CAPÍTULO 2

Black Rock, Austrália

Benjamin Brust observou uma barata castanha que corria apressada sobre a bacia branca do lavatório. Aproximou-se das grades, deslizando a mão pela barba rala que lhe cobria o rosto desde que fora encarcerado. O fedor a urina velha na cela era menos intenso junto à porta. O guarda de uniforme cor de caqui ergueu os olhos de relance, afastando-os da revista GQ pousada no colo. Ben acenou ao guarda que, sem responder ao cumprimento, regressou à leitura.

Pelo menos o cliente de Ben, Hans Biederman, estava a recuperar bem. Graças a Deus por isso. Era certo e sabido que não precisava de uma acusação de homicídio negligente, para além de tudo o resto. O senhor Biederman devia voar de regresso à Alemanha naquele dia, não tendo o cliente recebido mais do que uma repreensão pela pequena escapadela. Ao passo que Ben, enquanto organizador da expedição, tinha pela frente uma longa estadia numa prisão militar.

Durante os últimos cinco anos, Ben tinha-se especializado no acompanhamento de indivíduos com o dinheiro certo para poderem visitar locais exóticos e contemplarem paisagens raras. Viagens que exigiam contornar, por vezes até violar, algumas regras. Especializara-se em aventuras subterrâneas: minas de diamantes abandonadas na África do Sul, ruínas monásticas soterradas sob os Himalaias, túneis subaquáticos junto à costa das Caraíbas — e agora, ali na Austrália, um conjunto de grutas espantosas que os militares mantinham escondidas de olhares humanos.

As grutas estavam situadas numa secção remota das instalações militares de Black Rock. Estas cavernas encantadoras tinham sido descobertas e mapeadas pelo próprio Ben, quatro anos antes, quando ali estivera destacado.

Tudo estava a correr na perfeição até Herr Biederman, o seu cliente alemão de rosto redondo, ter escorregado e partido a perna. Ben devia tê-lo abandonado à sua sorte por ter ignorado os avisos, mas, em vez disso, tentou carregar o sacana até ao exterior das grutas. Os uivos de dor de Herr Biederman atraíram a polícia militar, e Ben fora apanhado devido aos seus esforços.

Afastou-se das grades e deixou-se cair na enxerga comida pelas traças, depois recostou-se, estudando as manchas no teto. Ouviu o som forte de botas militares a percorrerem o corredor e de algo a ser balbuciado ao guarda.

A pesada revista caiu no chão.

— Ali, senhor. O quarto a contar da ponta. — Ben ouviu medo na resposta do guarda.

O som dos tacões aproximou-se, depois parou. Ergueu-se sobre os cotovelos para ver quem estava à frente da cela. Reconheceu o rosto do seu antigo comandante. Cabeça careca, nariz adunco, olhos cinzentos que perfuravam.

— Coronel Matson?

— De alguma forma, já desconfiava que acabasses aqui. Foste sempre um desordeiro. — Mas o sorriso que brincava nos cantos dos seus lábios suavizava a brusquidão. — Como te têm tratado?

— Como se estivesse no Hilton, senhor. Mas o serviço de quartos é um bocadinho lento.

— É sempre. — O coronel fez sinal ao guarda para que abrisse a cela. — Segue-me, sargento Brust.

— Agora sou senhor Brust, senhor.

— Como queiras — disse com um franzir de sobrolho, virando-lhe as costas. — Temos de falar.

O guarda interrompeu-o.

— Devo algemá-lo, senhor?

Ben dirigiu ao coronel Matson o seu olhar mais inocente.

— Sim — disse Matson. — É melhor. Não podemos confiar em civis.

— Está bem — disse Ben, pondo-se em sentido com uma expressão trocista. — Ganhou. Sargento Brust, a apresentar-se ao serviço.

Assentindo, o coronel Matson acenou ao guarda para que se afastasse.

— Então venha, sargento. Vamos ao meu gabinete.

Ben seguiu-o para o exterior da prisão e, depois de um breve percurso de carro, chegaram ao edifício da administração. O gabinete do coronel não tinha mudado. A mesma secretária de nogueira com manchas circulares deixadas pelas canecas de café; paredes com estandartes da Velha Guarda; troféus alinhados na parede lateral. Durante o percurso até ali, Ben percebeu, pela hesitação num homem normalmente exuberante, que este lhe estava a esconder algo de importante.

O coronel Matson fez sinal a Ben para que se sentasse, depois apoiou-se na beira da secretária e estudou Ben. O rosto do coronel parecia feito de pedra. Ben tentou não estremecer sob o seu olhar. Por fim, o seu velho comandante falou, a voz cansada com um toque de ansiedade:

— Que raio te aconteceu? O melhor dos melhores, e simplesmente desapareces?

— Tive uma oferta melhor.

— Qual? Guiar yuppies na crise de meia-idade em excursõezinhas emocionantes?

— Prefiro chamar-lhes «Férias de Aventura». Além disso, ganho o suficiente para manter a criação de ovelhas do meu pai à tona.

— E alcançaste uma merecida reputação. Um verdadeiro entusiasta das cavernas. Li sobre aquele salvamento nas grutas dos Estados Unidos. O grande herói, hã?

Ben encolheu os ombros.

— Mas não foi por isso que partiste, pois não? Foi o Jack, não foi?

O rosto de Ben ficou gelado ao ouvir a referência ao nome do amigo.

— Eu acreditava na Guarda. E na honra. Acreditava em si.

O coronel Matson fez uma careta.

— Por vezes a pressão política leva a contornar as regras. Distorce a honra.

— Tretas! — Ben abanou a cabeça. — O filho do primeiro-ministro mereceu cada golpe que recebeu do Jack depois da merda que tentou fazer com a miúda dele.

— Um primeiro-ministro tem amigos poderosos. Não podia passar em branco.

— Que diabo! — Ben bateu com o punho cerrado no braço da cadeira. — Eu teria feito o mesmo. O julgamento dele em tribunal marcial foi uma palhaçada. — Ben parou, engoliu em seco, depois prosseguiu em voz mais baixa. — O Jack foi privado de tudo o que fazia dele um homem. E ainda se pergunta por que razão me fui embora?

Matson suspirou, aparentemente satisfeito.

— Agora, os pratos da balança do destino deslocaram-se a teu favor. Agora está a ser exercida pressão política para te ajudar.

Ben franziu o sobrolho.

— Como assim?

— Devia fingir que nunca recebi esta carta. Causaste tanta confusão que merecias, sem dúvida, uns aninhos atrás das grades.

— Que carta?

— Uma ordem da Segurança Interna. Vais ser libertado.

Que piada era aquela? Iam deixá-lo sair? Ben apercebeu-se da expressão preocupada estampada no rosto de Matson.

— Que se passa, coronel?

— Há um senão.

Claro, pensou Ben. Havia sempre.

— Tens de te juntar a uma expedição internacional. Um professor, algures nas Américas, solicitou os teus conhecimentos na exploração de grutas. Uma operação qualquer secreta. Sem outros pormenores. As acusações serão arquivadas e os teus serviços serão remunerados. — Deslizou uma folha de papel na direção de Ben. — Vê.

Ben leu rapidamente a carta, e os seus olhos fixaram-se no valor no fundo da página. Ficou a olhar para todos aqueles zeros, desafiando-os a mudar. Aquilo não podia estar certo. Depois daquela missão poderia comprar a sua própria exploração de ovelhas. Acabar-se-iam as viagens a destinos duvidosos.

— Quase demasiado bom para ser verdade? — Matson inclinou-se para a frente, as mãos pousadas nos ombros de Ben. — Mas impossível de ignorar.

Ele acenou com a cabeça, espantado.

— Algo me diz que é melhor teres cuidado, Ben. — Matson avançou a passo largo para a cadeira atrás da secretária e sentou-se. — Os grandes homens estão a brincar contigo e têm tendência para passar por cima da arraia-miúda. Lembra-te do teu amigo Jack.

Ben fitou o número no fundo da página, inspirando fundo. Bom demais para ser verdade.

De volta à sua cela, com um braço a cobrir-lhe os olhos, Ben deslizou para um leve dormitar. Teve um pesadelo que não tinha desde a infância. Viu-se de novo criança a penetrar numa caverna enorme. Colunas de pedra húmida, com um metro de diâmetro, pareciam suster o teto. Conhecia aquela caverna. O avô levara-o lá, certa vez, para lhe mostrar os petróglifos aborígenes.

Era a mesma caverna, mas ali, das colunas de rocha projetavam-se ramos carregados de frutos. Curioso, tentou apanhar um dos frutos vermelhos e carnudos com a forma de abóbora, mas não o conseguiu alcançar. Ao afastar o braço, sentiu olhos fixos na parte de trás do seu pescoço. Virou-se repentinamente mas não estava lá ninguém. No entanto, sentia aqueles olhos a toda a volta. Quase fora do seu campo de visão, viu um movimento atrás de um enorme cilindro de pedra.

— Quem está aí? — chamou, correndo a espreitar para trás da coluna. Nada mais além de espaço vazio. — Que queres?

A palavra «fantasmas» invadiu-lhe a mente sem ser convidada.

Começou a correr…

Sentiu que algo o seguia, o chamava. Ignorou a voz e correu em busca de uma saída. Os pilares fecharam-se à sua volta. O seu progresso abrandou. Sentiu que os seus perseguidores se aproximavam. Depois, o toque suave na parte de trás do pescoço e palavras truncadas sussurradas ao ouvido, como uma estação de rádio mal sintonizada.

— És um de nós.

Ele gritou, fugindo do sonho.

Acordou na sua enxerga, o coração ainda a bater veloz, e esfregou as fontes. Que diabo. Que teria trazido de volta aquele velho pesadelo? Fechou os olhos, recordando a altura em que os pesadelos tinham começado. Fora depois de uma discussão com o avô.

«Não, não é verdade», gritara, com as lágrimas a acumularem-se perante a revelação.

«Sim, é, meu jovem. E não gosto que me chamem mentiroso.» O rosto enrugado e seco do avô fitara-o, de sobrolho franzido. «Este foi outrora o lar ancestral da minha avó», repetiu, depois espetou-lhe o dedo no peito. «Uma parente tua.»

A ideia de que pudesse ter sangue aborígene a correr-lhe nas veias horrorizara-o. Ele e os amigos sempre tinham troçado dos miúdos aborígenes, de pele escura, da sua escola. E agora, num abrir e fechar de olhos, tinha sido atirado para o meio deles. Abanou a cabeça. «Eu não sou um maldito escurinho!»

O ardor de uma bofetada no rosto. «Respeita os mais velhos.»

Mesmo agora, estremecia perante a recordação. Quando era mais novo, a sua herança envergonhara-o. Os aborígenes, na altura, eram considerados cidadãos de segunda, pouco mais do que animais. Felizmente, diluída por gerações de sangue europeu, a sua herança perniciosa era um segredo fácil de manter. Exceto de si mesmo. Foi então que os pesadelos começaram.

Durante inúmeras noites, acordara com os lençóis colados ao corpo suado, as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. Agarrando o lençol com as duas mãos, rezava para que ninguém descobrisse o seu segredo.

Mas com o passar do tempo tornara-se mais maduro, chegando até a respeitar e valorizar a sua herança única, e os sonhos tinham acabado por desaparecer, como velhos brinquedos colocados em caixas de cartão. Esquecidos e não mais necessários.

Abanou a cabeça. Então porquê agora? Por que razão teria ele desencantado aquele velho terror de infância?

Devia ser aquela cela maldita, concluiu, e enfiou-se ainda mais por baixo do cobertor velho. Bem, graças àquela carta oportuna, em breve se veria livre daquele lugar maldito.

Trinta dias depois, o seu benfeitor misterioso enviou um telegrama para Black Rock e, passadas vinte horas, Ben viu-se transferido de uma cela apertada na Austrália para uma suíte no Sheraton Buenos Aires, na Argentina.

Ben experimentou a água do banho com o pé. Encolheu-se com o calor, depois sorriu. Ah, perfeito. Depois de um mês na prisão de Black Rock, um mês de duches tépidos que mal tocavam na camada de sujidade que lhe cobria os poros, um banho bem quente talvez fosse, inclusive, orgástico. Entrou na banheira e instalou-se na água fumegante. Tocou no botão para ligar os jatos. Borrifos leves massajaram-no de todos os lados, criando um ligeiro redemoinho. Orgástico, sem dúvida.

Suspirou, recostando-se na banheira e permitindo que o seu corpo relaxasse e flutuasse sob os jatos de água.

Bateram à porta.

Ignorando o som, Ben deslizou ainda mais por entre os jatos.

Voltaram a bater. De forma mais persistente.

Usando os cotovelos, ergueu-se na banheira.

— Quem é?

Uma voz abafada:

— Desculpe, senhor. Mas o doutor Blakely solicita a sua presença na sala Pampas, no rés do chão. Os outros hóspedes também estão a chegar.

Ben esfregou os olhos vermelhos.

— Dê-me cinco minutos. — Levantou-se da banheira, o ar frio arrepiou-lhe as pernas nuas. Depois de ter vestido o velho fato de tweed castanho, Ben dirigiu-se à sala de conferências.

Para seu alívio, na antecâmara para o auditório fora colocado um bar móvel. Um barman a impingir bebidas alcoólicas andava de um lado para o outro atrás de uma prateleira de garrafas. Um bom número de homens e mulheres dividia-se já em pequenos grupos.

Olhou de relance à sua volta. Ninguém olhava na sua direção. Podia esquecer a receção calorosa. Depois de analisar a sala mais uma vez, conclui que um whisky o ajudaria a encarar melhor aquela «festa». Aproximou-se do bar, onde um barman ruivo o abordou de imediato.

— Que vai ser?

— Um whisky e uma cerveja para empurrar. — Apoiou o cotovelo no almofadado forrado a couro artificial que protegia a aresta do bar e observou a sala. Aquele grupo não fazia o seu género. Sem gargalhadas, sem bebidas derramadas, sem bêbedos furiosos. Entediante. Depois de ter despejado o whisky diretamente para o estômago, pousou ruidosamente o copo de shot, apertando-o enquanto sentia o ardor, depois instalou-se com a cerveja. Era uma daquelas malditas importações alemãs… mas a cavalo dado… Levou a garrafa aos lábios.

Atrás de si, ouviu uma voz de mulher junto ao bar.

Whisky. Puro, por favor.

Virou-se para ver quem teria um gosto semelhante no que dizia respeito a bebidas. Mulheres que bebam whisky eram tão raras como galinhas com dentes. Não ficou desapontado.

Ela deslizou o dedo pela bebida, dedos compridos, unhas curtas. Sem anéis. Sem aliança — boa. Erguia-se tão alta quanto ele, algo surpreendente para uma mulher. Tinha a pele bronzeada, e não era com aquela tonalidade doentia, amarelo-acastanhada, de um salão de beleza caro, mas um tom rico e acobreado que traía dias a trabalhar debaixo de sol. Mas o que o deixou sem fôlego foi o cabelo preto, que caía em caracóis até à cintura.

Ele contraiu os músculos abdominais, para manter a barriga sob controlo, e voltou a abotoar o casaco.

— Posso pagar-te outra? — perguntou, realçando o seu sotaque australiano. Este atraía sempre a atenção de uma senhora.

Ela ergueu uma sobrancelha.

— São à borla — disse. — É um bar aberto.

O sorriso atrevido dele cresceu ainda mais.

— Nesse caso, que tal duas?

Ela limitou-se a fitá-lo com uns olhos verdes.

Ele estendeu a mão.

— Ben Brust. De Sydney.

— Podia tê-lo adivinhado devido à pronúncia — disse ela com o fantasma de um sorriso. — Mas o arrastar parece-me mais da Austrália Ocidental do que do território da Nova Gales do Sul.

— Bem — disse ele, baixando o braço e procurando proteção —, na verdade fui educado na produção de ovelhas do meu pai às portas de Perth. Austrália Ocidental. Mas a maioria das pessoas é incapaz de distinguir Sidney de…

— Bem me parecia. — Agarrando no copo, ela começou a afastar-se. — A reunião deve estar quase a começar.

Antes que ela se afastasse, ele suplicou pelo menos por uma aberta.

— E tu és?

— Ashley Carter. — Deslizou, passando por ele. — Mas para ti sou a professora Carter.

Ben observou-a a afastar-se. Nenhuma professora andava assim. Engoliu os restos da cerveja, enquanto contemplava a saída dela. Se ao menos tivesse tido professoras assim na escola…