Capítulo XXXIV – Processo Penal Tributário
198. Representação fiscal para fins penais
Quem primeiro toma conhecimento da ocorrência dos crimes tributários é, via de regra, a autoridade fiscal, por ocasião das fiscalizações tributárias. Verificada a ocorrência de condutas que a lei considera crime, tem a autoridade a obrigação de proceder à representação para fins penais, noticiando a situação ao seu chefe imediato, que adotará as providências necessárias para que a questão seja submetida ao Ministério Público.922
O encaminhamento de representação ao Ministério Público, contudo, está condicionado ao prévio exaurimento do processo administrativo-fiscal. O art. 83 da Lei 9.430/96, com a redação das Leis 10.350/10, dispõe que a representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária e aos crimes contra a Previdência Social será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.923 Isso porque se trata de crimes materiais ou de resultado, figurando o não pagamento de tributo devido como elemento essencial do tipo.
Importa ter em conta, ainda, que o parcelamento do débito tributário suspende a punibilidade. Desse modo, se o contribuinte aderir a parcelamento, seja comum ou especial,924 também restará suspenso o encaminhamento da representação fiscal para fins penais ao Ministério Público. A representação só ocorrerá, de fato, na hipótese de o contribuinte ser excluído do parcelamento, nos termos do art. art. 83, § 1º, da Lei 9.430/96, incluído pela Lei 12.382/11: “§ 1º Na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento”. A exclusão ocorre quando o contribuinte deixa de pagar as parcelas ou quando o Fisco verifica que não cumpria os requisitos legas para aderir ao parcelamento.
199. Ação penal pública
Os crimes tributários são de ação penal pública incondicionada, o que significa que, embora normalmente cheguem ao conhecimento do Ministério Público através de representação fiscal para fins penais formulada por autoridade fiscal, a apresentação de denúncia independe de tal provocação. Ainda que o Ministério Público tenha conhecimento do crime por outras fontes, poderá oferecer denúncia.
O art. 15 da Lei 8.137/90, que define os crimes contra a ordem tributária, dispõe expressamente que os crimes nela previstos “são de ação penal pública, aplicando-se-lhes o disposto no art. 100 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal”. Seu art. 16 ainda acrescenta: “Qualquer pessoa poderá provocar a iniciativa do Ministério Público nos crimes descritos nesta lei, fornecendo-lhe por escrito informações sobre o fato e a autoria, bem como indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção”. O STF, a respeito dos crimes por sonegação fiscal, já editara a Súmula 609: “É pública incondicionada a ação penal por crime de sonegação fiscal”.
O fato de a ação penal ser pública incondicionada, prescindindo de representação fiscal para fins penais, não dispensa, contudo, que o Ministério Público verifique se há crédito tributário definitivamente constituído, pois tal é elemento do tipo nos crimes materiais contra a ordem tributária. O STF entende que “A instauração de persecução penal... nos crimes contra a ordem tributária definidos no art. 1º da Lei 8.137/90 somente se legitimará, mesmo em sede de investigação policial, após a definitiva constituição do crédito tributário, pois, antes que tal ocorra, o comportamento do agente será penalmente irrelevante, porque manifestamente atípico”.925 De qualquer modo, ressalva o fato de que a representação fiscal não é condição para o oferecimento da denúncia: “O Ministério Público pode, entretanto, oferecer denúncia independentemente da comunicação, dita ‘representação tributária’, se, por outros meios, tem conhecimento do lançamento definitivo”.926
200. Suspensão da punibilidade pelo parcelamento
O parcelamento dos débitos tributários implica suspensão da pretensão punitiva relativa aos crimes materiais relacionados à tributação, ou seja, a aqueles que pressupõem a existência do débito. Esse efeito suspensivo, contudo, só ocorre quando o parcelamento for “formalizado antes do recebimento da denúncia criminal”, conforme dispõe o art. 83, § 2º, da Lei 9.430/96, com a redação da Lei 12.382/11.
Como não se pode deixar o agente ao alvedrio da Administração quanto ao exercício do seu direito ao parcelamento, deve-se entender suficiente, para a obtenção do efeito suspensivo da exigibilidade do crédito tributário e também da punibilidade, que o agente tenha cumprido os requisitos para a obtenção do parcelamento e, no regime da Lei 10.522/02, formulado o pedido e pago a primeira parcela. Até porque, nos termos do art. 12, § 1º, II, da mesma lei, o pedido de parcelamento é “considerado automaticamente deferido quando decorrido o prazo de 90 (noventa) dias, contado da data do pedido de parcelamento sem que a Fazenda Nacional tenha se pronunciado”. Note-se que os débitos para com a Fazenda Nacional também podem ser reparcelados, hipóteses em que se exige o pagamento de uma parcela inicial de 10% do débito ou, no caso de histórico de reparcelamento anterior, parcela inicial de 20% do débito, conforme o art. 14-A da mesma lei.
É importante ter em conta que nem todo débito tributário pode ser parcelado, pois o parcelamento depende de lei específica autorizadora, nos termos do art. 155-A do CTN. Não é possível invocar lei federal para parcelar tributos estaduais e vice-versa. Ademais, deve-se observar que as leis de parcelamento impõem condições, não o admitindo em certos casos. Normalmente, o legislador veda o parcelamento de valores retidos e não repassados aos cofres públicos. Veja-se, no ponto, a Lei 10.666/03: “Art. 7º Não poderão ser objeto de parcelamento as contribuições descontadas dos empregados, inclusive dos domésticos, dos trabalhadores avulsos, dos contribuintes individuais, as decorrentes da sub-rogação e as demais importâncias descontadas na forma da legislação previdenciária”. O rol de vedações para os parcelamentos comuns de débitos perante a Fazenda Nacional, consta do art. 14 da Lei 10.522/02, com a redação da Lei 11.941/09: “Art. 14. É vedada a concessão de parcelamento de débitos relativos a: I – tributos passíveis de retenção na fonte, de desconto de terceiros ou de sub-rogação; II – Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro e sobre Operações relativas a Títulos e Valores Mobiliários – IOF, retido e não recolhido ao Tesouro Nacional; III – valores recebidos pelos agentes arrecadadores não recolhidos aos cofres públicos. IV – tributos devidos no registro da Declaração de Importação; V – incentivos fiscais devidos ao Fundo de Investimento do Nordeste – FINOR, Fundo de Investimento da Amazônia – FINAM e Fundo de Recuperação do Estado do Espírito Santo – FUNRES; VI – pagamento mensal por estimativa do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica – IRPJ e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, na forma do art. 2º da Lei 9.430, de 27 de dezembro de 1996; VII – recolhimento mensal obrigatório da pessoa física relativo a rendimentos de que trata o art. 8º da Lei 7.713, de 22 de dezembro de 1988; VIII – tributo ou outra exação qualquer, enquanto não integralmente pago parcelamento anterior relativo ao mesmo tributo ou exação, salvo nas hipóteses previstas no art. 14-A desta Lei; IX – tributos devidos por pessoa jurídica com falência decretada ou por pessoa física com insolvência civil decretada; e X – créditos tributários devidos na forma do art. 4º da Lei 10.931, de 2 de agosto de 2004, pela incorporadora optante do Regime Especial Tributário do Patrimônio de Afetação”. As vedações devem ser verificadas em cada lei autorizadora de parcelamento. Os parcelamentos especiais contém suas próprias regras, inclusive quanto às vedações.
Pois bem, concluído o processo administrativo-fiscal e mesmo oferecida a denúncia, o réu ainda tem a oportunidade de suspender a punibilidade pelo parcelamento quando a lei tributária o admita. Mas tem de fazê-lo logo, antes do seu recebimento pelo magistrado. Efetivamente, o “recebimento da denúncia a que se refere o dispositivo é aquele constante da decisão judicial que recebe a denúncia (CPP, art. 339), após a resposta do denunciado (CPP, arts. 396 e 396-A) e não a do oferecimento da denúncia mediante ‘protocolização’ na Vara Criminal ou distribuição”, de modo que o “denunciado poderá... requerer o parcelamento no prazo para resposta”.927
Conforme o § 3º do art. 83, com a redação da Lei 12.382/11, se forem pagas todas as parcelas, satisfazendo integralmente o crédito tributário, inclusive acessórios, extingue-se a punibilidade. Cabe ao agente, assim, aproveitar a oportunidade do parcelamento e levá-la a sério, cumprindo-o até o final, com o que se verá livre da persecução penal. Isso porque implicará a extinção da pretensão punitiva, conforme art. 83, § 6º, da Lei 9.430/96, acrescido pela Lei 12.832/11. No mesmo sentido, é o art. 69 da Lei 11.941/09, ao dizer da extinção da punibilidade por força do pagamento integral do pagamento que instituiu. Restará, com isso, impedido o oferecimento de denúncia pelo Ministério Público e o seu recebimento pelo Magistrado. A Lei 11.941/2009, que instituiu parcelamento especial de dívidas tributárias federais, estabelece que a pessoa física responsabilizada pelo não pagamento pode parcelar o débito nas mesmas condições permitidas à pessoa jurídica (art. 1º, § 15). Estabelece, ainda, que, concedidos os parcelamentos a que se refere, fica suspensa a exigibilidade “enquanto não forem rescindidos os parcelamentos” (art. 68), sendo certo que a rescisão ocorre com a comunicação ao sujeito passivo em face de três parcelas em aberto, consecutivas ou não, ou da única que tenha ficado em aberto ao final do parcelamento (art. 1º, § 9º). Lembre-se que a adesão a tal parcelamento especial, conhecido como parcelamento da crise, foi reaberta até 31 de dezembro de 2013 pela Lei 12.865/2013.
201. Extinção da punibilidade pelo pagamento
Ainda que o agente tenha deixado de parcelar o débito até o recebimento da denúncia ou que tenha deixado de cumpri-lo até o final, será possível obter a extinção da punibilidade pelo pagamento do débito. Isso porque a Lei 12.381/11 só alterou a regra para o parcelamento, não para o pagamento puro e simples. Continua vigendo o art. 9º, § 2º, da Lei 10.684/03, no sentido de que “Extingue-se a punibilidade... quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios”. Antes ou depois do recebimento da denúncia, o pagamento tem efeito extintivo da punibilidade.
Em 2013, aplicando o art. 69 da Lei 11.941/2009, temos a AP 516 ED, red. p/o acórdão Min. Luiz Fux, julgamento concluído em dezembro de 2013. No caso, foi extinta a punibilidade pelo pagamento do débito tributário “realizado após o julgamento, mas antes da publicação do acórdão condenatório”.928
O STF decidiu que: “O pagamento integral de débito – devidamente comprovado nos autos - empreendido pelo paciente em momento anterior ao trânsito em julgado da condenação que lhe foi imposta é causa de extinção de sua punibilidade, conforme opção político-criminal do legislador pátrio”.929
Notas
922 O Decreto 70.235/72, que ainda hoje disciplina o Processo Administrativo Fiscal, dispõe: “Art. 12. O servidor que verificar a ocorrência de infração à legislação tributária federal e não for competente para formalizar a exigência, comunicará o fato, em representação circunstanciada, a seu chefe imediato, que adotará as providências necessárias”.
923 Lei 9.430/96, com a redação das Leis 10.350/10 e 11.382/11: “Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente. § 1º Na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento. [...]”.
924 Comuns são os parcelamentos que estão disponíveis em caráter permanente, a qualquer contribuinte. como o previsto no art. 10 da Lei 10.522/02. Especiais, são os parcelamentos concedidos por leis específicas, normalmente com a anistia de multas e dispensa ou redução de juros, mas com adesão temporária e, por vezes, sujeita ao oferecimento de garantias, como o REFIS, o PAES, o PAEX e o da Lei 11.941/09.
925 STF, Tribunal Pleno, Rel. Ministro CELSO DE MELLO, Pet 3593 QO, 2007.
926 STF, Tribunal Pleno, Rel. Ministro GILMAR MENDES, ADI 1571, 2003.
927 BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes Tributários: Novo Regime de Extinção de Punibilidade pelo Pagamento – Lei 12.382/11, art. 6º. In: Estado de Direito nº 31, 2011, p. 9.
928 Informativo 731 do STF.
929 STF, 1ª T., HC 116828, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, ago/2013. Obs: nesse precedente, o relator destacou posição pessoal mais abrangente: “4. Entendimento pessoal externado por ocasião do julgamento, em 9/5/13, da AP nº 516/DF-ED pelo Tribunal Pleno, no sentido de que a Lei nº 12.382/11, que regrou a extinção da punibilidade dos crimes tributários nas situações de parcelamento do débito tributário, não afetou o disposto no § 2º do art. 9º da Lei 10.684/03, o qual prevê a extinção da punibilidade em razão do pagamento do débito, a qualquer tempo”.