CAPÍTULO 21

Face ao grito de pânico de Ashley, a pressão peluda sobre o seu tornozelo aumentou, como um torno que se aperta. Mas que diabo! Saltou para o lado, puxando a perna, e libertou-se do seu atacante. Chocou contra Ben, fazendo-o deixar cair, acidentalmente, a arma. Um tiro ressoou quando a pistola disparou, lançando o projétil na direção do teto distante, um desperdício de uma bala preciosa.

— Credo, mulher! — vociferou Ben, empurrando-a para trás de si, os olhos ainda colados à matilha de criaturas semelhantes a lobos, que se babavam ao mesmo tempo que raspavam o chão.

— Está qualquer coisa no wormhole. Agarrou-me.

Ben lançou um olhar rápido para o buraco. Não estava lá nada.

— Não vejo nada… Deus me livre! — Foi a vez de Ben saltar para longe do wormhole quando algo gatinhou para o exterior da passagem. — Merda!

Ashley pensou, inicialmente, que se tratava de uma criança pequena e suja, nua e coberta de imundice. Mas quando se endireitou e virou para ela, soube que estava muito enganada. Recuou mais um passo.

Tinha cerca de um metro e vinte de altura, atarracado e nu e, pelos genitais expostos, era óbvio que se tratava de um macho. O cabelo preto e enlameado estava afastado do rosto, preso com uma fita de pele, e o peito e as pernas cobertos de pelo sujo e áspero.

A primeira ideia de Ashley foi que estariam perante um hominídeo ou um proto-humano. Talvez um qualquer tipo de neandertal anão. Vários aspetos apoiavam a sua suposição: o espesso sobrolho ósseo que se projetava sobre os olhos enormes, o nariz largo e forte, que farejava na sua direção, o maxilar protuberante e os ossos dos maxilares que criavam um semblante embotado, parecido com um focinho.

Ashley, contudo, tinha estudado o registo fóssil de todas as espécies de hominídeos e proto-humanos. E aquele espécime vivo (e malcheiroso) não era conforme a nenhuma delas. O mais próximo seria a espécie australopitecínea, mas aquela criatura era muito diferente. O corpo, embora muito musculados, não era tão atarracado como o dos primeiros hominídeos, e o pescoço era demasiado comprido e esguio. Também as orelhas eram espantosas: ligeiramente peludas e pontiagudas, rodavam para trás e para a frente, desconfiadas. Nenhum daqueles aspetos correspondia ao registo fóssil de quaisquer proto-humanos antigos!

De súbito a criatura avançou na sua direção.

Ben ergueu a arma.

Fitando a pistola, a criatura abriu a boca, expondo as curtas presas, depois virou costas e acenou com um braço musculado na direção da matilha de animais e grunhiu na sua direção «unkh! unkh!». Como uma equipa treinada com precisão, giraram todos sobre uma pata e desapareceram de novo no campo. Ele virou-se para Ben, cruzando os braços.

Ben baixou a arma. Falou pelo canto da boca:

— Que pensas disto, Ash?

— Não tenho a certeza — disse ela com espanto na voz. — Mas acho que acabámos de conhecer um dos nossos habitantes das grutas.

Uma das orelhas da criatura rodou para longe deles. Parecia estar à escuta, fechando ao de leve as pálpebras. Depois de vários segundos, as pálpebras abriram-se de repente. Deu meia-volta e começou a afastar-se com um andar bamboleante.

Ashley observou-o, mortinha por deslizar uma mão pela sua estrutura pélvica. Também esta não parecia estar certa, não correspondendo a nenhuma das espécies de hominídeos. Quem era aquela criatura? O que era?

A criatura afastou-se vários metros, depois parou e virou-se para eles. Voltou a cruzar os braços. À espera.

— Acho que quer que o sigamos — disse Ashley, dando um passo em frente.

Ben tocou-lhe no cotovelo, impedindo-a de continuar.

— Não sabemos para onde diabo nos está a levar — sussurrou. — Tanto quanto sabemos, podemos fazer parte do menu do jantar desta noite. — Ben ergueu a voz, chamando a figura que os esperava. — Espera aí, meu amigo peludo. Para onde vamos?

A criatura olhou de relance para Ben, depois voltou-se e afastou-se.

Ashley fitou a figura que se afastava. Tinha de descobrir mais acerca daquelas criaturas. Decidindo que nada tinha a perder, começou a segui-lo, chamando por cima do ombro:

— Acho que é seguro, Ben. Ele podia ter deixado que aquelas criaturas parecidas com lobos nos atacassem, se nos quisesse fazer mal.

Ben abanou a cabeça, mas seguiu-a cautelosamente.

Mantendo-se vários metros atrás do seu guia, foram conduzidos para um caminho estreito no campo de vegetação amarela. Antes de avançar pelo caminho, a criatura retirou de um cinto, a única peça que tinha sobre ele, um punhal comprido, cuja lâmina era um comprido pedaço de cristal. Era diamante!

Ben pôs um braço protetor à frente do peito de Ashley, claramente preocupado com a possibilidade de que o guia estivesse prestes a atacá-los.

Dogaomarubi — disse o guia, como se se explicasse, erguendo a faca.

Ben acenou com a cabeça.

— Pois, pois. Como queiras, pequenote. Guarda só essa coisinha que espeta nas calças.

— Meu Deus — disse Ashley —, está a tentar falar connosco. Comunicação verbal! É incrível.

A criatura deu meia-volta e conduziu-os para os campos amarelos. As sementes, semelhantes a grãos de cereais, na ponta da vegetação de caule resistente agitavam-se por cima da cabeça do seu guia, ao passo que chegavam apenas a meio do peito de Ashley. Ela teve de abrir caminho pelo trilho estreito, os seus ombros forçando a barreira de vegetação de ambos os lados, ao mesmo tempo que o guia parecia deslizar pelo caminho sem perturbar um só caule. Ashley sentia-se como um elefante pesado. Passada uma hora, tropeçava mais do que abria caminho ao longo do campo.

Ben seguia-a, gemendo com o esforço de avançar pela vegetação densa.

— Como gostaria de ter aqui um machete — disse, bufando.

— Ou um quatro por quatro — acrescentou Ashley. — Preciso de descansar.

Como em resposta às suas preces, surgiu uma clareira no campo à frente. Um pequeno riacho cruzava o caminho, vadeável por meio de uma ponte de pedra. O guia esperou na base da ponte, sentado numa pedra, de punhal na mão.

Dogaomarubi — repetiu. Apontou para duas pedras lisas.

Ashley olhou para Ben, confusa. Ben olhou para o guia.

Ela observou enquanto o guia, por meio de gestos, lhes dizia que se sentassem.

Dogaomarubi — disse em tom mais assertivo.

— Ele quer que nos sentemos — disse, avançando para uma pedra e tirando a mochila das costas. — Dogaomarubi deve significar pausa para repousar.

Ben sentou-se numa pedra próxima, largando a mochila com um suspiro.

— Já não era sem tempo.

A criatura avançou para Ben e ofereceu-lhe o punhal.

Ben aceitou-o.

— Obrigado… acho eu. — Virou-se para Ashley. — Então, isto é um presente? Tenho de lhe dar algo em troca?

— Não sei. As culturas variam. Por vezes, é um insulto oferecer um presente em troca de outro.

— Então o que faço? Ele quer que eu faça alguma coisa com isto? Corte a palma da mão? Nos torne irmãos de sangue?

Ashley encolheu os ombros.

O guia fitou-os enquanto conversavam com as orelhas a moverem-se para trás e para a frente enquanto falavam. Por fim, resmungou ruidosamente e avançou, arrancando a faca das mãos de Ben. Ajoelhou-se ao lado de Ben e puxou-lhe para cima a perna das calças.

Ben começou por afastar a perna — depois estacou.

Ashley viu o mesmo e arquejou.

— Que é isso? — Avançou para examinar mais de perto, curvando-se ao lado de Ben. Uma lesma preta do tamanho da palma da sua mão estava presa à coxa. Enquanto observava, o seu corpo estremeceu numa onda de carne ondulante; cresceu mais alguns milímetros.

O guia avançou com a faca e retirou habilmente a criatura da perna de Ben. As suas ventosas mantiveram-se teimosamente presas na pele de Ben, depois soltaram-se. Dois pequenos círculos cor-de-rosa, com furos do tamanho de alfinetes no centro, marcavam a perna de Ben no local onde a criatura estivera presa. Duas gotas de sangue deslizaram-lhe das punções.

— Malditas sanguessugas! — exclamou Ben, sentindo um arrepio a percorrê-lo. Levantou-se e tirou as calças, o rosto contorcido num esgar de nojo. Tinha mais cinco parasitas parecidos com sanguessugas presos ao corpo.

Com uma careta, Ashley apercebeu-se de que um deles tinha subido até à nádega direita de Ben. Olhou de relance para as próprias calças. De súbito sentia milhares de criaturas escamosas a trepar-lhe pelas pernas. Sabendo que era apenas imaginação sua, não deixou de desapertar rapidamente o cinto e deixar cair as calças.

Sustendo a respiração, baixou os olhos. Tinha duas manchas pretas na sua coxa esquerda e uma na direita. Merda! Não havia como saber que tipo de doenças aquelas lesmas poderiam transmitir.

Ben, que se erguia nu da cintura para baixo, parecia verde quando o último parasita foi extraído. Tendo terminado, o guia aproximou-se dela com a faca.

— Eu posso fazer isso sozinha — disse ela, estendendo a mão para receber a faca.

O guia olhou de relance para a mão dela, depois para o rosto. Ashley esticou ainda mais a mão, num gesto insistente. Ele fez uma pausa e pareceu compreender… até acenou com a cabeça! Pousou o cabo da faca na mão dela.

Malditas sanguessugas! Ashley usou a ponta da faca para soltar a ventosa posterior, depois ergueu o tronco do parasita com a faca, até chegar à ventosa anterior. Foi preciso um esforço maior para soltar a última ventosa. Transportando a sanguessuga sobre a faca de diamante, lançou-a ao riacho como o guia fizera. Em seguida, tratou das outras duas.

Uma vez raspada a última, o seu corpo negro equilibrado ainda na faca, o guia pegou cuidadosamente na sanguessuga. Apontou para ela.

Dogaomarubi! — disse, depois lançou o parasita ao riacho.

Ben apertou as calças.

Não me parece que dogaomarubi signifique «pausa para descansar». Acho que significa «maldita sanguessuga de terra».

Voltando a colocar a mochila aos ombros, Ashley acenou com a cabeça.

— Reparaste que não destruiu os parasitas. Teve cuidado ao soltá-los. E cuidado ao libertá-los. Vi um deles na água. Inchou com a água, depois regressou aos campos.

— Sim e depois?

— Acho que são usados na manutenção dos campos. Como os agricultores usam as abelhas. Usam as sanguessugas como uma qualquer forma de irrigação. Uma ferramenta biológica.

Ben estremeceu.

— Pois, mas as abelhas não bebem o nosso sangue — resmungou.

Ashley revirou os olhos e seguiu o guia para o outro lado da ponte e de novo para os campos. Passada uma hora, uma manada de criaturas pesadas tornou-se visível ao longe, aparentemente a pastar. Erguiam as cabeças quadradas sobre pescoços curtos para os fitarem enquanto passavam.

— Parecem-se um pouco com cangurus sob o efeito de esteroides — disse Ben.

Turituri — disse o guia, apontando para os animais.

Ashley acenou com a cabeça, impressionada com a evolução do ecossistema naquele local. O fitoplâncton e os gases vulcânicos como fonte de energia base haviam desencadeado uma cadeia alimentar baseada em fungos e micro-organismos. O sistema era, sem dúvida, incrivelmente frágil, exigindo uma manipulação constante para se manter. Como aquelas sanguessugas, cada organismo desempenhava um papel na fortificação e proteção do ambiente.

Fitou as costas do guia. Que nível de inteligência exigiria aquele ecossistema para se autossustentar? O mero acaso não permitiria que um ambiente tão rico e variado florescesse.

Enquanto prosseguiam, um bando de pássaros ergueu-se no ar não muito longe. Rápido como um relâmpago, o guia agarrou numa fisga e lançou uma pedra aos pássaros, fazendo um deles cair dos céus. Correu através do campo para recuperar a sua presa, regressando pouco depois com o pássaro preso ao cinto. Ashley fitou a presa. Sem penas. O que lhe parecera um pássaro era um lagarto alado.

Ben também fitava o «pássaro».

— Espero que esse não seja o nosso jantar.

— Provavelmente sabe a galinha — disse, puxando-o atrás de si.

O guia parou poucos metros à sua frente e agachou-se. Ashley seguiu o seu exemplo e baixou-se, temendo que um predador pudesse estar próximo. Analisou cautelosamente a savana.

— Que foi? — perguntou Ben, aproximando-se dela e agachando-se também. Ashley olhou de relance na direção do guia. Este agachara-se a um metro de distância e defecava ao lado do trilho. Ashley estava sem palavras.

Ben, não.

— Não são propriamente uns tipos reservados, pois não?

O seu guia terminou e limpou-se com uma folha apanhada no campo. Depois deu meia-volta e usou a mesma folha para apanhar as fezes e guardá-las numa pequena bolsa que trazia presa ao cinto.

— E asseadinhos — disse Ben.

Ashley abanou a cabeça.

— Conservação.

— O quê?

— A energia deste ecossistema é limitada. Tudo tem de ser usado. Para que este sistema frágil sobreviva, nada pode ser desperdiçado.

— Ainda assim… lembra-me para não lhe apertar a mão.

O guia prosseguiu caminho, quase sem olhar para trás. Ashley seguiu-o.

Depois de mais duas horas de viagem e mais duas paragens para remover as sanguessugas, Ashley arrastava-se a passo de caracol, encharcada em suor, toda a sua anatomia arranhada e picada.

O guia virou-se para ela.

Daga mond carofi — disse, os olhos de pupilas rasgadas semicerrados de preocupação.

Ashley abanou a cabeça sem compreender. Desapertou o cantil e bebeu.

Ele apontou para a parede distante; o caminho virava agora nessa direção.

Carofi!

Ashley limpou a testa e semicerrou os olhos, virando-se para onde ele apontava. Quase indiscerníveis das sombras na parede mais distante, estava um padrão de pontos negros, organizados em filas e níveis. Reconheceu o padrão, semelhante ao agrupamento de casas na Caverna Alfa. Mesmo de tão longe, conseguia ver bastante movimento. Pequenas figuras que se moviam por entre as habitações.

— Meu Deus, Ben. Olha! Uma aldeia! — disse Ashley, virando-se para ele.

Puxando pela orelha direita, Ben exibia uma expressão estranha, uma mistura de surpresa e medo.

— Ouves…? Um zumbido…? — Os olhos dele reviraram-se, revelando a parte branca dos olhos.

— Ben?

Ele começou a vacilar um pouco, balançando, depois caiu no campo.

Ben lutava com a escuridão. Conseguia ouvir Ashley chamá-lo, mas era como se estivesse no fundo de um poço profundo, tão longe, a desaparecer. A escuridão engoliu-o ainda mais.

Sentiu que lhe abanavam o ombro, primeiro ternamente, depois com mais urgência. Os olhos de Ben abriram-se. O avô voltou a abaná-lo.

— Benny, meu rapaz, não há tempo para sestas. Precisamos de ti de pé e a andar de um lado para o outro.

Outra vez, não, pensou, enquanto olhava à sua volta para a caverna familiar. Os troncos de pedra, que ofereciam frutos vermelhos e carnudos, rodeavam-no. Estava a sonhar. Mas como? O avô estava nu, com exceção de um pano de linho, e o peito estava pintado com as cores primárias.

— Que queres? — perguntou.

— Vem. Segue-me. — O avô levantou-se e apontou para uma abertura na caverna com uma estrela desenhada por cima da porta. — Por aqui. — O falecido avô avançou para a abertura e trepou para o interior.

Ben tentou segui-lo, mas constatou que não conseguia sentar-se. Estava paralisado.

— Não me consigo mexer! — gritou.

Só uma voz na caverna lhe respondeu.

— Vem quando conseguires. És uno connosco!

A escuridão voltou a engoli-lo de novo. Tentou afastá-la, conseguindo-o desta vez. A luz explodia à sua volta, e deu por si a fitar o rosto preocupado de Ashley.

— Ben? — perguntou ela. — Que aconteceu?

— Não sei. — Sentou-se direito. — Não sei.

Enquanto se aproximavam do acampamento, Ashley ergueu os olhos, de boca aberta. Tentou contar o número de habitações abertas na parede, mas perdeu a concentração depois das cem. O aglomerado de casas apertava-se num declive rendilhado com cerca de um quilómetro de comprimento, formando um anfiteatro natural. Os vários níveis de casas subiam uns vinte andares, com escadas esculpidas na pedra unindo cada patamar ao seguinte, espessas cordas e roldanas rudimentares estendidas em frente ao penhasco em várias localizações.

Aquelas habitações escavadas na rocha, embora semelhantes às que tinham sido encontradas na Caverna Alfa, não correspondiam às habitações austeras e espartanas que aí tinham encontrado. Pelo contrário, haviam sido transformadas em casas de aspeto confortável. As paredes estavam enfeitadas com tecelagens de várias cores; as entradas cobertas com cobertores de desenhos intrincados; estandartes urdidos pendiam de vários níveis, retratando animais estranhos e caçadas complexas. Louça de pedra, pintada de amarelo, vermelho e azul pontilhava muitos dos patamares.

Ben estendeu o braço e pegou na mão dela, ao mesmo tempo que emergiam dos campos amarelos e avançavam para o anfiteatro das casas. Apertando a mão de Ben, Ashley apercebeu-se de que o chão de pedra tinha sido polido até a sua superfície ficar quase lisa; se tal se devia a anos de trabalho árduo ou, simplesmente, a séculos de passagem constante, não sabia ao certo.

Seguiu o guia através de uma multidão cada vez maior. Alguns mantinham-se afastados, fitando-os com um espanto que lhes arregalava os olhos, outros aproximavam-se para lhe tocar ao de leve num braço ou puxar pela roupa. Ashley fitou os penhascos que os rodeavam. Pequenas mãos afastavam os cobertores para poderem espreitar. As escadas talhadas na pedra, entre patamares, estavam apinhadas com milhares de rostos curiosos que fitavam de cima. Um pequeno número de crianças corria por entre as pernas dos pais.

Estavam todos nus, como o seu guia. Embora alguns se adornassem com diversos colares rudimentares e alguns envergassem chapéus de junco entretecidos. Um grupo do sexo masculino, todos com cabelo negro como carvão, tinha uma espécie de osso afiado a atravessar-lhe o nariz.

O guia parou e ajoelhou-se na pedra, de cabeça baixa, à espera.

Ashley e Ben erguiam-se atrás dele. Uma adulta do sexo feminino captou a atenção de Ashley. Embora a diferença na quantidade de pelo em relação ao guia fosse pouca, os seus seios pendulares estavam nus, com amplos mamilos bronzeados, que desciam até à barriga proeminente.

Exibia todos os sinais da gravidez. Ashley estava prestes a virar o rosto quando um movimento súbito lhe chamou a atenção. Uma mão minúscula emergiu da elevação na barriga da fêmea; esticou-se e agarrou uma mão cheia de pelo por baixo de um seio. Usando aquele apoio, uma criança pequena, cor-de-rosa e sem pelo, içou-se da barriga e começou a mamar. A mãe parecia não se aperceber de nada, continuando a fitar Ashley. Esta semicerrou os olhos, fascinada. A criança, nervosa com a confusão à sua volta, desceu mais uma vez para o seu esconderijo. Para uma bolsa!

— Olha, Ben! — disse Ashley. As palavras levaram os espectadores a recuar um passo. — Aquela mãe ali. Transporta uma criança num bolsa.

— Sim, e depois? Viste aqueles guardas à entrada armados de lanças e com aquelas criaturas que parecem lobos pela trela? Se queremos sair daqui, não vai ser fácil.

— Não quero saber. Não vou sair daqui enquanto não me levarem a espernear e a gritar. Há demasiado para estudar. Fazes ideia do que isto significa? — disse, apontando na direção da fêmea.

— O quê?

— Só os marsupiais transportam os filhos nas bolsas. Estas criaturas devem ter evoluído tendo por origem marsupiais!

— Excelente, fomos capturados por um bando de cangurus.

Ashley ignorou o comentário, continuando a pensar em voz alta.

— Os predadores enormes que nos atacaram também eram uma espécie marsupial primitiva. É como se todos os nichos ambientais deste ecossistema tivessem sido preenchidos com diversas espécies de marsupiais. Mas como? Como é que aqui chegaram? Como é que sobreviveram?

Ben encolheu os ombros.

— Quer dizer, pensa nisso, Ben. Desenvolveu-se aqui todo um ecossistema de marsupiais, separado da concorrência e da intromissão dos mamíferos. Nestas grutas, a evolução seguiu um caminho completamente diferente.

Nesse preciso instante, o silêncio abateu-se sobre a multidão sussurrante. Silêncio absoluto. Ben tocou-lhe ao de leve e apontou com a cabeça para a frente.

Uma criatura enorme emergiu da entrada da residência maior. Tinha o cabelo preto, mas a sua barba estava já salpicada de cinzento, os olhos eram de um amarelo tão rico que quase cintilavam. A criatura era mais alta do que o guia, os seus ombros largos e musculosos. Transportava na mão direita um cajado mais alto do que ele, encimado por um rubi do tamanho de uma toranja.

O guia ergueu a cabeça pela primeira vez e começou a falar rapidamente. O outro, claramente o líder da comunidade, emitia uma palavra aqui e ali. Ashley observou o diálogo, curiosa com o que poderia estar a ser dito. O guia emitiu um último rugido e baixou a testa até ao chão de pedra à sua frente.

O líder virou-se finalmente para eles, fitando primeiro Ashley e depois Ben. Pareceu estudá-los, coçando distraidamente a barriga. Vociferou-lhes qualquer coisa. Embora ininteligíveis para Ashley, as suas palavras levaram a multidão a arquejar e a afastar-se deles. Alguns até correram para longe, escondendo-se atrás de panos.

Ashley virou-se para Ben.

Este encolheu os ombros, depois sussurrou.

— Não creio que isto seja bom.

O líder bateu com o pau na pedra e virou-se.

Nesse preciso momento, uma figura vacilante, de cabelo cinzento áspero, emergiu de uma caverna vizinha. Movia-se com tal lentidão e cuidado, que Ashley se sentia segura de que ouvia ranger os seus ossos. Como o líder, também ele transportava consigo um cajado, mas, ao contrário do líder, precisava dele, apoiando-se pesadamente no bordão a cada passo. Além disso, em vez de um rubi, o seu cajado era encimado por um diamante em forma de pera.

Ashley reparou, quando se aproximou, que o seu peito estava pintado com um desenho de vermelhos e amarelos.

Ben começou a remexer-se ao seu lado.

— Devo estar a enlouquecer.

— Chiu! — disse ela. — Não me parece que seja boa educação falar.

O ancião olhou para ela. Embora o seu corpo fosse obviamente velho e decrépito, os seus olhos mostravam uma inteligência arguta, revelando uma mente ágil. Virou-se para Ben e acenou para ele, depois começou a falar com o líder.

Ben recuou um passo.

— Ash, já vi aquele desenho antes. Aquela pintura no peito do velhote.

— O quê? Onde? — sussurrou ela.

Ele engoliu em seco. Uma ponta de medo gelava-lhe a voz.

— Num… sonho. Pintado… no meu falecido avô.

Ashley pegou na mão dele.

— Escuta, haveremos de deslindar isso mais tarde. Agora, precisamos de descobrir o que tencionam fazer connosco.

Embora estivessem a sussurrar, a discussão entre o ancião e o líder tornara-se veemente. As suas vozes erguiam-se agora, pontuadas pelo bater dos seus cajados. Por fim, o líder expôs os dentes e bateu com o cajado no joelho, partindo-o ao meio, e saiu de rompante.

— Então e agora? — perguntou Ben.

O ancião virou-se para os fitar e apontou com o cajado na sua direção. Pronunciou apenas uma palavra:

— Morte.