CAPÍTULO 4

Pela segunda vez noutros tantos meses, Ashley colocou-se à frente do major Michaelson. Mesmo agora, envergando o uniforme azul, reconheceu o mesmo soldado de plástico, de olhos azuis, que tinha acompanhado o doutor Blakely a sua casa dois meses antes.

— Não me importo que o senhor e os seus dois capangas se juntem à minha equipa — disse ela, apanhando-o à saída do auditório. — Quero deixar perfeitamente claro desde já. Esta equipa é minha.

Ele endireitou-se, sem se afastar um centímetro que fosse.

— Minha senhora, cumpro ordens.

Ashley odiava aquele tipo de surpresas. Blakely devia tê-la avisado de que a sua equipa seria acompanhada por homens armados.

— Trata-se de uma missão científica. Não militar.

— Como o doutor Blakely explicou, iremos acompanhá-los apenas por motivos defensivos. Por segurança.

— Está bem — disse ela, fitando-o olhos nos olhos. — Mas lembre-se, embora vocês tenham as armas, sou eu quem dá as ordens. Percebido?

O major Michaelson não pestanejou, dirigiu-lhe apenas um ligeiro aceno.

— Cumpro ordens, minha senhora.

Ela cerrou os dentes, refreando uma explosão mais rude. Que poderia ela fazer? Recuou.

— Desde que estejamos entendidos.

— Há algum problema, meninas? — Ben surgiu ao lado dela. Sorriu, mas havia alguma tensão nos seus lábios quando olhou para o major.

Ashley sentiu o desconforto de Ben, nada que se assemelhasse à sua anterior atitude despreocupada. Provavelmente também não lhe agradava muito a ideia de estarem rodeados de armas.

— Não — disse ela. — Estávamos apenas a esclarecer algumas questões.

— Ótimo. Vamos passar o verão juntos enterrados num buraco a três quilómetros de profundidade. Comecemos todos amigos. — Ben estendeu a mão na direção do oficial.

O major Michaelson ignorou a mão de Ben.

— Façam o vosso trabalho, e eu farei o meu. — Com um aceno na direção de Ashley, o major deu meia-volta e afastou-se.

— Um tipo porreiro — disse Ben. — Muito amigável. — Era difícil deixar de notar o sarcasmo na sua voz.

— Eu não precisava de ser salva.

— Desculpa?

— Conseguia lidar com o major Michaelson sem a tua intervenção.

— Eu percebi isso. — Ben pareceu magoado. Sinceramente magoado. — Mas não foi por isso que me aproximei. Estive a falar com a professora Furstenburg e o senhor Najmon. Vamos até ao bar do hotel. Só te queria convidar.

Ashley baixou os olhos, envergonhada pelo seu comentário rude. Não era Ben o alvo da sua raiva. Estava apenas a precisar de alguém sobre quem descarregar as suas frustrações e, infelizmente, ele estava por perto.

— Ouve, desculpa. Eu não queria…

— Não penses mais nisso. — O sorriso regressou aos lábios dele. — Os australianos têm o couro resistente. Então e quanto a vires connosco?

— Tenho de voltar para o meu quarto. O meu filho. Está lá em cima.

Ben ergueu as sobrancelhas.

— Trouxeste o teu filho? Que idade tem?

— Onze — disse ela, em tom defensivo. — Já me acompanhou noutras escavações.

— Fixe. Não há nada como deixar que os filhos se envolvam no trabalho dos pais. — Apontou para um telefone branco na parede. — Porque não ligas para saber como está? Se estiver bem, junta-te a nós.

Estando à espera de uma crítica feroz por ter arrastado o filho para meio mundo de distância, a resposta dele acalmou um pouco a tensão que sentia. Talvez tivesse feito bem em levar Jason consigo naquela aventura única.

— Tens razão. Vou ligar-lhe.

Uma rápida chamada pelo telefone do lobby permitiu-lhe saber que Jason continuava agarrado ao gameboy da Nintendo como um viciado. Conseguia ouvir os bipes do videojogo portátil em pano de fundo.

— Não posso falar, mãe. Estou quase a chegar ao nível vinte e três. Nunca cheguei tão longe. E ainda tenho três vidas.

— Parece-me excelente, querido. Olha, subo daqui a uma hora. Pode ser?

— Claro, claro. Quando quiseres. Tenho de ir.

— Então diverte-te. — A chamada foi desligada. Ashley suspirou e dirigiu-se ao bar.

Afinal de contas, Ben tinha razão; era uma boa ideia conhecer melhor os colegas de equipa antes da viagem do dia seguinte.

Maxi’s, o bar do hotel, era o ponto de encontro de eleição. O bar seguia a temática parisiense, com pequenas mesas de café e alguns reservados mais íntimos. Por cima do bar estava pendurada uma bandeira francesa. As mesas estavam ocupadas pela multidão saída dos teatros. Expressos, lattes e bebidas exóticas enchiam-nas. Contrastando com os aparatos europeus, a música latina era ruidosa, com um ritmo pulsante.

Um dos reservados, num canto distante, tinha sido já tomado pela sua equipa. Viu Ben a transportar as bebidas vindo do bar. Equilibrando uma cerveja e três cocktails nas duas mãos, ia avançando entre o labirinto de cotovelos e pés, conseguindo chegar com a maior parte das bebidas ainda nos respetivos copos. Ashley deslizou para o reservado imediatamente antes dele.

Sentando-se ao seu lado, Ben passou-lhe um copo.

— Se bem me lembro, a senhora gosta de whisky.

Ela sorriu.

— Obrigada.

— Parece que vocês os dois já se conhecem — disse o geólogo egípcio, Khalid Najmon. A pronúncia aflorava-lhe as palavras, mas só ao de leve. Estava sentado do outro lado do reservado, ao lado de Linda Furstenburg. O seu sorriso brilhava contra o bronzeado do deserto, elegante de um modo sombrio. Deu um gole no seu vinho. — Já se conhecem há muito?

— Não. Ficámos um ao lado do outro na reunião — explicou Ashley. — De resto, somos completos desconhecidos.

Ben fingiu ficar magoado.

— Desconhecidos é uma palavra tão obscena.

— Bem — disse Khalid —, enquanto o senhor Brust foi buscar as bebidas, eu tenho estado a conhecer melhor a professora Furstenburg.

— Por favor, chamem-me Linda. — Ela corou um pouco e tentou, repetidamente, prender uma madeira de cabelo louro atrás de uma orelha. Os seus gestos pareciam relaxados, mas os seus olhos gelados não paravam de percorrer a sala.

Khalid acenou com a cabeça.

— A Linda acaba de me falar da sua investigação de doutoramento. Biologia evolutiva. Tem estado a estudar o desenvolvimento das algas fosforescentes nos sistemas de grutas. Fascinante.

— Já vi algumas dessas algas brilhantes — disse Ben. — Numa caverna em Madagáscar. Há grutas de tal modo cobertas por essa coisa que quase gostaríamos de ter levado os óculos de sol.

Linda acenou com a cabeça.

Rinchari luminarus. Uma espécie linda. E existe em várias cores. — Falou um pouco sobre as diferenças entre as várias espécies.

A atenção de Ashley vagueou para longe da conversa. Estudou Linda, enquanto esta falava. Os seus olhos eram tão azuis que Ashley se perguntou se seria a sua cor verdadeira. Tinha um corpo cheio, flexível, com mãos pequenas, os dedos delicados de uma criança. Contrastava fortemente com o corpo rijo e esguio de Ashley. Seria impossível alguém descrever Ashley como flexível.

Khalid nunca afastou os olhos de Linda, acenando de quando em vez enquanto ela prosseguia com a sua descrição. Obviamente enfeitiçado por algo mais do que as variações genéticas do lodo brilhante. Até Ben exibia um sorriso fixo nos lábios enquanto escutava.

Ashley sentia-se como um pedaço de granito ao lado de uma rosa. Engoliu o whisky.

— … e foi assim que fiz o meu doutoramento.

— Percebo o porquê de o doutor Blakely querer a tua presença — disse Ashley. Os dois homens pareceram emergir de um transe. — O teu conhecimento de vias evolutivas únicas irá ser útil na documentação da nossa exploração.

Ben pigarreou.

— Sem dúvida uma mais-valia.

Khalid acenou com a cabeça.

— De facto.

Ben afastou por fim os olhos do rosto de Linda.

— Então, Khalid, qual é o teu campo? Um geólogo, hã?

Ele deu um gole na sua bebida, depois falou:

— O Tratado Antártico de 1959.

— Como disseste? — perguntou Ben.

— A Antártida não pertence a ninguém. O tratado de 1959 declarou que o continente só poderia ser usado para fins pacíficos, científicos. Um parque natural mundial.

— Sim, eu sei. A Austrália tem lá algumas bases.

— Sim, mas também sabias que devido à proibição que o tratado impõe à exploração mineral, a extensão da riqueza mineral da Antártida é ainda desconhecida? Trata-se de uma grande folha em branco.

Khalid deixou que a informação assentasse antes de continuar.

— Bem, o tratado cessou a sua vigência em 1991. O continente está agora aberto à exploração mineira, mas com uma condição: o solo tem de ser protegido de quaisquer danos.

Ashley percebeu, então. As implicações eram enormes.

— Estes túneis subterrâneos permitirão que se explore a riqueza mineral do continente sem causar danos à superfície.

— Sim. — Khalid acenou com a cabeça. — E quaisquer depósitos descobertos serão propriedade do governo que os descobrir.

— Não é de admirar que nos possam pagar tão bem — disse ela. — Qual te parece a probabilidade de fazermos uma descoberta significativa?

— Tendo em conta que um investigador descobriu que a pluma vulcânica do monte Érebo lança pó de ouro, sendo a única pluma do planeta a fazê-lo, creio que o salário desta equipa exploradora ficará mais do que adequadamente coberto.

— Ouro no fumo de um vulcão — disse Ben. — Soa um bocado rocambolesco.

Khalid franziu o sobrolho por breves instantes, devido à interrupção.

— Foi amplamente documentado.

Os outros membros da equipa permaneceram em silêncio. Chocados. Ashley eriçou-se. Uma vez mais, Blakely não tinha revelado a verdadeira dimensão daquela missão. Primeiro a escolta armada e agora aquilo.

— Não sei se gosto disto — disse ela. — Violar um continente.

Linda acenou com a cabeça.

Todos ficaram em silêncio, ponderando as graves notícias.

Depois Ben, numa explosão súbita, destruiu o devaneio sombrio.

— Que se lixe. Vamos dançar! Foi aqui que nasceu o raio do tango. Vamos, Buenos Aires ainda agora está a acordar.

Ashley franziu o sobrolho. Aquele pastor de ovelhas australiano nunca parava.

— Dispenso. Tenho um filho para meter na cama.

Khalid também abanou a cabeça.

— No meu país não dançamos o tango.

Linda alegrou-se.

— Eu vou. Gostava de sair deste hotel abafado.

— Fantástico! — disse Ben. — Conheço um bar no bairro de San Telmo. Pitoresco e autêntico.

Ben deslizou para fora do reservado e estendeu a mão a Linda.

— A noite e as estrelas esperam-nos — declarou com uma ligeira vénia.

Timidamente, Linda sorriu perante a encenação de Ben.

Enquanto os dois se afastavam, Ashley reparou que as sobrancelhas de Khalid desciam. Balbuciou algo em arábico, depois despediu-se dela e saiu igualmente do reservado.

Ashley ficou a observar enquanto Ben acompanhava Linda através do bar. Uma pequena explosão do riso cristalino dela fez-se ouvir quando os dois saíram para a rua.

Deixou-se ficar, apreciando o fim da sua bebida. Como que a pedido, os acordes vibrantes de um tango começaram a jorrar das colunas do bar. A música sensual fê-la sentir-se ainda mais só.