio durante a Revolução Bolchevique e retratava admiravelmente o mundo, tal como as autoridades pretendiam mostrá-lo. Uma jovem comissária chega para explicar, e impor, a linha do Partido a uma tripulação de marinheiros anarquistas e oficiais russos da velha guarda. É recebida com indiferença, ceticismo e até violência: um dos marinheiros tenta violá-la e ela mata-o a tiro. Um tal exemplo de vigor comunista e justiça instantânea convence os marinheiros, que não tardam a formar uma eficaz unidade de combate. São lançados contra os alemães belicistas, deístas e capitalistas, e são feitos prisioneiros; mas revoltam-se heroicamente contra os captores. Durante a luta é morta a comissária inspiradora que, ao morrer, exorta os marinheiros agora plenamente sovietizados: «Defendei sempre… as nobres tradições… do Exército Vermelho.» Cai o pano.
Não era o enredo caricaturalmente servil da peça de Vishnevsky que apelava ao sentido de humor de Chostakovich, mas sim o título: Uma Tragédia Otimista. O comunismo soviético, Hollywood e a religião organizada estavam mais próximos uns dos outros do que julgavam: fábricas de sonhos, que produziam a mesma fantasia. «Tragédia é tragédia», gostava de repetir Chostakovich, «e otimismo não tem nada a ver com isso.»
Vi duas pessoas mortas, e toquei numa delas; mas nunca vi ninguém morrer, e talvez nunca veja, a menos que e até que me veja morrer a mim. Se deixámos de falar na morte quando ela começou verdadeiramente a ser temida, e mais ainda quando começámos a viver mais tempo, ela desapareceu também das conversas porque deixou de estar connosco em casa. Hoje em dia tornamos a morte o mais invisível possível e transformamo-la num processo — médico, hospital, agência funerária, crematório — em que profissionais e burocratas nos dizem o que fazer, até ao momento em que ficamos entregues a nós próprios, sobreviventes de copo na mão, amadores que aprendem a fazer o luto. Mas ainda não há muito tempo, os moribundos passariam os últimos dias em casa e expirariam junto da família, seriam lavados e vestidos por mulheres da casa, velados e acompanhados durante uma ou duas noites e metidos depois na urna pelo cangalheiro local. Como Jules Renard, seguiríamos a pé, até ao cemitério, o carro fúnebre oscilante e puxado por um cavalo, para aí vermos o caixão descer à cova e um verme gordo exultar à beira da sepultura. Estaríamos mais presentes e atentos. Melhor para eles (embora o meu irmão me remeta para as hipotéticas vontades dos mortos) e provavelmente melhor para nós. O sistema antigo permitia uma passagem mais solene da vida à morte — e de morrer a deixar de ser visto. A maneira moderna e apressada é sem dúvida mais verdadeira quanto ao modo como vemos atualmente a morte — num momento estamos vivos e no outro estamos mortos, mesmo mortos, por isso saltemos para dentro do carro e acabemos com isto. (Que carro é que levamos? Não o que ela gostaria que levássemos.)
Stravinsky foi ver o corpo de Ravel antes de o meterem no caixão. Estava deitado sobre uma mesa, envolto num pano preto. Era tudo branco e preto: fato preto, luvas brancas, ligaduras brancas do hospital ainda a envolverem a cabeça, rugas pretas num rosto muito pálido, que tinha «uma expressão de grande majestade». E a grandeza da morte acabava aí. «Fui ao enterro», escreveu Stravinsky. «Uma experiência lúgubre, estes funerais civis onde tudo é proibido menos o protocolo.» Foi em Paris, em 1937. Quando chegou a vez de Stravinsky, trinta e quatro anos mais tarde, o corpo foi levado de avião de Nova Iorque para Roma, e depois de carro para Veneza, onde havia cartazes pretos e roxos afixados em todo o lado: a cidade de veneza presta homenagem aos restos mortais do grande músico igor stravinsky, que, num gesto de preciosa amizade, pediu para ser enterrado na cidade que amou acima de todas as outras. O arquimandrita de Veneza dirigiu a cerimónia grega ortodoxa na Basílica de São João e São Paulo, depois o caixão foi transportado até à estátua de Colleoni e seguiu para um barco fúnebre movido a remos por quatro gondoleiros, rumo ao cemitério da ilha de San Michele. Aí, o arquimandrita e a viúva de Stravinsky deitaram terra sobre o caixão, quando ele baixou à sepultura. Francis Steegmuller, o grande estudioso de Flaubert, seguiu os eventos do dia. Disse que, quando o cortejo saiu da basílica para o canal, com os Venezianos debruçados em todas as janelas, a cena se assemelhou a «um dos cortejos sumptuosos de Carpaccio». Mais, muito mais do que protocolo.
A menos que e até que me veja morrer a mim. Preferíamos ter consciência da nossa morte ou estarmos inconscientes? (Há uma terceira opção, muitíssimo popular: sermos levados a acreditar que estamos a caminho da recuperação.) Mas cuidado com o que desejamos. Roy Porter queria estar totalmente consciente: «É porque, senão, perdemos alguma coisa.» E continuava: «Claro que não queremos dores atrozes nem nada disso. Mas acho que gostaríamos de estar com as pessoas que são importantes para nós.» Era isto o que Porter desejava e foi o que teve. Tinha cinquenta e cinco anos, acabara de conseguir a reforma antecipada, mudara-se para o Sussex com a quinta esposa e começara uma carreira de cronista independente. Regressava do seu quinhão de terra e dirigia-se a casa de bicicleta (difícil não nos lembrarmos da estrada rural onde Bertrand Russell teve a revelação conjugal), quando foi subitamente acometido por um ataque cardíaco e morreu sozinho na berma. Chegou a ter tempo de se ver morrer? Soube que estava a morrer? O seu último pensamento foi a esperança de acordar no hospital? A sua última manhã fora passada a plantar ervilhas (talvez o mais parecido com as tais couves francesas). E levava para casa um ramo de flores que, num segundo, se transformara no seu próprio tributo à beira da estrada.
O meu avô dizia que o remorso era a pior emoção que podíamos ter na vida. A minha mãe não entendia o comentário e eu não sabia a que acontecimento devia associá-lo.
Morte e Remorso 1. Quando François Renard, ignorando o conselho do filho para tomar um clister, pegou numa caçadeira, usou uma bengala para acionar os dois canos e produzir um «ponto escuro acima da cintura, como um pequeno fogo apagado», Jules escreveu: «Não me censuro por não o ter amado mais. Censuro-me por não o ter compreendido.»
Morte e Remorso 2. Desde a primeira vez que a li, perturbou-me uma frase dos diários de Edmund Wilson. Wilson morreu em 1972; os acontecimentos citados datam de 1932; eu li sobre eles em 1980, o ano em que The Thirties foi publicado.
No início dessa década, Wilson casara em segundas núpcias com uma tal Margaret Canby. Era uma mulher baixa e forte, de cara engraçada, da alta sociedade e com «gostos de champanhe»: dos homens que ela conhecera, Wilson era o primeiro que trabalhava para ganhar a vida. No volume anterior dos seus diários, The Twenties, Wilson chamara-lhe «a melhor companheira que eu conheci para os copos». Referiu então a primeira intenção de se casar com ela, e também a hesitação sensata: «Ainda que nos entendêssemos bem, não tínhamos suficientes coisas em comum.» Mas lá se casaram, numa união alcoólica marcada desde o início pela infidelidade e por separações temporárias. Se Wilson tinha dúvidas em relação a Canby, ela tinha ainda maiores reservas sobre ele. «És uma pessoa fria, esquisita e repugnante, Bunny Wilson», disse-lhe uma vez — comentário que Wilson, com a sua liberalidade típica, confiou ao diário.
Em setembro de 1932 o par, casado há dois anos, estava mais uma vez separado. Margaret Canby encontrava-se na Califórnia, Wilson em Nova Iorque. Ela foi a uma festa em Santa Bárbara e levava saltos altos. À saída tropeçou, caiu dum lanço de escadas de pedra, fraturou o crânio e morreu. O acontecimento produziu, no diário de Wilson, quarenta e cinco páginas da desolação mais sincera e autoflagelante jamais escritas. Wilson começa a tomar notas enquanto o avião se desloca para oeste a baixa altitude, como se a imposição do ato literário ajudasse a bloquear a emoção. Nos dias seguintes os apontamentos manifestam um extraordinário monólogo de homenagem, memórias eróticas, remorso e desespero. «Uma noite horrível, mas até isso me parecia doce na lembrança», anota a dada altura. Na Califórnia, a mãe de Canby aconselha-o: «Tem de acreditar na imortalidade, Bunny, tem de acreditar!» Mas ele não acredita nem pode: Margaret está morta e não vai voltar.
Wilson nada poupa a si próprio nem ao potencial leitor. Relata todas as censuras dilacerantes que Canby lhe fez. Disse uma vez ao marido, demasiado crítico e queixoso, que o epitáfio da sua lápide seria: «Vai e desenrasca-te.» Ele também a celebra: na cama, na bebida, nas lágrimas, na confusão. Lembra-se de ter de matar as moscas enquanto faziam amor numa praia, lembra com devoção o corpo «matreiro», de membros curtos. («Não digas isso!», protestava ela. «Parece que sou uma tartaruga.») Lembra também a ignorância que o encantava — «Descobri o que é aquela coisa por cima da porta — é uma lentilha.» — e coloca-a a par das recriminações contínuas: «Um dia rebento! Porque não fazes nada para me ajudar?» Ela acusava-o de a tratar como um artigo de luxo, como um perfume Guerlain : «Ficavas encantado se eu morresse, sabes bem que sim.»
O facto de Wilson tratar mal a mulher, antes e depois do casamento, e de a sua dor estar contaminada por um remorso justificado, é o que dá força a este fluxo de consciência fúnebre. O paradoxo surpreendente é que o seu sentimento se libertou com a morte da pessoa que o acusava de falta de sentimento. E a frase que nunca me saiu da memória foi esta: «Depois de ela morrer, amei-a.»
Pouco importa que Bunny Wilson fosse uma pessoa fria, esquisita e repugnante. Pouco importa que a relação fosse um erro e o casamento um desastre. O que importa é que Wilson dizia a verdade e que é a autêntica voz do remorso o que ouvimos nestas palavras: «Depois de ela morrer, amei-a.»
Podemos sempre escolher o conhecimento em vez da ignorância; podemos desejar estar conscientes ao morrer; podemos esperar o «melhor cenário», no qual um espírito sereno observa o declínio gradual, talvez com um dedo como o de Voltaire no pulso enfraquecido. Podemos conseguir tudo isso; mas, ainda assim, não devemos esquecer o testemunho de Arthur Koestler. Em Dialogue with Death, ele registou as suas experiências nas prisões de Franco, em Málaga e Sevilha, durante a Guerra Civil Espanhola. Há certamente uma diferença entre os jovens ameaçados de execução imediata, por opositores políticos, e os homens e mulheres mais idosos, que têm a maior parte da vida atrás de si e contemplam um fim mais calmo. Mas Koestler observou muitos dos que iam morrer — incluindo, como estava convencido, ele próprio — e chegou às seguintes conclusões. Primeiro: ninguém, nem numa cela de condenado, nem ouvindo os amigos e camaradas a serem abatidos, pode acreditar verdadeiramente na sua própria morte; de facto, Koestler pensava que este facto podia expressar-se quase matematicamente: «A nossa incredulidade face à morte cresce na proporção da sua proximidade.» Segundo: a mente recorre a vários truques quando se acha em presença da morte: produz «narcóticos misericordiosos ou estimulantes extáticos» para nos enganar. Em particular, pensava Koestler, é capaz de desdobrar a consciência em dois, de maneira a que uma metade examina friamente o que a outra metade sente. Deste modo, «a consciência assegura que o seu total aniquilamento nunca seja experimentado». Duas décadas mais cedo, em «Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte», Freud escrevera: «É de facto impossível imaginar a própria morte; e, sempre que tentamos fazê-lo, apercebemo-nos de que ainda estamos presentes como espectadores.»
Koestler também lança a dúvida sobre a autenticidade da auto-observação à hora da morte, por muito aparentemente lúcida e racional que seja a mente. «Não acredito que, desde o começo do mundo, algum ser humano morresse conscientemente. Quando Sócrates, sentado entre os alunos, pegou na taça de cicuta, devia estar pelo menos semiconvencido de que aquilo era só uma rábula… Claro, sabia que, teoricamente, o esvaziar da taça se revelaria fatal; mas deve ter sentido que tudo aquilo era muito diferente do que os seus alunos fervorosos e sem humor imaginavam; que, por trás daquilo tudo, havia algum estratagema hábil que só ele conhecia.»
Koestler termina Dialogue with Death com uma cena tão cinematográfica, tão bem feita e tão improvável, que não podia tê-la inventado. Foi libertado da prisão em troca da mulher de um ás da aviação franquista, que fica encarregado de levar Koestler ao encontro. Quando o avião sobrevoa um vasto planalto branco, o piloto «camisa negra» tira a mão da alavanca de direção e atrai o seu inimigo político para uma conversa acalorada sobre a vida e a morte, a direita e a esquerda, a coragem e a cobardia. «Antes de estarmos vivos», berra a dada altura o escritor ao aviador, «estávamos todos mortos.» O piloto concorda e pergunta: «Mas então porque é que temos medo da morte?» «Eu nunca tive medo da morte», responde Koestler, «mas sim de morrer.» «Comigo é precisamente o oposto», grita o «camisa negra».
Mas de certo gritavam em espanhol. Medo da morte ou medo de morrer, «preferimos o quê»? Estamos com o comunista ou com o fascista, o escritor ou o aviador? Quase toda a gente teme uma com exclusão da outra; é como se não houvesse no espírito espaço suficiente para conter as duas. Se temos medo da morte, não temos medo de morrer; se temos medo de morrer, não temos medo da morte. Mas não há razão lógica para que um medo exclua o outro; não há razão para que o espírito, com um pouco de treino, não possa expandir-se e incluir ambos. Na qualidade de pessoa que não se importava de morrer desde que depois não ficasse morto, posso certamente começar a elaborar quais seriam os meus medos em relação à morte. Receio ser como o meu pai que, sentado numa cadeira ao lado da cama do hospital, me censurava com irritação pouco habitual — «Disseste que vinhas ontem.» — antes de deduzir pelo meu embaraço que fora ele quem confundira as coisas. Receio ser como a minha mãe, quando imaginava que ainda jogava ténis. Receio ser como aquele meu amigo que, ansiando pela morte, nos confidenciava incessantemente que conseguira obter e engolir comprimidos suficientes para se matar, mas se encontrava agora numa agitação ansiosa, porque os seus atos podiam causar problemas a uma enfermeira. Receio ser como aquele homem de letras de uma cortesia inata, que conheci e que, ao ficar senil, começou a falar constantemente à mulher nas fantasias sexuais mais extremas, como se isso fosse o que secretamente sempre desejara fazer-lhe. Receio ser como Somerset Maugham octogenário, que baixava as calças atrás do sofá e defecava no tapete (apesar de isso me fazer lembrar alegremente a minha infância). Receio ser como aquele meu amigo idoso, homem ao mesmo tempo refinado e cheio de melindres, cujo olhar mostrava um pânico animal quando a enfermeira do lar anunciava, diante das visitas, que estava na hora de mudar a fralda. Receio o riso nervoso que terei quando não estiver a perceber uma alusão ou tiver esquecido uma lembrança comum ou um rosto familiar, e começar a desconfiar, primeiro duma grande parte e depois de tudo o que julgo saber. Receio o cateter e o elevador de escadas, o corpo incontinente e o cérebro devastado. Receio o destino de Chabrier/Ravel, não saber quem fui nem o que fiz. Talvez Stravinsky, na velhice extrema, tivesse esses finais em mente quando chamava do quarto a mulher ou algum membro da família. «De que precisas?», perguntavam-lhe. «De ter a certeza da minha própria existência», respondia. E a confirmação podia vir sob a forma de um afago de mão, de um beijo ou de lhe porem a tocar um dos seus discos preferidos.
Arthur Koestler, na velhice, orgulhava-se duma adivinha que formulara: «É melhor para um escritor ser esquecido antes de morrer, ou morrer antes de ser esquecido?» (Jules Renard sabia a resposta: «Poil de Carotte e eu vivemos juntos, e espero morrer antes dele.») Mas é um «preferimos o quê» suficientemente poroso para deixar que se infiltre uma terceira possibilidade: o escritor, antes de morrer, pode ter perdido toda a memória de ser escritor.
Quando perguntaram a Dodie Smith se ela se lembrava de ter sido uma dramaturga famosa ela respondeu: «Sim, acho que sim», disse-o exatamente da mesma maneira — com uma espécie de concentração, sobrolho franzido, moralmente consciente da exigência da verdade — como eu a vira responder a dezenas de perguntas ao longo dos anos. Por outras palavras, pelo menos continuava igual a si própria. Além desses medos mais imediatos de deterioração física e mental, é isto que esperamos e desejamos para nós próprios. Queremos que as pessoas digam: «Até ao fim foi ele próprio, mesmo sem conseguir falar//ver/ouvir.» Embora a ciência e o autoconhecimento nos tenham feito duvidar daquilo que compõe a nossa individualidade, queremos continuar a encarnar essa personagem que nos convencemos, talvez erradamente, que é nossa e só nossa.
Memória é identidade. Acredito nisto desde… oh, desde que me lembro. Somos o que fizemos; o que fizemos está na nossa memória; o que recordamos define quem somos; quando esquecemos a nossa vida, deixamos de existir, mesmo antes da morte. Passei muitos anos a tentar em vão salvar uma amiga da longa decadência alcoólica. Vi-a de muito perto perder a memória recente, depois a memória mais antiga e, com elas, quase tudo o que estava entre ambas. Foi um exemplo aterrador daquilo a que Lawrence Durrell num poema chamou «a lenta desgraça do espírito», a perda do estado de graça. E com essa desgraça — a perda de memórias gerais e específicas compensada por efabulações absurdas, em que o espírito se tranquilizava a si e a ela mas a mais ninguém — havia outra semelhante, para os que a conheciam e amavam. Tentávamos agarrar-nos às memórias que tínhamos dela — e simplesmente a ela — dizendo a nós próprios que «ela» ainda ali estava, ensombrada mas por vezes visível, em momentos súbitos de verdade e clareza. Protestando eu repetia, tentando convencer-me tanto a mim como àqueles a quem me dirigia: «No fundo, é a mesma pessoa.» Mais tarde compreendi que estivera sempre a enganar-me e que o «fundo» era — tinha sido — destruído na mesma razão da superfície visível. Ela partira, estava ausente num mundo que só a ela convencia — mas, a avaliar pelo pânico, tal convicção era obviamente fortuita. Identidade é memória, dizia a mim próprio; memória é identidade.
Morrer como vivemos: um caso instrutivo. Eugene O’Kelly era, aos cinquenta e três anos, presidente duma grande firma americana de contabilidade. Como ele próprio dizia, a sua história era o paradigma do sucesso: uma personalidade de «lutador» com vinte mil empregados sob o seu comando, um horário frenético, filhos que não via o suficiente e uma esposa dedicada a quem ele chamava «o meu xerpa pessoal». Eis como O’Kelly descrevia aquilo a que chamava «O Meu Dia Perfeito»:
Tenho duas ou três reuniões a sós com clientes, a coisa de que mais gosto. Mais uma reunião com, pelo menos, um membro da minha equipa interna. Falo ao telefone com sócios de Nova Iorque e dos escritórios do país todo, para ver como posso ajudá-los. Apago alguns fogos. Às vezes discuto com um dos nossos concorrentes a maneira como podemos trabalhar em conjunto para alcançar um dos objetivos comuns. Resolvo uma data de assuntos da lista da minha agenda eletrónica. E avanço em pelo menos uma das três áreas que me propus melhorar, quando os sócios da firma me elegeram há três anos para a chefia: fazer crescer o negócio… melhorar a qualidade e reduzir os riscos; e o que é mais vital para mim e para a saúde da empresa a longo prazo: torná-la um lugar ainda melhor para trabalhar, um lugar fantástico que permita a todos ter uma vida mais equilibrada.
Na primavera de 2005, O’Kelly foi um dos cinquenta diretores-gerais de empresas convidados a participar numa mesa-redonda profissional na Casa Branca, com o presidente Bush. «Houve alguém com mais sorte no trabalho do que eu?»
Mas, nesse preciso momento, a sorte de O’Kelly acabou. O que ele pensava ser cansaço temporário após uma fase particularmente pesada, transformou-se num músculo da cara levemente descaído, depois numa suspeita de paralisia facial e depois — súbita e irreversivelmente — num diagnóstico de cancro cerebral inoperável. Era um fogo impossível de apagar. De entre os especialistas mais caros, nenhum foi capaz de afastar a verdade avassaladora: três meses no máximo.
O’Kelly reage a esta notícia como a «pessoa obcecada por sucesso» e maximamente competitiva que é. «Tal como um diretor bem-sucedido tem a obrigação de ser o mais estratégico e preparado para “ganhar” em tudo, assim eu tinha agora a obrigação de ser o mais metódico, durante os meus últimos cem dias.» Planeia aplicar «as competências de diretor-geral» à sua difícil situação. Percebe que tem de «fixar novos objetivos. Depressa». Tenta «compreender como é que eu, enquanto indivíduo, precisava de me reposicionar rapidamente para me ajustar às novas circunstâncias da minha vida». Redige «a última e mais importante lista de tarefas» da sua vida.
Prioridades, métodos, objetivos. Põe em ordem assuntos profissionais e financeiros. Decide que vai «desatar» a sua relação com as pessoas criando «momentos perfeitos» e «dias perfeitos». Dá início à «transição para o estado seguinte». Planeia o seu próprio funeral. Sempre competitivo, quer fazer da sua «a melhor morte possível» e, depois de completar a lista de tarefas, conclui: «Estava agora motivado para “ter sucesso” na morte.»
Para os que pensam que quaisquer Cem Dias levam inevitavelmente a Waterloo, a ideia de «“ter sucesso” na morte» pode parecer grotesca e até cómica. Mas todas as mortes serão cómicas para alguém. (Sabem o que fez O’Kelly pouco depois de ter sabido que só tinha três meses de vida? Escreveu um conto! Como se o mundo precisasse de mais…) E depois, com a ajuda do que terá inevitavelmente de se chamar fantasma11, compôs o livro que as pessoas decidem escrever, o livro sobre a morte, quando confrontadas com a data final da sua execução.
O’Kelly enumera e classifica as amizades que precisa de desatar. Surpreendentemente, e antes mesmo de chegar ao círculo íntimo, existem mil nomes na agenda. Mas, com a rapidez e energia de homem habituado a fechar negócios, completa a tarefa em três semanas: às vezes com uma nota ou um telefonema, por vezes com um encontro breve que talvez contenha um «momento perfeito». Esporadicamente, quando se trata de desatar as amizades mais íntimas, há alguma resistência. Há um ou dois amigos que não querem ser despachados com um adeus singelo ou uma volta pelo parque, a evocar lembranças. Mas, como um verdadeiro diretor-geral, O’Kelly não liga a sentimentalistas dependentes. Diz com firmeza: «Eu gostava que fosse assim. Organizei isto especificamente para que pudéssemos despedir-nos. E fizemos disto um momento perfeito. Vamos pegar nele e avançar. Não vamos marcar outro encontro. Tentar melhorar um momento perfeito nunca resulta.»
Não, acho que também não diria isso. Mas também acho que nunca encontrei ninguém como O’Kelly. O «desatar» que ele planeia para a filha adolescente inclui uma viagem a Praga, Roma e Veneza. «Viajaríamos num jato privado, que necessitaria de reabastecer algures muito a norte e isso daria a Gina uma oportunidade de conhecer os Inuítes e de negociar com eles.» Isto não é tanto morrer igual a si próprio, como uma caricatura de si próprio. Dizemos adeus à nossa filha, mas também lhe arranjamos uma oportunidade de negociar com os Inuítes? E, nesse caso, informamos os Inuítes do seu papel privilegiado?
Momentos assim podem provocar em nós a troça e o pasmo incrédulo. Mas O’Kelly estava certamente a morrer como vivera, e todos devíamos ter essa sorte. Se fez batota ou não, já é outra história. O diretor-geral não tivera até então grandes relações com Deus por via do seu tempo ocupado; mas utilizava-o como uma espécie de pronto-socorro em emergências. Uns anos antes, à futura negociante fora diagnosticada uma artrite juvenil e o pai lembrava-se: «Nesse ano encontravam-me muitas vezes na igreja.» Agora, com o seu próprio e último contrato em vias de ser fechado, O’Kelly volta a dirigir-se ao estado-maior, à transnacional do Céu. Reza e aprende a meditar. Sente-se apoiado do «outro lado» e declara que «entre este lado e o outro não existe a dor». A mulher explica que «se conquistarmos o medo, conquistamos a morte» — embora, é claro, no final não deixemos de estar mortos. Quando O’Kelly expira é, segundo o seu xerpa pessoal, «num estado de aceitação serena e esperança genuína».
Os psicanalistas dizem-nos que os que são mais apegados à sua personalidade têm mais dificuldade em morrer. Dado o temperamento de lutador, a idade de O’Kelly e a rapidez do fim, a sua atitude é deveras impressionante. E talvez Deus não se importe que só se lhe dirijam em caso de emergência. Pode parecer a um observador que qualquer divindade sensata deve ficar ofendida com uma atenção tão irregular e interesseira. Mas Ele poderá ver as coisas de outra maneira. Pode, modestamente, não querer ser nas nossas vidas uma presença diária e oclusiva. Pode gostar de ser um especialista em emergências, uma companhia de seguros, um «apanha-bolas».
O’Kelly não quis música de órgão no funeral; especificou flauta e harpa. Eu dei Mozart à minha mãe; ela deu Bach ao meu pai. Passamos o tempo a pensar na nossa música fúnebre; e menos na música que desejamos ouvir quando estamos a morrer. Lembro-me do editor literário Terence Kilmartin, um dos que primeiro me incentivaram, acamado no andar de baixo quando já não tinha força para subir a escada, a ouvir os últimos Quartetos de Cordas de Beethoven num rádio com cassetes. Os papas e imperadores moribundos podiam convocar os seus próprios coros e instrumentistas, para terem uma antecipação da glória que aí vinha. Mas a tecnologia moderna transformou-nos a todos em papas e imperadores; e, embora possamos rejeitar o Paraíso cristão, podemos ter o Magnificat de Bach, o Requiem de Mozart ou o Stabat Mater de Pergolesi a iluminar-nos o interior do crânio, enquanto o corpo perece. Para Sydney Smith, o Paraíso era comer foie gras ao som de trombetas — o que sempre me pareceu má combinação e não uma concordância. Mas toda a massa colossal dos metais da Missa de Santa Cecília de Gounod podia atroar-nos os ouvidos, enquanto no braço um tubo nos injetava gotas de alimento açucarado.
Desconfio, caso tenha algum tempo decente para morrer, que vou querer música em vez de livros. Haverá espaço — espaço na cabeça — para a maravilhosa e árdua marcha da ficção, para a produção imbricada de enredo, personagens, situação…? Não, acho que vou precisar de música, adequadamente intravenosa: direta à corrente sanguínea, direta ao coração. «A melhor maneira que temos de digerir o tempo» ajudar-nos-á talvez a digerir os prenúncios da morte. A música, para mim, também está associada ao otimismo. Tive uma sensação imediata de simpatia quando li que um dos prazeres de Isaiah Berlin, na velhice, era reservar lugares para concertos com meses de antecedência (vi-o muitas vezes, lá em cima, no mesmo camarote do Festival Hall). Comprar os bilhetes garante de certo modo que vamos ouvir a música, prolonga-nos a vida pelo menos até se calar o derradeiro eco dos últimos acordes que pagámos. Por alguma razão, isso com o teatro não resultaria.
É assim, no entanto, se conseguirmos permanecer iguais a nós próprios. Quando imaginava o melhor cenário da minha morte (x meses, tempo para escrever duzentas a duzentas e cinquenta páginas), considerava-o como um dado adquirido. Supunha que seria eu próprio até ao fim e insistiria instintivamente em ser escritor, apto a descrever e definir o mundo até ao preciso momento de o deixar. Mas a personagem pode estar sujeita a saltos bruscos, amplificações e distorções, nas últimas fases. Um amigo de Bruce Chatwin percebeu que o escritor estaria gravemente doente quando o viu pagar a conta do almoço, atitude que nele, até ali, não era nada habitual. Quem pode prever a reação do espírito ao ver o fim aproximar-se?
Montaigne não morreu a plantar couves, como sonhara. A morte chegou para o cético e epicurista, o deísta tolerante, o escritor de curiosidade e saber sem limites, enquanto celebravam a missa no seu quarto: no momento exato (diz-se) da elevação da hóstia. Uma morte exemplar para a Igreja Católica — que, apesar disso, pôs as obras de Montaigne no Índex daí a menos dum século.
Há vinte anos visitei a sua casa — ou melhor, a sua torre de escritor — nos arredores de Bordéus. Capela no rés do chão, quarto de dormir no primeiro andar, escritório no andar de cima. Quatro séculos depois, a autenticidade dos factos e dos móveis era inverificável, como qualquer filósofo tão bem saberia. Havia uma cadeira partida na qual o grande ensaísta se teria possivelmente sentado — ou, se não, noutra coisa similar. O quarto, dizia o roteiro de viagem num francês evasivo e melífluo, era onde «nada nos impede de pensar que ele possa ter morrido». O escritório tinha ainda citações gregas e latinas pintadas nas traves, onde já haviam sido aplicadas muitas camadas de tinta; e a biblioteca de mil volumes que fora o universo de Montaigne estava há muito dispersa. Até as prateleiras tinham desaparecido: só restavam duas peças de metal em forma de D, às quais elas poderiam ter estado fixas. Tudo parecia verdadeiramente filosófico.
Mesmo ao lado do quarto onde Montaigne terá expirado enquanto fitava talvez a hóstia exposta (embora nada nos impeça de pensar que sonhava com as couves), havia um pequeno terraço. Daí o filósofo terá acompanhado a missa na capela, lá em baixo, sem interromper os pensamentos. Um túnel de pedra estreito e oblíquo, composto de sete degraus, oferecia uma bela acústica e uma boa visão do padre. Quando o nosso guia e os outros turistas se afastaram, um instinto impeliu-me a prestar-lhe homenagem de pé, no terraço, e só depois começar a descer o simulacro de escada. Daí a dois degraus tropecei e num instante dei comigo estatelado e agarrado às paredes laterais, a tentar evitar disparar túnel abaixo, até à capela. Ali preso, senti a claustrofobia dum sonho familiar em que ficamos perdidos no subsolo, dentro dum cano ou tubo que afunila, na obscuridade crescente, no pânico e no terror. O sonho que, mesmo sem acordar, sabemos ser de morte.
Sempre desconfiei dos sonhos; ou melhor, do excessivo interesse neles. Conheci um casal, manifesta e longamente apaixonado, cujo dia começava sempre com a mulher a contar ao marido os sonhos que tivera nessa noite. Ainda o faziam com devoção, depois dos setenta anos. Prefiro — amo, aliás — a abordagem extremamente lacónica da minha mulher à narração dos sonhos. Acorda e faz o seu relato em súmula sentenciosa — «um fragmento de deserto» — ou breve avaliação crítica, como «Muito confuso» ou «Que alívio sair dali». Por vezes, descrição e crítica associam-se: «Sonho indiano, como um romance longo e desconexo.» Depois volta a adormecer e esquece aquilo tudo.
Isto parece pôr os sonhos na perspetiva certa. Quando comecei a escrever ficção, impus a mim próprio duas regras: nem sonhos, nem considerações meteorológicas. Enquanto leitor, sempre me irritou a meteorologia «com sentido» — as nuvens de tormenta, o arco-íris, o trovão distante — bem como os sonhos «com sentido», as premonições, aparições, e assim por diante. Até tencionava chamar ao meu primeiro romance Nada de Tempo Atmosférico. Mas o livro levou tanto tempo a ser escrito que o título acabou por me parecer rebuscado.
Tenho sonhos de morte tantas vezes quantas seria de esperar: alguns mais orientados para o enterro, com clausura subterrânea e túneis que se estreitam; outros apresentando um cenário mais ativo de filme de guerra — em que sou perseguido e cercado por inimigos numerosos e mais bem armados, e dou por mim sem munições, feito prisioneiro, injustamente condenado ao pelotão de fuzilamento e informado que me resta ainda menos tempo do que imaginava. As coisas do costume. Senti alívio quando, há uns anos, apareceu finalmente uma variação temática: o sonho em que me registo num lar de suicídio, num país tolerante para com os que desejam morrer. Assinei os formulários e a minha mulher concordou — ou em juntar-se a mim na aventura ou, o que é mais comum, em me acompanhar e ajudar. Porém, quando lá chego, acho o local infinitamente deprimente — móveis vulgares, uma cama miserável que tresanda aos ocupantes passados e futuros, apparatchiks entediados que nos tratam como mais uma alínea do dever burocrático. Percebo que tomei a decisão errada. Não quero partir (nem sequer entrar), cometi um erro, a vida ainda tem muito interesse e um pequeno futuro; mas, enquanto penso nisto, tenho consciência de que, uma vez iniciado o processo ao qual emprestei a assinatura, não posso recuar e sim, estarei morto daqui a umas horas ou talvez minutos, porque agora não há escapatória possível, nem «astúcia» koestleriana que me ajude a sair daqui.
Embora não estivesse propriamente orgulhoso deste novo sonho, pelo menos sentia-me satisfeito, visto que o meu inconsciente se atualizara e estava a par da evolução do mundo. Já me agradou menos descobrir, no último livro do poeta D.J. Enright, Injury Time, que ele sonhara praticamente a mesma coisa. O estabelecimento em que se inscrevera parecia um bocado mais fino do que o meu mas, como sempre na fuga onírica do melancólico, algo fatalmente correu mal. No caso dele, o lar do suicídio ficara sem gás tóxico. Assim, o novo plano era ele e a mulher serem transferidos de camião para os correios locais, onde receava — por razões muito plausíveis — que as instalações se revelassem simultaneamente menos humanas e menos eficazes.
Pensando melhor, não me importei muito com a sincronia (seria uma estranha vaidade querer ter a exclusividade do sonho). Fiquei mais desanimado ao encontrar, noutra parte do livro de Enright, esta citação: «Eu não me importava de morrer, se depois não ficasse morto.» Mas eu disse-o primeiro, pensei — há anos que o digo e já o escrevi. Olha, está aqui no meu primeiro romance, aquele que não se chamou Nada de Tempo Atmosférico: «Não me importava nada de morrer, se no fim não ficasse morto.» (Ao reler a frase, não sei se deveria incomodar-me com o uso da palavra end12. Mas, se interpelado, provavelmente argumentaria tratar-se de insistência deliberada na ideia de fim. Já não me lembro se era ou não.) Então quem é que Enright está a citar? Um tal Thomas Nagel, num livro chamado Mortal Questions. O Google diz: professor de Filosofia e Direito na Universidade de Nova Iorque; data do livro, 1979; data do meu, 1980. Bolas! Eu podia contrapor que comecei a trabalhar no romance oito ou nove anos antes, mas isso seria quase tão convincente como um protesto onírico num lar de suicídio. E sem dúvida alguém disse o mesmo antes de nós. Provavelmente um dos antigos gregos que o meu irmão tão bem conhece.
Devem ter reparado — e até lastimado — a veemência com que escrevi: «Mas eu disse-o primeiro.» Eu, o insistente e enfático eu em itálico. O eu ao qual estou brutalmente afeiçoado, o eu ao qual é preciso dizer adeus. E, no entanto, esse eu, ou mesmo a sua sombra diária, sem itálico, não é o que eu penso. Na época em que eu assegurava ao capelão da faculdade que era um ateu feliz, estava na moda uma expressão: «personalidade íntegra». É nisto que, amadores da própria existência, nós acreditamos, não é? Que a criança é pai, ou mãe, do homem ou da mulher; que lenta mas inevitavelmente nos tornamos nós próprios, e esse eu irá ter um contorno, uma claridade, uma identificação, uma integridade. Ao longo da vida construímos e alcançamos um carácter único, que esperamos conservar até à morte.
Mas os cartógrafos do cérebro, que penetraram os seus segredos, que puseram tudo em esquemas de cores vivas, que conseguem seguir os impulsos do pensamento e da emoção, dizem-nos que não está lá ninguém. Na máquina não há fantasma. O cérebro, como diz um psiconeurologista, não é nem mais nem menos do que um «pedaço de carne» (não aquilo a que eu chamo «carne» — mas também não sou perito em vísceras). Eu, ou mesmo eu, não produzo pensamentos; são os pensamentos que me produzem. Os exploradores do cérebro, por muito que espreitem e observem, só podem concluir que «não existe “matéria do eu” localizável». E assim a nossa ideia do eu ou ego persistente, eu ou eu — ainda menos localizável — é mais uma ilusão pela qual nos guiamos. A teoria do ego — pela qual sobrevivemos tanto tempo e tão naturalmente — é substituída com vantagem pela Teoria Empacotada do Eu. A ideia do comandante de submarino, organizador cerebral e responsável pelos acontecimentos da sua vida, tem de dar lugar à ideia de que somos uma mera sequência de eventos cerebrais, associados por certas ligações causais. Para falar de maneira definitiva e desencorajadora (embora literária): o «eu» que tanto acarinhamos só existe realmente na gramática.
Em Oxford, depois de desistir das Línguas Modernas, o meu eu antiquado estudou Filosofia durante dois semestres, ao fim dos quais lhe disseram que lhe faltava cérebro apropriado para aquilo. Em cada semana aprendia o que um filósofo pensava do mundo e, na semana seguinte, a razão por que essas crenças eram falsas. Era essa pelo menos a impressão que eu tinha e eu queria ir direto ao assunto: então o que é realmente verdade? Mas a filosofia parecia preocupar-se mais com o próprio processo filosófico do que com a função que eu lhe atribuíra previamente: dizer-nos em que consiste o mundo e a melhor maneira de viver nesse mundo. Eram sem dúvida expectativas ingénuas, e eu não devia ter ficado tão dececionado quando vi que a filosofia moral, longe de ter uma aplicação imediata, começava com um debate para saber se «bondade» era igual a «amarelo». E assim, sem dúvida sabiamente, deixei a Filosofia para o meu irmão e voltei à Literatura, que dizia e continua a dizer-nos melhor em que consiste o mundo. Também pode dizer-nos a melhor maneira de viver nesse mundo, embora o faça mais eficazmente quando não parece que o faz.
Uma das muitas versões do mundo (corretas até à próxima semana) que aprendi foi a de Berkeley. Defendia que o mundo das «casas, montanhas, rios e, numa palavra, todos os objetos sensíveis» consiste inteiramente em ideias, experiências sensoriais. Aquilo que nos apraz pensar que é o mundo real, fora de nós, corpóreo, tangível, temporalmente linear, são só imagens privadas — cinema primitivo — que desfilam na nossa cabeça. Uma tal visão do mundo era, pela sua lógica própria, irrefutável. Mais tarde, lembro-me que exultei ante a resposta da Literatura à Filosofia: o Dr. Johnson dá um pontapé numa pedra e grita: «É assim que eu a refuto!» Damos um pontapé numa pedra, sentimos que é dura, sólida, real. O pé dói, essa é a prova. O teórico é vencido pelo bom senso de que nós, Britânicos, nos orgulhamos tanto.
Sabemos agora que a pedra, alvo do pontapé do Dr. Johnson, não era nada sólida. A maioria das coisas sólidas compõe-se principalmente de espaço vazio. A própria Terra está longe de ser sólida, se por sólida entendemos impermeável: há partículas minúsculas chamadas «neutrinos» que conseguem atravessá-la de lés a lés. Os neutrinos conseguem passar — e passaram sem dificuldade — através da pedra do Dr. Johnson; até os diamantes, o nosso símbolo de dureza e impermeabilidade, são na verdade quebradiços e cheios de buracos. Porém, como os seres humanos não são neutrinos e seria obviamente insensato tentar atravessar um rochedo, o nosso cérebro informa-nos que o rochedo é sólido. Em relação a nós, pelos nossos parâmetros, é sólido. Não é verdade, mas é isso que nos é útil saber. O bom senso eleva a utilidade à categoria de verdade fictícia mas prática. O bom senso diz-nos que somos indivíduos com uma personalidade (geralmente adaptada) e os que nos rodeiam também. Vai demorar um bom bocado até começarmos a ver os nossos pais como pacotes de material genético a quem falta um «eu material», e não como personagens dramáticas ou cómicas (ou cruéis ou fastidiosas), imensamente enredadas como o eu material nas narrativas em que transformamos as nossas vidas.
O meu pai tinha pouco mais de cinquenta anos quando lhe diagnosticaram a doença de Hodgkin. Nunca perguntou aos médicos o que tinha, e por isso não lhe disseram. Fez tratamentos, exames de rotina no hospital e exames de controlo cada vez menos frequentes, sempre sem perguntar. No início, a minha mãe quis saber, por isso disseram-lhe. Não tenho maneira de saber se foi ou não avisada de que, nesse tempo, o mal de Hodgkin era invariavelmente fatal. Eu tinha conhecimento de que o meu pai estava doente, mas o seu tato natural e a ausência de melodrama ou autopiedade fizeram com que não me preocupasse, nem imaginasse que a doença era grave. Acho que a minha mãe me disse, e me obrigou a jurar segredo, na época em que passei no exame de condução. Surpreendentemente, o meu pai não morreu. Continuou a ensinar até à reforma, altura em que os meus pais se mudaram dos subúrbios londrinos para uma pretensiosa encruzilhada em Oxfordshire, onde viveram até morrer. A minha mãe levava o meu pai de carro a Oxford, aos exames de rotina anuais. Ao fim de alguns anos o especialista foi substituído por outro que folheou o processo e achou que, sendo o meu pai um homem manifestamente inteligente e que sobrevivera a uma coisa de que a maioria morre, devia saber o que se passara. No regresso a casa, o meu pai disse naturalmente à minha mãe, em tom casual: «Parece que isto do Hodgkin pode ser grave.» A minha mãe, ao ouvir da boca dele a palavra que guardava tenazmente há vinte anos, quase foi parar à valeta.
À medida que envelhecia, o meu pai raramente se referia aos problemas de saúde, a menos que tivesse oportunidade de fazer um comentário irónico: sobre o Warfarin, por exemplo, anticoagulante que tomava e que também servia de veneno para ratos. A minha mãe foi mais forte e loquaz, quando chegou a vez dela, mas também é verdade que o seu tema de conversa favorito sempre foi ela própria, e a doença só lhe deu mais um pretexto. Também achava lógico censurar ao braço paralisado a sua «inutilidade». Creio que o meu pai considerava a própria vida e as suas provações relativamente pouco interessantes — para os outros e até talvez para ele próprio. Durante muito tempo, pensei que o facto de não nos perguntar se tínhamos algum problema mostrava falta de coragem e simples curiosidade humana. Agora vejo que era nele — que talvez seja sempre — uma estratégia útil.
Não consigo pensar durante muito tempo nos meus pais como pacotes de material genético desprovidos de eu material. O que é útil — e, portanto, verdadeiro, em termos práticos — é pensar neles de forma sensata, dando um pontapé na pedra. Mas a Teoria Empacotada do Eu sugere outro estratagema possível face à morte. Em vez de nos prepararmos para chorar a perda de um eu arcaico, construído ao longo da vida e, se não adorável, pelo menos essencial ao seu proprietário, consideremos o argumento de que se esse eu não existe de facto como eu o imagino e sinto, porque é que eu, ou eu, hei de chorar por antecipação? Seria uma ilusão a chorar uma ilusão, um mero agregado fortuito perturbado inutilmente com a desagregação. Este argumento poderia convencer? Revelar-se-ia capaz de atravessar a morte como um neutrino atravessa um rochedo? Não sei; preciso de tempo para pensar. Embora naturalmente eu pense logo num contra-argumento, baseado em: «As pessoas dizem-me que é um lugar-comum, mas eu não o sinto como tal.» Os teóricos do espírito e da matéria podem dizer-me que a minha morte é, se não propriamente uma ilusão, pelo menos a perda de alguma coisa mais rudimentar e com menos marcas pessoais do que eu finjo e desejo que seja; mas duvido que venha a ser assim para mim, quando o momento chegar. Como morreu Berkeley? Com a consolação da religião, em vez da consolação teórica de que tudo não passava de imagens mentais.
O meu irmão salienta que, se eu tivesse persistido no estudo da Filosofia, saberia talvez que a Teoria Empacotada do Eu «foi inventada por um tal David Hume»; e também que «qualquer aristotélico» me teria dito que isso de «eu verdadeiro» não existia, nem fantasma no interior da máquina e que «também não havia máquina». Mas eu sei coisas que ele ignora: por exemplo, que o nosso pai sofria da doença de Hodgkin. Fiquei espantado ao descobrir que o meu irmão não tem conhecimento ou pelo menos não se lembra disso. «A história que conto a mim próprio (em parte como aviso) é que ele gozou de boa saúde e robustez até aos setenta ou setenta e dois anos e que, mal os curandeiros lhe deitaram a mão, foi rapidamente de mal a pior.»
Nesta versão — ou antes, nesta reinvenção completamente fantasista —, o aristotélico muito viajado dá a mão ao camponês, seu conterrâneo. Um dos mitos rurais franceses mais duráveis é a história do tipo com perfeita saúde que, um dia, desce dos montes e comete o erro de se meter num consultório médico. Daí a semanas — às vezes dias ou até horas, consoante o narrador — já só serve para o cemitério.
Antes de deixar a Inglaterra para ir viver em França, o meu irmão foi fazer uma lavagem aos ouvidos. A enfermeira ofereceu-se para lhe medir a tensão arterial, enquanto ali estava. O meu irmão recusou. Ela sublinhou que era gratuito. Ele respondeu que não duvidava, mas não queria fazer a medição. A enfermeira que, obviamente, não sabia o género de paciente que tinha diante dela, explicou-lhe que, naquela idade, podia ter a tensão alta. O meu irmão, imitando a voz cómica dum programa de rádio transmitido muito antes de a enfermeira ter nascido, insistiu: «Não quero saber.»
«E não queria», diz-me ele. «Se a minha tensão estivesse normal, a medição seria uma perda de tempo; se não estivesse normal, eu não ia fazer nada (não ia tomar comprimidos, não ia mudar a alimentação) mas de vez em quando preocupar-me-ia.» Respondo que certamente, «enquanto filósofo», deveria ter considerado a questão em termos da aposta de Pascal. Assim, havia três consequências possíveis: 1. Está tudo bem (bom). 2. Há qualquer coisa que não está bem, mas trata-se (bom). 3. Há qualquer coisa que não está bem mas lamento, meu amigo, não a podemos tratar (mau). Mas o meu irmão rejeita esta leitura otimista das probabilidades. «Não, não.» «Há qualquer coisa que não está bem, mas trata-se» = mau (não gosto que me tratem). E «mal e sem tratamento» é muito pior se soubermos do que se não soubermos. Como disse o meu amigo G., «o mal está em saber o que vai acontecer». E, por uma vez, ao preferir a ignorância, o meu irmão parece-se mais do que eu com o nosso pai.
Falava um dia com um diplomata francês e tentava explicar-lhe o meu irmão. «Sim», dizia eu, «é professor de Filosofia, viveu em Oxford até aos cinquenta anos, mas agora vive no Centro de França e ensina em Genebra. O que se passa com ele», prossegui, «é que tem a ambição — ambição filosófica, digamos — de não habitar em sítio algum. É um anarquista, não no sentido estritamente político do termo, mas em sentido mais lato e filosófico. Por isso vive em França, tem conta bancária nas ilhas do canal da Mancha e dá aulas na Suíça. Não quer viver em sítio nenhum.» «E em que sítio de França é que ele vive?», perguntou o diplomata. «Em Creuse.» Como resposta, uma risadinha parisiense. «Então já realizou a ambição! Não vive em sítio nenhum!»
Vocês têm uma imagem suficientemente clara do meu irmão? Precisam de mais factos básicos? É três anos mais velho do que eu, é casado há quarenta anos e tem duas filhas. A primeira frase completa proferida pela sua filha mais velha foi: «Bertrand Russell é um velho tonto.» Vive naquilo que me diz ser uma gentilhommière (eu chamara-lhe erradamente maison de maître: as gradações verbais dos tipos de casas em França são tão complexas como as que anteriormente se aplicavam às mulheres de pouca virtude). Possui cerca de três hectares e seis lamas num cercado: provavelmente os únicos lamas em Creuse. A sua especialidade em Filosofia é Aristóteles e os pré-socráticos. Disse-me uma vez, há décadas, que «desistira da sensação de embaraço» — o que torna mais fácil falar dele. Ah! sim, e usa muitas vezes uma espécie de fato do século XVIII, desenhado para ele pela filha mais nova: calças pelo joelho, meias e sapatos de fivela, em baixo; em cima, colete de brocado, gola larga e cabelo comprido atado em rabo de cavalo. Talvez devesse ter mencionado isto antes.
Ele colecionava o Império Britânico e eu o Resto do Mundo. Ele foi alimentado a biberão, eu ao peito, o que me parecia explicar as divergências das nossas naturezas. Ele cerebral, eu lamecha. Quando éramos adolescentes e estudantes, saíamos todas as manhãs da nossa casa em Northwood, no Middlesex, e fazíamos uma viagem de uma hora e um quarto, em que apanhávamos três linhas de metro diferentes para chegar à nossa escola, no centro de Londres; ao fim da tarde, voltávamos pelo mesmo caminho. Durante os quatro anos em que fizemos a viagem juntos (1957-61), o meu irmão não só nunca viajou no mesmo compartimento do que eu, mas também nunca apanhou o mesmo comboio. Era uma atitude natural entre irmão mais velho e irmão mais novo; mas, mais tarde, senti que também era algo mais.
Isto ajuda alguma coisa? A ficção e a vida são diferentes; na ficção, o escritor faz por nós o trabalho difícil. As personagens de ficção são mais fáceis de «ver», se o romancista for competente — e o leitor for competente. Estão colocadas a uma certa distância, deslocadas desta e daquela maneira, dispostas para receber a luz, para revelar profundidade; a ironia, essa câmara de infravermelhos para filmar no escuro, mostra-as quando elas não têm consciência de que alguém está a olhar. Mas a vida é diferente. Quanto melhor conhecemos as pessoas, menos bem as vemos (e, por isso, menos bem elas podem ser transferidas para a ficção). Podem estar tão perto que desfocam, e não há romancista que desfaça o borrão. Quase sempre, quando falamos de alguém muito familiar, referimo-nos ao tempo em que o/a vimos bem pela primeira vez, quando ele/a estava colocado/a sob a luz mais vantajosa — e favorável — a uma correta distância focal. Talvez essa seja uma das razões por que alguns casais ficam com relações aparentemente impossíveis. Os fatores habituais — dinheiro, poder sexual, posição social, medo do abandono — aplicam-se sem dúvida; mas os parceiros podem simplesmente ter-se afastado e continuarem a funcionar segundo uma visão e uma versão ultrapassadas.
Os jornalistas telefonam-me por vezes quando querem descrever alguém que eu conheço. O que querem é, primeiro, uma descrição breve e animada da personagem e, depois, alguns episódios esclarecedores. «Conhece-o/a. Como é ele/a de facto?» Parece simples; mas de cada vez sei menos por onde começar. Se um amigo fosse ao menos uma personagem de romance… Começamos, por exemplo, com uma série de adjetivos aproximados, qual atirador que tenta enquadrar o alvo; mas sentimos logo a pessoa, o amigo, começar a desaparecer e passar da vida a umas simples palavras. Algumas histórias ilustram; outras permanecem inertes e separadas do objeto. Um jornalista que há anos me retratou foi ao encontro de uma fonte óbvia em Creuse. «Não sei nada sobre o meu irmão», foi a resposta que obteve. Não acho que fosse proteção fraterna; talvez fosse irritação. Ou, se calhar, veracidade filosófica. Embora o meu irmão possa discordar de que foi «enquanto filósofo» que negou conhecer-me.
Uma história sobre mim e o meu irmão. Quando éramos pequenos, ele punha-me no meu triciclo, vendava-me os olhos e empurrava-me a grande velocidade contra o muro. Foi-me contada pela minha sobrinha C., que a ouviu contar ao pai. Eu não tenho a mais leve recordação e não sei que conclusão tirar, nem se há conclusão a tirar. Mas deixem-me que vos dissuada de o fazer. Parece-me ser o tipo de jogo que eu apreciaria. Posso imaginar o meu grito de prazer, quando a roda da frente batia na parede. Se calhar, até sugeri o jogo ou implorei que o repetíssemos.
Perguntei ao meu irmão o que é que achava sobre os nossos pais, como eram e como descreveria a relação entre eles. Nunca lhe perguntara tais coisas e a sua primeira reação é bem característica: «Como eram? Não tenho uma ideia definida: quando eu era pequeno, essas questões não se punham e depois já era tarde.» Mas aceita a tarefa: acha que eram bons pais, «razoavelmente nossos amigos», tolerantes e generosos; «moralmente muito convencionais — ou melhor, típicos da sua classe social e do seu tempo». E continua: «Suponho que o seu traço mais extraordinário — embora na época nada extraordinário — era a total ou quase total ausência de emoção ou, pelo menos, de manifestações públicas de emoção. Não me lembro de nenhum deles se zangar a sério, de ficar assustado ou louco de alegria. Tenho a ideia de que o sentimento mais forte a que a mãe alguma vez se entregou foi uma grande irritação, enquanto o pai era sem dúvida especialista em tédio.»
Se nos pedissem uma lista de coisas que os nossos pais nos ensinaram, eu e o meu irmão ficávamos às aranhas. Não nos foram dadas regras de vida, mas era esperado que obedecêssemos às regras ditadas pela intuição. Não se mencionava sexo, política ou religião. Partia-se do princípio que nos esforçaríamos ao máximo na escola, depois na universidade, que arranjaríamos trabalho e que, provavelmente, casaríamos e talvez tivéssemos filhos. Quando procuro na memória instruções ou conselhos específicos dados pela minha mãe — pois seria ela a fixar as regras — só consigo lembrar-me de preceitos que não se destinavam especialmente a mim. Por exemplo: só um vigarista é que usa sapatos castanhos com fato azul; nunca se fazem recuar os ponteiros dum relógio de pulso ou de parede; não se põem bolachas de queijo na lata das bolachas doces. Bom para uma recolha de lugares-comuns. O meu irmão também não se lembra de nada em especial. Isto pode parecer mais estranho, dado que os nossos pais eram ambos professores. Tudo deveria acontecer por osmose moral. «Claro», acrescenta o meu irmão, «eu acho que não dar conselhos nem instruções é a marca do bom pai.»
Na infância temos a ilusão pretensiosa de que a nossa família é única. Mais tarde, as semelhanças que descobrimos com as outras famílias tendem a ligar-se à classe social, à raça, aos rendimentos, aos interesses; e muito menos à psicologia e à dinâmica. Talvez porque o meu irmão vive só a cento e trinta quilómetros de Chitry-les-Mines, onde cresceu Jules Renard, aparecem agora certas afinidades. Renard père et mère parecem uma versão extrema e teatral dos nossos pais. A mãe era loquaz e intolerante; o pai calado e consumido pelo tédio. O voto de silêncio de François Renard, à maneira dos monges trapistas, era tal que parava a meio duma frase quando a mulher entrava na sala e só continuava depois de ela sair; com o meu pai dava-se o caso de ele ser obrigado a estar calado, devido à verbosidade da minha mãe e à sua afirmação de primazia.
O filho mais novo dos Renards, Jules — é também o meu nome —, não podia suportar a presença da mãe; conseguia cumprimentá-la e deixar que ela o beijasse (nunca retribuía o beijo), mas não era capaz de dizer mais que o mínimo, e utilizava todas as desculpas para não a visitar. Embora eu tenha passado mais horas seguidas com a minha mãe do que Renard passou com a dele, só o consegui entrando num estado de ausência e devaneio; e apesar de ter pena dela, na viuvez, nunca fui capaz de, nas últimas visitas, ficar lá de noite. Não conseguia enfrentar as manifestações físicas do tédio, a sensação de que o seu egocentrismo implacável esgotava a minha força vital e que à minha vida era subtraído tempo, tempo que eu nunca recuperaria, antes ou depois da morte.
Lembro-me de um pequeníssimo incidente, cuja ressonância emocional foi extraordinariamente vasta. Um dia, a minha mãe disse-me que o meu pai se sentia mal por ter de usar os óculos para ler que lhe tinham sido receitados, e que um comentário meu de aprovação poderia ajudá-lo. Enchi-me de coragem e, a dado momento, arrisquei a opinião não solicitada de que os óculos novos lhe davam um ar «distinto». O meu pai lançou-me um olhar irónico e não se deu ao trabalho de responder. Vi logo que percebera o estratagema; também senti que de certo modo o traíra, que o meu falso elogio faria aumentar o seu constrangimento e que a minha mãe abusara de mim. Não passava, é claro, de uma dose homeopática, comparada com a farmacologia tóxica das vidas de certas famílias; e, quanto ao papel de mensageiro, não era nada ao pé do que o jovem Jules Renard outrora suportara. Era ainda criança quando o pai — que não queria quebrar o silêncio mesmo em circunstâncias extremas — mandou Jules ir ter com a mãe, da sua parte, com um pedido simples: perguntar se ela queria o divórcio.
Renard disse: «Ter horror do burguês é burguês.» E disse: «Posteridade! Porque é que as pessoas hão-se ser menos estúpidas amanhã do que são hoje?» E disse: «A minha vida foi feliz e eivada de desespero.» Comenta que ficou magoado por o pai não lhe dizer uma palavra sobre o seu primeiro livro. Os meus pais fizeram um pouco melhor, ainda que parecessem inspirar-se na máxima de Talleyrand, que aconselhava a nunca mostrar grande entusiasmo. Assim que foi publicado, enviei-lhes o romance que não se chamou Nada de Tempo Atmosférico. Silêncio total durante duas semanas. Telefonei; o meu pai nem mencionou a chegada do livro. Uns dias depois fui visitá-los. Após mais ou menos uma hora de conversa sobre assuntos do dia a dia — ou seja, assuntos da minha mãe — ela pediu-me que levasse o meu pai às lojas: um pedido muito pouco habitual, aliás, único. No carro, quando os nossos olhares já não se cruzavam, ele disse-me, de perfil, que achava o livro bem escrito e engraçado, se bem que a linguagem lhe parecesse «um pouco linguagem de convés»; também corrigiu um erro de género nas palavras em francês. Não tirámos os olhos da estrada, fizemos as compras e voltámos ao chalé. A minha mãe já se mostrava disposta a dar opinião: o romance «marcava pontos», admitiu, mas não conseguira suportar o «bombardeamento» de obscenidades (nisso concordava com a comissão de censura sul-africana). Mostrava a capa do livro às amigas, mas não as deixava ver o interior.
«Um dos meus filhos escreve livros que eu posso ler mas não consigo entender, e o outro escreve livros que consigo entender mas não posso ler.» Nenhum de nós escreveu «o que ela desejaria». Quando eu tinha cerca de dez anos, ia sentado com ela no andar de cima dum autocarro e desbobinava um daqueles turbilhões de fantasia amena que surgem tão naturalmente nessa idade, quando ela me disse que eu tinha «imaginação a mais». Duvido que entendesse a expressão, mas era claro que aquilo a que ela se referia era um vício. Anos mais tarde, quando comecei a usar a denegrida faculdade, escrevi deliberadamente «como se os meus pais estivessem mortos». Porém, o paradoxo permanece: por trás de quase toda a escrita, a um certo nível, está o desejo residual de agradar aos nossos pais. Um escritor pode ignorá-los, pode mesmo tentar ofendê-los, pode intencionalmente escrever livros que sabe que eles irão detestar; e, no entanto, algo nele sofre uma deceção quando não consegue agradar-lhes. (Mas, se lhes agradasse, outra parte nele ficaria desapontada.) Isto ocorre muitas vezes mas, para o escritor, é motivo de surpresa frequente. E pode ser um lugar-comum, mas eu não o sentia como tal.
Lembro-me de um rapaz de cabelo encaracolado, que tinha claramente «imaginação a mais». Chamava-se Kelly, vivia na nossa rua, mais abaixo, e era um bocado estranho. Um dia eu voltava da escola — tinha seis ou sete anos — quando ele saltou de trás dum plátano e me enfiou qualquer coisa no meio das costas, dizendo: «Não te mexas, senão grelho-te.» Encolhi-me, naturalmente aterrado, e fiquei ali à mercê dele, a pensar se iria libertar-me e sem saber o que estava a empurrar-me as costas, durante um impensável período de tempo. Foram proferidas mais palavras? Acho que não. Eu não estava a ser roubado: era a mais pura forma de assalto — aquela em que o objetivo é o próprio assalto. Ao cabo de dois minutos opressivos, decidi arriscar a vida e fugi, voltando-me para trás. Kelly segurava na mão uma ficha elétrica (antiga, redonda, de quinze amperes). Então porque é que me tornei romancista e ele não?
Renard, no seu Journal, expressou um sentimento complexo, o desejo de que a mãe tivesse sido infiel ao pai. Complexo não só na psicologia, mas também na avaliação. Ele pensava que teria sido uma vingança justa pelos silêncios punitivos do pai; imaginava que isso teria feito dela uma mãe mais descontraída e simpática; ou queria que ela tivesse sido infiel para ter dela uma opinião ainda pior? Durante a viuvez da minha mãe, escrevi um conto em que usei, de forma reconhecível, a planta da vivenda dos meus pais («chalé superior» na terminologia dos agentes imobiliários, descobri depois). E também as personagens dos meus pais e os seus modos de interação. O pai idoso (irónico, calado) tem um caso com a viúva do médico duma aldeia vizinha; a mãe (língua afiada, irritante) descobre, reage — ou assim somos levados a crer, embora não tenhamos total certeza — e ataca-o com caçarolas pesadas, francesas. A ação — o sofrimento — é relatada do ponto de vista do filho. Embora eu baseasse a história numa dégringolade septuagenária que ouvi contar algures e a enxertasse na vida doméstica dos meus pais, não me iludi sobre aquilo que fazia. Dava ao meu pai, retrospetiva e postumamente, um bocadinho de diversão e vida suplementar, de ar, ao mesmo tempo que exagerava a personagem da minha mãe, levando-a ao crime e à demência. Não, não acho que o meu pai me tivesse agradecido esta prenda fictícia.
Vi o meu pai pela última vez a 17 de janeiro de 1992, treze dias antes da sua morte, num hospital em Witney, a uns vinte minutos de carro do sítio onde os meus pais viviam. Tinha combinado com a minha mãe que, nessa semana, o visitaríamos separadamente: ela iria na segunda e na quarta-feira, eu na sexta, ela no domingo. Assim, saía de Londres no carro, almoçava com ela, ia ver o meu pai à tarde e voltava à cidade. Mas, quando cheguei a casa (como continuei a chamar à casa dos meus pais durante muito tempo, mesmo depois de ter a minha casa), a minha mãe tinha mudado de opinião. Um problema qualquer com a roupa, e também com o nevoeiro, mas principalmente com o facto de ser absolutamente típico da minha mãe. Não me lembro de uma única ocasião em toda a minha vida adulta — tirando essa pequena volta literária pelas lojas que ela organizou — em que eu e o meu pai ficássemos sozinhos por um período de tempo razoável. A minha mãe, mesmo fora do quarto, estava lá sempre. Duvido que fosse medo de que falássemos dela na sua ausência (também seria o último assunto sobre o qual gostaria de falar com o meu pai); era mais porque nada do que se passava em casa, ou fora dela, ficava validado sem a sua presença. Por isso ela estava lá sempre.
Quando chegámos ao hospital, a minha mãe fez uma coisa — mais uma vez completamente típica — que na altura me irritou e ainda me enfurece. Quando nos aproximámos do quarto do meu pai, ela disse que ia entrar primeiro. Supus que era para ver se ele estava «decente», ou por outra razão conjugal não especificada. Mas não. Ela explicou que não dissera ao meu pai que eu vinha nesse dia (porque não? Controlo e mais controlo — pelo menos de informação) e que seria uma boa surpresa. E então lá entrou. Esperei, mas via o meu pai enterrado na cadeira, de cabeça caída sobre o peito. Ela beijou-o e disse: «Levanta a cabeça.» E depois: «Olha quem eu trouxe.» Não «Olha quem veio ver-te», mas «Olha quem eu trouxe». Ficámos cerca de meia hora, e o meu pai e eu falámos durante dois minutos sobre um jogo da Taça (Leeds 0, Manchester United 1 — golo de Mark Hughes) que ambos tínhamos visto na televisão. De resto, foi igual aos anteriores quarenta e seis anos da minha vida: a minha mãe sempre presente, sempre a falar, a organizar, a afligir-se, a controlar, e a minha relação com o meu pai reduzida a um olhar ou um piscar de olho ocasional.
A primeira coisa que ela lhe disse à minha frente, nessa tarde, foi: «Estás com melhor aspeto do que na última vez que eu cá estive, nesse dia estavas com péssimo, péssimo aspeto.» A seguir perguntou-lhe: «O que é que tens feito?», o que a mim me pareceu uma pergunta bastante tonta — a mim e ao meu pai, que a ignorou. Em seguida, fez comentários adicionais sobre a televisão e a leitura dos jornais. Mas algo se exasperara no meu pai e daí a cinco minutos, enfurecido — duplamente, por casa da alteração da fala — ele deu-lhe a resposta: «Estás sempre a perguntar o que é que eu faço. Nada.» Isto foi proferido com uma mistura terrível de irritação e desespero. («A palavra mais verdadeira, mais exata, mais cheia de significado é a palavra “nada”.») A minha mãe preferiu ignorar o comentário, como se o meu pai tivesse tido um deslize e esquecesse as boas maneiras.
Quando saímos apertei-lhe a mão, como sempre fiz, e pus-lhe a outra mão no ombro. Quando me disse adeus, por duas vezes a voz falhou e fez um estranho som de contralto, que atribuí a um mau funcionamento da laringe. Mais tarde perguntei a mim mesmo se ele sabia, ou suspeitava fortemente, que nunca mais voltaria a ver o filho mais novo. Em toda a vida, tanto quanto me lembro, nunca me disse que me amava; por isso eu não lhe retribuí. Após a sua morte, a minha mãe disse-me que ele tinha «muito orgulho» nos filhos; mas isto, como muitas outras coisas, tinha de ser deduzido por osmose. Disse também, para minha surpresa, que ele era «um bocado solitário» e acrescentou que os amigos dele se tinham tornado amigos dela e que, no final, eram mais próximos dela do que dele. Não sei se isto era verdade ou uma monstruosa manifestação de arrogância.
Cerca de dois anos antes de morrer, o meu pai perguntou-me se eu tinha um exemplar das Mémoires de Saint-Simon. Eu tinha — uma edição de vinte volumes bastante aparatosa, encadernada em couro vermelho, que nunca abri. Levei-lhe o primeiro volume, que leu daquela maneira que ele tinha de quebrar a lombada dos livros; e nas visitas seguintes, conforme solicitado, os outros volumes. Sentado na cadeira de rodas, enquanto as tarefas culinárias nos poupavam por breves instantes a presença da minha mãe, ele voltava a contar algum sanguinário enredo político da corte de Luís XIV. A dada altura, no declínio final, uma nova trombose afetou-lhe as capacidades intelectuais: a minha mãe disse-me que o encontrara três vezes na casa de banho a tentar urinar para dentro da máquina de barbear. Mas continuou a ler Saint-Simon e, quando morreu, ia a meio do décimo sexto volume. Um marcador de seda encarnado continua a indicar-me a última página que leu.
Segundo a certidão de óbito, o meu pai morreu de: a) trombose; b) problemas cardíacos; e c) abcesso no pulmão. Mas essas foram as coisas de que o trataram nas últimas oito semanas de vida (e antes), e não a verdadeira causa da morte. Ele morreu — em termos não médicos — porque estava exausto e porque renunciara à esperança. E «renunciar à esperança» não é um juízo moral da minha parte. Aliás, é, mas é um juízo de admiração: foi a reação correta de um homem inteligente a uma situação irrecuperável. A minha mãe disse que se sentia contente por eu não o ter visto mesmo no final: estava mirrado, deixara de comer e beber e não falava. Embora na última visita que ela lhe fez, quando lhe perguntou se sabia quem ela era, ele tivesse respondido, e talvez fossem essas as suas últimas palavras: «Acho que és a minha mulher.»
No dia em que o meu pai morreu, a minha cunhada telefonou de França e insistiu para que a minha mãe não ficasse sozinha em casa, nessa noite. Outros disseram o mesmo e aconselharam-me a arranjar comprimidos para dormir (para o sono, está visto, não para suicídio ou assassinato). Quando cheguei — com alguma relutância — a minha mãe foi firme e irónica: «Estou sozinha em casa todas as noites, há oito semanas», disse. «O que há agora de diferente? Eles pensam que eu vou…» Parou, à procura do fim da frase. Eu sugeri: «… atirar-me da janela?» Ela aceitou as palavras: «Eles pensam que eu vou atirar-me da janela, desatar num pranto ou fazer uma coisa estúpida como essa?» Expressou então um vivo desprezo pelos serviços fúnebres irlandeses: pela extensão do cortejo fúnebre, pela choradeira em público, pela viúva a ter de ser amparada. (Ela nunca estivera na Irlanda e muito menos num funeral irlandês.) «Pensam que vou precisar de alguém para me amparar?», disse em tom de desdém. Mas quando o agente funerário veio tomar nota do que ela queria — o caixão mais simples, só um ramo de rosas sem fita e nada de celofane —, a dado momento ela interrompeu-o e disse: «Não pensem que o choro menos só porque…» Desta vez a frase não precisou de ser completada.
Já viúva, disse-me: «Tive o melhor da vida.» De nada serviria contradizê-la cortesmente, adiantar um «Sim, mas». Alguns anos antes, ela tinha-me dito, na presença do meu pai: «É claro que o teu pai sempre preferiu os cães aos seres humanos», ao que o meu pai, face à provocação, fez uma espécie de aceno, a confirmar, e eu tomei esse gesto — talvez erradamente — por birra contra ela. (Também pensei que, apesar de saber isso, ela nunca mais quis outro cão durante os quarenta anos que se seguiram ao desaparecimento de Maxim: le chien.) E muito antes, quando eu era adolescente, disse: «Se eu pudesse voltar atrás, levava sozinha o meu próprio barco.» Tomei aquilo como simples birra contra o meu pai, sem pensar que tal reprogramação também teria obliterado os filhos… Talvez eu cite e dê falsa coerência a frases soltas. E o facto de a minha mãe não ter morrido de desgosto e ter ficado durante cinco anos à frente do seu próprio barco, na altura em que estava menos preparada para o fazer, também não significa nada.
Alguns meses após a morte do meu pai, eu falava um dia com a minha mãe ao telefone. Dizia-lhe que tinha amigos para jantar e referi que eu cozinhava um prato e a minha mulher o outro. Com o tom de voz mais próximo da melancolia que alguma vez lhe ouvira, ela disse: «Que bom que deve ser, vocês os dois juntos a cozinhar…» E depois, adotando um tom muito mais característico: «Eu nem sequer podia contar com o teu pai para pôr a mesa.» «A sério?» «Sim, ele punha tudo em cima da mesa de qualquer maneira. Era igual à mãe.» A mãe do meu pai! Morrera quase meio século antes, estava ele na Índia, durante a guerra. A avó Barnes era raramente mencionada em nossa casa; a família da minha mãe, viva ou morta, tinha a primazia. «Ah», disse eu, esforçando-me por não deixar transparecer na voz a curiosidade. «Ela era assim?» «Sim», respondeu a minha mãe, desenterrando um snobismo velho de meio século, «punha sempre as facas ao contrário.»
Imagino a vida mental do meu irmão a evoluir numa sequência de pensamentos abstratos e interligados, enquanto a minha se arrasta, languidamente, de história em história. Mas ele é filósofo e eu sou romancista, e até o romance com a estrutura mais complexa tem de parecer que se arrasta com languidez. A vida arrasta-se com languidez. E estas minhas histórias deverão ser vistas com desconfiança porque provêm de mim. Outro contador de histórias, que evocasse os últimos anos dos meus pais, poderia referir a devoção e a eficácia com que a minha mãe olhou pelo meu pai, a exaustão por o ver naquele estado e ainda a admirável gestão da casa e do jardim durante todo esse tempo. E também seria verdadeiro, embora eu não deixasse de notar uma alteração gramatical na maneira como tratara do jardim. Nos últimos meses em que o meu pai esteve no hospital, os tomates, os feijões e todas as coisas na estufa e no solo foram rebatizadas de «os meus tomates», «os meus feijões» e por aí fora, como se o meu pai tivesse sido expropriado, ainda antes de morrer.
Esse outro contador de histórias podia censurar este filho injusto que escreve — sobre a mãe totalmente inocente — um conto em que a transforma na mulher que espanca o marido. (Renard descobriu que circulava uma edição de Poil de Carotte em Chitry-les-Mines, com a inscrição anónima: «Exemplar encontrado por acaso numa livraria. Livro em que ele diz mal da mãe, para se vingar dela.») Mais, é indecente um filho descrever a decadência física do pai; isso contradiz o afeto que diz sentir; e, para conseguir enfrentar verdades desagradáveis, o filho procura qualquer coisa ridícula ou indigna, como a história do velho perturbado que tenta urinar para dentro da máquina de barbear. E, em parte, isso também pode ser verdade. Se bem que a história da máquina de barbear seja mais complicada; e eu gostaria de defender o comportamento do meu pai, que julgo ser quase racional. Ao longo da vida ele barbeara-se com lâmina e pincel e, consoante as épocas, a espuma vinha da tigela, do stick, da bisnaga ou do aerossol. A minha mãe nunca gostou da confusão que ele fazia no banho — «cãozinho porcalhão» era o termo reprovador na nossa casa sem cão — e assim, quando apareceram as máquinas elétricas de barbear, ela tentou convencer o meu pai a comprar uma. Ele recusou sempre: era um domínio em que não queria ser controlado. Lembro-me de, durante uma das suas primeiras estadas no hospital, eu e a minha mãe, ao chegar, o encontrarmos desesperado a barbear-se, a tentar com mão pouco firme, lâmina embotada e espuma insuficiente, embelezar-se para nos receber. Mas a dada altura, nos anos derradeiros, a campanha dela terá resultado — talvez porque ele já não tinha força nas pernas e não conseguia ficar de pé diante do lavatório. Por isso imagino o ressentimento face à máquina de barbear (que também imagino fosse comprada por ela). Devia constituir uma lembrança da força física perdida e prova da última derrota numa longa disputa conjugal. Como é que ele não havia de querer mijar lá para dentro?
«Acho que és a minha mulher.» Sim, mantermo-nos iguais a nós próprios: é o que esperamos, aquilo a que nos agarramos, quando pensamos no momento em que tudo se desmoronará. Por isso — e este foi um longo desvio para chegar a uma resposta — duvido que, quando esse momento chegar, eu procure o conforto teórico de uma ilusão que diz adeus a uma ilusão, um agregado fortuito que se desagrega. Hei de querer ficar naquilo que obstinadamente considero como o meu carácter. Francis Steegmuller, que assistira ao funeral de Stravinsky em Veneza, morreu com a mesma idade do compositor. Nas últimas semanas de vida perguntou à mulher, a romancista Shirley Hazzard, que idade ele tinha. Ela disse-lhe que ele tinha oitenta e oito anos. «Oh, meu Deus», respondeu ele. «Oitenta e oito. E eu sabia?» Era mesmo dele — o «sabia» é tão diferente de um «sei».
«Se eu fosse um fazedor de livros», escreveu Montaigne (embora não seja claro se ele se sentia mais ou menos do que isso), «faria um registo comentado de várias mortes. Quem ensinasse os homens a morrer, ensiná-los-ia a viver. Dicearco escreveu um livro com um título semelhante, mas com outra e menos útil intenção.»
Dicearco era um filósofo peripatético e — em total consonância — o seu livro sobre a deterioração da vida humana não conseguiu sobreviver. A versão breve da antologia de Montaigne, fazedor de livros, seria uma recolha de últimas palavras célebres. Hegel, no leito de morte, disse: «Só houve um homem que me compreendeu», e acrescentou: «E não me compreendeu.» Emily Dickinson disse: «Tenho de ir para dentro. O nevoeiro está a aumentar.» Père Bouhours, gramático, disse: «Je vas, ou je vais mourir: l’un ou l’autre se dit.» (Tradução livre: «Em breve vou, ou irei morrer: ambas estão corretas.») Às vezes uma última palavra pode ser um último gesto: a de Mozart foi articular em silêncio o som dos timbales do seu Requiem, cuja partitura inacabada se encontrava aberta sobre a colcha.
Momentos destes provam que podemos morrer iguais a nós próprios? Ou há neles algo intrinsecamente suspeito? Algo de comunicado de imprensa, de telegrama da Associated Press, de improviso preparado? Quando eu tinha dezasseis ou dezassete anos, o nosso professor de Inglês — não o que depois se matou, mas um com quem estudámos O Rei Lear e assim aprendemos que «maturidade é tudo» — disse à turma, não sem bastante autossatisfação, que já escolhera as suas últimas palavras; ou melhor, palavra. Tencionava dizer só: «Maldição!»
Este professor fora sempre cético em relação a mim. «Espero, Barnes», desafiou-me ele um dia, após uma lição insatisfatória, «que não seja um desses cínicos estuporados lá do fundo da aula.» «Eu, sir? Cínico, sir? Ah! não. Eu acredito em ovelhas a balir e em sebes floridas e na bondade humana, sir.» Mas até eu achei aquele projeto de despedida a si próprio cheio de estilo, e o Alex Brilliant também achou. Ficámos: a) impressionados com o talento; b) surpreendidos por este velho professor falhado ter tal conhecimento de si próprio; e c) decididos a não viver as nossas próprias vidas de maneira a que chegassem à mesma conclusão verbal. Espero que o Alex tenha esquecido isto no momento em que se matou com comprimidos, por causa duma mulher, dez anos mais tarde.
Mais ou menos na mesma altura, por uma estranha coincidência social, soube do fim da vida do professor. Sofrera uma trombose que o deixara paralisado e sem falar. Uma vez por outra, recebia a visita dum amigo alcoólico, que — convencido, como todos os alcoólicos, que toda a gente fica muito melhor com uma bebida — entrava na casa de saúde com uma garrafa de uísque escondida e despejava-a pela boca do velho professor, enquanto este o fitava de olhos esbugalhados. Teria havido tempo para a tal última palavra antes da trombose, ou conseguiria relembrá-la, ali estendido, enquanto lhe enfiavam a bebida goela abaixo? Isto chega para transformar qualquer um de nós no cínico estuporado lá do fundo da aula.
A medicina moderna, ao dilatar o período da morte, fez bastante pela produção de últimas palavras célebres, dado que, para as proferir, é preciso que o orador saiba que está na altura de o fazer. Os que estão decididos a partir com uma frase podiam, penso eu, pronunciá-la e passar depois a um silêncio monástico, até tudo acabar. Mas houve sempre algo de heroico nas últimas palavras célebres e, dado que já não vivemos em tempos heroicos, a sua perda não será muito lamentada. Devíamos era celebrar as últimas palavras pouco grandiosas, mas ainda cheias de carácter. Francis Steegmuller, poucas horas antes de morrer num hospital de Nápoles, disse (provavelmente em italiano) ao enfermeiro que lhe subia a cama: «Você tem umas mãos lindas.» Última e admirável perceção dum momento de prazer ao observar o mundo, no momento em que o deixamos. As últimas palavras de A.E. Housman foram para o médico que lhe deu uma final — talvez intencional e oportuna — injeção de morfina: «Belo trabalho.» A solenidade também não tem de se impor. Renard registou no seu Journal a morte de Toulouse-Lautrec. O pai do pintor, um conhecido excêntrico, foi visitar o filho e, em vez de se preocupar com o doente, começou logo a tentar apanhar as moscas que voavam pelo quarto. O pintor, da sua cama, comentou: «Velho estúpido!», e a seguir morreu.
Historicamente, o Estado francês só admitia no seu território duas espécies de seres humanos: os vivos e os mortos. Nada entre uma coisa e outra. Se estivéssemos vivos, éramos autorizados a circular e a pagar impostos. Se estivéssemos mortos, tínhamos de ser enterrados ou cremados. Podem achar que esta é uma categorização tipicamente burocrática, para não dizer ociosa. Mas há cerca de vinte anos, a sua verdade legal tornou-se objeto de contestação nos tribunais.
O caso surgiu quando uma mulher perto da meia-idade, que ia morrer de cancro, foi congelada pelo marido e conservada por meio de criógeno, numa fábrica de congelação. O Estado francês, recusando aceitar que ela não estava completamente morta, exigiu ao marido que a enterrasse ou a incinerasse. O marido levou o caso a tribunal e acabou por obter permissão para manter a mulher na cave. Cerca de duas décadas mais tarde, também ele não chegou a morrer e também ficou congelado criogenicamente, a aguardar a reunião conjugal por que tão profundamente ansiava.
Para os liberais da morte, que procuram uma posição intermédia entre a atitude do mercado livre, de usar e deitar fora, e a utopia socialista da eternidade para todos, a criogenia pode parecer que oferece resposta. Morremos, mas não morremos. O sangue é drenado, o corpo congelado e mantemo-nos vivos ou, pelo menos, não completamente mortos, até ao dia em que a nossa doença se tenha tornado curável, ou a esperança de vida tão prolongada, que despertamos com muitos novos e longos anos à frente. A tecnologia reinterpreta a religião — e fornece a ressurreição feita pelo homem.
Esta história francesa terminou há pouco tempo, de maneira tristemente familiar: uma avaria elétrica elevou a temperatura dos corpos a um nível que tornou impossível o regresso à vida, e o filho do casal viveu o pesadelo de todos os proprietários de congeladores. Porém, o que me impressionou mais do que a própria história foi a fotografia que acompanhava o artigo do jornal. Tirada na cave da casa francesa, mostrava o marido — já «viúvo» há muitos anos — sentado ao lado do mísero objeto que encerrava a mulher. Em cima do congelador havia uma jarra de flores e uma fotografia emoldurada da mulher, no auge da beleza. E ali, sentado ao lado do contentor da absurda esperança, encontrava-se um velho de ar fatigado e deprimido.
Nunca iria resultar, pois não? E devíamos ficar gratos por eles, pelo facto de não ter resultado. Parar o tempo? Voltar a dar corda ao relógio (ou fazer recuar os ponteiros — coisa que a minha mãe nunca teria permitido)? Imaginemos que somos uma mulher nova e dinâmica, que «morre» na casa dos trinta; imaginemo-nos a acordar e a descobrir que o nosso fiel marido viveu ainda bastante, até chegar a sua vez de ser congelado, e que agora o nosso cônjuge é alguém que, na nossa ausência, envelheceu vinte, trinta, quarenta anos. Retomamos o casamento onde o deixámos? Imaginemos o melhor cenário: que «morremos» ambos mais ou menos com a mesma idade, nos cinquenta, digamos, e que nos ressuscitam quando já há cura para as nossas doenças. O que aconteceu exatamente? Trouxeram-nos de novo à vida só para morrermos outra vez, sem voltarmos sequer a experimentar novamente a juventude. Devíamos ter lembrado, e seguido, o exemplo de Pompónio Ático.
Ter de novo a juventude, enganar não só a segunda morte, mas também a primeira — das duas, a que Montaigne achava mais difícil: é essa a verdadeira fantasia. Habitar em Tir-na-nog, o mítico país celta dos «sempre jovens». Ou entrar na Fonte da Juventude: o atalho popular e materialista do mundo medieval para o Paraíso. Ao entrar nas suas águas, a pele enrugada e flácida ficava instantaneamente lisa e rosada. Nada de burocracias, de juízo divino e pesagem de almas. A magia tecnológica da Fonte da Juventude, que oferecia a juventude enquanto a criogenia inapta só consegue oferecer uma velhice retardada. Não que os adeptos da criogenia desistam: os que se deixam congelar estarão seguramente a contar com a tecnologia das células estaminais para fazer recuar o relógio biológico na altura em que obtiverem a sua própria espécie de réveil mortel: «Ó criatura racional / Que desejas vida eterna.»
Fui demasiado rápido a julgar Somerset Maugham. «A grande tragédia da vida não é os homens perecerem, mas deixarem de amar.» A minha objeção era a de um jovem: sim, amo esta pessoa, e acredito que há de durar mas, mesmo que não dure, haverá mais alguém para mim, e para ela. Voltaremos os dois a amar e talvez, instruídos pela infelicidade, façamos melhor da próxima. Mas Maugham não negava isso; via para além disso. Lembro-me de uma história didática (talvez de Sir Thomas Browne) de um homem que leva uma série de amigos a enterrar e de cada vez se sente menos triste, até ao momento em que consegue contemplar serenamente a sepultura e pensar nela como sendo a sua. A moral não era que olhar o buraco negro resulta e que filosofar nos ajudará a morrer; a história era, sim, um lamento pela perda da capacidade de sentir, primeiro em relação aos amigos, depois em relação a nós e, por fim, em relação à nossa própria extinção.
Isso seria na verdade a nossa tragédia, de que sem dúvida só a morte poderia libertar-nos. Sempre desconfiei da ideia de que a velhice traz a serenidade, e suspeitei que muitos velhos eram emocionalmente tão atormentados como os novos, mas socialmente proibidos de o confessarem. (Esta era a razão objetiva para, na tal história, eu premiar o meu pai com uma ligação amorosa aos setenta anos.) Mas… e se eu estava enganado — duplamente — e essa necessária aparência de serenidade escondia, não um tumulto de emoções, mas o contrário, a indiferença? Com sessenta anos, penso nas minhas muitas amizades e constato que algumas delas já não são propriamente amizades, mas sim recordações de amizades. (Continua a haver prazer na recordação, mas ainda assim.) Surgem novas amizades, é claro, mas não tantas que cheguem para afastar o medo de que o terrível arrefecimento — equivalente emocional da morte do planeta — possa estar à espreita. À medida que as orelhas sobressaem e as unhas se partem, o coração mirra. Cá está mais uma vez o «preferimos o quê». Preferimos morrer na dor de ser arrancados àqueles que há tanto tempo amamos, ou morrer quando a nossa vida afetiva tiver acabado, quando olharmos o mundo, isto é, os outros e nós próprios com indiferença? «Nenhuma memória de ter brilhado / Repara a posterior indiferença / Nem impede que o fim seja pesado.» Turgueniev, depois de fazer sessenta anos, escreveu a Flaubert: «É o princípio do fim. Um provérbio espanhol diz que o rabo é a parte mais difícil de esfolar… a vida centra-se completamente em si própria, numa luta defensiva contra a morte; e esse exagero da personalidade faz com que ela deixe de ter interesse, até para a pessoa em questão.»
Não é só olhar o buraco negro que é difícil, mas também olhar a vida. É-nos difícil contemplar fixamente a possibilidade, e ainda mais a certeza, de que a vida é fruto do acaso cósmico e que o seu objetivo fundamental é a mera perpetuação de si própria, que ela se desenrola no vazio, que um dia o nosso planeta vogará no silêncio gelado e que a espécie humana, tal como se desenvolveu em toda a complexidade frenética e ultramanipulada, desaparecerá por completo e não fará falta, porque não haverá nada nem ninguém que dê pela nossa falta. É isto que significa crescer. E é uma perspetiva assustadora para uma raça que, durante tanto tempo, confiou nos deuses que inventou para explicar o mundo e para se consolar. Eis como um jornalista católico censura Richard Dawkins por envenenar o espírito e o coração dos jovens: «Os monstros intelectuais como Dawkie Odeiadeus espalham o evangelho desesperante do niilismo, do absurdo, da vacuidade; o vazio da existência, a ausência de significado em toda a parte e sempre e, para o caso de não conhecerem esta palavra útil, a floccinaucinihilipilification.» (Significa «considerar inútil».) Por trás do excesso e da deturpação do ataque, sentimos o medo. Acreditem no que eu acredito — acreditem em Deus — porque a alternativa é assustadora, é lixada. Seríamos como aquelas crianças que atravessam a medo a floresta austríaca de noite. Mas, em vez do simpático Herr Witters que nos incita a pensarmos só em Deus, haveria o velho e horrível Dawks, o professor de Ciências, a assustar-nos com as histórias dos ursos e da morte e a mandar-nos esquecer tudo e contemplar as estrelas.
Flaubert perguntou: «É esplêndido ou é estúpido levar a vida a sério?» E disse que devíamos ter «a religião do desespero», ser «iguais ao nosso destino, isto é, impassíveis como ele». Ele sabia o que pensava sobre a morte: «O eu sobrevive? Dizer que sim parece-me um mero reflexo da nossa presunção e do nosso orgulho, um protesto contra a ordem eterna! A morte não deve ter mais segredos para nos revelar senão a vida.» Mas, mesmo não confiando nas religiões, sentia uma ternura pelo impulso espiritual e desconfiava do ateísmo militante. «Cada dogma em particular repugna-me», escreveu. «Mas considero que o sentimento que os engendrou é a expressão de humanidade mais natural e poética. Não gosto dos filósofos que o rejeitaram como disparate e intrujice. O que eu encontro nele é necessidade e instinto. Por isso respeito o homem negro que beija o fetiche e o católico que ajoelha ante o Sagrado Coração.»
Flaubert morreu em 1880, no mesmo ano da mãe de Zola. Não por acaso, foi também o ano em que Zola recebeu le réveil mortel. Tinha então quarenta anos (por isso, nesse aspeto, eu fico a ganhar). Sempre o imaginei como eu, catapultado do sono para o medo ululante. Mas isto era uma apropriação. De facto, nesses momentos ele estava acordado: ele e a mulher, Alexandrine, incapazes de dormir por causa do terror mortal e cada um com vergonha de o confessar, ficavam assim, lado a lado, com o bruxulear duma luz noturna dissipando a escuridão total. Depois Zola via-se projetado para fora da cama — e o sortilégio rompia-se.
O romancista desenvolveu também uma obsessão por determinada janela da sua casa de Medan. Quando a mãe morreu, a escada revelara-se demasiado estreita e torta para o caixão, por isso os cangalheiros foram obrigados a fazê-la descer pela janela. Agora, Zola olhava-a sempre que passava, sem saber qual seria o próximo cadáver que levaria o mesmo caminho — o seu ou o da mulher.
Zola confessou estes efeitos do réveil mortel na segunda-feira, 6 de março de 1882, quando jantou com Daudet, Turgueniev e Edmond de Goncourt, que anotou tudo. Nessa noite os quatro — reduzidos do original «Dîner des Cinq» pela perda de Flaubert — falaram sobre a morte. Daudet deu início à conversa e confessou que, para ele, a morte se transformara numa espécie de perseguição, um envenenar da vida, a tal ponto que não podia mudar-se para um novo apartamento sem que o olhar procurasse logo o lugar onde seria colocado o seu caixão. Zola fez as suas confissões e depois foi a vez de Turgueniev. O afável moscovita estava tão familiarizado com a ideia da morte como todos os outros, mas tinha uma técnica para lidar com ela: sacudia-a assim — e demonstrava-o com um pequeno gesto de mão. Os Russos, explicou, sabiam fazer desaparecer as coisas numa «bruma eslava», que convocavam para se proteger de pensamentos lógicos mas desagradáveis. Deste modo, se fôssemos apanhados numa tempestade de neve, evitávamos deliberadamente pensar no frio, para não corrermos o risco de morrer gelados. O mesmo método podia aplicar-se com êxito ao tema maior: assim evitávamo-lo.
Vinte anos mais tarde, Zola morreu. Não alcançou a belle mort que em tempos glorificara — a de ser subitamente esmagado qual inseto sob um dedo gigante. Mas mostrou que, para um escritor, «morrer igual a si próprio» contém uma opção suplementar. Podemos morrer iguais ao nosso eu pessoal ou ao nosso eu literário. Alguns conseguem fazer as duas coisas, como Hemingway demonstrou ao enfiar dois cartuchos na sua espingarda Boss preferida (fabricada em Inglaterra, comprada no Abercrombie & Fitch), antes de meter os canos na boca.
Zola morreu igual ao seu eu literário, numa cena de psicomelodrama digna das suas primeiras obras de ficção. Ele e Alexandrine tinham regressado a Paris, vindos da casa com a janela ameaçadora. Estava um dia fresco, no final de setembro, por isso mandaram acender a lareira no quarto de dormir. Durante a sua ausência tinha havido obras no telhado do edifício, e aqui a narrativa oferece ao leitor uma escolha de interpretações. A conduta da chaminé fora bloqueada por operários incompetentes ou — segundo a teoria da conspiração — por assassinos antidreyfus. Os Zolas recolheram ao quarto e trancaram a porta, como tinham por hábito (e superstição) fazer; a combustão sem fumo libertou monóxido de carbono. De manhã, quando os criados arrombaram a porta, encontraram o escritor morto no chão e Alexandrine — poupada por meros centímetros à concentração letal do gás pesado — inconsciente na cama.
O corpo de Zola ainda estava quente, por isso os médicos tentaram reanimá-lo pelo procedimento usado cinco anos antes com Daudet: tração rítmica da língua. Apesar de, no caso de Zola, fazer um pouco mais de sentido — a técnica fora desenvolvida para vítimas de intoxicação com gases de esgoto —, nem por isso teve mais efeito. Alexandrine, quando voltou a si, explicou que tinham acordado durante a noite, incomodados com o que pensaram ser indigestão. Ela tinha querido chamar os criados, mas ele opusera-se, dizendo aquelas que viriam a ser as suas últimas palavras (modernas, não heroicas): «De manhã sentimo-nos melhor.»
Zola tinha sessenta e dois anos quando morreu, exatamente a idade que eu terei quando este livro for publicado. Por isso recomecemos. londrino morre: poucos feridos. Um londrino, com idade superior a sessenta e dois anos, morreu ontem. Durante a maior parte da vida gozou de boa saúde e nunca tinha passado uma noite no hospital, antes da última doença. Após um começo profissional lento e pouco endinheirado, alcançou mais sucesso do que esperara. Após um começo emocional lento e precário, alcançou a felicidade que a sua natureza permitia. («Tive uma vida feliz, eivada de desespero.») Apesar do egoísmo dos seus genes, não conseguiu — ou melhor, recusou — transmiti-los, porque acreditava também que essa recusa constituía um ato de livre-arbítrio face ao determinismo biológico. Escreveu livros e depois morreu. Embora um amigo mordaz pensasse que a vida dele se dividia entre a literatura e a cozinha (e a garrafa de vinho), havia outros aspetos: amor, amizade, música, arte, sociedade, viagens, desporto, humor. Era feliz na companhia de si próprio, desde que soubesse quando essa solidão terminaria. Amava a mulher e temia a morte.
Não parece assim tão mau, pois não? O mundo gera vidas bem piores e (isto é um palpite) mortes bem piores, portanto, qual é a aflição pela morte dele? Qual é a aflição dele, aliás? É, sem dúvida, o pecado capital inglês de chamar a atenção sobre si próprio. Ele não imaginará que os outros receiam a morte tanto como ele?
Bem, ele — não, voltemos ao eu —, eu conheço várias pessoas que não pensam muito nela. E não pensar nela é a maneira mais segura de não a recear — até ela chegar. «O mal é saber que vai acontecer.» A minha amiga H., que às vezes me censura a morbidez, reconhece: «Eu sei que as outras pessoas vão morrer, mas nunca penso que eu vou morrer.» O que, generalizado, dá o lugar-comum: «Sabemos que temos de morrer, mas pensamos que somos imortais.» As pessoas têm realmente contradições tão estrondosas na cabeça? Têm, e Freud achava que era normal: «O nosso inconsciente não acredita na nossa morte; comporta-se como se fosse imortal.» Portanto, a minha amiga H. encorajou simplesmente o inconsciente a controlar o consciente.
Algures entre essa distração útil e tática e a minha contemplação horrorizada do buraco negro, existe — tem de existir — uma posição intermédia racional, adulta, científica, liberal. Ei-la, enunciada pelo Dr. Sherwin Nuland, tanatólogo americano e autor de How We Die: «Uma expectativa realista exige também a aceitação de que o tempo da nossa existência na Terra tem de limitar-se a uma duração compatível com a continuidade da nossa espécie… Morremos para que o mundo possa continuar a viver. Recebemos o milagre da vida porque triliões e triliões de criaturas vivas nos prepararam o caminho e morreram — por nós, de certo modo. Pela nossa parte, morremos para que outros possam viver. A tragédia de um único indivíduo transforma-se, no equilíbrio natural das coisas, no triunfo da vida que prossegue.»
Tudo isto é não só razoável mas também sábio, certamente, e com raízes em Montaigne («Deem o lugar aos outros, como outros vos deram o lugar»); para mim, no entanto, é muito pouco convincente. Não existe razão lógica para que a continuidade da nossa espécie dependa da minha morte, da vossa ou da de mais alguém. O planeta pode estar a ficar um bocado cheio, mas o universo está vazio — lotes disponíveis, como nos lembra a tabuleta do cemitério. Se nós não morrêssemos, o mundo não morreria — pelo contrário, mais mundo estaria vivo. Quanto aos triliões e triliões de seres vivos que «em parte» — frase reveladora de fraqueza — morreram por nós: lamento, nem sequer aceito a ideia de que o meu avô morreu «em parte» para que eu pudesse viver, e muito menos o meu bisavô «chinês», os antepassados esquecidos, os macacos ancestrais, os anfíbios viscosos e os elementos aquáticos primitivos. Como não aceito a ideia de que eu morra para que outros possam viver. Nem que a vida assim perpetuada é um triunfo. Um triunfo? Há nisso muita complacência e algum sentimentalismo que se destina a suavizar o golpe. Se algum médico me disser, quando eu estiver deitado na cama de hospital, que a minha morte não só ajudará outros a viver, mas também será sintomática do triunfo da humanidade, olhá-lo-ei com muita atenção da próxima vez que ele regular o meu conta-gotas.
Sherwin Nuland, cujo bom senso amável e solícito me recuso a aceitar, vem duma profissão que — para surpresa dum leigo como eu — receia a morte ainda mais do que a minha. Os estudos indicam que «de todas as profissões, a medicina é a mais suscetível de atrair pessoas com grande ansiedade em relação à morte». É uma boa notícia sobre um ponto fundamental: Os médicos são contra a morte; já é menos boa porque podem transferir involuntariamente os seus próprios medos para os doentes, querer curar a todo o custo e fugir da morte como do fracasso. O meu amigo D. estudou num dos hospitais universitários de Londres que, tradicionalmente, têm a sua própria equipa de râguebi. Anos antes tinha havido um aluno que, apesar de chumbar repetidas vezes nos exames, fora sendo autorizado a ficar, devido à sua perícia nos lances. Por fim, esse talento começou a declinar e disseram-lhe — sim, temos de dar a vez a outros — que abandonasse o curso e o campo de treino. Então, em vez de se tornar médico, mudou de carreira de forma nada plausível para qualquer romance e tornou-se coveiro. Mais anos passaram e ele voltou ao hospital, desta vez como doente canceroso. D. contou-me que o puseram num quarto do último andar do edifício e que ninguém queria chegar perto dele. Não era só o cheiro horrível a carne morta devido ao cancro da faringe; era sobretudo o mau cheiro do fracasso.
«Não entres serenamente nessa noite escura», dizia Dylan Thomas ao pai moribundo (e a nós); e repetia o propósito: «Enfurece-te, sim, contra o romper da obscuridade.» Estes versos populares revelam mais dor juvenil (e fruição poética) do que sabedoria fundada em conhecimento clínico. Nuland afirma claramente que «qualquer que seja o grau de convicção humana de que na morte nada há a temer, a doença final será abordada com temor». Calma — e serenidade — são opções pouco prováveis. Além de que existem «probabilidades esmagadoras» de a morte não ocorrer como esperamos (o cenário da plantação de couves): o modo, o lugar, a companhia dececionar-nos-ão por igual. Além de que, contrariamente à famosa teoria dos cinco passos, de Elisabeth Kübler-Ross — segundo a qual os moribundos passam sucessivamente por negação, raiva, negociação e depressão até à aceitação final —, Nuland observa que, na sua experiência e na de todos os clínicos que conhece, «Alguns doentes nunca avançam, pelo menos abertamente, para lá da negação».
Talvez toda esta abordagem ao estilo de Montaigne, este fixar do buraco negro, esta tentativa de transformar a morte, se não em nossa amiga, pelo menos em nossa inimiga familiar — de tornar a morte maçadora, e até de aborrecer a própria morte com a nossa atenção — talvez não seja afinal a abordagem adequada. Talvez fizéssemos melhor em ignorar a morte enquanto estamos vivos e em adotar estritamente a negação à medida que a vida se aproxima do fim; isso poderia ajudar-nos, na expressão grotesca de Eugene O’Kelly, a «“ter sucesso” na morte». Se bem que naturalmente, quando digo que talvez «fizéssemos melhor», eu entenda que «ajudaríamos a nossa vida a passar mais facilmente», e não que «descobriríamos o máximo de verdade possível acerca deste mundo, antes de o deixarmos». O que é para nós mais útil? Os contempladores do buraco negro podem acabar por se sentir como as heroínas de Anita Brookner — conscienciosas, melancólicas adeptas da verdade, sempre a perder para as descontraídas ordinárias, que não só tiram da vida mais prazer desenfreado, como raramente pagam pelos seus delírios.
Eu compreendo (acredito) que a vida depende da morte. Que, para começar, não podemos ter um planeta sem a morte prévia de estrelas que se desintegram; e que, para que organismos complexos como o meu e o vosso habitem este planeta, para que exista vida consciente e capaz de se replicar, uma enorme sequência de evolução e mutação teve de ser experimentada e descartada. Eu entendo isto, e quando pergunto «Porque é que me calha a mim morrer?», saúdo a resposta pronta do teólogo John Bowker: «Porque nos calhou o universo.» Mas, pela minha parte, a compreensão de tudo isto não evoluiu: no sentido da aceitação, digamos, e muito menos da tranquilidade. E não me lembro de me candidatar para que me calhasse o universo.
Amigos que não receiam a morte e têm filhos sugerem que eu poderia sentir de outro modo se fosse pai. Talvez; e vejo que as crianças funcionam bem como «preocupações que valem a pena a curto (e a longo) prazo», do género recomendado pelo meu amigo G. Por outro lado, a minha consciência da morte assaltou-me muito antes de as crianças poderem ser tema de reflexão na minha vida; nem o facto de as ter ajudou Zola, Daudet, o meu pai ou o tanatofóbico G., que produziu o dobro da sua quota demográfica. Nalguns casos, os filhos até podem piorar as coisas: por exemplo, as mães podem sentir mais violentamente a sua mortalidade quando os filhos saem de casa — a função biológica foi cumprida e agora o universo só precisa que elas morram.
No entanto, o argumento principal é que, depois de morrermos, os filhos «nos prolongam»: não nos extinguiremos totalmente, e essa previsão reconforta, a nível consciente ou subconsciente. Mas eu e o meu irmão prolongamos os nossos pais? É o que julgamos fazer — e, se é assim, é-o de maneira minimamente parecida com «o que eles teriam desejado»? Nós somos sem dúvida maus exemplos. Aceitemos então que o suposto prolongamento intergeracional se passa de modo satisfatório para todos, que fazemos parte de uma rara sucessão de gerações cujo amor é recíproco e em que cada uma tenta perpetuar a memória, a virtude e os genes da anterior. Até onde vai o prolongamento? Uma, duas, três gerações? O que se passa quando chega a primeira geração nascida depois de morrermos, a que não tem possibilidade de se lembrar de nós e para a qual somos mero folclore? Seremos prolongados neles e eles saberão que é isso que estão a fazer? Como disse o grande contista irlandês Frank O’Connor, o folclore «nunca esclarece nada».
A minha mãe questionou a maneira como eu poderia prolongá-la, quando publiquei o «bombardeamento» de obscenidades que foi o meu primeiro romance? Duvido. O meu livro seguinte foi um policial que apareceu sob pseudónimo, de conteúdo significativamente mais obsceno, por isso aconselhei os meus pais a não o lerem. Mas a minha mãe não se deixou demover e, na devida altura, informou que certas passagens lhe «puseram os olhos fora das órbitas, quais cabides de sacristia». Lembrei-lhe a advertência. «Sim», retorquiu, «mas não se pode deixar um livro na estante.»
Duvido que visse os dois filhos como futuros continuadores da memória da família. Até ela preferia a visão retrospetiva. Preferia-nos — como preferia a maior parte das crianças — mais ou menos entre os três e os dez anos. Com idade suficiente para não serem «cãezinhos porcalhões», mas ainda livres da insolência e complicações da adolescência, para não falar da idade adulta, em que a igualavam e superavam. É claro que eu e o meu irmão nada podíamos fazer — com exceção da morte trágica e prematura — que nos impedisse de cometer o pecado banal de crescer.
Na rádio, ouvi uma especialista da consciência explicar que não há um centro no cérebro — não há localização do eu — nem física, nem virtualmente; e que a nossa noção de alma ou espírito deve ser substituída pela noção de «processo neuronal complexo». Explicou também que o nosso sentido moral advém da pertença a uma espécie que desenvolveu o altruísmo recíproco; que o conceito de livre-arbítrio, como «tomar decisões conscientes graças a um pequeno eu dentro de nós», tem de ser abandonado; que somos máquinas de copiar e transmitir fragmentos de cultura; e que as consequências de aceitar tudo isto são «realmente estranhas». Para começar significa, disse ela, que «estas palavras que saem desta boca, neste momento, não emanam de um pequeno eu cá dentro, emanam do universo inteiro que cumpre simplesmente a sua função».
Camus achava que a vida não fazia sentido — «absurda» era efetivamente o melhor termo, mais rico na caracterização da nossa situação solitária de criaturas «sem razoável razão de ser». Mas acreditava que, apesar disso, devemos enquanto aqui estamos inventar regras para nós próprios. Disse também: «Aquilo que sei com mais certeza sobre a moral e o dever, devo-o ao desporto» — especificamente ao futebol e ao tempo em que foi guarda-redes do Racing Universitaire em Argel. A vida como jogo de futebol, com regras arbitrárias mas necessárias, já que sem elas o jogo não podia simplesmente ser jogado; e nunca teríamos os momentos de beleza e alegria que o futebol — e a vida — podem dar.
Quando descobri pela primeira vez esta comparação, aplaudi-a como um adepto da geral. Também eu, como Camus, fui guarda-redes, ainda que menos destacado. O meu último jogo foi pelo New Statesman contra o Slough Labour Party. O tempo estava execrável, a pequena área um lamaçal e eu não tinha botas adequadas. Depois de deixar entrar cinco golos tive vergonha de voltar ao balneário, por isso meti-me no carro e, encharcado e abatido, fui direito a casa. O que aprendi nessa tarde sobre comportamento social e moral num universo sem Deus veio de dois miúdos, que passaram por trás da baliza e viram por instantes as minhas tentativas falhadas para impedir o Slough Labour Party de marcar. Daí a pouco, um deles comentou secamente: «Deve ser o suplente.» Às vezes não somos só amadores nas nossas vidas, também nos fazem sentir que não passamos de suplentes.
Hoje em dia a metáfora de Camus é obsoleta (e não só porque o desporto se tornou uma área de crescente desonra e desonestidade). Os pneus do livre-arbítrio foram esvaziados e a alegria que encontramos no belo jogo da vida é um mero exemplo de réplica cultural. Já não é: há lá fora um universo absurdo e sem Deus, por isso vamos demarcar o terreno e encher a bola. Mas sim: não há separação entre «nós» e o universo, e a ideia de que lhe vamos reagindo como entidade distinta é uma ilusão. Se é de facto assim, então a única consolação que posso tirar disto tudo é que não devia sentir-me tão mal por ter deixado entrar cinco golos no jogo contra o Slough Labour Party. Era só o universo a cumprir a sua função.
Também perguntaram à especialista da consciência como é que via a sua própria morte. Foi esta a resposta: «Sabe, encará-la-ia com serenidade, como mais uma etapa. “Ah, cá estou eu — estou aqui consigo no estúdio da rádio — um sítio maravilhoso. Ah, cá estou eu no leito de morte — é aqui que eu estou.” Eu diria que a aceitação é a consequência mais importante desta maneira de ver as coisas. Viver a vida plenamente, aqui e agora — fazer o melhor que podemos e, se me perguntarem porque devo fazê-lo, não sei. É aqui que nos confrontamos com a questão última da moral — mas é isso que esta coisa faz, esta coisa que sou eu. E espero que o faça no leito de morte.»
É filosoficamente correta, ou estranhamente desprendida, a hipótese de que a aceitação — o quinto e último estádio dos moribundos, segundo Kübler-Ross — surgirá quando for necessária? Saltar a negação, a raiva, a negociação e a depressão e ir diretamente para a aceitação? Também fico um bocado desapontado com «Ah, cá estou eu no leito de morte — é aqui que eu estou» como últimas palavras do futuro (continuo a preferir, por exemplo: «Vê se o Ben recebe o meu exemplar das obras do Aristóteles de Bekker», do meu irmão). E também não estou certo de confiar totalmente em alguém que chama a um estúdio de rádio «um sítio maravilhoso».
«É isso que esta coisa faz. E espero que o faça no leito de morte.» Reparem também na extinção do pronome pessoal. «Eu» sofreu uma mutação para «esta coisa», transformação ao mesmo tempo instrutiva e alarmante. Estando a personalidade humana a ser repensada, a linguagem humana deve sê-lo também. O mundo do jornalista que esboça retratos rápidos — um leque fixo de adjetivos, ilustrados por algumas piadas brejeiras — ocupa um extremo do espectro; o do filósofo e o do especialista do cérebro — não há comandante de submarino na torre e em toda a volta há um mar de vago associativismo — ocupa o outro. Algures no meio está o mundo quotidiano do bom senso, da dúvida útil, que é também onde vamos encontrar o romancista, o observador profissional do amadorismo da vida.
Nos romances (incluindo os meus) os seres humanos são representados como tendo uma personalidade essencialmente compreensível, se bem que por vezes instável, e motivações identificáveis para nós, mesmo que não necessariamente para eles. É uma versão mais subtil, mais verdadeira do breve perfil jornalístico. Mas e se não é essa, de facto, a realidade? Eu penso que recorreria à defesa automática A: já que as pessoas se imaginam dotadas de livre-arbítrio, personalidade formada e crenças largamente coerentes, então é assim que o romancista deve retratá-las. Mas, dentro de poucos anos, isto pode parecer a autojustificação ingénua de um humanista induzido em erro e incapaz de apreender as consequências lógicas da ciência e do pensamento moderno. Ainda não estou preparado para me considerar — ou a vocês, ou a uma personagem de um dos meus romances — como um processo neuronal complexo, e muito menos substituir um «eu» ou um «ele» ou uma «ela» por um «isso» ou «esta coisa»; mas reconheço que, atualmente, o romance fica aquém da realidade provável.
Flaubert disse: «É preciso aprender tudo, desde falar até morrer.» Mas quem pode ensinar-nos a morrer? Não há, por definição, velhos profissionais qualificados para falar — ou ensaiar — connosco. Há semanas, consultei a minha médica de clínica geral. Sou doente dela há uns vinte anos, embora seja mais comum encontrá-la no teatro ou numa sala de concertos do que no consultório. Desta vez, falámos dos meus pulmões; da vez anterior falámos da Sexta Sinfonia de Prokofiev. Ela pergunta-me o que estou a fazer; eu digo-lhe que estou a escrever sobre a morte; ela diz-me que também está. Quando me envia por e-mail o artigo sobre o tema, ao princípio fico alarmado: está cheio de referências literárias. «Eh, isso é o meu território», sussurro a mim próprio, apreensivo face à concorrência. Depois lembro-me que é normal: «Confrontados com a morte, tornamo-nos livrescos.» E, felizmente, os seus pontos de referência (Beckett, T.S. Eliot, Milosz, Sebald, Heaney, John Berger) raramente coincidem com os meus.
A dada altura ela fala dos retratos de Faium, essas imagens coptas que se apresentam ao olhar moderno como representações intensamente realistas de presenças individuais. Sem dúvida que o eram; mas não foram pintadas para decorar as paredes desta vida. Como as estatuetas das Cíclades, a sua função era totalmente prática e funerária: destinavam-se a ser fixadas a um corpo mumificado, para que no outro mundo os espíritos dos mortos fossem capazes de reconhecer o recém-chegado. Mas, de forma dececionante, o outro mundo revelou ser o mesmo, com mais alguns séculos, e os espíritos reinantes e os examinadores de retratos revelaram ser… nós próprios — uma versão muito inferior de eternidade.
Devia ser uma colaboração estranha, entre o modelo que se prepara para a morte e o artista que elabora a sua única representação. Era prático e metódico, ou revestido de temor lacrimoso (não só de morrer; mas também de não saber se a imagem seria suficientemente fiel para que o modelo fosse reconhecido)? Mas isso sugere à minha médica uma análoga e moderna transação clínica. «É isso», pergunta ela, «que se exige ao médico e ao doente [moribundo]? Se assim é, como sabemos qual o momento de começar?» Nesta altura percebo que, talvez para surpresa de ambos, ela e eu já começámos. Ela, ao enviar-me as suas reflexões sobre a morte, às quais responderei com este livro. Se se comprovar ser ela a acompanhar-me na morte, já tivemos pelo menos uma longa conversa preliminar e conhecemos os nossos pontos de divergência.
Como eu, ela não é crente; como Sherwin Nuland, fica horrorizada com a medicação maciça dada aos moribundos, com o modo como a tecnologia pôs de lado a reflexão sábia, para que a morte seja vista como um fracasso vergonhoso tanto pelo doente como pelo médico. Defende a reavaliação da dor, que não é necessariamente uma mera inimiga, mas algo de que o doente pode tirar proveito. Quer mais lugar para uma «absolvição profana», um tempo para fazer balanço, para expressar perdão e — sim — remorso.
Admiro o que ela escreveu, mas (para começar a despachar a nossa conversa final) discordo dela sobre um tema-chave. Ela, como Sherwin Nuland, vê a vida como uma narrativa. Morrer, que não faz parte da morte mas sim da vida, é a conclusão dessa narrativa, e o tempo que antecede a morte é a nossa última oportunidade de descobrir significado na história que está prestes a acabar. Talvez porque eu passo os meus dias de escritor a avaliar o que é e o que não é narrativa, não perfilho essa linha de pensamento. Lessing definiu a história como o ordenar dos acasos, e uma vida humana parece-me a versão reduzida disso: um intervalo de consciência durante o qual certas coisas acontecem, algumas previsíveis, outras não; em que certos esquemas se repetem, em que interagem as operações do acaso e aquilo a que, de momento, podemos chamar «livre-arbítrio»; em que, no geral, os filhos crescem e enterram os pais e, por sua vez, se tornam pais; em que, se tivermos sorte, encontramos alguém a quem amar e com ele ou ela uma forma de vida ou, se não, uma outra forma de vida; em que fazemos o nosso trabalho, procuramos o prazer, veneramos o nosso deus (ou não) e vemos a história avançar um ou dois pontos minúsculos. Mas, para mim, isto não constitui uma narrativa. Ou melhor: pode ser uma narrativa, mas eu não a sinto como tal.
A minha mãe, sempre que se exasperava com a falta de comparência ou o mau desempenho dum operário pateta ou desajeitado, dizia que era capaz de «escrever um livro» sobre as suas experiências com trabalhadores. E podia, de facto; e seria tão chato. Poderia incluir anedotas, pequenas cenas, retratos pessoais, sátira e até frivolidade; mas isso nada acrescentaria à narrativa. E o mesmo acontece nas nossas vidas: uma chatice atrás da outra — substituir um algeroz, reparar uma máquina de lavar — em vez duma história. Ou (desde que encontro a minha médica nas salas de concertos) não há um bom anúncio do tema, seguido de desenvolvimento, variações, recapitulação, coda e resolução convincente. Há por vezes uma ária exaltante, muito recitativo prosaico mas pouca composição global. «A vida não é longa nem curta — limita-se a ter longueurs.»
Então se, à medida que nos aproximamos da morte e olhamos para a nossa vida, «compreendemos a narrativa» e lhe encontramos sentido, desconfio que, praticamente, não fazemos senão efabular: transformar dados estranhos, incompreensíveis, contraditórios numa espécie, qualquer espécie de história credível — mas credível sobretudo para nós. Não ponho objeção à necessidade atávica de narrativa — ainda mais porque é assim que ganho a vida — mas desconfio dela. É de esperar que um moribundo seja um narrador pouco fiável, porque o que é útil para nós colide normalmente com o que é verdadeiro, e o que é útil nesse momento é a sensação de ter vivido com uma finalidade e de acordo com um enredo compreensível.
Os médicos, os padres e os romancistas conspiram para apresentar a vida humana como história que progride para uma conclusão importante. Dividimos respeitosamente as nossas vidas em secções, tal como os historiadores populares gostam de dividir um século em décadas e atribuir a cada uma delas uma personagem apócrifa. Quando eu era miúdo, a idade adulta parecia um estado inacessível — uma mistura de competências inatingíveis e ansiedades pouco invejáveis (pensões, dentaduras, pedicuros); e, no entanto, ela chegava, embora de dentro não parecesse o que se afigurava de fora. Nem parecia uma realização. Parecia mais conspiração: vou fingir que tu és adulto, se tu fingires que eu sou. Depois, na qualidade de adultos reconhecidos (ou, pelo menos, não desmascarados), prosseguimos rumo a uma condição mais plena e madura, em que a narrativa se justificou e em que é esperado proclamarmos, ou admitirmos timidamente: «A maturidade é tudo!» Mas em que medida é que a metáfora da fruta se aguenta? Arriscamo-nos tanto a azedar derrubados pelo vento, a secar e a mirrar ao sol, como a crescer orgulhosamente até à maturação.
Um homem escreve um livro sobre a morte. Entre o momento em que pensa a primeira frase — («Vamos então esclarecer esta coisa da morte.») — e o momento em que digita a primeira frase, real e diferente, morreram cerca de setecentos e cinquenta milhões de pessoas no mundo. Enquanto escreve o livro, morrem mais uns setenta e cinco milhões. E mais quarenta e cinco milhões entre a entrega do livro aos editores e a publicação. Quando olhamos estes números, o argumento de Edmond de Goncourt — sobre um contabilista divino demasiado assoberbado com trabalho se nos desse a todos outra vida — parece quase plausível.
Num dos meus romances, uma personagem imaginava que havia outras possibilidades para além do brutal ou/ou e do definitivo «preferimos o quê», entre 1. Deus existe ou 2. Deus não existe. Havia assim várias heresias sedutoras, como: 3. Deus existiu, mas já não existe; 4. Deus existe, mas abandonou-nos; 5. Deus existiu, e vai voltar a existir, mas de momento não existe — está só a gozar uma licença sabática (o que explicaria muita coisa); e por aí fora. A minha personagem continuava até ao número 15 (não há Deus, mas há vida eterna) até chegarmos, ela e eu, ao fim da nossa capacidade imaginativa.
Uma possibilidade que não considerámos foi a de Deus praticar a suprema ironia. Tal como os cientistas fazem experiências em laboratório com ratos, labirintos e bocados de queijo colocados atrás da porta certa, também Deus pode ter organizado a Sua própria experiência, pondo-nos no papel de ratos. A nossa tarefa é encontrar a porta atrás da qual se esconde a vida eterna. Junto de uma possível saída ouvimos música distante e etérea, junto de outra cheiramos incenso; e brilha uma luz dourada em torno duma terceira. Empurramos todas as portas, mas nenhuma cede. Com uma urgência cada vez maior — pois sabemos que a caixa matreira em que nos encontramos se chama «mortalidade» — tentamos fugir. Mas não percebemos que o significado da experiência é a nossa ausência de escapatória. Há muitas portas falsas, mas não há nenhuma verdadeira, porque não há vida eterna. O jogo inventado pelo Deus da ironia é esse: incutir desejos de imortalidade numa criatura pouco meritória e observar as consequências. Ver esses humanos, portadores de inteligência e consciência, a correr como ratos desesperados. Ver um dos grupos a ensinar a todos os outros que a sua porta (que eles também não conseguem abrir) é a única correta e começar a matar todos os que apostam numa porta diferente. Não era divertido?
O Deus experimentador, irónico, jogador. Porque não? Se Deus fez o homem, ou o homem fez Deus, à Sua ou à sua própria imagem, então Homo ludens implica Deus ludens. E o outro jogo favorito que Ele nos põe a jogar chama-se «Deus Existe»? Ele dá vários indícios e argumentos, lança pistas, introduz agentes provocadores dos dois lados (aquele Voltaire até fez um bom trabalho), depois volta a sentar-se com um sorriso beato e observa-nos enquanto tentamos arranjar uma solução. E não pensem que uma aceitação rápida e cobarde — «Sim, Deus, já sabíamos que estavas aí antes que outros o dissessem, és Tu o chefe!» — vai impressioná-lo. Se Deus tivesse classe, desconfio que aprovaria Jules Renard. Certos crentes confundiam o anticlericalismo tipicamente francês de Renard com ateísmo. Ao que ele respondia:
Vocês dizem que eu sou ateu, porque não procuramos Deus da mesma maneira. Ou melhor, vocês acreditam que O encontraram. Parabéns. Eu continuo a procurá-lo. E procurá-lo-ei mais dez ou vinte anos, se Ele me der vida. Receio não O encontrar, mas continuarei na mesma a procurar. Talvez Ele me agradeça a intenção. E pode ser que tenha piedade da vossa confiança arrogante e da vossa fé preguiçosa e simplória.
O jogo de Deus e o labirinto da Morte andam a par, sem dúvida. Formam um puzzle tridimensional do género que atrai os que se cansaram da simplicidade do xadrez. Deus, o jogo vertical, intersecta a Morte, horizontal, formando o maior de todos os puzzles. E nós escalamos a gritar escadas que acabam no vazio e viramos a correr esquinas que vão dar a becos sem saída. Isto lembra alguma coisa? E quase podemos acreditar que Deus — esta espécie de Deus — lia a passagem do diário de Renard: «E procurá-lo-ei mais dez ou vinte anos, se Ele me der vida.» Homem presunçoso! Por isso Deus deu-lhe seis anos e meio: nem sovina, nem benevolente; razoável. Razoável para Deus, entenda-se.
Se como homem receio a morte e se profissionalmente, como romancista, busco a visão contrária, devia aprender a argumentar em favor da morte. Uma maneira de o conseguir é fazer com que a alternativa — a vida eterna — pareça indesejável. Já houve quem tentasse, é claro. Esse é um dos problemas da morte: já quase tudo foi tentado. Swift tinha os seus Struldbruggs, nascidos com uma marca vermelha na fronte; Shaw, em Back to Methuselah, tinha os Anciãos, que nasciam de ovos e atingiam a idade adulta aos quatro anos. Em ambos os casos, o dom da eternidade revela-se enfadonho e as vidas perpétuas ficam reduzidas ao vazio; aqueles que as possuem — que as aguentam — anseiam pelo consolo da morte, que lhes é cruelmente negada. Isto parece-me uma abordagem tendenciosa e propagandista, concebida de forma muito evidente para consolar os mortais. A minha médica aponta-me uma visão mais subtil, no poema de Zbigniew Herbert, «Senhor Cogito e a Longevidade». O senhor Cogito «gostaria de cantar / a beleza da passagem do tempo»; aceita as rugas, recusa os elixires que prolongam a vida, «Deleita-se com os lapsos de memória / a memória atormentava-o» — em suma, «desde criança que a imortalidade / o punha num estado de temor agitado». Porque havemos de invejar os deuses, pergunta Herbert, e responde com ironia: «pelas correntes de ar celestes / pela administração atabalhoada / pela luxúria insatisfeita / pelo bocejo imenso».
A atitude é atraente, embora muitos de nós possam imaginar uma melhoria nas funções administrativas do monte Olimpo, e também não se importassem muito com as correntes de ar celestes nem com mais alguma satisfação da luxúria. Mas o ataque à eternidade é — tem de ser — um ataque à vida; ou, pelo menos, uma celebração e expressão de alívio face à sua brevidade. A vida está cheia de dor e sofrimento e medo, enquanto a morte nos liberta disso tudo. O tempo, diz Herbert, é a maneira de a eternidade nos manifestar clemência. Pensem nisto a continuar indefinidamente: quem não rezaria para lhe pôr fim? Jules Renard concordava: «Imaginem a vida sem a morte. Por desespero, todos os dias tentaríamos matar-nos.»
Pondo de lado o problema do carácter eterno da eternidade (que podia, penso eu, ser resolvido — com tempo), uma das atrações da obsoleta sobrevivência à morte, arranjada por Deus — à parte a atração óbvia e espetacular de não morrer —, vem do nosso desejo e necessidade de julgamento subjacentes. É certamente um dos atrativos viscerais da religião — e o que atraía Wittgenstein. Passamos a vida a ver-nos parcialmente a nós próprios e aos outros, e a ser parcialmente vistos por eles. Quando nos apaixonamos, temos esperança — ao mesmo tempo egoísta e altruisticamente — de sermos, por fim, verdadeiramente vistos: julgados e aprovados. É claro que o amor nem sempre traz aprovação: ser visto pode também levar à reprovação e a uma estada no Inferno (o problema, e o paradoxo, é que o amante deve ter o discernimento suficiente para escolher um ser amado com a reciprocidade de discernimento capaz de o aprovar). Antigamente, podíamos consolar-nos dizendo que o amor humano, ainda que breve e imperfeito, mais não era do que a amostra da visão maravilhosa e perfeita do amor divino. Agora ele é tudo o que temos, e temos de nos contentar com o estatuto de seres destituídos. Mas ainda aspiramos à verdade e ao consolo de sermos vistos na totalidade. Isto dava um bom final, não dava?
Assim talvez pudéssemos dedicar-nos só ao Juízo Final e abandonar a parte celestial — que, de qualquer modo, poderia conter o Deus reprovador da imaginação de Renard: «Vocês não estão aqui para se divertirem, sabiam?» Se calhar não precisamos do acordo por inteiro. Ora pensem um instante — cenário possível de Deus, número 16b — numa reação sensata de Deus ao dossiê da nossa vida. «Olha», diria Ele, «li os documentos e ouvi as alegações do teu divino e distintíssimo advogado. Tentaste sem dúvida fazer tudo da melhor maneira (e, aliás, eu outorguei-te o livre-arbítrio, digam lá esses provocadores o que disserem). Foste uma criança obediente e bom pai, deste para obras de caridade, ajudaste um cão cego a atravessar a rua. Fizeste o melhor que se espera de qualquer ser humano, dada a matéria de que és feito. Queres ser visto e aprovado? Pronto, ponho na tua vida, no teu dossiê e na tua fronte o meu selo de visto & aprovado. Mas sinceramente, sejamos francos um com o outro: achas que mereces a vida eterna como recompensa da tua existência humana? Não te parece que é ganhar um grande jackpot pela ninharia dum investimento entre cinquenta e cem anos? Receio que Somerset Maugham tivesse razão ao afirmar que a vossa espécie não foi feita para tanto.»
Seria difícil discordar. Se o argumento do tédio da eternidade e do sofrimento da vida não convencem, o argumento da indignidade continua a ser persuasivo. Mesmo com uma divindade misericordiosa — para não dizer lamechas — podemos declarar objetivamente que faria muito sentido perpetuarmo-nos? Seria lisonjeiro fazer parte da exceção esporádica — Shakespeare, Mozart, Aristóteles lá em cima, para lá do cordão de veludo, e os outros todos cá em baixo, no alçapão — mas não faria grande sentido, pois não? Na vida há esse aspeto do tamanho único e ele não se detém com especificidades.
As cinzas dos meus pais foram espalhadas ao vento do Atlântico, que soprava em rajadas, na costa francesa; os meus avós dissiparam-se no crematório, a menos que tenham sido metidos em urnas e extraviados. Nunca visitei a sepultura dum único membro da minha família e duvido que alguma vez o faça, a não ser que o meu irmão me obrigue (tenciona ficar enterrado no quintal dele, ao som dos lamas a pastar na horta). Mas visitei as sepulturas de vários familiares que não são do meu sangue: Flaubert, Georges Brassens, Ford Madox Ford, Stravinsky, Camus, George Sand, Toulouse-Lautrec, Evelyn Waugh, Degas, Jane Austen, Braque… Algumas foram difíceis de encontrar, e quase não havia gente nem flores em nenhum dos túmulos. Teria sido impossível localizar Camus, não fora a presença da mulher num talhão a seu lado, mais bem tratado. Levei hora e meia para localizar Ford, num vasto cemitério no cimo duma encosta, em Deauville. Quando encontrei finalmente a laje tumular, simples e baixa, o nome e as datas estavam quase ilegíveis. Baixei-me e limpei as ranhuras cinzeladas e cheias de líquen com as chaves do meu carro alugado, raspando e limpando até o nome do escritor aparecer novamente limpo. Limpo, mas estranho: quer fosse por culpa do pedreiro francês, que distribuíra mal os espaços, quer fosse pela maneira como eu os limpara, os três nomes pareciam agora separados de forma diferente. Começava bem, com FORD, mas depois continuava com MAD OXFORD. Talvez a minha perceção fosse influenciada por me lembrar da descrição que Lowell fizera do romancista inglês: «Um velho louco pela escrita.»
Eu gostaria de me tornar (embora, por certos cálculos burocráticos, já o seja) um velho louco pela escrita; nem me importava que me visitassem. Agrada-me a ideia — um desejo que o meu irmão poderá considerar ilegítimo, por ser a vontade futura do defunto, ou a vontade do futuro defunto — de alguém ler um livro meu e a seguir procurar o meu túmulo. É sobretudo vaidade literária; mas, lá no fundo, esconde-se a rude superstição. Tal como é difícil expulsar inteiramente a persistente lembrança de Deus, a fantasia do Juízo Final (que se supõe justo, ou seja, profundamente benévolo) e o sonho otimista e irremediável de que há um famigerado sentido celestial para isto tudo, também é difícil abraçar constantemente a convicção de que a morte é definitiva. A mente continua a tentar fugir da situação mortal, continua a ser tentada por um pouco de ficção científica. E se Deus já lá não está para nos ajudar, e se a criogenia é um velho triste e sentado ao pé dum frigorífico avariado, à espera que uma tragédia acabe bem, então temos de procurar noutro lado. No meu primeiro romance, o narrador (por vezes, demasiado convincente, do ponto de vista autobiográfico) considera a possibilidade de algum tipo de clonagem. Imagina-a naturalmente em termos do provável insucesso. «Imaginemos que descobrem uma maneira, mesmo depois de estarmos mortos, de nos reconstituírem. E se desenterram o caixão e veem que estamos podres de mais? E se fomos cremados e não encontram todas as partículas… E se a Comissão Nacional de Revivificação decide que não somos pessoas suficientemente importantes…» E por aí fora — até ao cenário em que fomos aprovados para uma segunda encarnação e estamos prestes a voltar à vida, quando uma enfermeira desastrada deixa cair um tubo de ensaio imprescindível e a nossa visão, que clareava, se ensombra perpetuamente.
«A vontade do futuro defunto.» O meu irmão menciona em tom sarcástico que «Infelizmente, todas as nossas vontades são vontades de futuros defuntos». Mas, seja como for e valendo o que vale, enterro, sim. Visitem-me e raspem o líquen do meu nome com a chave do vosso carro alugado; depois proponham-me para a ressurreição laica a partir dum naco do meu ADN, mas não antes — espero que não se importem com a minha insistência neste ponto — de o processo técnico estar mesmo aperfeiçoado. E depois veremos se a minha consciência é a mesma da primeira vez, se me lembro de alguma coisa desta vida anterior (reconheço a frase como sendo minha), se me sento ao pé da primeira máquina de escrever que encontre e, com excitação laboriosa, produzo os mesmos livros todos, outra vez. Nesse caso haverá, além de tudo o mais, alguns problemas interessantes com os direitos.
Não, nisso tudo quase não há esperança. Sei que extraíram do gelo permanente pedaços de mamute-lanoso e planeiam recriar em laboratório um desses colossos de dentes longos. Mas imagino que os romancistas suplicantes ficariam bem lá no fim de qualquer lista (talvez no futuro os escritores tratem de incluir no contrato a ressurreição, tal como asseguram a impressão dos livros em papel sem ácido). O melhor é concordar com o ou/ou do Estado francês: ou estamos vivos, ou estamos mortos e nada entre uma coisa e outra. É melhor transformá-lo em adieu definitivo do que em au revoir do tipo «uma hipótese num bilião» e dizer com Daudet: «Adeus, mulher… família, coisas do meu coração…» E depois: «Adeus, meu querido eu, agora tão vago e indistinto.» É mais sábio, ou não?
A sabedoria consiste em deixar de fingir, em rejeitar o artifício. Rossini escreveu a Pequena Missa Solene após um retiro de trinta e oito anos. Chamou às suas últimas obras «os pecados da minha velhice» e à missa «o último desses pecados». No fim do manuscrito, escreveu uma dedicatória em francês: «Bem, querido Deus, cá está ela enfim terminada, a minha Pequena Missa Solene. Escrevi mesmo música sagrada, ou é igual às coisas do costume? Eu nasci para a ópera bufa, como Tu bem sabes. Pouca ciência, só sentimento, mais nada. Assim, Glória a Deus e por favor concede-me o Paraíso. G. Rossini — Passy, 1863.»
A inscrição é pueril, no otimismo e na confiança. E há algo de infinitamente tocante quando um artista, na velhice, adota a simplicidade. O artista diz: alarde e ostentação são truques da juventude e, sim, a exibição faz parte da ambição; mas, agora que somos velhos, tenhamos a confiança de falar com simplicidade. Para os que são religiosos, isso pode significar tornar-se outra vez criança para entrar no Paraíso; para o artista, significa tornar-se suficientemente sábio, e suficientemente sereno, para nada esconder. Precisamos de todas estas extravagâncias na partitura, de todas estas marcas na tela, de todos estes adjetivos exuberantes? Não é só humildade face à eternidade; é também o tempo que levamos, o tempo de uma vida, para vermos — e dizermos — coisas simples.
«Suficientemente sábio.» Por vezes os meus coetâneos dizem, com ar perplexo: «O que é engraçado é que não me sinto mais velho.» Eu sinto, e em caso de dúvida há um cálculo simples de fazer quando passamos por um precoce fumador de doze anos, refastelado junto ao portão da escola. Penso que eu, com sessenta anos em 2006, estou mais próximo da idade do mais velho soldado sobrevivente da Primeira Guerra Mundial do que daquele miúdo. Sinto-me mais sábio? Sim, um pouco; sem dúvida menos louco (e talvez suficientemente sábio para lamentar a perda de alguma loucura). Suficientemente sábio para ser simples? Ainda não, Senhor.
A sabedoria é a recompensa virtuosa para os que examinam pacientemente o funcionamento do coração humano e do cérebro humano, que aceitam a experiência e adquirem assim compreensão da vida: ou não é? Bem, Sherwin Nuland, tanatólogo e sábio, tem algo a dizer sobre o assunto. Querem primeiro a boa ou a má notícia? É bom escolher sempre a boa — podemos morrer antes de ouvir a má. A boa notícia é que às vezes, de facto, ficamos mais sábios quando envelhecemos. Agora a má notícia (mais longa). Sabemos bem de mais que os nossos cérebros se gastam. Por muito freneticamente que os seus componentes se renovem, as células do cérebro (como os músculos do coração) têm uma duração limitada. Por cada década de vida depois dos cinquenta anos, o cérebro perde dois por cento do seu peso; ganha também um tom amarelado — «até a senilidade tem código cromático». A área motora do nosso código frontal perderá de vinte a cinquenta por cento dos seus neurónios, a área visual cinquenta por cento e a área física sensorial mais ou menos o mesmo. Não, essa não é a parte má. A parte má vem dentro duma parte relativamente boa — a notícia de que as funções intelectualmente mais elevadas do cérebro são muito menos afetadas por esta morbidez celular generalizada. Na verdade, parece que «certos neurónios do córtex» se tornam mais abundantes depois de atingirmos a maturidade, e há mesmo provas de que as ramificações filamentosas — as dendrites — de muitos neurónios continuam a crescer nas pessoas idosas que não sofrem de Alzheimer (se têm Alzheimer, esqueçam). É por isso que «os neurofisiologistas poderão efetivamente ter descoberto a fonte dessa sabedoria que gostaríamos de acumular com o avançar dos anos». Ponderem no «gostaríamos de acumular» e angustiem-se. Um amigo que de quando em vez desabafa comigo alcunha-me de «O Centro de Aconselhamento» — epíteto que, mesmo tendo em conta a ironia, me dá um absurdo prazer. Mas sucede que só tenho esta excrescência de ramificações filamentosas — e nada posso fazer.
Sabedoria, filosofia, serenidade: que peso terão contra o terror mortal, onze numa escala de um a dez? Dou-vos Goethe como exemplo. Um dos homens mais sábios do seu tempo, que passou dos oitenta anos com todas as faculdades intactas, saúde excelente e fama universal. Sempre fora impressionantemente cético quanto à noção de sobrevivência após a morte. Achava que a preocupação com a imortalidade era uma preocupação de espíritos ociosos, e considerava demasiado presunçosos os que nela acreditavam. A sua posição engraçada e prática era que, se depois desta vida viesse a descobrir que havia outra, decerto ficaria contente; mas esperava ardentemente não encontrar todos os maçadores que tinham passado o seu tempo na Terra a proclamar a crença na imortalidade. Ouvi-los gabarem-se: «Tínhamos razão! Tínhamos razão!» seria ainda mais intolerável na outra vida do que havia sido nesta.
O que poderá ser mais razoável e mais sábio do que isto? E assim Goethe continuou a trabalhar até uma idade avançada e completou a segunda parte do Fausto no verão de 1831. Nove meses mais tarde, adoeceu e caiu à cama. Teve um último dia de grande sofrimento mas, mesmo depois de perder a fala, continuou a desenhar letras na manta que lhe cobria os joelhos (sempre com o cuidado habitual na pontuação — exemplo maravilhoso de morrer igual a si próprio). Os amigos afirmaram lealmente que ele morrera de maneira nobre, e até cristã. A verdade, revelada no diário do médico, era que Goethe fora «tomado de terrível medo e agitação». A razão para o «horror» desse último dia foi óbvia para o médico: Goethe, o sábio Goethe, o homem que tinha de tudo uma perspetiva justa, não conseguiu evitar o terror que Sherwin Nuland nos promete.
Turgueniev tinha esse pequeno gesto de mão, que fazia desaparecer qualquer tema intolerável numa bruma eslava. Hoje em dia, gesto e bruma estão disponíveis na farmácia. Quando a minha mãe teve a primeira trombose, os médicos, por rotina — e sem dizerem à família —, encheram-na de antidepressivos. Por isso, embora estivesse furiosa e muitíssimo frustrada, e por vezes «totalmente passada», talvez não estivesse deprimida. O meu pai, que a precedeu nessa via, parecia muitas vezes deprimido, sentado com a cabeça entre as mãos. Eu achava que era uma reação natural e lógica, tendo em conta: a) o que lhe acontecera, b) o temperamento dele, e c) o facto de ser casado com a minha mãe. Talvez a medicina venha a desenvolver um processo que nos permita controlar a parte do cérebro que imagina a própria morte. Qual conta-gotas de morfina acionado pelo paciente, poderíamos, com uma pressão do polegar, controlar o nosso estado de espírito e o nosso sentimento face à morte. Negação clique. Raiva clique. Negociação clique. Ah, assim é melhor! E talvez sejamos capazes de, com um clique, passar da mera aceitação («Ah, cá estou eu no leito de morte — olha, estou aqui.») à aprovação: achar tudo razoável, natural, desejável até. Sentir-nos-emos reconfortados com a Lei da Conservação da Massa, com a consciência de que nunca nada se perde no universo. Sentiremos gratidão por termos tido a sorte de existir, quando triliões e triliões de seres potenciais nunca nasceram. Reconheceremos que maturidade é tudo, e pensaremos em nós como o fruto feliz que cai do ramo, safra que aguarda serenamente a colheita. Orgulhar-nos-emos de dar lugar aos outros, assim como outros nos deram lugar. Ficaremos convencidos e consolados com aquela imagem medieval do pássaro que entra no salão iluminado e sai a voar pelo outro lado. E no fundo, enquanto animais moribundos, nada poderia ser-nos mais útil. Bem-vindos ao Hospital da Euforia.
Provavelmente morreremos no hospital, vocês e eu: uma morte moderna, com pouco folclore. Em Chitry-les-Mines os camponeses queimavam a palha do colchão do defunto, mas conservavam o pano. Quando Stravinsky morreu, a sua viúva Vera certificou-se de que todos os espelhos do quarto eram tapados; também evitou tocar no cadáver, por acreditar que o espírito ainda lá viveria durante quarenta dias. Em muitas culturas, as portas e janelas ficariam abertas para que a alma pudesse fugir e voar livremente; e, pela mesma razão, ninguém devia debruçar-se ou ficar diante dum moribundo. A morte no hospital acabou com tais costumes. Em vez de folclore, temos procedimentos burocráticos.
Na Conservatória do Registo Civil de Witney, na porta dos Nascimentos e Óbitos estava escrito: bata e espere. Enquanto eu e a minha mãe esperávamos, um casal brincalhão que vinha da secção dos Casamentos passou junto a nós no corredor. A funcionária era uma mulher de trinta e muitos anos, que tinha duas bonecas Cabbage Patch penduradas na parede e, ao lado, um volumoso livro de bolso de Maeve Binchy. Ao ver-se perante uma leitora, a minha mãe disse que o filho também era escritor (morri de embaraço): «Julian Barnes, já ouviu falar?» Mas a funcionária não tinha ouvido; descobrimos, no entanto, um campo literário em comum, quando comentámos a adaptação televisiva do livro de Melvyn Bragg, A Time to Dance. Ela fez as perguntas e preencheu em silêncio os formulários. E então sem saber, já no final, a funcionária conquistou a aprovação da minha mãe. A minha mãe inclinou-se para assinar a certidão de óbito do marido e a funcionária exclamou: «Ah, mas que unhas tão bem arranjadas!» Como sempre foram. As suas unhas: a razão por que preferia ser surda a ser cega.
Cinco anos mais tarde, quando declarei a morte da minha mãe, atendeu-me outra mulher, com fala de metrónomo e sem jeito — nem sorte — para o contacto humano. Estavam explicados todos os pormenores, feitas as assinaturas, recebidos os duplicados e já eu me levantava para sair, quando ela proferiu de repente, com voz inerte, quatro palavras desumanas e supérfluas: «Está feita a declaração.» Empregou o mesmo tom mecânico usado pelos patrões humanoides da Football Association quando a última bola de marfim sai do saco de veludo e anunciam: «Está feito o sorteio para os quartos de final da Taça.»
E está feito o folclore da minha família. Eu gostaria de mais um pouco. Não me importava que vocês ficassem ao pé de mim, junto ao meu leito de morte. Uma cara simpática seria bem-vinda, ainda que duvide da sua disponibilidade às duas da manhã, num hospital com falta de pessoal. Não espero que as portas e janelas fiquem abertas depois de eu morrer, até porque a companhia de seguros se recusaria a pagar, em caso de assalto. Mas não me importava de ter a lápide. No último ano de vida, quando já se sabia condenado, Jules Renard ganhou o hábito de visitar cemitérios. Um dia foi ver o túmulo dos irmãos Goncourt, em Montmartre. O irmão mais novo fora lá enterrado em 1870. O mais velho, Edmond, foi enterrado em 1896, após um elogio fúnebre proferido junto à campa por Zola, com a sua fobia da morte. Renard anotou no Journal que era tal o orgulho literário dos irmãos, que desdenhavam mencionar a profissão. «Dois nomes, dois pares de datas, eles acharam que bastava. Eh! Eh!», comenta Renard, com a curiosa transcrição francesa duma gargalhada. «Não nos podemos fiar.» Mas tal simplicidade denotava vaidade — convicção de que toda a gente sabia quem eles eram — ou exatamente o contrário, uma preocupação séria de evitar a ostentação? Talvez também a consciência prudente de que, uma vez lançado à história, nenhum nome de escritor fica seguro? Gostaria de saber o que diz a inscrição no túmulo de Renard.
«Provavelmente morreremos no hospital, vocês e eu.» Uma coisa disparatada para dizer, se bem que estatisticamente possível. O momento, bem como o lugar da nossa morte, são-nos felizmente ocultados. Esperamos uma coisa e provavelmente teremos o oposto. A 21 de fevereiro de 1908, Renard escreveu: «Amanhã faço quarenta e quatro anos. Não é uma idade importante. Aos quarenta e cinco é que temos de começar a pensar. Quarenta e quatro é um ano fácil, para vivermos bem.» No próprio dia do aniversário, ficou um pouco mais sombrio: «Quarenta e quatro — a idade em que temos de perder a esperança de viver o dobro.»
Admitir que talvez não cheguemos aos oitenta e oito parece mais um cálculo modesto do que uma atitude de desafio. Porém, no ano seguinte, a saúde de Renard deteriorara-se de tal modo que ele não conseguia andar duma ponta à outra das Tulherias sem se sentar a conversar com as velhas que vendiam junquilhos. «Terei de começar a tomar notas sobre a minha velhice», concluiu, e escreveu pesarosamente a um amigo: «Tenho quarenta e cinco anos — não seria velho, se fosse uma árvore.» Uma vez, pedira a Deus que não o deixasse morrer muito depressa, porque não se importava de observar o processo. De quanta observação acharia que precisava? Foi até aos quarenta e seis anos e três meses.
Quando a mãe caiu para trás, dentro do poço, fazendo «um ligeiro remoinho, familiar para quem já afogou um animal», Renard comentara: «A morte não é artista.» As suas virtudes são, quando muito, artesanais: diligência, aplicação obstinada e um espírito de contradição que por vezes atinge o nível da ironia; mas não tem suficiente subtileza, nem ambiguidade, e é mais repetitiva do que uma sinfonia de Bruckner. É verdade que ataca onde quer e se rodeia de um chorrilho de costumes e superstições — mas esses são obra nossa, e não dela. Renard anotou um pormenor, sem dúvida desconhecido da minha família carenciada, no que a folclore diz respeito: «Quando a morte se aproxima, sentimos um cheiro a peixe.» Ora aí está uma coisa a ter em conta.
Mas porque é que a morte se há de importar que nos juntemos ou não a Renard e a excluamos com altivez da guilda dos artistas? Quando é que ela alguma vez procurou a aprovação da Arte? Com o seu associado, o Tempo, limita-se a cumprir a tarefa, triste comissária do povo que realiza com segurança uma quota de cem por cento. A maior parte dos artistas olha-a com cautela. Alguns veem-na como uma exortação para não perderem tempo; outros acreditam, com otimismo, que a visão retrospetiva da posteridade lhes fará justiça (mas «porque é que as pessoas haviam de ser menos estúpidas amanhã do que são hoje?»); para outros ainda, a morte é o melhor estímulo profissional. Chostakovich, ao observar que o medo da morte é «provavelmente o sentimento mais profundo que temos», acrescentou: «A ironia é que, sob a influência desse medo, as pessoas criam poesia, prosa e música; ou seja, procuram reforçar os laços com os vivos e aumentar a influência sobre eles.»
Criamos arte a fim de derrotar ou, pelo menos, desafiar a morte? Para a transcender, para a pôr no seu lugar? «Podes levar o meu corpo, podes levar toda a substância viscosa que está dentro do meu crânio, onde se escondem a lucidez e imaginação que eu possa ter, mas não podes levar o que eu fiz com elas.» É esse o nosso significado subjacente e a nossa motivação? Muito provavelmente — embora sub specie aeternitatis (ou mesmo na perspetiva de um ou dois milénios) seja uma patetice. Estes versos orgulhosos de Gautier, de que tanto gostei: «Os próprios deuses morrem. / Mas, soberana, / A poesia fica, / Mais forte do que o bronze», afiguram-se agora uma consolação adolescente. Os gostos mudam; as verdades tornam-se lugares-comuns; formas de arte desaparecem por inteiro. Até o maior triunfo da arte sobre a morte é risivelmente temporário. Um romancista pode esperar mais uma geração de leitores — duas ou três, se tiver sorte —, o que pode dar a impressão de desdém pela morte; mas, na realidade, não passa dum arranhão na parede da cela do condenado. Fazemo-lo para dizer: «Eu também aqui estive.»
Podemos permitir à Morte, como a Deus, que use por vezes a ironia, mas não devemos confundi-las. A diferença essencial permanece: Deus pode estar morto, mas a Morte está bem viva.
A morte praticante da ironia: o locus classicus é a história milenária que descobri pela primeira vez ao ler Somerset Maugham. Um mercador de Bagdade manda o criado sair para ir às compras. No mercado, o homem é empurrado por uma mulher; volta-se e reconhece a Morte. Corre para casa, pálido e trémulo, e implora ao patrão que lhe empreste o cavalo: tem de ir imediatamente a Samarra, para se esconder onde a Morte nunca o encontre. O patrão consente; o criado vai-se embora. O próprio patrão vai então ao mercado, interpela a Morte e repreende-a por ter ameaçado o criado. «Oh», responde a Morte, «mas eu não fiz qualquer gesto de ameaça — só surpresa. Fiquei espantada ao ver o tipo esta manhã, em Bagdade, porque eu tenho encontro marcado com ele hoje à noite, em Samarra.»
E agora uma história mais moderna. Papel Apostolov era um musicólogo e compositor de filarmónica, que perseguiu Chostakovich a vida toda. Durante a Grande Guerra Patriótica, fora coronel e chefiara um regimento; depois tornou-se membro importante da secção musical do Comité Central. Chostakovich dizia dele: «Chegou num cavalo branco, e matou a música.» Em 1948, o comité de Apostolov obrigou o compositor a renegar os seus pecados musicais e levou-o quase ao suicídio.
Vinte anos depois, a Décima Quarta Sinfonia de Chostakovich, assombrada pela morte, teve direito a uma «estreia privada» na Sala Pequena do Conservatório de Moscovo. Foi na verdade um exame privado dos peritos musicais soviéticos, sem o perigo de que a nova obra infetasse o grande público. Antes do concerto, Chostakovich dirigiu-se à audiência. O violinista Mark Lubotsky lembrava-se de o ouvir dizer: «A morte é aterradora, não há nada depois dela. Eu não acredito na vida além-túmulo.» Depois pediu ao público que ficasse o mais silencioso possível, porque o concerto ia ser gravado.
Lubotsky estava sentado ao lado de uma administradora da Casa dos Compositores; ao lado dela estava um homem velho e calvo. A sinfonia chegara ao quinto andamento, de acalmia intensa, quando o homem se pôs em pé dum salto, bateu ruidosamente com o assento e saiu à pressa da sala. A administradora segredou: «Sacana! Tentou destruir Chostakovich em 1948, mas não conseguiu. Ainda não desistiu, foi-se embora e estragou a gravação de propósito.» Era Apostolov, é claro. O que os presentes não sabiam, porém, é que o próprio devastador estava a ser devastado — por uma crise cardíaca que se revelaria fatal. «A sinistra sinfonia da morte», como Lubotsky lhe chamou, acompanhou-o de facto na morte, sinistramente.
A história de Samarra mostra como dantes pensávamos na morte: um caçador que espreita a presa, observa e espera para atacar; uma figura vestida de negro, com uma gadanha e uma ampulheta; uma coisa exterior a nós, que podíamos personificar. A história de Moscovo mostra a morte como normalmente é: aquilo que sempre carregamos em nós, nalguma partícula de material genético potencialmente destrutiva, nalgum órgão defeituoso, na maquinaria precária de que somos feitos. Quando estivermos nesse leito de morte, talvez voltemos a personificar a morte e pensemos em combater a doença como se de um invasor se tratasse; mas, na realidade, só nos combateremos a nós próprios ou à parte de nós que quer matar o que resta. Mais para o fim — se vivermos bastante — há quase sempre uma competição entre os nossos órgãos estragados e decadentes para ocupar o lugar de cabeça de cartaz na certidão de óbito. Como disse Flaubert: «Mal chegamos a este mundo, logo bocados de nós começam a apodrecer.»
O bocado que acabou com Jules Renard foi o coração. Diagnosticaram-lhe enfisema e arteriosclerose e aí começou o seu último ano au lit et au lait (cama e leite — dois litros e meio por dia). Ele disse: «Agora que estou doente, gostaria de dizer coisas históricas e profundas, que os meus amigos repetissem, mas enervo-me de mais.» Confiou maliciosamente à irmã a responsabilidade de mandar erigir o seu busto na pequena praça de Chitry-les-Mines. Disse que os escritores têm um sentido da realidade melhor e mais verdadeiro do que os médicos. Sentia que o seu coração era como um mineiro soterrado, que batia a intervalos irregulares para assinalar que ainda estava vivo. Sentia que partes do seu cérebro estavam a ser sopradas como a flor do taráxaco. Dizia: «Não te preocupes! Aqueles que, como nós, temem a morte, tentam sempre morrer com o maior estilo possível.» E: «O Paraíso não existe mas, ainda assim, devemos tentar merecê-lo.» O fim chegou em Paris, a 22 de maio de 1910; foi a enterrar em Chitry daí a quatro dias, sem representação do clero, como antes dele o pai e o irmão. Segundo o seu pedido escrito, não foram pronunciadas palavras em presença do corpo.
Demasiadas mortes francesas? Muito bem, aqui está uma boa e velha morte britânica, a do nosso especialista nacional em terror mortal, Philip Larkin. Nas primeiras décadas de vida, Larkin conseguia às vezes convencer-se de que a extinção, quando chegasse, podia ser uma libertação. Mas aos cinquenta, diz-nos o seu biógrafo: «O pavor do esquecimento obscureceu tudo.» E depois: «Quando entrou nos sessenta os temores aumentaram rapidamente.» É a resposta à tranquilizadora afirmação do meu amigo G. — as coisas melhoram depois dos sessenta. No ano que viria a ser o da sua morte, Larkin escreveu a um amigo poeta: «Eu não penso na morte o tempo todo, mas não compreendo porque é que não devo; também é de esperar que um homem na cela dos condenados pense no enforcamento o tempo todo. Porque é que não grito?», perguntava ele, referindo-se ao seu poema «Os Velhos Loucos».
Larkin morreu no hospital de Hull. Um amigo, que o visitou na véspera, disse: «Se o Philip não estivesse drogado, estaria louco. Estava tão apavorado.» À uma e vinte e quatro da manhã, uma hora típica para morrer, disse as últimas palavras a uma enfermeira que lhe dava a mão: «Vou para o inevitável.» Larkin não era nada francófilo (embora fosse mais cosmopolita do que queria parecer); mas podíamos, se quiséssemos, ver nisto uma alusão e uma correção à pretensa afirmação de Rabelais no seu leito de morte: «Vou em busca do Grande Talvez.»
A morte de Larkin só pode gelar o sangue. A contemplação do buraco negro não levou à calma, mas ao aumento do terror; e, embora temesse a morte, não morreu com estilo. E Renard, morreu? Dada a discrição da biografia francesa, não há pormenores; porém, um amigo, Léon, filho de Daudet, escreveu que ele demonstrou «uma coragem magnífica» na doença terminal. Daudet concluiu: «Os bons escritores, como os bons soldados, sabem morrer, ao passo que os políticos e os médicos têm medo da morte. Todos podem corroborar esta observação, olhando em volta. Se bem que existam exceções, é claro.»
Eis o velho argumento, tal como Renard o expressara quando era novo e tinha boa saúde: «A morte é doce; liberta-nos do receio da morte.» Não é reconfortante? Não, é um sofisma. Ou uma prova suplementar de que precisamos de algo mais do que lógica e argumento racional para vencer a morte e os seus terrores.
Depois de morrermos, o cabelo e as unhas continuam a crescer durante algum tempo, assustadoramente. Todos o sabemos. Sempre acreditei, ou quase acreditei, ou supus mais ou menos que havia nisso «algo de verdadeiro»: não que ficamos deitados no caixão cheios de cabelo e com unhas de vampiro, mas talvez com mais um milímetro ou dois de unhas e cabelo. Mas o que «todos sabemos» normalmente é falso, se não no todo, pelo menos em parte. Como salienta a simpática especialista da morte, Sherwin Nuland, a questão é simples e irrefutável. Quando morremos, deixamos de respirar; sem ar, não há sangue; sem sangue, o crescimento não é possível. Poderá haver um breve lampejo de atividade cerebral depois de o coração parar; mas só isso. Este mito particular vem talvez do nosso medo de sermos enterrados vivos. Ou talvez se baseie numa observação séria mas mal interpretada. Se, depois da morte, o corpo parece encolher — e encolhe mesmo —, então a pele dos dedos pode contrair-se, dando a ilusão de que as unhas crescem; e se o rosto parece mais pequeno, isso pode ter o efeito de fazer parecer os cabelos mais compridos.
Enganos: como o meu irmão se enganou. Após a morte da nossa mãe, ele levou as cinzas dos nossos pais para a costa atlântica francesa, onde muitas vezes tinham passado férias. Ele e a mulher espalharam-nas sobre as dunas, com a ajuda de J., o amigo francês mais próximo dos nossos pais. Leram «Não voltes a temer do Sol o ardor» de Cimbelino («Belos rapazes e raparigas, todos. / Quais limpa-chaminés, se tornarão poeira») e o poema de Jacques Prévert, Les Escargots qui vont à l’enterrement; o meu irmão declarou-se «estranhamente tocado» pelo acontecimento. Mais tarde, durante um jantar, falámos das visitas anuais dos nossos pais a essa parte de França. «Lembro-me de ficar estupefacto», disse o meu irmão, «quando J. contou que todas as noites o pai os entretinha até de madrugada, com as suas anedotas e conversa animada. Não me lembro de alguma vez o ouvir falar, depois de se mudarem para aquele chalé medonho, e imaginava que esquecera o que é divertimento. Mas é óbvio que me enganei completamente.» A melhor explicação que consigo encontrar é que o francês do nosso pai, sendo melhor que o da nossa mãe, lhe permitia, durante aquelas semanas no ano, ter supremacia linguística e social; ou isso, ou então a nossa mãe, no estrangeiro, tornava-se uma esposa mais convencional e disposta a ouvir (por muito improvável que pareça).
Enganos: como também eu me enganei. Fui alimentado ao peito, o meu irmão foi alimentado a biberão: nisso vi eu em tempos a diferença da nossa natureza. Mas uma das últimas visitas que fiz à minha mãe gerou um momento invulgar de quase intimidade. Saíra um artigo nos jornais, que concluía que as crianças alimentadas ao peito eram mais inteligentes do que as outras. «Também li», disse a minha mãe, «e ri-me. Está tudo bem com os meus dois, pensei.» Depois de questionada confirmou que, tal como o meu irmão, eu também não fora alimentado ao peito. Não lhe perguntei a razão: se era determinação em nos dar igual começo na vida ou repugnância por uma coisa potencialmente suja («cãozinho porcalhão»). Mas o começo não foi exatamente o mesmo, pois ela referiu que tínhamos sido alimentados com leites diferentes. Até me disse os nomes que vinham nas garrafas e eu esqueci imediatamente. Uma teoria do temperamento baseada em diferentes marcas de leite para bebé? Seria bastante tendencioso, até eu admitiria. E hoje em dia não considero a atitude do meu irmão — ao levar chá à mãe que estava na cama doente — menos calorosa do que a minha, quando me enrolava com ela, para satisfação própria e talvez indolente, debaixo dos cobertores. E há outro engano mais complicado, mas que teve a mesma duração. P., o assistant francês que contava as histórias de Mr. Beezy-Weezy, nunca voltou a Inglaterra; mas, do ano que passou connosco, ficaram como recordação duas pequenas paisagens sem moldura, que ele deu aos meus pais. Tinham um tom bastante sombrio e holandês: uma mostrava uma ponte em ruínas sobre um rio, com a folhagem a cair do parapeito; a outra, um moinho sob um céu tempestuoso, com três mulheres de touca branca em primeiro plano, a fazer um piquenique. Pelas pinceladas grossas usadas no rio, no céu e no prado, via-se que foram executadas com arte. Durante a minha infância e adolescência, os dois quadros estiveram pendurados na sala; mais tarde, no «chalé medonho», presidiam às refeições na sala de jantar. Devo tê-los olhado regularmente durante mais de cinquenta anos sem nunca perguntar a mim próprio, nem aos meus pais, onde é que P. se instalara com a caixa dos óleos para as pintar? Em França — talvez na sua Córsega natal —, Holanda, Inglaterra?
Quando desmontei a casa a seguir à morte da minha mãe, encontrei numa gaveta dois postais que mostravam exatamente as mesmas duas paisagens. A minha primeira reação foi assumir que tinham sido especialmente impressos para P., a fim de publicitar o seu trabalho: ele tinha sempre uma profusão de esquemas teoricamente lucrativos. Então voltei-os e percebi que eram postais comerciais, artísticos, de cenas tipicamente bretãs: Vieux Moulin à Cléden e Le Pont Fleuri. O que toda a vida eu julgara ser originalidade competente não passava de cópia competente. E havia mais. Os postais estavam assinados «Yvon» no canto inferior direito, como sendo o nome do artista. Mas «Yvon» era o nome da empresa de postais. Assim, as imagens haviam sido produzidas unicamente para os postais — e P. transformara-as nas pinturas «originais» que nunca foram. Um teórico francês ficaria encantado com tudo isto. Apressei-me a contar ao meu irmão o nosso engano de cinquenta anos, esperando que ele também se divertisse. Não se divertiu nada: pela simples razão de que se lembrava claramente de ter visto P. pintar os quadros, «e de pensar que era muito mais esperto copiar do que inventar uma coisa pela sua própria cabeça».
Estas correções factuais são fáceis de fazer, e até podem parecer mentalmente interessantes. É mais difícil admitir um erro relativo a perceções e juízos que chegámos a encarar como realizações nossas. Consideremos a morte. Durante a maior parte da minha vida consciente, conheci o pavor intenso e também me senti plenamente capaz — apesar do que Freud defendia — de imaginar a minha não existência eterna. E se estou completamente enganado? A convicção de Freud, afinal, era que o nosso inconsciente permanece obstinadamente convencido da nossa imortalidade — tese por natureza irrefutável. Por isso, o que eu considero contemplação do buraco negro é só a ilusão do exame da verdade, porque no fundo não acredito — não consigo acreditar — no buraco negro; e esta ilusão pode continuar mesmo até ao final, se é que Koestler tem razão quanto ao facto de a nossa consciência se desdobrar, quando in extremis.
E há outra maneira de nos enganarmos: o que acontece se o temor que sentimos de antemão — que nos parece tão absoluto — não é nada, comparado com a realidade? E se a nossa imaginação do nada não passa dum pálido ensaio daquilo que experimentamos — como Goethe descobriu — nas últimas horas? E se, além disso, a aproximação da morte confunde toda a linguagem conhecida, de maneira que nem somos capazes de transmitir a verdade? A sensação de nos termos enganado o tempo todo: bem, Flaubert disse que é a contradição que conserva a saúde mental.
E para lá da morte, Deus. Se houvesse um Deus que faz jogos, Ele teria decerto especial prazer lúdico em desapontar aqueles filósofos que se convenceram a si e aos outros da Sua não existência. A. J. Ayer garante a Somerset Maugham que, depois da morte, não há coisa nenhuma, é o nada: e assim ambos se tornam jogadores no pequeno espetáculo terminal de Deus, chamado «Olhem a Fúria do Ateu Ressuscitado». É um belo «preferimos o quê» para o filósofo que nega Deus: preferimos que não haja nada depois da morte, e prova-se que temos razão, ou que haja uma surpresa maravilhosa e a nossa reputação profissional fique destruída?
«O ateísmo é aristocrático», declarou Robespierre. A grande encarnação britânica desta ideia no século XX foi Bertrand Russell — sem dúvida ajudado pelo facto de que era aristocrata. Na velhice, com o cabelo branco rebelde, Russell parecia um sábio a meio passo da divindade, e era tratado como tal: ele condensava o júri de Any Questions? numa só pessoa. Nunca vacilou na descrença e os provocadores cordatos gostavam de lhe perguntar como é que reagiria se, após uma vida a propagandear o ateísmo, descobrisse que se enganara. E se as portas do Paraíso não fossem nem metáfora, nem fantasia, e ele se encontrasse face a uma divindade que sempre negara? «Bem», respondia Russell, «ia ter com Ele e dizia: “Você não nos deu provas suficientes.”»
Os psicólogos dizem-nos que exageramos a estabilidade das nossas crenças passadas. Talvez seja uma maneira de afirmarmos a nossa frágil identidade; e também de nos congratularmos, como se fora um feito importante, quando repensamos essas crenças — tal como nos orgulhamos do nosso ganho em sabedoria, quando as dendrites suplementares começam a ramificar. Mas tirando o fluxo constante, ainda que não verificado, do nosso eu ou da nossa individualidade, há momentos em que o mundo inteiro, que gostamos de imaginar tão sólido à nossa volta, oscila de repente. Momentos em que nenhum «erro de apreciação» é capaz de traduzir a mudança cósmica. O momento desse primeiro réveil mortel pessoal; o momento — não necessariamente coincidente — em que percebemos que todos os outros também vão morrer; a perceção de que a própria vida humana acabará, quando o sol evaporar os oceanos; e depois, depois disso, a morte do planeta. Carregamos tudo isto e tentamos ao mesmo tempo manter o equilíbrio.
Mas há mais qualquer coisa, ainda mais vertiginosa, a considerar. Somos, enquanto espécie, propensos ao solipsismo histórico. O passado foi o que terminou em nós. O futuro é o que está a ser criado por nós. Reivindicamos triunfalmente a propriedade dos melhores momentos e também, lacrimosamente, a dos piores. Temos tendência a confundir o nosso progresso científico e tecnológico com progresso moral e social. E esquecemos muito depressa que a evolução não é só um processo que levou a raça humana à sua admirável condição atual, mas um processo que implica logicamente uma evolução para além de nós.
Mas, na prática, até onde conseguimos olhar para o passado e para o futuro? Acho que sou capaz de ver, com razoável clareza e amplitude, até meados do século XIX (na minha própria cultura europeia, é claro). Antes disso há génios individuais, exemplos morais e artísticos, ideias-chave, movimentos intelectuais e acontecimentos históricos, mas só aqui e ali, raramente com continuidade; e o meu olhar acaba, digamos, nas estatuetas das Cíclades, datadas de 3000-2000 a.C. O meu olhar para o futuro não ultrapassa certamente os mesmos básicos cento e cinquenta anos; é prudente, vago e com baixa expectativa face à posteridade.
Tchekov era quem bem compreendia e encenava o nosso olhar nas duas direções. Especializou-se em idealistas vencidos que sonharam com uma vida melhor, mas se aquietaram no presente e temem o futuro. Quando as peças de Tchekov se aproximam do fim, uma personagem expressa timidamente a esperança de que a posteridade possa ter uma vida menos penosa e pense com ternura em antecessores tão desamparados. Risos entendidos e suspiros presunçosos chegam às vezes da posteridade que compõe a audiência: o suave som do perdão misturado com o reconhecimento irónico do que efetivamente aconteceu no século seguinte — estalinismo, assassínios em massa, gulags, industrialização brutal, abate e envenenamento de todos os lagos e florestas tão pesarosamente evocados pelo Dr. Astrov e seus amigos diletos, e o abandono da música a tipos da laia de Pavel Apostolov.
Mas, quando pensamos nos patetas pouco esclarecidos de outrora, temos tendência a esquecer que os nossos sucessores nos olharão e julgarão o nosso egocentrismo pelo seu valor — valor para eles, não para nós. Que compreensão, que ternura, que perdão para nós? E a nossa posteridade? Se considerarmos a questão, a nossa escala temporal será provavelmente tchekoviana: uma ou duas gerações, talvez um século. E aqueles que imaginamos a julgar-nos não serão, presumimos nós, muito diferentes de nós porque, de agora em diante, o futuro do planeta vai ser passado a aperfeiçoar o animal humano: a melhorar o nosso sentido moral e social, a domar os nossos hábitos agressivos, a derrotar a pobreza e a doença, a despistar as alterações climáticas, a prolongar o tempo de vida humana e por aí fora.
Mas, dum ponto de vista evolucionista, não passam de sonhos de políticos, com um prazo incrivelmente curto. Não há muito tempo, foi pedido a cientistas de várias disciplinas que descrevessem a ideia que eles desejariam ver mais compreendida, em sentido global. Esqueci todos os outros, tal o impacto reorganizador do enunciado de Martin Rees, astrónomo da Coroa e professor de Cosmologia e Astrofísica em Cambridge:
Gostaria de alargar a consciência das pessoas quanto ao tremendo período de tempo que temos pela frente — para o nosso planeta e para a própria vida. A maior parte das pessoas instruídas tem consciência de que somos o resultado de quase quatro biliões de anos da seleção de Darwin, mas muitos têm tendência a pensar que somos de algum modo o culminar da evolução. O nosso Sol, porém, ainda não chegou a metade do seu período de vida. Não serão os humanos que verão a morte do Sol, daqui a seis biliões de anos. As criaturas que existirão nessa altura serão tão diferentes de nós como nós somos das bactérias ou das amibas.
Pois claro! ENGANO — GRANDE ENGANO — SEMPRE. E que amadorismo não termos pensado numa coisa de consequências tão diretas e atemorizantes. Não seremos «nós» que desapareceremos daqui a seis biliões de anos. Algo muito mais evoluído do que nós — ou, pelo menos, muito diferente de nós — desaparecerá. De resto, já nós podemos ter desaparecido em mais um dos grandes cataclismos do planeta. A extinção do Pérmico acabou com noventa e nove por cento de todos os animais da Terra, a do Cretáceo com dois terços de todas as espécies, incluindo os dinossauros, o que possibilitou aos mamíferos tornarem-se os vertebrados terrestres dominantes. Talvez um terceiro cataclismo nos leve a nós e deixe o mundo… para quem? Para os insetos? O geneticista J.B.S. Haldane dizia a brincar que, se houvesse Deus, Ele devia ter «uma devoção incontrolável por insetos», visto que criou trezentas e cinquenta mil espécies diferentes.
Mas, mesmo sem novo cataclismo, a evolução não se dará como nós, sentimental e egocentricamente, esperamos. O mecanismo da seleção natural depende da sobrevivência, não dos mais fortes, não dos mais inteligentes, mas dos mais adaptáveis. Esqueçamos os melhores e os mais brilhantes, esqueçamos a evolução como uma versão grandiosa, impessoal, socialmente aceitável do eugenismo. Ela levar-nos-á para onde quiser — ou melhor, não «nos» levará, pois em breve nos revelaremos mal equipados para ir onde ela vai; rejeitar-nos-á como protótipos rudimentares e pouco adaptáveis e continuará cegamente, rumo a novas formas de vida que «nos» farão — e a Bach e a Shakespeare e a Einstein — parecer tão distantes como meras amibas e bactérias. Tanto pior a fortiori para Gautier e a arte a derrotar a morte; tanto pior para o murmúrio patético do eu também aqui estive. Não existe «também», tal como não há nada que possa reconhecer-nos. Talvez as futuras formas de vida tenham conservado e adaptado a inteligência e nos vejam como organismos primitivos de hábitos curiosos e vago interesse histórico e biológico. Ou talvez sejam formas de vida com pouca inteligência mas grande capacidade de adaptação física. Imaginemo-las a mastigar ruidosamente à superfície da Terra, enquanto tudo o que poderia provar a breve existência do Homo sapiens dorme num registo fóssil, soterrado.
A dado momento, nessa evolução, sentir a falta de Deus chegará a parecer um estado tão ilusório como o da minha mãe, quando imaginava que eu a deixara à espera no corte de ténis. Não que a hipótese da amiba exclua necessariamente Deus. Ainda seria compatível com o Deus experimentador — porque esse Deus, caso existisse, não estaria nada interessado num grupo eternamente estável de exemplares de estudo. Trabalhar com e sobre os humanos durante os próximos seis milhões de anos seria imensamente maçador: podia fazer com que Deus se quisesse matar de tédio. E depois, se evitarmos deixar o planeta aos insetos e evoluirmos com êxito para seres mais cerebrais e complexos, talvez a hipótese divina número 72b possa entrar em jogo: ou seja, se não temos agora uma alma imortal, no futuro teremos. Deus só espera que o argumento da indignidade deixe de se aplicar.
Duas perguntas. O facto de percebermos que nós, do ponto de vista de um planeta em evolução que ainda tem seis milhões de anos para viver, não somos muito mais do que amibas, faz com que nos seja mais fácil aceitar que não possuímos livre-arbítrio? E se é assim (e mesmo que não seja), isso faz com que morrer seja mais fácil?
Quando me lembro do meu pai, penso muitas vezes nas unhas encurvadas na ponta dos dedos. Nas semanas após a cremação, eu imaginava não o rosto, não os ossos na fornalha, mas aquelas unhas familiares. Além disso, penso nos vários insultos que o seu corpo sofreu perto do final. O cérebro e a língua danificados por nova trombose; uma longa cicatriz no ventre, que ele um dia quis mostrar mas eu não tive coragem de ver; nódoas negras que alastravam pelas costas das mãos, devido à inserção de agulhas. A menos que tenhamos muita sorte, os nossos corpos revelarão a história da nossa morte. Uma pequena vingança seria morrer e não mostrar sinais de ter morrido. A mãe de Jules Renard foi retirada do poço sem um arranhão nem uma cicatriz. Não que a Morte — a suprema registadora — se rale com isso; tal como não se rala se morremos ou não morremos iguais a nós próprios.
Vivemos, morremos, somos lembrados, somos esquecidos. Não de repente, mas por etapas. Lembramo-nos dos nossos pais ao longo da maior parte da sua vida adulta; dos nossos avós ao longo do último terço de vida; além disso, há talvez um bisavô cuja barba arranha e cujo cheiro é desagradável. Se calhar cheirava a peixe. E além disso? Fotografias, documentação ao acaso. Para o futuro ficará a atualização tecnológica da minha gaveta pouco funda: gerações de antepassados sobreviverão em filme, fita magnética e disco, mexendo-se, falando, sorrindo, provando que também eles cá estiveram. Quando eu era adolescente escondi uma vez um gravador debaixo da mesa, durante o jantar, numa tentativa de provar que, longe de ser o «evento social» que cada refeição devia ser, porque a minha mãe assim o decretara, nunca ninguém dizia nada minimamente interessante e, portanto, eu devia ser dispensado de conversar e devia ter autorização para ler um livro, se preferisse. Não expliquei estes motivos pessoais, por pensar que seriam evidentes quando eu passasse a gravação e eles ouvissem o barulho dos talheres, as banalidades e as frases sem nexo. De maneira irritante, a minha mãe ficou encantada com a gravação e declarou que parecíamos todos saídos duma peça de Pinter (um elogio duvidoso em ambos os sentidos, a meu ver). Depois continuámos exatamente como dantes; e eu não guardei a fita, por isso as vozes dos meus pais desapareceram completamente do mundo e só se ouvem na minha cabeça. Vejo (e ouço) a minha mãe no hospital, com um vestido verde, sentada e inclinada para a frente, numa cadeira de rodas ao lado da cama. Nesse dia zangou-se comigo: não por causa do ténis, mas porque me tinham pedido que falasse com o médico sobre o tratamento dela. Magoavam-na todas as manifestações de incapacidade, tal como o otimismo fútil dos fisioterapeutas. Quando lhe pediam que dissesse o nome dos ponteiros do relógio, recusava-se a fazê-lo; quando lhe mandavam abrir ou fechar os olhos, continuava impassível. Os médicos não conseguiam concluir se era por não poder ou por não querer. Eu achava que era por «não querer» — que, em linguagem de advogado, ela «se recusava a falar» — porque, ao pé de mim, conseguia articular frases completas. Dolorosamente, mas as próprias frases eram quase sempre cheias de dor. Por exemplo: «Tu não compreendes como é difícil para uma mulher que controlou sempre a sua vida estar assim limitada.»
Nessa tarde passei com ela momentos complicados, e depois fui falar com o médico. O prognóstico era muito desanimador. Ao voltar para a enfermaria, dizia a mim próprio que a minha cara não podia trair a opinião do profissional e que o próximo ataque iria quase de certeza matá-la. Mas a minha mãe já tinha percebido. Quando virei a esquina vi, a cerca de vinte metros e numa sala cheia de gente, que ela estava atenta ao meu regresso; e enquanto me dirigia para ela, afinando a meia mentira que estava prestes a dizer-lhe, ela estendeu o único antebraço ativo e apontou o polegar para baixo. Foi a coisa mais chocante que alguma vez a vi fazer; a mais admirável também, e a única ocasião em que ela me partiu o coração.
Ela achava que no hospital deviam amputar-lhe o braço «inútil»; durante algum tempo, achou que estava em França e não sabia como eu a encontrara; pensava que uma enfermeira espanhola viera da sua aldeia, em Oxfordshire, e que todas as outras enfermeiras tinham vindo das várias partes de Inglaterra onde ela vivera durante os últimos oitenta anos. Achava «estúpido» não ter acabado duma vez. Quando perguntava: «Tens dificuldade em me compreender?», pronunciava cada sílaba com muita precisão. «Não, mãe», respondia eu, «compreendo tudo o que dizes, mas tu nem sempre percebes bem as coisas.» «Ah!», retorquia ela, como se eu fosse um fisioterapeuta alegre e satisfeito. «Isso é favor. Estou completamente marada.»
Esta mistura de efabulação desenfreada e visão lúcida era contínua e desarmante. Em geral parecia serena quanto a ter ou não ter visitas e ganhara o hábito de dizer: «Agora tens de ir», que era o extremo oposto do que fora durante décadas. Um dia olhei para as unhas que a empregada do Registo Civil de Witney admirara, há cinco anos. Via-se que passara muito tempo desde que as arranjara; as unhas cobertas de verniz espesso, cuidadosamente arranjadas, tinham continuado a crescer e deixado na base uns três milímetros claros, de brancura sem verniz. As unhas que ela imaginara que arranjaria, mesmo afundada na surdez. Ergui os olhos das cutículas: os dedos da mão e do braço morto estavam inchados e tinham agora o tamanho e a textura de cenouras.
De regresso a Londres, com o sol-poente no retrovisor, a sinfonia Haffner no rádio, pensei: «Se é assim para alguém que trabalhou toda a vida com o cérebro, e pode pagar para ser bem tratada, eu não quero.» Depois pensei que talvez estivesse a enganar-me e que, chegada a hora, talvez quisesse a qualquer preço; ou se teria a coragem ou a astúcia de a evitar; ou que a coisa acontece, simplesmente, e ao acontecer nos condena a suportá-la até ao fim, com raiva e com pavor. Por muito que escapemos aos nossos pais durante a vida deles, é provável que nos apanhem na morte — na maneira como morremos. A romancista Mary Wesley escreveu: «Os elementos da minha família têm tendência — deve ser dos nossos genes — para cair para o lado de repente. Tão depressa estão aqui, como a seguir já não estão. Uma limpeza. Espero ter herdado esse gene. Não desejo ficar doente muito tempo, tornar-me um frete amarrado à cama. Um choque duro e breve para aqueles que amo é o que eu quero: melhor para eles e ótimo para mim.»
Esta é uma esperança comummente expressa, mas que a minha médica desaprova. Ao citar esta passagem, ela chama-lhe «talvez mais uma manifestação da negação contemporânea da morte», e uma atitude que «não atribui valor nenhum às oportunidades que oferece uma doença terminal». Acho que nenhum dos meus pais pensaria na sua última doença como uma «oportunidade»: de partilhar memórias, de se despedir, de expressar remorso ou perdão; ao passo que a vontade quanto ao funeral — ou seja, o desejo duma cremação económica e quase sem ninguém a assistir — tinha sido manifestada algum tempo antes. Os meus pais teriam tido «sucesso na morte» se fossem sentimentais, confessionais e lamechas? Teriam descoberto que aquilo era o que sempre tinham querido? Duvido bastante. Embora lamente que o meu pai nunca me tenha dito que me amava, tenho quase a certeza que me amava ou amou, e o seu silêncio melancólico sobre esta e outras questões importantes significou pelo menos que morreu igual a si próprio.
Da primeira vez que a minha mãe esteve no hospital, havia uma velha em coma na cama ao lado dela. Estava deitada de costas, completamente imóvel. Uma tarde, com a minha mãe num estado de espírito razoavelmente louco, o marido da mulher chegou. Era um homem baixo, da classe trabalhadora, respeitável e de aspeto cuidado, decerto com sessenta e muitos anos. «Olá, Dulcie, é o Albert», anunciou numa voz que ecoou pela sala, com um rico e puro sotaque de Oxfordshire, que devia ser gravado antes que desapareça. «Olá, minha querida, olá, meu amor, vais acordar para me ver?» Beijou-a ruidosamente. «É o Albert, querida, vais acordar para me ver?» E depois: «Vou só virar-te, para te pôr o aparelho no ouvido.» Chegou uma enfermeira. «Estou a pôr-lhe o aparelho. Esta manhã não acordou. Oh, caiu. Pronto, vou virar-te mais um pouco. Olá, querida, olá Dulcie, olá, minha linda, é o Albert, vais acordar?» E assim por diante, a intervalos, durante um bom quarto de hora, com uma breve alternância: «Disseste qualquer coisa, não foi, eu sei que disseste, o que é que disseste?» Depois voltou a «Olá, querida, é o Albert, vais acordar para me ver?», entremeado com mais beijos. Aquilo despedaçava o coração (e a cabeça), e só era tolerável pelo lado da comédia negra. Naturalmente, eu e a minha mãe fingíamos que não se passava nada ou, pelo menos, nada que nós ouvíssemos; mas desconfio que o facto de o nome do meu pai também ser Albert não lhe passou despercebido.
Do lado do braço inútil, as unhas da minha mãe continuavam a crescer exatamente ao ritmo da outra com que ela fez o gesto do polegar; depois morreu e, contrariamente à crença popular, as dez unhas deixaram logo de crescer. Como acontecera com as do meu pai, que eram recurvadas nas pontas. As unhas (e os dentes) do meu irmão foram sempre mais fortes do que os meus, pormenor que eu costumava atribuir ao facto de ele ser mais baixo e, por isso, o cálcio nele estar mais concentrado. Isto pode ser cientificamente disparatado (e a causa estar nas diferentes marcas de leite para bebé). De toda a maneira, ao longo dos anos tenho delapidado as minhas unhas ao passá-las entre os dentes da frente, automaticamente, quando leio, escrevo, me inquieto ou corrijo esta mesma frase. Talvez devesse parar para descobrir se crescerão encurvadas na ponta dos dedos, quando o meu pai reclamar sobre mim os seus direitos genéticos.
O cemitério de Montmartre é um lugar cheio de gatos, fresco e arejado mesmo num quente dia parisiense; é íntimo, com contornos familiares e apaziguador. Ao contrário da vasta necrópole do Père-Lachaise, cria a ilusão — como fazem alguns cemitérios — de que os que aqui jazem foram as únicas pessoas que morreram; e também que viveram perto, talvez até nas casas que se perfilam no exterior do cemitério; mais, que afinal a morte até nem é uma coisa assim tão má. Jules Renard, cinco meses antes de morrer: «Quando a encaramos bem de frente, a morte é dócil de entender.»
Jazem aqui alguns dos meus mortos; a maioria, sendo escritores, na secção mais baixa, e por isso mais popular. Stendhal foi aqui enterrado cerca de trinta anos depois de ter sido «acometido de violento palpitar do coração», ao sair de Santa Croce, e de sentir que «a fonte da vida secava dentro de mim, e eu caminhava no temor constante de cair por terra». Desejamos morrer, não só iguais a nós próprios, mas à altura das nossas esperanças? Stendhal teve essa sorte. Após sofrer uma primeira trombose, escreveu: «Não acho nada ridículo cair morto na rua, desde que o não façamos de propósito.» A 22 de março de 1842, depois de jantar no Ministério dos Negócios Estrangeiros, teve o fim nada ridículo que esperava, no passeio da Rue Neuve des Capucines. Foi enterrado como «Arrigo Beyle, milanês», uma censura aos Franceses que o não liam e um tributo à cidade em que o cheiro de bosta de cavalo o comovera quase até às lágrimas. E, como homem que a morte não apanhava desprevenido (fez vinte e um testamentos), Stendhal compôs o seu próprio epitáfio: «Scrisse. Amo. Visse. Escreveu. Amou. Viveu.»
A poucos passos dali repousam os irmãos Goncourt. «Dois nomes, duas datas, eles acharam que bastava. Eh! Eh!» Mas o túmulo não me dá essa impressão. Em primeiro lugar, é um jazigo de família: dois filhos enterrados com os pais. São filhos, antes de ser escritores; e um enterro de família talvez seja como uma refeição familiar — uma ocasião social, como a minha mãe gostava de repetir. Uma ocasião à qual se aplicam certas regras: por exemplo, nada de bazófia. Assim, só os dois retratos de cobre em baixo-relevo, na parte de cima do túmulo, indicam a fama dos irmãos, com Edmond e Jules voltados um para o outro na morte, como sempre em vida, juntos, inseparáveis.
Os irmãos Goncourt têm uma nova vizinha, desde 2004. Uma velha sepultura, cuja concessão expirara, foi substituída por outra com estela de mármore negro e luzidio, encimada por um busto que retrata a ocupante. A recém-chegada é Margaret Kelly-Leibovic, profissionalmente conhecida como Miss Bluebell, a inglesa que treinou gerações de matulonas atléticas e emplumadas, ensinando-as a rodopiar e a levantar a perna, a rodopiar e a levantar a perna para os lúbricos equipados de monóculo. Para o caso de duvidarem da sua importância, as quatro medalhas que ganhou — incluindo a Legião de Honra — foram pintadas em tamanho real, embora por mão amadora, no mármore negro. Os estetas picuinhas, profundamente conservadores e que odiavam a boémia, ao lado da instrutora da trupe do Lido (a arrivista para quem o nome não bastava)? Deve baixar o nível da vizinhança: Eh! Eh! Talvez; mas não deixemos que a morte pratique a ironia (nem que a casquinada de Renard se imponha) com ligeireza. No Journal, os irmãos Goncourt falam de sexo com uma candura que ainda hoje pode chocar. Assim, nada mais apropriado — embora com um século de atraso — do que um ménage à trois póstumo com Miss Bluebell!
Quando Edmond de Goncourt foi aqui enterrado e se acabou a linhagem familiar, Zola fez o discurso fúnebre. Seis anos depois regressava, no uso dos seus direitos, a uma sepultura tão aparatosa quanto a dos irmãos Goncourt era simples. O rapaz pobre de Aix, que fez ecoar por toda a Europa o nome da família de imigrantes italianos, foi enterrado sob ricas volutas de arte nova, em mármore castanho-avermelhado. Em cima do monumento está um busto do escritor de aspeto tão feroz, que parece guardar não só o caixão e a obra, mas todo o cemitério. Mas a fama de Zola era demasiado grande para que o deixassem ter paz eterna. Logo daí a seis anos, o Estado francês mandou transferir o corpo para o Panteão. E aqui temos de permitir à morte uma certa ironia. Senão, lembremos o caso de Alexandrine, que sobrevivera àquela noite de inalação do fumo da chaminé obstruída. A sua viuvez havia de durar vinte e três anos. Durante os primeiros seis, pôde visitar o marido no verde e agradável cemitério de Montmartre; nos dezassete que se seguiram, foi a penosa marcha até ao Panteão, frio e cheio de ecos. Depois, também Alexandrine morreu. Mas os panteões são só para os famosos, não são para as viúvas, e ela foi enterrada — como já devia saber que seria — no túmulo que vagara. E, a seu tempo, os filhos de Madame Alexandrine juntaram-se a ela; e depois os netos, todos amontoados numa cripta onde faltava o patriarca e a própria razão do seu esplendor.
Vivemos, morremos, somos lembrados — «deslembrem-se bem de mim», deveríamos dizer — somos esquecidos. Para os escritores, o processo de ser esquecido não é claro. «É melhor para um escritor morrer antes de ser esquecido, ou ser esquecido antes de morrer?» Mas aqui «esquecido» é só um termo de comparação, que significa: sair de moda, ficar esgotado, ser desvendado, suplantado, considerado demasiado superficial — ou então demasiado grave, demasiado sério — para uma época posterior. Mas verdadeiramente esquecido, isso é muito mais interessante. Primeiro deixam de nos editar, somos relegados para lugares esconsos da loja do alfarrabista e do website comercial. Depois um breve renascer, se tivermos sorte, com um ou dois títulos reeditados; depois outra quebra, e o período em que alguns estudantes finalistas, em busca de tema para a tese, virarão penosamente as nossas páginas, sem perceber por que escrevemos tanto. E por fim as editoras esquecem, o interesse académico desvanece-se, a sociedade muda e a humanidade avança um pouco mais, enquanto a evolução cumpre o desígnio inútil de nos transformar a todos no equivalente de amibas e bactérias. É inevitável. E a dado momento — tem logicamente de acontecer — um escritor terá um último leitor. Não peço comiseração; este aspeto da vida e da morte do escritor é inelutável. Num momento entre o agora e a morte do planeta daqui a seis biliões de anos, cada escritor terá o seu último leitor. Stendhal que, em vida, escreveu para «os poucos felizardos» que o compreenderam, verá os seus leitores reduzidos pouco a pouco a alguns mutantes talvez menos felizes, e depois a um último felizardo — ou entediado. E para cada um de nós chegará o romper do único elo que resta da relação estranha e sem provas, mas profunda e íntima, entre escritor e leitor. A dado momento, também para mim haverá um último leitor. E depois esse leitor morrerá. E se, na grande democracia dos leitores, todos são teoricamente iguais, há uns mais iguais do que os outros.
O meu último leitor: em relação a ele ou a ela (se «ele» ou «ela» ainda se aplicam nesse mundo para onde a evolução nos arrasta) há a tentação de ser sentimental. Efetivamente, eu estava prestes a fazer um gesto autoral de agradecimento e louvor ao último par de olhos — se os olhos não tiverem evoluído também de maneira diferente — que examinou este livro, esta página, esta linha. Mas a lógica entrou: o nosso último leitor é, por definição, alguém que não recomenda os nossos livros a mais ninguém. Sacana! Com que então não é suficientemente bom? Preferes as coisas banais que fazem furor no teu século fútil (e/ou as coisas pesadas que te fazem julgar-me banal)? Estava quase a chorar a tua perda, mas recompus-me depressa. Não vais mesmo impingir o meu livro a mais ninguém? És mesmo tão mesquinho, tão indolente, tão desprovido de sentido crítico? Então não me mereces. Desaparece, morre para aí. Tu, sim.
Nessa altura já eu terei desaparecido e morrido, mas de quê ainda não sei dizer — ou predizer, como Stendhal. Tinha pressuposto que os meus pais, num último ato de controlo, determinariam o meu fim; mas não podemos confiar sempre nos pais, sobretudo depois de mortos. Mary Wesley, com a reprovação da minha médica, contava com o famoso talento da família para desaparecer de circulação — cair como uma mosca, a ouvir o Décimo Quinto Quarteto de Chostakovich. Mas, chegada a hora, descobriu que eles não se tinham preocupado em lhe transmitir essa arte hereditária, ou sorte reiterada. E morreu de cancro, mais lentamente do que teria desejado — embora com admirável estoicismo. Uma testemunha relatou que «ela nunca se queixava da cama desconfortável, da comida muito má e do corpo dorido e descarnado, exceto para dizer ocasionalmente: “Merda”». Morreu igual a si própria, assim parece, e pelo menos foi capaz de praguejar, ao contrário do meu professor de Inglês, que ficou mudo após um ataque e nunca conseguiu dizer «Maldição!», que prometera ser a sua última palavra.
Hoje em dia custa cinco euros visitar a Igreja — ou, como diz o bilhete, o «complexo monumental» — de Santa Croce em Florença. Não entramos pela fachada ocidental, como fez Stendhal, mas pelo lado norte, e apresenta-se-nos logo uma opção de itinerário e intenção: a porta esquerda para os que querem rezar e a direita para turistas, ateus, estetas, desocupados. A nave ampla e etérea desta igreja dos Dominicanos ainda contém os túmulos de homens famosos cuja presença comoveu Stendhal. Entre eles encontra-se agora um outro, relativamente recente: Rossini que, em 1863, pediu a Deus que lhe outorgasse o Paraíso. O compositor morreu em Paris cinco anos mais tarde e foi enterrado no Père-Lachaise; mas, tal como com Zola, chegou o Estado orgulhoso e raptou-lhe o corpo para o Panteão. Se Deus decidiu outorgar a Rossini o Paraíso, é questão que talvez tenha dependido de Ele ter lido ou não o Journal dos irmãos Goncourt. «Os pecados da minha velhice»? Eis o que se pode ler no Journal, datado de 20 de janeiro de 1876: «Na noite passada, no salão de fumo da princesa Matilde, a conversa versou sobre Rossini. Falámos do seu priapismo e do gosto, no que toca ao amor, por práticas imorais; e também dos prazeres estranhos e inocentes a que, nos últimos anos, o velho compositor se entregava. Mandava raparigas muito novas despirem-se até à cintura e passeava-lhes pelo busto as mãos lascivas, enquanto lhes dava a chupar a ponta do dedo mínimo.»
Stendhal escreveu a primeira biografia de Rossini em 1824. Dois anos depois publicou Roma, Nápoles e Florença, em que descreveu como Henri, ou Arrigo Beyle, chegara a Florença em 1811. Ele desceu dos Apeninos numa manhã de janeiro, viu «muito ao longe» a grande cúpula de Brunelleschi que dominava a cidade, saiu da carruagem e entrou a pé, qual peregrino, e estacou diante de pinturas que o extasiaram a ponto de desfalecer. E poderíamos ainda hoje acreditar em cada palavra do seu relato, se ele se tivesse lembrado de fazer uma coisa: destruir o diário que fez nessa viagem primordial.
Stravinsky, na velhice, escreveu: «Não sei se a memória é verdadeira, e sei que não pode ser, mas sei todavia que vivemos da memória e não da verdade.» Stendhal vivia na recordação de 1826, enquanto Beyle escrevera a verdade de 1811. No diário, ficamos a saber que ele atravessou de facto os Apeninos numa diligência, e que foi à cidade, mas a memória seguiu por um caminho e a verdade por outro. Em 1811, não poderia ter visto a cúpula de Brunelleschi ao longe, pela simples razão de que estava escuro. Chegou a Florença às cinco da manhã, «vencido pelo cansaço, encharcado, moído, obrigado a ocupar a parte dianteira da mala-posta e a dormir sentado numa posição desconfortável». Não admira que tenha ido diretamente para a estalagem, a Auberge d’Angleterre, e para a cama. Ordenara que o acordassem daí a duas horas, mas não com intuitos turísticos: dirigiu-se à estação de correio e tentou reservar um lugar na primeira diligência para Roma. Mas a mala-posta estava cheia nesse dia e nos seguintes — e foi essa a única razão por que ficou em Florença durante os três dias em que juntou o seu contributo à história das reações estéticas. Outra incompatibilidade: o livro situa a visita em janeiro, o diário em setembro.
No entanto ele foi a Santa Croce: memória e verdade concordam nesse ponto. Mas o que viu? Os Giottos, provavelmente. É o que toda a gente vai ver: os Giottos que, como lembra Firenze Spettacolo, estão na Capela Niccolini. Mas, de facto, nem no diário, nem no livro, Beyle/Stendhal menciona Giotto, nem, de resto, nenhuma das outras obras de arte imortalizadas que os modernos guias de viagem nos exortam a visitar: o crucifixo de Donatello, a Anunciação de Donatello, os frescos de Taddeo Gaddi, a Capela Pazzi. Em dois séculos os gostos mudam, concluímos nós. E Beyle chega a mencionar a Capela Niccolini. O único problema é que ela não tem os Giottos. De frente para o altar, ele virar-se-ia — deveria ter-se virado — para a direita, para a Capela Bardi e para a Capela Peruzzi. Em vez disso, virou-se para a esquerda, para a Capela Niccolini, ao fundo e a nordeste do transepto. Aí, as quatro pinturas das sibilas que o arrebataram até ao «êxtase» eram de Volterrano. Podem perguntar quem é; como eu fiz. (E encontrei a resposta: nasceu Volterra em 1611, morreu em Florença em 1690, seguidor de Pietro da Cortona, protegido dos Médicis, decorador do Palácio Pitti.)
Na reminiscência de 1826, a capela foi aberta por um frade e Stendhal sentou-se no degrau dum genuflexório, com a cabeça apoiada no tampo, para contemplar o teto e os seus frescos. Na verdade de 1811, não há frade nem genuflexório; além disso, tanto em 1811 como em 1826, e em qualquer data antes ou depois, as sibilas encontravam-se nas paredes da capela, em cima mas não no teto. Efetivamente, no diário de 1811, após enaltecer os Volterranos, continua: «O teto da mesma capela faz um grande efeito, mas os meus olhos não dão para avaliar os tetos. Só me pareceu que faz grande efeito.»
Hoje em dia, a Capela Niccolini não está fechada, mas o famoso lugar onde a arte começou a substituir a religião situa-se ironicamente na parte destinada à oração, reservada e demarcada por um cordão. Em vez dum frade, é necessário um funcionário de uniforme; em vez dum genuflexório, um par de binóculos. Expliquei a minha intenção profana a um homem de uniforme; e talvez em Itália as palavras «sou escritor» pesem um pouco mais do que na Grã-Bretanha. Simpaticamente, aconselhou-me a meter o guia de viagem no bolso e a não o tirar enquanto «rezasse»; em seguida, desprendeu o cordão.
Em traje de veraneante, tentei parecer convincente e sério ao atravessar a parte reservada da igreja. Mas às duas e meia, numa quinta-feira à tarde, não havia um único crente — muito menos padre ou frade — em nenhum desses espaços sagrados. A Capela Niccolini também estava completamente deserta. Os quatro Volterranos, sempre lá tão alto que é preciso torcer o pescoço para os ver, foram limpos há pouco e surgem ainda mais claramente como expressões competentes mas comuns do barroco. Mas era o que eu queria que fossem: quanto mais comuns são as pinturas, tanto melhor é a história. E também, é claro, mais forte a advertência implícita ao nosso gosto contemporâneo. Deem tempo ao tempo, parecem dizer as sibilas. O tempo pode não fazer de Volterrano um Giotto, mas faz-nos certamente parecer tontos, emproados, amadores. É a função do tempo, agora que Deus desistiu da tarefa de julgar.
Além dos Volterranos, havia em Santa Croce outra pintura que perturbou Stendhal desmesuradamente. Mostrava a descida de Cristo ao Limbo — esse lugar abolido há tão pouco pelo Vaticano — e deixou-o «com o coração aos saltos durante duas horas». Tinham dito a Beyle, que trabalhava então na sua história da pintura italiana, que o quadro era de Guercino, a quem ele «venerava do fundo do coração»; duas horas depois, uma autoridade diferente atribuía-o (corretamente) a Bronzino, «nome para mim desconhecido. Esta descoberta irritou-me bastante». Mas o efeito do quadro não era nada equívoco. «Comovi-me quase até às lágrimas», escreveu no diário. «Ao escrever isto vêm-me lágrimas aos olhos. Nunca vi nada tão belo… A pintura nunca me deu tanto prazer.»
Tanto prazer que desmaia? E se não diante dos Giottos (o que nunca afirmou, mas que mais tarde alguns forjaram), pelo menos diante dos Volterrano e Bronzini combinados? Bom, há um último problema. A síndrome de Stendhal, exibida e patenteada — embora não nomeada — em 1826, parece não ter ocorrido em 1811. Na época, o famoso episódio no pórtico de Santa Croce — o violento palpitar do coração, a fonte da vida a secar — não foi considerado digno de figurar no diário. O que mais se aproxima vem a seguir à frase: «A pintura nunca me deu tanto prazer.» Beyle prossegue: «Estava morto de cansaço, tinha os pés inchados e apertados nas botas novas — sensação pequena que me impediria de admirar Deus em toda a Sua glória, mas que esqueci face à pintura do Limbo. Mon Dieu, como é belo!»
Assim, efetivamente, toda a prova fiável da síndrome de Stendhal se dissolve ante os nossos olhos. Mas não se trata de Stendhal ser um exagerado, um mentiroso, um artista a inventar memórias (e Beyle o que diz a verdade). A história torna-se mais, e não menos, interessante. É sim uma história acerca da narrativa e da memória. Narrativa: a verdade da história do romancista é a verdade da sua forma final, não a da primeira versão. Memória: devemos acreditar que Beyle foi igualmente sincero quando escreveu umas horas após o acontecimento e quinze anos mais tarde. De notar também que, se Beyle se comoveu «quase até às lágrimas» diante do Bronzino, elas lhe vieram aos olhos quando escreveu sobre as sibilas, daí a duas horas. O tempo não só traz alterações à narrativa, como também aumenta a emoção. E se um exame minucioso parece enfraquecer a história de Santa Croce, ela continua, mesmo na versão original e não melhorada, a ser uma história sobre prazer estético maior que êxtase religioso. A fadiga e as botas apertadas teriam distraído Beyle da glória de Deus, se tivesse ido à igreja para rezar; mas a força da arte venceu os dedos pisados e os calcanhares doridos.
O meu avô, Bert Scoltock, só tinha duas anedotas no seu reportório. A primeira era sobre o dia do casamento com a minha avó, a 4 de agosto de 1914, e vinha, portanto, com meio século de repetições (mais do que aperfeiçoamento): «Casámos no dia em que a guerra começou (pausa carregada) e desde então a guerra não faltou !!!» A segunda era uma história que se arrastava o máximo possível, sobre um tipo que entrava num café e pedia um folhado de salsicha. Dava uma dentada e queixava-se que lá dentro não havia salsicha. «Ainda não chegou lá», dizia o dono do café. O tipo comia mais um bocado e repetia a queixa. «Já passou à frente», era a resposta — um remate que o meu avô repetia sempre.
O meu irmão concorda que o avô não tinha graça; mas, quando eu acrescento «chato e um bocado assustador», ele discorda. A verdade é que o avô tinha uma preferência pelo primeiro neto e lhe ensinou a afiar o formão. Também nunca me bateu por lhe arrancar as cebolas, mas tinha a presença dum diretor de escola e imagino facilmente a sua reprovação. Por exemplo, todos os anos no Natal a avó e ele vinham a nossa casa. Uma vez, no início da década de sessenta, o avô, ao procurar qualquer coisa para ler, foi à estante do meu quarto e, sem pedir, tirou o meu exemplar de Lolita. Vejo a edição de bolso da Corgi e vejo as mãos do meu avô, habituadas ao trabalho da lenha e do jardim, a quebrarem metodicamente a lombada enquanto lia. Era uma coisa que Alex Brilliant também tinha o hábito de fazer — mas Alex comportava-se como se o ato de quebrar a lombada dum livro mostrasse que participávamos intelectualmente do seu conteúdo; ao passo que o comportamento do avô (exatamente semelhante) parecia indicar desrespeito pelo romance e pelo autor. A cada página — desde «fogo dos meus rins» até «a idade em que os rapazes fazem jogos de ereção» — eu esperava que o deitasse fora com aversão. Por incrível que pareça, não o fez. Começara, tinha de acabar: o puritanismo inglês impelia-o obstinadamente a desbravar aquela história russa da depravação americana. Enquanto o observava nervosamente, comecei a ter quase a sensação de ter escrito o romance e me revelar agora como abusador secreto de ninfetas. Que pensaria ele daquilo? No final devolveu-me o livro, com a lombada toda cheia de cicatrizes esbranquiçadas e o comentário: «Pode ser boa literatura, mas eu achei que era INDECENTE.»
Na época, sorri pretensiosamente de mim para mim, como faria qualquer esteta prestes a partir para Oxford. Mas não fiz justiça ao meu avô. Porque ele reconhecera exatamente a atração que Lolita provocava em mim: uma combinação vital de literatura e indecência. (Havia uma tal escassez de informação sexual — e ainda mais de experiência — que uma reformulação de Renard daria: «É quando nos defrontamos com o sexo que nos tornamos mais livrescos.») Também não fiz justiça ao meu avô quando sugeri que ele não me deixou nada em testamento. Outro erro. O meu irmão corrige-me: «Quando o avô morreu deixou-me a secretária, imitação do estilo Chippendale (de que nunca gostei) e deixou-te o relógio de ouro com tampa (que eu sempre ambicionara).»
Um velho recorte de jornal na minha gaveta de arquivo confirma que a secretária foi um presente que Bert Scoltock recebeu em 1949, aos sessenta anos, quando se reformou e deixou a Escola Secundária Madeley Modern, após trinta e seis anos como diretor em várias partes do Shropshire. Recebeu também uma poltrona — muito provavelmente a Parker Knoll; e também uma caneta de tinta permanente, um isqueiro e uns botões de punho em ouro. As raparigas do Centro de Artes Domésticas fizeram-lhe um bolo de dois andares; e Eric Frost, «que representava um grupo de rapazes do Centro de Marcenaria», deu-lhe «uma taça e um maço para partir nozes». Lembro-me bem deste utensílio, pois esteve sempre em exposição no chalé dos meus avós, mas nunca foi usado. Quando finalmente passou para a minha posse, percebi porquê: de tão pouco prático, era cómico — o maço fazia disparar estilhaços de cascas por toda a sala e reduzia as nozes a pó. Sempre pensara que fora feito pelo avô, pois quase todos os objetos em madeira, da casa e do jardim, desde a cesta à caixa de livros e ao estojo do relógio da avó, haviam sido serrados e lixados e emalhados e aparafusados pelas suas próprias mãos. Tinha pela madeira um grande respeito, que levava às últimas consequências. Chocado com a ideia de que os caixões fabricados com belas madeiras de carvalho e olmo eram reduzidos a cinza um ou dois dias depois, determinou que o seu seria feito em pinho.
Quanto ao relógio de ouro com tampa, está há décadas na gaveta superior da minha secretária. Tem uma corrente em ouro para colete e uma correia em couro, caso queiramos prendê-lo na botoeira e usá-lo no bolso de cima. Abro a tampa de trás: «Oferecido a Mr. B. Scoltock por diretores, professores, académicos e amigos, aquando da sua saída após dezoito anos como diretor da Escola de Bayston Hill. 30 de junho de 1931.» Eu não fazia ideia de que o meu irmão o queria, por isso digo-lhe que, ao cabo de quarenta anos de sentimento de culpa, o relógio é seu. «Em relação ao relógio de tampa», responde, «penso que ele desejaria que ficasses com ele.» Ele desejaria? O meu irmão despacha-me com a vontade hipotética do defunto. E continua: «Mais precisamente, eu agora desejo que fiques com ele.» Sim, na verdade só podemos fazer o que nós desejamos.
Falo ao meu irmão no assunto do avô e do remorso. Ele tem duas explicações, «a primeira sem dúvida demasiado trivial»: uma vergonha permanente por ter batido no neto quando ele arrancou as cebolas. E a segunda, mais convincente: «Quando me contava histórias sobre a Primeira Guerra Mundial, elas chegavam ao momento em que o barco aparelhava para França e recomeçavam depois em Inglaterra, no hospital. Ele nunca me disse uma palavra sobre a guerra. Suponho que esteve nas trincheiras. Não ganhou medalhas, tenho a certeza, nem ficou ferido (nem sequer uma ferida boa, das que dão direito a regresso). Por isso terá sido repatriado devido à febre das trincheiras? Por traumatismo de guerra? Algo pouco heroico, de qualquer maneira. Abandonou os camaradas? Uma vez pensei que ia tentar descobrir o que ele fez na guerra — há certamente arquivos do regimento, etc., etc. Mas, claro, nunca cheguei a fazer nada.»
Na minha gaveta de arquivo há a certidão de nascimento do avô, a sua certidão de casamento e o seu álbum de fotografias, encadernado em tecido vermelho e intitulado: CENAS DE ESTRADAS GRANDES E PEQUENAS. Ei-lo numa motorizada, em 1912, com a avó empoleirada atrás dele; no ano seguinte, com a cabeça no peito dela e ar malandro, enquanto lhe agarrava o joelho com a mão. Ei-lo no dia do casamento, com uma mão no ombro da noiva e a segurar o cachimbo à frente do colete branco, enquanto a Europa se preparava para se liquidar; durante a lua de mel (uma fotografia tirada em estúdio, que ficou menos esbatida); depois com a «Babs» — como chamavam à minha mãe antes de ela se tornar Kathleen Mabel —, nascida dez meses depois do casamento. Há instantâneos dele quando se encontrava de licença, primeiro com dois galões — «Prestatyn, agosto de 1916» — e por fim com três. Nessa altura o sargento Scoltock está no Hospital Grata Quies, nos arredores de Bournemouth, onde ele e os outros doentes têm um ar bastante atrevido, mascarados para uma festa musical. Eis o meu avô com a cara pintada de negro, primeiro com um tal Decker (travestido de enfermeira) e depois com Fullwood (um Pierrot). E eis de novo aquela fotografia dum rosto de mulher, datada de setembro de 1915, a lápis, mas com o nome (ou talvez o local) apagado, e a cara tão riscada e esburacada que só restam os lábios e o cabelo encrespado. Uma obliteração que a torna mais intrigante do que «Enfermeira Glynn» ou mesmo «Sargento P. Hyde, Morto em Combate, Dez. 1915». Uma obliteração que me parece um símbolo bem melhor da morte do que a caveira omnipresente. Só chegamos ao osso depois de ficar a apodrecer muito tempo e, quando aí chegamos, uma caveira é muito parecida com as outras. Ótima como símbolo a longo prazo mas, quanto à ação da própria morte, é melhor uma fotografia assim, rasgada e esburacada: parece ao mesmo tempo pessoal e instantânea, totalmente destrutiva, um arrancar da luz do olhar e da vida da face.
A investigação formal da missão do meu avô em combate é dificultada, à partida, por eu não saber qual foi o regimento ou a data de recrutamento. O primeiro Scoltock que aparece é um fabricante de caixas dispensado por doença, com um diagnóstico médico que diz simplesmente: «Idiota.» (Ah, ter na família um idiota designado oficialmente!) Mas cá está o soldado Bert Scoltock, do 17.º Batalhão de Fuzileiros do Lancashire, que se alistou a 20 de novembro de 1915 e, dois meses mais tarde, embarcou num navio para França com a 104.ª Brigada de Infantaria, 35.ª Divisão.
Eu e o meu irmão ficámos surpreendidos por o avô se ter alistado tão tarde. Sempre o imaginara a vestir a farda caqui ao mesmo tempo que a avó engravidava. Mas isso deve vir de um episódio semelhante na vida dos nossos pais: o meu pai alistou-se e foi enviado para a Índia em 1942, deixando a minha mãe grávida do que viria a ser o meu irmão. O avô não se alistou antes de novembro de 1915 por causa do nascimento da filha? Ele era então, como confirma a inscrição no relógio de tampa, diretor duma escola anglicana, por isso talvez estivesse numa profissão reservada. Ou essa categoria não existiria ainda, dado que o recrutamento só foi introduzido em 1916? Talvez tenha percebido que ele ia chegar e preferisse alistar-se. Se nessa altura a avó já era socialista, pode ter querido mostrar que, apesar de ter uma esposa politicamente suspeita, ele era patriota. Ter-se-á alguma daquelas mulheres tão orgulhosas do seu próprio ardor patriótico aproximado dele na rua, para lhe oferecer uma pluma branca? Ele teria algum amigo próximo que também se alistou? Como recém-casado, sofria do medo de ficar preso? Tudo isto são fantasias absurdas? Talvez seja um erro tentar associar à Primeira Guerra Mundial o que ele disse do remorso, visto que não tinha data. Uma vez perguntei à minha mãe porque é que o avô nunca falava da guerra. Ela respondeu: «Creio que ele não achava o assunto muito interessante.»
Os arquivos pessoais do avô (como os de muitos outros) foram destruídos pelos raides inimigos durante a Segunda Guerra Mundial. O diário da brigada mostra que chegaram à frente ocidental em finais de janeiro de 1916; chovia muito; Kitchener chegou em visita de inspeção a 11 de fevereiro de 1916. Em julho viram finalmente os combates (baixas entre os dias 19 e 27: oito oficiais feridos; outras patentes, trinta e quatro mortos, cento e setenta e dois feridos). No mês seguinte a brigada esteve em Vaux, Montagne, e a linha da frente em Montauban; o avô terá estado em Dublin Trench, onde a brigada se queixava de ser bombardeada pela sua própria artilharia, que visava perto de mais; e mais tarde em Chimpanzee Trench, no extremo sul de Angle Wood. Em setembro e outubro voltaram à linha da frente (4 de setembro-31 de outubro, baixas de outras patentes: um morto, catorze feridos — três por acidente, três em serviço, quatro por granada, dois em bombardeamento, um por torpedo aéreo, um por bala). O comandante da brigada é designado como sendo um tal «chefe do Estado-Maior, capitão-major de brigada Montgomery (mais tarde Alamein)».
Montgomery de Alamein! Costumávamos vê-lo no pequeno armário da televisão — «o pequeno Monty a preto e branco, a saracotear-se, execrável», como dizia o meu irmão — a explicar como ganhara a Segunda Guerra Mundial. Eu e o meu irmão imitávamos a sua incapacidade de pronunciar os erres. «Deitei então a Uommel um uico anzol», era o nosso resumo trocista da Campanha do Deserto. O avô nunca nos contou que estivera sob as ordens de Monty — nunca contou sequer à filha, que o teria certamente referido como parte importante da história familiar, sempre que o assunto fosse abordado.
Diz no diário da brigada de 17 de novembro de 1916: «O comandante do Exército tem visto ultimamente um homem muito míope num batalhão de infantaria e, no outro, um surdo. Na linha da frente eles seriam um perigo.» (Um novo «preferimos o quê»: preferíamos ser surdos ou cegos, na Primeira Guerra Mundial?) Outra nota do Comando diz: «O número de julgamentos em tribunal militar durante o período de 1 de dezembro de 1916 até aos nossos dias tende a mostrar que o grau de disciplina na divisão não é o que deveria ser.» Durante esse período, o 17.º Batalhão de Fuzileiros do Lancashire teve uma deserção, seis casos de dormir em serviço e dois ferimentos «acidentais» (provavelmente autoinfligidos).
Nada prova — nada poderia provar — que o meu avô figurasse nessa estatística. Era um soldado comum que se ofereceu como voluntário, foi embarcado para França a meio da guerra e passou de cabo a sargento. Veio repatriado devido (foi o que sempre entendi) à febre das trincheiras, «uma doença dolorosa causada pela imersão prolongada em água ou lama, caracterizada por inchaço, bolhas e um certo grau de necrose». Regressou a Inglaterra em data não especificada e foi dispensado a 13 de novembro de 1917, juntamente com mais vinte soldados do seu regimento que, como ele, «já não estavam fisicamente aptos para o serviço». Tinha então vinte e oito anos e, estranhamente — creio que se tratou de um erro —, foi classificado como simples soldado no registo da dispensa. E, contrariamente ao que o meu irmão recorda, recebeu medalhas, embora do tipo inferior — das que se recebem simplesmente por ter lá estado: a Medalha de Guerra Britânica, dada a quem entrou num teatro de operações, e a Medalha da Vitória, dada a todo o pessoal qualificado que serviu num teatro de operações. A última tem escrito no verso: «A Grande Guerra pela Civilização 1914-1918.»
E tudo se esgota aqui, tanto a memória como os factos. São os fragmentos disponíveis; não podemos saber mais. Mas como a devoção familiar não é a minha motivação, não fico dececionado. Dou o serviço do meu avô e os seus segredos, o seu silêncio, como exemplo. Primeiro, de nos enganarmos: assim, descobri que «Bert Scoltock, assim batizado, assim chamado, assim cremado», na verdade começou a vida em abril de 1889, no Registo Civil de Driffield, condado de Iorque, como Bertie; e continuou Bertie no censo de 1901. Segundo, como exemplo daquilo que conseguimos descobrir e aonde isso nos leva. Porque o que não podemos descobrir, e aonde é que isso nos leva, é um dos pontos donde o romancista parte. Nós (refiro-me a «mim») precisamos de pouco, não de muito; muito é demasiado. Começamos com um silêncio, um mistério, uma ausência, uma contradição. Se eu tivesse descoberto que o meu avô fora um dos seis que dormiram em serviço e, enquanto ele dormia, o inimigo se aproximara furtivamente e chacinara alguns dos seus camaradas fuzileiros e isso lhe causara grande remorso, sentimento que levara consigo para o túmulo (e se eu tivesse descoberto isso graças a uma declaração escrita sob juramento — reparem na assinatura que ficou tremida pelo remorso — enquanto esvaziava um velho cofre bancário), talvez ficasse satisfeito como neto, mas não como romancista. A história, ou história potencial, ficaria estragada. Conheço um escritor que gosta de se deixar ficar nos bancos de jardim a ouvir conversas; mas, assim que aquilo que ouve ameaça revelar mais do que profissionalmente lhe interessa, afasta-se. Não, a ausência e o mistério são para nós (eu e ele) resolvermos.
Assim, em CENAS DE ESTRADAS GRANDES E PEQUENAS o meu olhar é atraído não pelo tio-avô Percy, em Blackpool, pela enfermeira Glynn ou pelo sargento P. Hyde, morto em combate, em dezembro de 1915, mas pelos lábios e pelo cabelo e pela blusa branca de «Set. 1915» e pela rasura ao lado da data. Porque é que o retrato foi desfigurado e os bordos rasgados como que por unhas enraivecidas? E porque é que não foi totalmente retirado do álbum ou, pelo menos, por que não lhe colaram em cima outra fotografia? Eis algumas explicações possíveis: 1.ª Era uma fotografia da avó de que o avô gostava, mas com a qual mais tarde ela embirrou. Mas isso não explicaria a aparente violência do ataque, que esburacou o álbum e chegou à página de baixo. A menos que, 1b, aquilo fosse feito depois de a senilidade se instalar e a avó não se tivesse simplesmente reconhecido. Quem é esta mulher, esta intrusa, esta tentadora? E por isso riscou a própria imagem. Mas então, porquê esta fotografia e não outra? E porquê apagar a informação escrita ao lado da data? 2.ª Se era outra mulher, os cortes foram feitos pela avó? Se sim, mais ou menos quando? Pouco depois de a foto ser posta no álbum, num golpe de teatro conjugal? Muito mais tarde, mas enquanto o avô era vivo? Ou após a morte do avô, como ato de vingança longamente adiado? 3.ª Poderia ser, talvez, a «rapariga muito simpática chamada Mabel», cujo nome foi dado à minha mãe? O que é que a avó disse um dia à minha mãe — que no mundo não existiriam maus homens se não existissem más mulheres. 4.ª O avô podia ter feito os cortes e tentado ele próprio arrancar a fotografia. Isto parece altamente improvável porque: a) o álbum era dele; b) ele tinha experiência de trabalhos manuais, couro e encadernação e teria certamente feito melhor trabalho; e c) a mutilação fotográfica é, segundo creio, um crime predominantemente feminino. 5.ª Mas, mesmo assim, vejamos as datas. Bert (como ele se chamava em 1914) e Nell casaram-se no dia em que rebentou a guerra; a filha de ambos foi concebida no mês que se seguiu, e nasceu em junho de 1915. A fotografia misteriosa tem a data de setembro de 1915. O meu avô alistou-se em novembro de 1915 mas, de qualquer modo, o recrutamento seria decretado dois meses mais tarde. É talvez a razão pela qual ele conhecia o remorso? E a minha mãe, é claro, era filha única.
Um Bertie que se transformou em Bert; um voluntário tardio; uma testemunha silenciosa; um sargento exonerado como soldado; uma fotografia desfigurada; um possível caso de remorso. É aqui que trabalhamos, nos interstícios da ignorância, na terra da contradição e do silêncio, e que tentamos convencer-vos com aquilo que aparentemente é conhecido. Resolver — ou tornar útil e viva — a contradição e tornar o silêncio eloquente.
O meu avô propõe: «Sexta-feira. Trabalhei no jardim. Semeei batatas.» A minha avó reponta: «Disparate», e insiste: «Choveu o dia todo. Demasiado húmido para trabalhar no jardim.» Ele abanava a cabeça quando o seu Daily Express lhe falava de um complô comunista para dominar o mundo; ela emitia sons reprovadores quando o seu Daily Worker a avisava da sabotagem de belicistas e imperialistas americanos contra as democracias populares. Estamos todos — o neto deles (eu), o leitor (você) e até o meu último leitor (sim, tu, sacana) — seguros de que a verdade se encontra algures no meio. Mas o romancista (outra vez eu) está menos interessado na natureza exata dessa verdade e mais na natureza dos crentes; no modo como abraçam as crenças e na textura do terreno entre as narrativas concorrentes.
A ficção é feita por um processo que combina liberdade total e controlo absoluto, que equilibra a observação precisa e o jogo livre da imaginação, que utiliza mentiras para dizer a verdade e a verdade para dizer mentiras. É ao mesmo tempo centrípeta e centrífuga. Quer contar todas as histórias em toda a sua incoerência, contradição e insolubilidade; ao mesmo tempo quer contar a única história verdadeira, a que se funde e refina e resolve todas as outras. O romancista é ao mesmo tempo um cínico reles e um poeta lírico, que se inspira na insistência austera de Wittgenstein — «fala só do que conheces verdadeiramente» — e no descaramento alegre de Stendhal.
Um rapaz atira-se para cima dum pufe e, pelas costuras, saem as cartas de amor rasgadas dos pais. Mas ele nunca será capaz de reconstituir a maravilha e o mistério, ou a rotina e a banalidade, do seu amor. («As pessoas dizem-me que é um lugar-comum, mas não o sinto como tal.») Meio século depois o rapaz, que agora se aproxima da velhice, que passou a vida adulta com histórias, o seu significado e a sua produção, pensa nisto como uma metáfora das nossas vidas: a ação enérgica, os indícios destruídos e a falta de vontade ou incapacidade de reconstituir uma história da qual só conhecemos fragmentos. O que fica são bocadinhos de papel azul, postais com selos — e também carimbos do correio — descolados ao vapor; e o som dum estúpido chocalho suíço, a fazer dlim-dlão enquanto cai no contentor.
Não me lembro de ser esse rapazinho que era empurrado pelo irmão, vendado, contra um muro. Nem consigo descobrir, sem o género de intervenção psicoterapêutica da qual desconfio, se a minha ausência de memória vem duma supressão deliberada (trauma! terror! medo do meu irmão! amor pelo meu irmão! as duas coisas!) ou da banalidade da ocorrência. A minha sobrinha mais velha, C., descreveu-ma pela primeira vez na altura em que enfrentávamos o declínio final da minha mãe. Ela disse que lha haviam contado, a ela e à irmã, «como uma história engraçada», quando eram pequenas. Mas também se lembrava de ter concluído que «aquilo não era uma maneira muito boa de alguém se comportar, por isso talvez ele [pai dela, meu irmão] a considerasse uma espécie de conto moral, admonitório». Nesse caso, qual seria a moral? Trata o teu irmão mais novo melhor do que eu tratei o meu? Aprendam que a vida é como ser empurrado de olhos vendados contra um muro?
Peço ao meu irmão a versão dele. «A história do triciclo», responde. «Contei-a, ou contei versões dela à C. e à C. para as fazer rir — lamento, mas surtiu efeito. (Não me lembro de alguma vez lhes ter contado nada com moral…)» É no que dá ter um pai filósofo. «Na minha memória, era um jogo que fazíamos no quintal das traseiras, em Acton. Era instalada na relva uma carreira de obstáculos — troncos, bidões, tijolos. O jogo consistia em andar de triciclo evitando os obstáculos, sem nos magoarmos muito. Um de nós guiava o triciclo, enquanto o outro empurrava. (Eu acho que o triciclo tinha perdido a corrente; mas talvez o facto de ser empurrado aumentasse os prazeres sádicos da prova.) O que guiava tinha os olhos vendados. Tenho quase a certeza de que nos revezávamos para guiar e empurrar; mas desconfio que eu te empurrava com mais força do que tu me empurravas. Não me lembro de nenhum acidente sério (nem sequer de ninguém atirado contra um muro — o que também não seria fácil, dada a disposição do jardim). Não me lembro de tu ficares assustado. Parece-me é que achávamos aquilo divertido e endiabrado.»
O resumo inicial do jogo feito pela minha sobrinha — o meu irmão a vendar-me os olhos antes de me empurrar contra um muro — poderia ser uma memória de infância alterada, que enfatizasse o que ela própria mais recearia; ou poderia ser uma história abreviada ou imaginada mais tarde à luz da relação que ela tinha com o pai. Mais surpreendente é o facto de a minha própria memória ser cega, tendo em vista sobretudo o carácter elaborado da operação. Gostava de saber como é que o meu irmão e eu conseguíamos arranjar troncos e bidões e tijolos no nosso quintal de subúrbio, muito pequeno e limpo, e instalar uma carreira de obstáculos sem que ninguém soubesse e visse, autorizasse ou proibisse. Mas a minha sobrinha rejeita isso: «Tenho a certeza que os teus pais nunca me contaram a história; de facto, eu achava que eles nunca souberam.»
Volto-me para a irmã mais nova. Também ela se lembra da carreira de obstáculos, da venda nos olhos, da frequência do jogo. «Eras empurrado a toda a velocidade à volta dos obstáculos e, para acabar a corrida, eras atirado contra o muro do jardim. Era descrito como uma grande paródia para os dois, com o sentimento subjacente de ser uma coisa certamente reprovada pela mãe; penso que não tanto pelos danos que podia causar em vocês próprios, mas pela má utilização dos utensílios de jardinagem e por sujarem a roupa posta a secar. Não sei porque nos contaram esta história (nem porque é que me lembro dela). Acho que era a única história sobre ti, sobre a família toda, aliás, com exceção daquela em que a tua avó vomitava num barco para uma série de copos de iogurte. Devia ser para nos provar que as crianças devem fazer tudo o que lhes apetece, principalmente se for uma parvoíce e se desagradar aos adultos… a história era contada em tom de regozijo e esperava-se que nos ríssemos e aplaudíssemos o lado audacioso de tudo aquilo. Acho que nunca questionámos a verdade da coisa.»
Percebem (de novo) porque é que (em parte) eu sou romancista? Três relatos contraditórios do mesmo acontecimento, um por um participante, dois fundados em memórias de relato posterior há trinta anos (e contendo pormenores que o narrador original pode já ter esquecido); súbita inserção de material novo — «má utilização dos utensílios de jardinagem», «sujarem a roupa»; ênfase, nas versões das minhas sobrinhas, no culminar ritual da brincadeira — eu a ser atirado contra o muro — que o meu irmão nega; esquecimento total do episódio pelo segundo participante, apesar de ter sido usado para carregar troncos e apanhar tijolos; ausência, nas versões das minhas sobrinhas, da inversão de papéis em que seria eu a empurrar o triciclo; e, sobretudo, a variante moral entre aquilo que o meu irmão dizia que queria fazer ao contar a história (puro divertimento) e o que as filhas, diversa e separadamente, concluem que ele fazia. As respostas das minhas informadoras quase poderiam ter sido escritas para lançar a dúvida sobre a fiabilidade da história oral. E fico com uma nova e possível definição para aquilo que faço: um romancista é alguém que não se lembra de nada, mas regista e manipula versões diferentes daquilo de que não se lembra.
O romancista em questão precisaria de fornecer os seguintes elementos: quem inventou o jogo; como é que o triciclo perdeu a corrente; quais eram as instruções de condução que o que empurrava dava ao condutor cego; se a mãe sabia realmente ou não; quais os utensílios de jardinagem utilizados; como é que a roupa se sujava; que prazeres sádicos e/ou pré-sexuais poderiam estar envolvidos; e porque é que era a principal, quase única história que um filósofo contava sobre a sua infância. Também, se o romance deveria incluir mais gerações, se as duas irmãs que a ouviram primeiro a repetiram mais tarde às próprias filhas (e com que fim, humorístico ou moral) — se a história morre ou se é de novo transformada na boca e no espírito duma geração posterior.
Para os jovens — e particularmente para o jovem escritor — a memória e a imaginação são totalmente distintas e de categorias diferentes. Num primeiro romance típico haverá memórias diretas (emblemáticas como o inesquecível embaraço sexual), momentos em que a imaginação tratou de transfigurar uma memória (talvez o capítulo em que o protagonista aprende uma lição sobre a vida, enquanto na realidade o futuro romancista não aprendeu nada) e momentos em que de repente, para espanto do escritor, a imaginação apanha uma corrente ascendente e o voo maravilhoso, imponderável, que é a base da ficção, se produz com deleite.
Estas diferentes espécies de verdade aparecem distintamente ao jovem escritor e a maneira de as juntar constitui matéria de ansiedade. Para o escritor mais velho, memória e imaginação parecem diferenciar-se cada vez menos. Não é porque o mundo imaginado esteja realmente muito mais próximo da vida do escritor do que ele ou ela quer admitir (um erro comum entre os que dissecam a ficção), mas exatamente pela razão oposta: a própria memória acaba por, mais do que nunca, parecer muito próxima dum ato de imaginação. O meu irmão desconfia da maior parte das memórias. Eu não desconfio, prefiro ver nelas o labor da imaginação, que contém uma verdade imaginativa e se contrapõe à verdade naturalista. Ford Madox Ford podia dizer grandes mentiras e grandes verdades, ao mesmo tempo e na mesma frase.
Chitry-les-Mines fica a uns trinta quilómetros a sul de Vézelay. Uma placa em metal azul-desbotado indica, à direita da estrada principal, o caminho para a casa de Jules Renard, onde o rapaz cresceu no meio da silenciosa guerra parental e onde, anos mais tarde, o homem irrompeu pela porta do quarto e encontrou o pai que se suicidara. Uma segunda placa metálica e um segundo desvio à direita leva-nos ao monumento de Jules Renard, cuja construção ele confiou maliciosamente à irmã, poucos meses antes de morrer: «Estivemos a pensar, esta manhã, em quem se encarregaria de mandar erigir o meu busto na pequena praça de Chitry. Achámos logo que podíamos contar contigo…» A «pequena praça», um triângulo com tílias plantadas em frente à igreja, tornou-se inevitavelmente a Praça Jules Renard. O busto de bronze do escritor está colocado sobre uma coluna de pedra, em cuja base se senta um Poil de Carotte pensativo, de aspeto melancólico e maduro para a idade. Uma árvore em pedra ergue-se do outro lado da coluna e rodeia com as folhas os ombros do escritor: a natureza envolve-o e protege-o, na morte como na vida. É uma bela peça, e quando foi descerrada em outubro de 1913 por André Renard — farmacêutico, antigo deputado socialista e primo afastado — devia parecer o único monumento de que a obscura vila alguma vez iria necessitar. O seu tamanho é à medida da praça e, assim, o monumento aos mortos da Primeira Guerra Mundial, que se encontra a poucos metros, quase parece pedir desculpa por ali estar: os nomes gravados parecem menos importantes e uma perda menor para Chitry do que o arteriosclerótico cronista.
Não há uma loja, um café, nem mesmo uma enegrecida bomba de gasolina nesta vila irregular; a única razão para um forasteiro cá chegar é Jules Renard. Algures aqui perto, e sem dúvida já tapado há muito tempo, deve estar o poço onde caiu Madame Renard há quase um século. Uma bandeira tricolor no edifício em frente à igreja assinala a mairie, onde tanto François Renard como o filho desempenharam funções cívicas, onde Jules foi beijado nos lábios por uma noiva cujo matrimónio acabara de celebrar («custou-me vinte francos»). A ruela alcatroada entre a mairie e a église conduz-nos à saída da vila e ao cemitério, que fica a poucas centenas de metros e se situa ainda em pleno campo.
É um dia de julho muito quente e o cemitério quadrado e em declive está tão árido e poeirento como uma praça de armas. Uma lista de nomes e números de talhões está afixada no portão. Sem compreender que ela se refere a concessões prestes a expirar, começo a procurar o Renard errado no túmulo errado. A outra única ocupante viva do cemitério é uma mulher com um regador, que se desloca lentamente por entre as suas campas de eleição. Pergunto-lhe onde posso encontrar a do escritor. «Está lá em baixo à esquerda, ao lado da torneira», responde.
O habitante mais famoso da vila está efetivamente escondido num canto do cemitério. Lembro-me que Renard père foi a primeira pessoa a ser aqui enterrada sem qualquer cerimónia religiosa. Talvez seja por isso que a sepultura familiar parece situada muito ao fundo, ao lado da torneira (se é que a torneira já lá se encontrava). É uma campa quadrada rente ao muro limítrofe, protegida por uma pequena grade de ferro pintada de verde; no meio, o pequeno portão está pegajoso das sucessivas camadas de tinta e exige uma certa força. Dois potes de pedra encontram-se do lado de dentro. A sepultura quadrada atravessa na horizontal a parte de trás do terreno e encima-a um grande livro aberto, de pedra, em cujas páginas se inscrevem os nomes dos que ali repousam.
E cá estão eles todos, pelo menos seis. O pai que não falou à mulher durante trinta dos quarenta anos de casados, que ria à ideia de poder matar-se com uma pistola e, em vez disso, usou uma caçadeira. O irmão que imaginava que o seu inimigo mortal era o sistema de aquecimento do escritório, que jazia num sofá com a lista telefónica de Paris sob a cabeça inerte, e cujo fim enfureceu Jules contra «a morte e os seus truques imbecis». A mãe reduzida enfim ao silêncio, após uma vida loquaz, por uma morte «impenetrável». O escritor que os utilizou a todos. A esposa que, depois de viúva, queimou um terço do Journal do marido. A filha que nunca se casou e foi aqui enterrada em 1945, sob o diminutivo Baïe. Foi a última vez que abriram a cova funda em cuja beira Jules vira um verme gordo e empertigado no dia em que o irmão Maurice veio a enterrar.
Ao olhar o túmulo e ao pensar neles todos juntos, ali empilhados — só a irmã do escritor, Amélie, e seu filho Fantec escaparam —, e ao lembrar as histórias de luta, ódios e silêncio, parece-me que os Goncourts teriam certa razão em devolver um «Eh! Eh!» ao jovem colega: pela companhia em que se encontra, pelo embaraçoso lugar-comum escultórico do livro de pedra aberto, pelos vasos saloios. E depois há a inscrição sob a qual ele repousa. Começa, sem surpresa, por «Homme de lettres», após o que poderíamos esperar, como eco filial, «Maire de Chitry». Mas a identificação subsidiária do escritor é a de membro «de l’Académie Goncourt». Parece um pequeníssimo lampejo de vingança por aquelas palavras do diário: «… eles acharam que bastava».
Volto a olhar os vasos de pedra. Um está vazio, o outro contém uma conífera amarela e raquítica, cuja cor parece troçar da ideia de manter viva a memória. Este túmulo não tem mais visitas que o dos Goncourts, se bem que a proximidade da torneira deva trazer alguém de tempos a tempos. Reparo que há, no livro de pedra, espaço para mais alguns nomes, por isso vou ter novamente com a mulher do regador e pergunto-lhe se ainda há descendentes de Renard na vila ou nos arredores. Ela acha que não. Digo que, desde 1945, mais ninguém foi incluído no jazigo. «Ah», responde, não muito a propósito, «nesse tempo eu estava em Paris.»
Não interessa o que nos põem no túmulo. Na hierarquia dos mortos, o que conta é o número de visitantes. Há alguma coisa mais triste do que uma campa sem visitas? No segundo aniversário da morte do pai, foi dita por ele uma missa em Chitry; só três velhas da aldeia assistiram; Jules e a mulher puseram uma coroa em faiança pintada sobre o túmulo. No Journal, ele anotou: «Damos aos mortos flores vidradas, flores que duram.» E prosseguiu: «É menos cruel nunca visitar os mortos do que deixar de ir lá ao fim de algum tempo.» Aqui, estamos menos no campo de «O que eles teriam desejado» e mais em «Como teriam reagido se soubessem?». O que acontecerá ao meu irmão na sepultura do quintal quando os lamas a pastar e a mulher também morrerem e a casa for vendida? Quem quer um especialista em Aristóteles que se transforma lentamente em compostagem?
Há uma coisa mais cruel do que deixar os mortos sem visita. Podemos jazer numa concession perpetuelle pela qual pagámos mas, se ninguém nos visitar, não haverá ninguém que contrate um advogado para nos defender, quando a autarquia decidir que perpétuo nem sempre, ou não necessariamente, quer dizer perpétuo. (Foi assim que o vizinho dos Goncourts foi suplantado por Miss Bluebell.) Portanto, mesmo aqui, pedir-nos-ão que dêmos lugar a outros, que renunciemos enfim a ocupar um pequeno espaço sobre a terra, que deixemos de dizer: «Eu também aqui estive.»
Assim, há mais outra inevitabilidade lógica. Tal como cada escritor terá o último leitor, também cada cadáver terá o último visitante. E não me refiro ao homem que conduzirá a escavadora, que exumará os nossos restos quando o terreno do cemitério for vendido a um promotor imobiliário. Penso no descendente longínquo ou, no meu caso, no estudante graciosamente chato (ou antes, encantador e inteligente) — e ainda bibliófilo, muito depois de a leitura ter sido substituída por meios mais eficazes na transmissão da narrativa, do pensamento e da emoção — que desenvolveu um apego bizarro e solitário (ou antes, totalmente admirável) aos romancistas há muito esquecidos da distante Idade do Material Impresso. Mas um último visitante é bem diferente daquele último leitor que eu mandei passear. Visitar túmulos não é um passatempo competitivo; não trocamos sugestões e hipóteses como quem troca selos. Por isso quero agradecer de antemão ao meu estudante o facto de ele ter feito a viagem, e não perguntarei o que ele ou ela pensa realmente dos meus livros, ou livro, ou parágrafo encontrado numa antologia, ou desta frase. Talvez, como Renard quando foi a Montmartre para ver os Goncourts, o meu último visitante tenha adquirido o hábito de vaguear pelos cemitérios, após ter recebido do médico uma advertência tão funesta como a múmia de Faium. Seja como for, tem a minha simpatia.
Se eu recebesse um tal diagnóstico, duvido que começasse a visitar os mortos. Já o fiz bastante e vou ter a eternidade (ou, pelo menos, até que a palavra «perpetuidade» deixe de querer dizer o que diz) na sua companhia. Preferia passar o tempo com os vivos; e com música, não com livros. E, nesses últimos dias, tenho de tentar verificar um certo número de coisas. Se cheiro a peixe, em primeiro lugar. Se o terror leva a melhor. Se a consciência se desdobra — e se saberei reconhecê-lo. Se a minha médica e eu faremos juntos aquela viagem; e se terei vontade de perdoar, de evocar memórias, de planear o funeral. Se o remorso aparece e se pode ser afastado. Se sou tentado — ou enganado — pela ideia de que a vida humana é no fundo uma narrativa e contém os prazeres próprios dum bom romance. Se coragem significa não assustar os outros, ou se é algo muitíssimo maior e provavelmente fora de alcance. Se tirei a limpo — ou até mais do que a limpo — esta coisa da morte. E se, à luz das informações de última hora, este livro precisa dum posfácio — em que o pós seja sublinhado com mais força do que é habitual.
E é esta a vista, agora e do que, se eu tiver sorte e os meus pais servirem de referência, poderão ser três quartos do percurso da minha vida; embora saibamos que a morte é contraditória e devamos estar preparados para que qualquer estação de comboio, calçada, escritório sobreaquecido ou passadeira de peões se chame Samarra. É prematuro, espero eu, escrever: «Adeus, querido eu.» É igualmente prematuro rabiscar na parede da cela o grafito: «Eu também aqui estive.» Mas não é prematuro escrever as palavras que, vejo eu, nunca pus na última página dum livro:
FIM
Ou é demasiado aparatoso? Talvez seja melhor com caixa alta e baixa.
Fim
Não, não é suficientemente… definitivo. Um último «preferimos o quê», mas ao qual podemos responder.
Nota ao impressor: versaletes, por favor.
FIM
Sim, acho que fica melhor. Não acham?
JB
Londres, 2005-2007
1 Todas as palavras e expressões que aparecem em francês no texto estão em francês no original. (N. da T.)
2 Jogo de palavras com Gaza Strip (Faixa de Gaza) e strip-tease. (N. da T.)
3 Numa tradução literal: «A Bíblia Destinada a Ser Lida como Literatura» (N. da T.)
4 quod erat demonstrandum = o que era preciso demonstrar. (N. da T.)
5 «Os próprios deuses morrem. / Mas, soberana, / A Poesia fica // Mais forte do que o bronze». (N. da T.)
6 Em alemão, conjunto de textos e testemunhos de homenagem. (N. da T.)
7 Geneticista britânico, nascido em 1941, defensor do evolucionismo de Darwin. (N. da T.)
8 Professor de Oxford. Wykeham deu nome a Winchester College e New College, faculdades de Oxford por ele fundadas no século XIV. (N. da T.)
9 Cão = dog; Deus = God. (N. da T.)
10 lot(s) = lote(s); lots = muito, grande quantidade. (N. da T.)
11 Ghost (fantasma) — escritor pago para escrever anonimamente o livro que outro assina. (N. da T.)
12 end = fim. (N. da T.)