CAPÍTULO 6
Só mais um minuto. Depois tudo estaria terminado.
Embora Ashley estivesse presa com segurança ao banco do helicóptero da Marinha, apertava com força a pega por cima da sua cabeça. Um salto e uma mudança de direção abruptas do helicóptero levaram-na a fechar ainda mais a mão, deixando os nós dos dedos brancos. Um latejar embotado atrás dos olhos anunciava a chegada iminente de uma dor de cabeça. Aterrem esta maldita gerigonça de uma vez, pensou. Como que em resposta, o helicóptero mergulhou.
Jason gritou de entusiasmo quando o helicóptero se inclinou na direção da parede de rocha gelada. As encostas do monte Érebo, que ocupavam todo o seu campo visual a estibordo, apresentavam-se como um conjunto infindável de penhascos cobertos de neve e abismos negros que subiam até aos céus.
Ashley fechou os olhos, sentindo o estômago na garganta.
Jason puxou-lhe pela manga.
— Tens de ver isto, mãe!
Ela afastou-lhe a mão.
— Agora não, querido.
— Mas dá para ver o buraco! É esquisito como um raio.
Ashley resmungou, abrindo um olho. O mundo era um prato inclinado, a base do Érebo oscilava sob eles enquanto o contornavam para fazer a descida. A área por baixo estava engalanada com tendas cor de laranja, como furúnculos num rabo branco. Uma estrada escavada na lama e na neve derretida ligava as tendas a uma boca negra na face do penhasco do Érebo, grande o suficiente para passar por ela um autocarro de dois andares. A neve voava pela abertura como se aquela boca escancarada estivesse a soprar.
O helicóptero endireitou-se e desceu, como um elevador, para o local de aterragem, provocando um redemoinho de gelo e neve à sua volta ao pousar.
Blakely gritou por cima do ruído dos rotores, dentro do helicóptero de transporte.
— Muito bem, malta! Há dois snowcats junto à entrada para nos transportarem até à fissura.
Ben, sentado à frente dela, sorriu.
— A partir de agora, é sempre a descer.
Com o filho a implorar que o deixassem ir do lado da janela no apertado compartimento do snowcat de lagartas largas, Ashley deu por si entalada entre Jason e Ben. Linda, livre de filhos, tinha ocupado o lugar ao lado do condutor. Os restantes elementos seguiam num segundo veículo.
A abertura da galeria agigantava-se à sua frente. Tratava-se, originalmente, de uma fissura natural que penetrava profundamente num dos lados do monte Érebo. Os explosivos e o equipamento de mineração tinham alargado a fissura e alisado uma passagem para o interior da montanha vulcânica. Susteve a respiração quando o veículo saltou ao penetrar na galeria cavernosa, suficientemente larga para passarem dois camiões. Uma autoestrada vulgar com dois sentidos, pensou Ashley, para o coração de um vulcão.
As paredes, grosseiramente cortadas pelas explosões e pelas brocas, eram iluminadas por lâmpadas de halogéneo penduradas ao longo do teto. Quando o snowcat avançou, fazendo uma curva, a luz do dia desapareceu; as lâmpadas eram agora a única iluminação. O condutor ligou os máximos, varando a escuridão à sua frente.
Embora parecesse que se deslocavam a direito, fora informada de que estavam a descer; a galeria, com seis quilómetros de comprimento, desceria um pouco mais de um quilómetro.
Mas o progresso era lento. Mesmo deslocando-se a passo de caracol, o piso irregular lançava-a constantemente contra Ben.
— Desculpa — disse ela, afastando-se do ombro dele.
— Não te preocupes, até estava a gostar.
Ela sorriu-lhe. Será que ele nunca parava?
Linda virou-se para eles.
— Importam-se que abra a minha janela um bocadinho? Gostava de… bem… Está um bocado abafado.
As sobrancelhas de Ashley uniram-se. Linda parecia enjoada, estava pálida, com os lábios secos e gretados. Talvez também não tivesse gostado da viagem de helicóptero. Podia, sem dúvida, compreendê-la. Mas estava um frio dos diabos no exterior.
— Não sei. Não quero que o Jason apanhe frio. Talvez…
— Um pouco de ar fresco parece-me bem — disse Ben. Estendeu o braço e apertou a mão de Ashley. — Jason, importas-te?
Ashley baixou os olhos para a mão de Ben. Este continuava a apertá-la como se estivesse a tentar comunicar com ela. Conteve-se para evitar uma reposta.
O filho com os olhos fixos na galeria à sua frente, a boca aberta, acenou-lhes com uma mão.
— Eu não me importo.
— Está bem — disse Ashley. — Força, Linda. Mas, Jason, ficas com o casaco vestido.
Linda sorriu tenuemente e voltou a virar-se para a frente. Uma rajada de vento gelado redemoinhou para o interior do compartimente quando ela desceu a janela alguns centímetros. Com o nariz colado à janela, Linda inspirou profundamente, relaxando de forma visível.
Ben soltou a mão de Ashley. Esta enterrou-se ainda mais na sua parka, apertando o capuz em redor do rosto. Virou-se para interrogar Ben, mas este continuava a estudar Linda, o sobrolho franzido de preocupação.
Resignada, Ashley recostou-se e observou as lâmpadas sobre as suas cabeças, que pareciam piscar à medida que iam passando por baixo delas.
E Alice desceu pela toca do coelho branco.
Blakely estava sentado ao lado do condutor, fitando as luzes traseiras do snowcat que seguia à sua frente. Tinha estado a estudar as paredes da galeria enquanto avançavam, com os olhos fixos nos cabos elétricos e de comunicação. Estava tudo em ordem. Desde que o comandante da base não tentasse qualquer sabotagem de última hora, estava tudo preparado.
Khalid inclinou-se para a frente no seu lugar na parte de trás do snowcat.
— Ainda falta muito? — perguntou.
Blakely olhou de relance por cima do ombro para o rosto do geólogo.
— Chegaremos aos elevadores do poço em cerca de dez minutos. Estaremos na Base Alfa a horas do jantar. Por isso relaxe. Aprecie a viagem.
Khalid acenou com a cabeça, e Blakely observou o egípcio que voltava a estudar as luzes e cabos por que iam passando com os seus olhos escuros a assimilarem todos os pormenores.
Voltando-se de novo no seu lugar, Blakely compreendia o nervosismo do geólogo. Aquela espera dava cabo dos nervos.
Ashley esticou os músculos entorpecidos pela viagem. Olhou de relance quando o segundo snowcat avançou para a grande caverna, dirigindo em seguida a atenção para o elevador gigantesco — uma gaiola com barras de ferro.
Jason estava a explorar caixas enormes que enchiam a metade posterior da sala. Parecia um rato a correr entre os blocos de construção espalhados de uma criança.
— Jason! — chamou. — Mantém-te por perto, querido.
O filho anuiu com a cabeça.
Blakely, solicitando a ajuda de Ben, acenou na direção dos elevadores.
— Ajude-me com estas portas.
Ben e o major Michaelson afastaram as portas para que a equipa pudesse entrar. Jason tinha-se aproximado. Ben despenteou-o com a mão.
— Pronto para isto, amigo?
Ele sorriu ao entrar no elevador do tamanho de uma garagem, suficientemente grande para estacionar no seu interior os dois snowcats.
— Oh, sim. Isto é tão fixe.
Ashley observou o interior do elevador. O teto e o chão eram folhas sólidas de ferro vermelho, mas as paredes eram constituídas apenas por barras de ferro de dois centímetros e meio. Como uma gaiola gigantesca.
— Vamos descer o equivalente a cerca de duzentos andares — disse Blakely enquanto as portas se fechavam. — Foram precisos três anos só para abrir este poço de seiscentos metros que separa o piso deste rifte da caverna em baixo. — Puxou uma alavanca e Ashley sentiu o solavanco familiar quando o elevador iniciou a sua descida com um ronco.
Segurava a mão de Jason. Quão segura seria aquela geringonça? Deu voz às suas preocupações; Linda acenou igualmente com a cabeça.
Blakely sorriu.
— Já transportámos maquinaria pesada com este elevador. Até vários camiões. Vai aguentar o nosso grupo sem problemas. — Bateu na parede metálica da jaula. — Esta é a linha vital da Base Alfa. É mantida como um dispendioso relógio suíço e guardada como as joias da coroa.
Ashley apercebeu-se do sorriso de Khalid. Divertido com aqueles receios femininos, pensou. Mais um machão destemido perante a razão. Observou-o a fitar a jaula, estudando-a.
Um silêncio desconfortável apoderou-se da equipa enquanto prosseguiam a descida. A única iluminação provinha de uma lâmpada solitária, no teto da jaula. Era como se estivessem suspensos no espaço.
Sentindo a necessidade de quebrar o silêncio, Ashley virou-se para Blakely.
— Sabe — disse ela —, há algo que me tem estado a incomodar. E imagino que também incomode alguns dos outros.
— Hum? — Ele parecia perdido nos seus pensamentos.
Ben endireitou-se, afastando-se da parede à qual se encostara. Também os outros os fitavam com interesse.
— Sejamos sinceros — disse ela. — Estamos aqui para investigar este continente ou para o violar?
Blakely arqueou as sobrancelhas.
— Todos sabemos que a ciência não paga… — acenou para a jaula de aço — … assim tão bem. Há aqui algo mais em jogo do que a mera investigação arqueológica.
— É verdade — disse Blakely, tirando os óculos e esfregando a cana do nariz —, mas deixe-me descansá-la. Antes de mais nada, sou um cientista. Para mim, a missão é e será sempre científica. Essa foi uma das razões por que a escolhi a si para liderar esta equipa, professora Carter. Quero que esta missão permaneça um empreendimento científico. Mas não vivemos num vazio. Esta missão tem algumas ramificações económicas e políticas significativas.
Parecendo aperceber-se do desconforto dela, Blakely acrescentou:
— Não seja tão rápida a julgar-me. Paga as contas. Garante-me o equipamento. — Apontou para os outros, depois para ela. — E traz até aqui uma equipa de topo.
— Ainda assim — disse ela —, qual será o derradeiro preço desta exploração? Se acabarmos com um continente crivado de minas e esburacado… é um preço demasiado elevado. Consigo viver com a ausência de respostas quanto aos mistérios destas grutas.
Ele fitou-a com uma expressão triste estampada no rosto.
— Consegue mesmo, professora Carter?
Ela abriu a boca para declarar as suas convicções, mas a mentira recusava-se a sair. Pedira a Blakely que fosse sincero. Poderia ela ser menos do que isso? Lembrou-se da estatueta de diamante, brilhando sob os últimos raios do Sol que se punha. Fechou a boca. Maldição.
Blakely acenou e apontou para baixo.
— Aqui vem ela.
Nesse preciso momento, uma brisa soprou sobre a gaiola, fazendo cair para trás o capuz da parka de Ashley. Uma brisa quente! Ao mesmo tempo, houve uma explosão de luz vinda de baixo. O elevador acabara de entrar na caverna.
O teto da gruta, iluminado de baixo, exibia estalactites húmidas, enormes montanhas penduradas de cabeça para baixo. Várias estendiam-se até ao chão, formando colunas gigantescas. Uma colunata natural. O elevador descia ao lado de uma coluna com o dobro do diâmetro daquela jaula. Ashley apercebeu-se de que alguém fizera um graffiti na coluna. Uma seta a apontar para baixo com as palavras apressadamente escritas: «Inferno… um quilómetro e meio!»
Ben franziu o sobrolho.
— Vandalizar uma gruta. Para além de ser de mau gosto, os espeleólogos pensam que dá azar.
Blakely franziu o sobrolho para o assistente, Roland.
— Vamos remover aquilo… hoje.
Ashley abanou a cabeça, gotículas voaram-lhe da ponta do nariz. Limpou a testa. Molhada. A humidade devia estar perto dos cem por cento. Mas o ar! Inspirou fundo. Era tão puro.
Semicerrou os olhos, mas a parede mais distante estava bloqueada por uma coluna gigantesca. Raios. Tinha alimentado a esperança de dar uma espreitadela às habitações.
— Mãe! Olha! — Jason apontava para o chão da caverna.
Suspirando de exasperação, ela pôs-se em bicos de pés, encostando a testa às barras frias. Lá em baixo, edifícios e tendas pontuavam o solo, iluminados por holofotes e engalanados com lâmpadas. Uma falha funda, como uma ferida negra, cortava a base em duas. Uma pequena ponte atravessava a falha, unindo as duas metades. Era o seu destino.
A Base Alfa.
— Olhem para ali — exclamou Linda. — Conseguimos ver peixes!
Ashley deslizou para trás de Linda, pousando a mão no ombro dela e espreitando para cima e para baixo.
No limite da Base Alfa, refletindo as luzes do acampamento, estava um lago gigantesco, com vários hectares de comprimento, que ondulava suavemente. A partir de cima, era possível ver alguns dos seus brilhantes residentes a deslizar e a dardejar sob a superfície vítrea. Estranhamente poético.
— Fixe — exclamou Jason.
— E de que maneira, amigo. — Ben tocou em Ashley com um cotovelo. — Impressionante, não é?
Ashley acenou com a cabeça, a mente atordoada. Ansiosa por explorar, os seus escrúpulos de há instantes não eram mais que uma ténue memória.
— Qual é a largura da caverna?
Blakely respondeu com um sorriso a brincar-lhe nos lábios.
— Cerca de oito quilómetros.
Ben assobiou.
Passados alguns minutos, a gaiola pousava no chão da caverna, na segurança do seu ancoradouro. Uma escolta de uniforme aguardava para os conduzir aos seus aposentos. Blakely virou-se para o grupo.
— Chegámos a casa!