CAPÍTULO 5
De novo num avião, pensou amargamente Ashley, o nariz encostado à janela. Lá em baixo, o glaciar lutava contra o granito de horizonte a horizonte.
Esta era a última parte da viagem de dois dias. No dia anterior, tinham voado os mil e duzentos quilómetros de Buenos Aires a Esperanza, a base do exército argentino na península antártica. Ali, Ashley teve o primeiro contacto com o ar antártico — como água gelada despejada para os pulmões. A equipa passou a noite nas casernas militares e, na manhã seguinte, foram colocados de novo a bordo de um transporte argentino. Ao meio dia, prometera Blakely, alcançariam o seu derradeiro destino, a base naval dos EUA em McMurdo.
Ashley perguntou-se se voltaria a passar mais de vinte e quatro horas no exterior de uma cabine de avião. Ergueu-se ligeiramente para ver se Jason se estava a portar bem. Encontrava-se sentado do outro lado da ruidosa cabine junto de Ben, falando animadamente e com as mãos a pontuar a história. Os dois tinham-se tornado rapidamente amigos desde que haviam pernoitado juntos no dormitório masculino das casernas de Esperanza.
Ben apercebeu-se de que ela os fitava e sorriu-lhe por cima da cabeça de Jason. O australiano estava a revelar uma paciência admirável. As histórias de Jason podiam ser extenuantes.
— Ele está bem — disse o major Michaelson, sentado ao seu lado.
Sobressaltada, ripostou.
— Não lhe pedi a opinião.
— Eu só queria… — O major abanou a cabeça, franzindo o sobrolho. — Esqueça.
Ashley mordeu o lábio inferior. Ele estava claramente a tentar reconfortá-la.
— Desculpe. Esta explosão não lhe era dirigida. Estou apenas com dúvidas persistentes quanto a ter trazido o Jason.
A tensão nos ombros dele pareceu diminuir.
— O seu filho tem muita energia. Ele vai ficar bem.
— Obrigada. Mas e o Ben? Ele não está nesta missão para trabalhar como ama-seca.
O major sorriu.
— Talvez seja contagiado por alguma da maturidade do Jason.
Ashley fungou.
— O tipo é um exibicionista.
— Pelo menos sabe o que faz. — O major apontou com a cabeça na direção de Ben. — Li o ficheiro dele. É famoso pela sua participação em missões de resgate, sendo especialista no reconhecimento de grutas. Há dois anos salvou uma equipa de exploradores experientes na caverna de Lechuguilla. Os exploradores estiveram desaparecidos oito dias e ninguém os conseguia encontrar. Mas o Ben entrou sozinho e saiu com uma perna partida e os quatro elementos da equipa. Ele percebe de grutas. É quase como se tivesse um sexto sentido.
— Não me tinha apercebido… — Olhou de relance para Ben, que jogava às cartas com Jason. Ficou em silêncio, considerando a revelação.
— O seu ficheiro era igualmente impressionante — disse o major.
— O meu ficheiro?
— Parece ter uma capacidade extraordinária para arrancar novas descobertas em locais já fortemente explorados.
Ashley limitou-se a encolher os ombros face ao elogio. O major parecia extraordinariamente conversador. Normalmente era muito sério e estoico. Virou-se para ele.
— O senhor sabe muito sobre nós. Mas eu nem sequer sei o seu primeiro nome.
— É Dennis.
Major Dennis Michaelson, pensou. Um primeiro nome bastara para tornar o major quase humano.
— De onde és, Dennis?
— Do Nebrasca. A quinta da nossa família fica às portas de North Platte.
— Então porque te juntaste aos Marines?
— Eu e o meu irmão, Harry, alistámo-nos juntos. Ele adora veículos motorizados: carros, motas, drag racing, esse tipo de coisas. Alistou-se para poder meter as mãos em motores ainda maiores. O tipo nunca estava contente a menos que tivesse as mãos sujas de óleo. Precisava de estar sempre a mexer em qualquer coisa. — Um sorriso afetuoso surgira no rosto de Michaelson, enquanto descrevia o irmão.
— Então e tu? Que te levou para longe da quinta?
— Por um lado, manter o meu irmão debaixo de olho. Mas além disso, como disse, a quinta da nossa família fica às portas de North Platte. E North Platte fica às portas de lado nenhum.
— Então, alistaste-te para ver o mundo. E agora aqui estás. A servir no fim do mundo.
— Sim — disse ele com um tom quase apaixonado. — E, neste momento, North Platte nunca me pareceu tão bom.
— Então porque não desistir e regressar à quinta?
O rosto dele ensombrou-se de súbito, as sobrancelhas negras aproximando-se uma da outra. Manteve o silêncio.
Ashley tentou extrair mais algumas informações.
— Como é que foste arrastado para esta entediante missão? Guardar um monte de cientistas.
— Voluntariei-me — balbuciou.
Ela torceu o nariz. Não é propriamente a decisão esperada de um militar de carreira. Sem prestígio, sem glória, destacado no fim do mundo.
— Porquê?
Ele encolheu os ombros.
— Tenho as minhas razões. — Desapertou o cinto de segurança e saiu do seu lugar, resmungando qualquer coisa acerca de usar a casa de banho.
Sozinha, regressou ao estudo da paisagem que deslizava por baixo dos esquis do avião. O reflexo do sol no gelo era ofuscante. Parecia que quanto mais descobria acerca dos seus colegas de equipa, menos os compreendia. Mas seria isso novidade? Nunca compreendera as pessoas. Bastava olhar para o seu casamento. Uma lua de mel que durara oito anos, até ao dia em que regressara a casa mais cedo, vinda de uma escavação — vítima dos enjoos matinais — e descobrira o marido na cama com a secretária. Sem quaisquer sinais de aviso. Sem batom no colarinho. Sem cabelos louros no casaco. Nada. Um mistério para ela.
Ashley pousou a mão na barriga. A infidelidade de Scott não fora o pior. Lembrou-se da dor lancinante e do jorro de sangue. A sobrecarga emocional provocada pela traição dele desencadeara um aborto. Perder o bebé quase a destruíra. Apenas Jason, então com sete anos, a mantivera sã.
Embora já se tivessem passado vários anos, uma parte de si ainda doía ao recordar quanto tinha perdido. Não apenas o bebé, mas a fé nas pessoas. Recusava-se a voltar a ser tão crédula, tão vulnerável.
Recostando-se no assento, olhou pela janela coberta de gelo. No limite do horizonte, uma coluna de fumo erguia-se no ar, uma assinatura escura contra o céu azul. Sentou-se mais direita. À medida que o avião avançava, a origem da pluma cinzenta tornou-se visível, erguendo-se da superfície plana como um gigante que desperta. O monte Érebo.
O interior da carrinha Dodge tresandava a tabaco e oscilava numa sintonia grosseira com o ritmo do baixo de uma cassete dos Pearl Jam. O sol fraco do meio-dia erguia-se tristemente sobre o cume do monte Érebo. O condutor, um jovem da Marinha, abanava a cabeça ao som da música.
— Estamos quase em casa — disse por cima do ombro. — Basta passarmos a próxima crista de gelo. — A estrada do aeródromo de Williams até à Base de McMurdo era uma extensão grosseiramente desbastada de gelo escavado. Com um último salto de fazer bater os molares ao passarem pela crista, Ashley viu o seu destino.
Passou uma luva pela janela embaciada do lado do passageiro. Os restantes membros da equipa estavam a fazer o mesmo. Ao lado da concha de gelo azul que envolvia o mar de Ross, a Base de McMurdo era uma mancha negra. Um complexo industrial de edifícios cinzentos tornado pequeno por um enorme ferro-velho a sul. A carrinha contornou uma lixeira em chamas que lançava para o céu azul um fumo negro, oleoso.
Um helicóptero da Marinha passou ruidosamente por cima da carrinha, a pressão e o som a fazerem vibrar as janelas. Jason tapou os ouvidos. A base zumbia com outros helicópteros. Ashley tocou no ombro do condutor.
— Isto aqui é sempre tão movimentado?
O condutor ergueu o polegar.
— Hoje está a ser um dia calmo — gritou.
Ashley recostou-se no banco. Ótimo.
Blakely sorriu.
— Só vamos parar aqui durante algumas horas, em seguida prosseguimos diretamente para a Base Alfa. É muito mais calmo lá em baixo. — Olhou pela janela, melancolicamente. — Na realidade, ao fim de um ano, habituamo-nos ao movimento e ao cheiro aqui em cima. Quase sinto a sua falta.
— Parece-me demasiada poluição para uma estação científica — disse Linda com uma careta. — As biocomunidades vizinhas são frágeis.
Blakely encolheu os ombros.
— Foi-nos atribuído um fundo de limpeza no valor de dez milhões de dólares. Vai ficar melhor.
— Espero bem que sim — disse Linda.
Foram deixados nas proximidades de um bloco de edifícios em betão. Ashley apertou a parka à sua volta; o vento queimava, chicoteando-lhe as faces. Na ausência de proteção, uma queimadura de gelo necessitava apenas de uns poucos minutos. Os colegas de equipa correram para a entrada. Ashley assegurou-se de que Jason avançava à sua frente. Não queria que ele se afastasse e perdesse.
Calor. O interior era aquecido, mas parecia húmido e pegajoso, o cheiro a suor era pungente. Torcendo o nariz, apercebeu-se de que o corredor estava coberto por um arco-íris de parkas coloridas penduradas em cabides.
Blakely fez-lhes sinal para que pendurassem as suas parkas.
— Não temam que possam ser roubadas. Roubar o casaco de alguém aqui é uma ofensa merecedora da pena capital.
Ashley ajudou Jason a tirar a parka e pendurou-a ao lado da sua.
— Vamos só parar para almoçar e depois seguimos diretamente para a Base Alfa. A messe E fica ao fundo do corredor. Sirvam-se e descontraiam. Voltamos a encontrar-nos aqui dentro de duas horas. Há uma sala de convívio com mesas de pingue-pongue e snooker ao virar da esquina da messe E. Divirtam-se.
— Não vem connosco? — perguntou Ashley.
— Não, vou reunir-me com o capitão da base para rever alguns pormenores.
Depois de Blakely se afastar, seguiram para o salão da messe. Alguns elementos da Marinha ergueram uma sobrancelha, ou as duas, ao vê-los passar. Um jovem fitou Ashley durante mais tempo do que ela gostaria, até um olhar firme o fazer desistir. No geral, contudo, a equipa da Marinha não parecia perturbada com a presença dos recém-chegados. Ashley calculou que, sendo uma base de operações da National Science Foundation, estivessem habituados a um afluxo de caras novas.
Ashley equilibrava uma bandeja com duas maçãs, uma sandes de carnes frias e um pacote pequeno de leite. Jason tinha tentado encher o seu próprio tabuleiro com sobremesas e biscoitos, até ela lhe ter feito sinal para que devolvesse os doces.
— Primeiro o almoço. Depois podes comer a mousse de chocolate e um biscoito.
Jason arrastou-se até à mesa, com a sandes mais pequena que conseguiu encontrar e os olhos a deslizarem continuamente para o bar das sobremesas.
Ben juntou-se a eles na mesma mesa. O major Michaelson, Khalid e Linda ocuparam uma mesa vizinha.
— Estamos quase lá — sussurrou Ben ao ouvido dela, enquanto se sentava. — No limiar de um novo mundo. Como te estás a aguentar, capitã?
Fosse das palavras dele ou das cócegas provocadas pela sua respiração, um arrepio percorreu-lhe as costas.
— Bem — disse ela. — Estou apenas tensa. Ansiosa por avançar para as grutas.
— Também eu. — Com um grande sorriso, estendeu uma mão, os dedos a tremer. — Fico cheio de tremores até começar.
Ashley não conseguiu perceber se ele estaria a gozar com ela. Era tão difícil lê-lo.
— Estar tão perto… — Encolheu os ombros. — Dá cabo dos nervos.
— Sei como te sentes — disse Ben com um aceno de cabeça. — Há duas décadas que faço espeleologia. Esta é a minha primeira oportunidade para reclamar um novo sistema.
— Reclamar? Que é isso?
— Credo, mãe! — disse Jason, sentando-se ao lado dela, chocado. Estava a falar com a boca cheia de pão. — É um termo usado pelos espeleólogos. Significa que é o primeiro a descobrir uma coisa nova.
— Oh… estou a ver — disse ela, sorrindo perante a tentativa do filho de impressioná-la.
— O Ben e eu conversámos. Ele falou-me acerca das… como é que lhes chamaste? Oh, sim, as passagens virgens.
— O quê? — Ashley virou-se para Ben. — Que raio tens andado a ensinar ao meu filho?
— Passagens virgens — disse Ben, tentando refrear uma gargalhada. — Passagens nunca percorridas pelo homem. Esse tipo de coisas.
— Oh — disse ela, subitamente mortificada. — Pensei…
Ele interrompeu-a com um sorriso descontraído.
— Eu sei o que pensaste.
Ashley eriçou-se.
— Então achas que és o próximo Neil Armstrong?
— Quem?
Ela abanou a cabeça perante tamanha ignorância.
— O primeiro homem a pisar a Lua. «Um passo gigantesco para a Humanidade.»
Os olhos de Ben iluminaram-se.
— Exatamente! Ser o primeiro ser humano a ver algo novo. Não há emoção igual.
Ashley lembrou-se do túmulo Anasazi que tinha descoberto. Com a pulsação acelerada, a respiração entrecortada, enquanto retirava a última pedra e revelava o santuário interior do sumo sacerdote. O cheiro almiscarado da antiga câmara. O sol no seu pescoço. Ser a primeira a ver os segredos escondidos durante séculos. E agora fazer o mesmo com um segredo escondido durante milénios. Que poderia encontrar ali? Os seus ouvidos latejavam com o bater do seu coração. Sim, compreendia o entusiasmo de Ben.
— Então tu estás pronta para reclamar alguma coisa? — perguntou ele.
Ashley sorriu para os olhos radiantes que a fitavam.
— Podes crer que sim. Espero que ainda hoje tenhamos tempo para explorar aquelas habitações escavadas nos penhascos. Até dispensava o almoço se isso me permitisse percorrê-las ainda hoje. — Dando uma dentada na sandes, achou o pão húmido e as carnes frias pareciam borracha. — Especialmente este almoço.
Ben continuava a sorrir-lhe.
— Não gostas da comida militar?
Ela sorriu-lhe.
— Vou buscar uma mousse e um biscoito.
— Mãe! — gritou Jason. — Isso não é justo!
Jason apanhou com o dedo cada migalhinha de biscoito do prato de sobremesa. Depois chupou o dedo, saboreando o sabor a chocolate.
— Não posso comer mais um biscoito? — implorou à mãe.
— Já comeste dois. Chega. Porque não vais à casa de banho e lavas as mãos?
Jason resmungou qualquer coisa baixinho e empurrou a cadeira para trás.
— Está bem.
A voz de Ben fez-se ouvir quando Jason ia a passar:
— E se fôssemos jogar uma partida de snooker quando estiveres despachado?
As feições tensas de Jason suavizaram-se. Os olhos fixaram-se na mãe.
— Posso?
— Claro. Agora mexe-te. Partimos em breve.
Com um sorriso, Jason correu do salão da messe para a casa de banho do outro lado do corredor. A casa de banho estava vazia. Jason entrou no cubículo do meio e debateu-se com o cinto.
Quando se estava a sentar, ouviu a porta a abrir-se e o ruído vindo do corredor invadiu o espaço até a porta se voltar a fechar. Alguém assobiou uma melodia sem ritmo, enquanto se aproximava dos cubículos e entrava no que estava situado à direita de Jason. Continuando a assobiar, o homem deixou cair a mochila no chão do cubículo. Mesmo ao lado de Jason.
Apurando o ouvido, Jason observou de olhos muito abertos, enquanto uma mão com pelos pretos se estendia e abria o fecho da mochila, depois vasculhava o seu interior. Jason ouviu o acender de um fósforo… seguido de perto por uma longa exalação. Sentiu o cheiro de um cigarro a arder. Em seguida, ouviu um cinto a ser desapertado e os assobios prosseguiram. Enquanto o homem se sentava, bateu com o calcanhar na mochila, fazendo-a virar-se. Uma pequena pilha de cubos, do que parecia plasticina cinzenta, embrulhados em plástico caiu para o cubículo de Jason.
Um chorrilho de palavrões em língua estrangeira jorrou do cubículo vizinho. Jason observou enquanto o homem passava a mão por baixo da parede que dividia os cubículos para apanhar a mochila e a endireitar. Jason ergueu os pés mesmo a tempo de evitar um braço que passou pelo seu cubículo e arrebanhou os cubos. Mais palavras furiosas. Conseguiu ver a ponta de um nariz, quando o homem se baixou para confirmar que tinha todos os cubos.
Nesse preciso momento, a porta da casa de banho dos homens voltou a abrir-se. Um outro homem avançou até aos urinóis. Jason ouviu um fecho-éclair a deslizar, seguido pelo chapinhar característico. O homem no urinol suspirou. Jason pôs-se à escuta, enquanto o vizinho apertava as calças e voltava a fechar a mochila caída.
O seu vizinho emergiu do cubículo.
O homem no urinol falou, ao mesmo tempo que fechava as calças. Jason reconheceu o sotaque de Ben.
— Khalid, não devias fumar aqui, amigo.
— Ah, esses americanos têm demasiadas regras. Quem sabe quais seguir e quais ignorar? Queres um cigarro?
— Obrigado pela oferta — respondeu Ben. — Mas neste momento tenho um encontro marcado para uma partida de snooker
A porta da casa de banho abriu-se e Khalid saiu.
Jason voltou a pousar os pés no chão e levantou-se. Enquanto apertava o cinto, baixou os olhos. O egípcio tinha deixado ficar um daqueles cubos envoltos em plástico. Rebolara para o lado mais distante do cubículo. Jason baixou-se e apanhou-o, perguntando-se o que deveria fazer. Tinha a consistência do barro firme. Sabia que o devia devolver a Khalid, mas assim todos saberiam que se tinha escondido à escuta. Começou a enfiá-lo no bolso quando a porta do cubículo se abriu.
— Aí estás tu! — Ben erguia-se à sua frente. — A tua mãe receou que te tivesses sentido mal.
Jason sorriu. Enfiou melhor o cubo no bolso.
— Que tens aí, amigo? Foste roubar um terceiro biscoito? — O sorriso de Ben aligeirava a acusação.
— Não — disse Jason, com um soluço de riso. — Não é nada. Só uma coisa que encontrei.
— Então está bem. Vamos bater umas bolas.
Blakely inclinou-se contra as rajadas de vento enquanto atravessava a base. O gabinete do comandante estava situado na extremidade mais distante do campo, longe da lixeira. Se não precisasse tanto daquele maldito equipamento, teria seguido diretamente para a Base Alfa. Mas os comunicados e os pedidos feitos por Roland não tinham convencido o obstinado comandante. Precisava daquelas malditas placas de circuitos; eram essenciais para a rede de comunicações.
Subiu os degraus para o quartel-general da base onde um guarda verificou a sua identificação. Blakely lançou-lhe um olhar amargo enquanto esperava. Um helicóptero vermelho da Marinha dos EUA zumbiu ao passar por eles, projetando gelo e detritos para o cubículo do guarda. Franzindo o sobrolho, o guarda olhou para cima.
— Pode seguir, doutor Blakely.
— Obrigado. — Blakely entrou. Malditas regras. Prosseguiu ao longo do corredor, depois de ter pendurado a sua parka. O gabinete do comandante estava situado no primeiro andar no canto. Avançou a passos largos para o secretário, um ordenança de óculos de aros negros e fraca postura.
— Vim falar com o comandante Sung — disse Blakely, antes que o secretário pudesse abrir a boca.
— Tem marcação?
— Diga-lhe apenas que é o Blakely. Ele vai receber-me.
— Está muito ocupado, de momento.
Blakely abanou a cabeça, reconhecendo à légua uma desculpa esfarrapada.
— Diga-lhe que estou aqui.
— Só um momento. — O secretário carregou num dos botões de um quadro de luzes amarelas. Virou-lhe as costas enquanto falava, mas Blakely conseguiu discernir as palavras.
— Desculpe, comandante, mas está aqui um doutor Blakely para falar consigo. — Uma pausa enquanto escutava ao telefone, depois numa voz ainda mais baixa — Já tentei isso, comandante. Ele está a ser beligerante. — Mais uma pausa, o rosto a corar. Não era preciso muito para perceber que o secretário estava a receber uma valente reprimenda. Tudo terminou com um derradeiro: — Sim, comandante.
O secretário, com pérolas de suor na testa, virou-se de novo para Blakely.
— O comandante vai recebê-lo. Obrigado pela sua paciência.
Blakely sentiu pena do ordenança. Inclinou-se ao contornar a secretária e sussurrou:
— Não te apoquentes, filho, todos sabem que o Sung é um sacana.
O secretário fez uma careta.
— Boa sorte.
Cada um faz a sua sorte, pensou Blakely, enquanto empurrava a porta para o gabinete interior.
O comandante Sung estava sentado atrás de uma ampla secretária de mogno, com uma camada tão espessa de lacado que parecia molhada. Espalhados à sua frente, estavam vários ficheiros abertos. Empurrou um dos ficheiros na direção de Blakely, só com um dedo, como se sentisse repulsa a tocar-lhe.
— Li o teu pedido, Andrew.
Blakely odiava quando alguém o tratava pelo seu primeiro nome. Em especial um burocrata hipócrita como Sung. Aquela não era a primeira vez que os dois homens batiam de frente. Enquanto investigador-chefe da National Science Foundation, via-se frequentemente num impasse com Sung, o oficial da Marinha mais graduado. Muitas vezes, cientistas e militares tinham opiniões diferentes em relação a certos temas… em especial no que dizia respeito aos escassos bens armazenados naquela base remota.
A animosidade tinha-se intensificado quando Blakely fizera a sua descoberta. Viu Sung ficar verde, cobiçando toda a atenção e dinheiro que fluía na direção de Blakely. Desde então, qualquer cooperação com os militares da base assemelhava-se a arrancar um dente cariado.
Sung prosseguiu, com um ligeiro esgar no canto da boca.
— Pensei que tinha sido muito claro. Essas placas de circuitos são as últimas em armazém. Não posso autorizar a sua saída enquanto não chegar um fornecimento de substituição.
— Isso é uma treta e tu sabe-lo. Preciso delas para reparar uma placa de comunicações crítica.
Sung encolheu os ombros.
— Foi uma infelicidade dos diabos que as tuas placas tenham feito curto-circuito.
— Isso não teria acontecido se me tivesses dado placas novas em vez daquelas placas antiquadas que foste buscar a equipamentos velhos. — Apoiou os punhos na secretária. — Quero as placas novas. Não vou permitir que ponhas em risco esta equipa.
— Então espera pelo próximo carregamento. Chegará dentro de três semanas.
— Já adiámos mais do que o suficiente.
— Enquanto comandante deste campo, a minha decisão é final. — Sung recostou-se na cadeira.
Blakely estava farto daquele sacana. Inclinou-se sobre a secretária. Sung deslizou para longe com uma expressão de choque estampada no rosto. Blakely refreou um sorriso. O sacana achava que estava a ser atacado. Que pateta! Agarrou no telefone sobre a secretária e puxou-o para si. O que lhe ia fazer era muito pior.
Ignorando as objeções de Sung, marcou um número e deu uma palavra-chave. Escutou enquanto a sua chamada ia passando por uma série de operadoras. Por fim, uma voz familiar. Blakely respondeu:
— Estou a ter problemas com o comandante da base, senhor. — Fez uma pausa. — Sim, senhor. É isso mesmo. Ele está aqui, senhor.
Blakely sorriu e passou o telefone a Sung.
— O teu patrão.
Sung estendeu lentamente o braço e agarrou no telefone.
— Estou, daqui fala o comandante Sung.
Blakely observou o rosto do comandante perder toda a cor, depois voltar a recuperá-la num tom vermelho brilhante. Uma vez mais Blakely percebeu que alguém estava a levar um raspanete.
— Sim, fá-lo-ei — disse Sung, a voz aguda. — Imediatamente, senhor secretário. Compreendo os desejos do presidente.