CAPÍTULO 22
A exaustão afastou Michaelson da sua vigilância do túnel no exterior do seu minúsculo refúgio. Tinham passado horas desde a partida de Ashley e Ben, deixando-o sozinho. Esforçou-se por ouvir um qualquer sinal dos seus perseguidores. Nada. O silêncio exercia pressão como um peso físico contra os tímpanos.
Suspirou. Pelo menos o latejar do tornozelo diminuíra para um protesto difuso. Mais cedo ou mais tarde, teria de ajustar a tala do tornozelo, mas estava demasiado cansado para o fazer naquele momento. Fechou os olhos para se poder concentrar com menos distrações. Ainda assim, não ouvia senão silêncio e mais silêncio.
Deixou escapar um bocejo, e a cabeça tombou sobre o peito. Abanou a cabeça, sabendo que tinha de permanecer alerta.
Olhou para o corredor. Continuava vazio. Passados vários minutos, como sóis que se afundavam, as suas pálpebras começaram a descer de novo. A respiração tornou-se mais profunda. Estava suspenso numa neblina difusa entre o sonho e a realidade.
Foi então que algo lhe tocou na mão.
As suas pálpebras abriram-se de repente e lançou a cabeça para trás, quase partindo o crânio contra a parede. Lançou a mão à arma, desajeitadamente e apontou-a a um homem que envergava um andrajoso uniforme de Marine, as mangas rasgadas pelos ombros. Era impossível. Pestanejou algumas vezes. Ainda devia estar a sonhar, pensou. Mas a figura persistia, sorrindo-lhe.
Michaelson fitou os olhos do irmão há tanto perdido.
— Harry? Meu Deus! Estás vivo!
O irmão afastou o cano da arma de Michaelson com a ponta do dedo.
— Não se puxares esse gatilho — disse Harry, um sorriso cansado estampado no rosto.
Michaelson atirou a arma para o lado e, ignorando o protesto do tornozelo, ergueu-se de um salto e agarrou o irmão num abraço apertado. Refreou as lágrimas, rezando para que não se tratasse de uma alucinação, mas as gargalhadas divertidas do irmão não eram as de uma invenção. Ele era real.
— Graças a Deus, graças a Deus, graças a Deus — entoou Michaelson contra o ombro de Harry.
— Irmão, fizeste-nos correr bastante — disse Harry quebrando o abraço e deslizando a mão pelo cabelo preto num tique familiar.
Sorrindo, Michaelson apercebeu-se de que há anos que não via aquele gesto. Há décadas que o cabelo de Harry não era mais comprido do que corte militar à escovinha. Os meses que ali passara tinham permitido que o cabelo de Harry voltasse a crescer, e o gesto, como um velho amigo, regressara.
A voz de Michaelson prendia-se-lhe na garganta. Quase tomou de novo o irmão nos braços, mas depois apercebeu-se da cicatriz que lhe corria a todo o comprimento do braço direito. Ainda estava rosada e saliente, era algo recente. Esticou o braço e tocou-lhe.
— Que aconteceu?
O rosto de Harry ficou sério. Michaelson apercebia-se agora dos círculos sob os olhos azuis do irmão. Um olhar atormentado. Estudou mais atentamente o irmão. Tinha perdido peso; o que restava do seu uniforme pendia, largo.
— É uma longa história — disse Harry.
— Bem, acho que temos tempo.
— Não, na verdade não temos. Precisamos de nos apressar. Os crak’an estão perto.
— Os quem?
— Aqueles monstros. — Harry acenou-lhe para que o seguisse. — Junta o teu equipamento, soldado, vamos pôr-nos a andar.
Michaelson atirou-lhe a arma e subiu para a alcova para recolher a mochila e o cantil. Quando voltou a sair, reparou que o irmão verificava a arma com um sorriso de apreço.
Harry devolveu-lhe a arma com relutância.
— Bela ferramenta. Tinha-me dado jeito este tipo de poder de fogo quando estava a escoltar os cientistas. Talvez assim… — Parou de falar, uma expressão feroz a marcar-lhe os lábios.
Michaelson aproximou-se das costas do irmão, pousando-lhe uma mão no ombro, esperando ainda que ele se desvanecesse numa nuvem de fumo, como um espírito brincalhão que o provocasse com a imagem do irmão. Apercebeu-se de que as mãos do irmão estavam vazias. Como teria ele sobrevivido ali em baixo sem uma arma?
— Tenho outra arma na mochila… — começou a dizer.
— Não preciso. Tenho amigos.
Amigos? Michaelson fitou a passagem vazia, mudando a mochila de ombro. De quem estaria Harry a falar?
O irmão rosnou algo que lhe enviou um arrepio pelas costas, meio uivo, meio gemido, inumano. Baixo, mas penetrante.
Michaelson fitou as costas do irmão enquanto este uivava. Teria o irmão enlouquecido durante o seu isolamento?
Harry virou-se para ele, a sua expressão séria.
— Não dispares contra eles.
— De quem estás tu a falar…? — As paredes mais ao fundo da passagem moveram-se. Pequenas figuras camufladas contra a rocha avançaram, as facas e as lanças cintilavam sob a luz esverdeada do bolor.
Michaelson ouviu uma pedrinha mover-se atrás dele. Olhando de relance à sua volta, viu mais figuras que se aproximavam da retaguarda.
— Harry?
— São amigos. Salvaram-me a vida.
Uma das criaturas separou-se das restantes e aproximou-se. Os olhos estavam fixos em Michaelson à medida que se aproximava de Harry. Michaelson apertou a arma com força. A criatura, nua, tinha apenas um metro e vinte de altura, mas os seus músculos eram fortes, como os de um cão de corrida. O cabelo desgrenhado, cor de areia, estava preso com uma faixa vermelho-sangue. Os seus olhos grandes observavam Michaelson da cabeça aos pés, enquanto as orelhas proeminentes giravam em todas as direções como os pratos de um radar.
Enquanto a pequena figura se aproximava, Michaelson avaliou o calibre do armamento. Uma comprida faca com uma lâmina grosseira e cristalina estava presa em redor da cintura nua, e na mão, com quatro dedos, segurava uma lança comprida.
Enquanto Michaelson observava, a criatura aproximou-se de Harry e entregou-lhe a lança. Depois recuou.
— Quem são…? Não, o que são eles?
— Chamam a si mesmos mimi’swee.
Um deles passou a correr por trás de Michaelson, sobressaltando-o, e avançou até Harry. Apontou para trás deles.
— Doda fer’ago — disse. — Doda crak’an!
Harry olhou de relance para Michaelson.
— Ele diz que temos companhia. Apanharam o nosso cheiro e estão a aproximar-se. Está na hora de nos pormos a andar.
Um rugido irrompeu atrás deles. Um segundo e um terceiro responderam-lhe, vindos de todo o lado. Estavam a ser encurralados.
Michaelson pensou em Ashley e Ben, perdidos no labirinto de túneis. Avançou para junto de Harry.
— Escuta, tenho amigos, e…
— Eu sei. Uma pequena equipa dos meus amigos foi enviada atrás deles. — Apontou para a frente com o polegar. — Os teus amigos foram conduzidos para um lugar seguro.
— Onde?
Uma segunda vaga de rugidos ecoou através dos túneis.
— Vou mostrar-te. Anda antes que nos tornemos o jantar de alguém.
Michaelson manteve-se perto do irmão. As figuras minúsculas corriam à sua volta, algumas delas ultrapassaram-no e correram à frente, enquanto outras se apressavam em sentido oposto para verificar o caminho. O major esforçou-se por acompanhá-los, mordendo o lábio inferior, mas o tornozelo dorido em breve começou a latejar em sinal de protesto. O fosso entre ele e o irmão começou a crescer.
Harry abrandou e agarrou no braço de Michaelson e passou-o sobre o seu próprio ombro, apoiando o seu lado lesionado. Por aquela altura, apenas duas ou três daquelas pequenas criaturas se mantinham atrás deles, protegendo a retaguarda.
— Não te vou deixar para trás, Dennis.
— Estou a abrandar-te. Não vim até aqui para fazer com que morras.
— Cala-te, irmão. Ninguém vai ser morto hoje. — Apertou o ombro de Michaelson. — Além disso, assim agarrados, é como a corrida de três pernas em Kearney, quando ganhámos a fita azul na feira.
Com um esgar de dor, Michaelson cuspiu.
— Porque fizeste batota!
— Não te vi devolver a fita.
Houve uma súbita agitação atrás deles. Um dos caçadores corria na direção deles e rosnava algo a Harry. O rosto de Harry ficou sério. Respondeu com algo ininteligível. A figura acenou com o queixo e continuou a correr em frente. Agora, só uma pequena figura permanecia atrás deles.
— Que disse ele?
— Que um dos crak’an se está a aproximar. Não vamos conseguir chegar a um lugar seguro.
Michaelson cerrou os molares. Agora tinha colocado o irmão num novo perigo.
— Eu disse-te…
— Sim, sim, tens sempre razão. — O irmão interrompeu o avanço arrastado. O último caçador, de pelo preto, com uma cicatriz que lhe corria pelo lado direito do rosto, parou ao lado de Harry. — Dennis, segue caminho, tenta acompanhar o melhor que conseguires. Eu e o Nob’cobi vamos tentar abrandá-lo. Conseguir algum tempo para os outros.
— Para o diabo com isso! Eu tenho a arma.
— Sim, e eu tenho a experiência. Agora mexe-te!
Reconheceu a expressão obstinada nos olhos do irmão. Não havia espaço para discussões.
— Bem, pelo menos fica com arma.
Harry abanou a cabeça.
— Podes precisar dela. — O irmão passou o braço em redor do outro caçador e ergueu a lança comprida que ainda segurava na mão direita. — Além disso, a utilização de armas não tradicionais diminui as nossas oportunidades para obter il’jann com a morte.
— O quê?
Harry acenou-o para que seguisse.
— É uma espécie de «golpe de audácia». Uma medida de honra. — O arranhar de garras na pedra fazia-se agora ouvir do fundo do túnel. — Agora põe-te a andar!
Michaelson acenou e afastou-se pelo túnel. Não havia qualquer hipótese de deixar o seu irmão a lutar apenas com uma lança. Mal chegou a um túnel lateral, enfiou-se nele e olhou para trás. O irmão e o outro caçador tinham as cabeças próximas. A pequena figura apontava com as mãos e acenava.
Largando a mochila, soltou a arma e deitou-se de barriga para baixo no túnel, fitando a passagem. Esperou, escutando o ruído crescente do predador que se aproximava.
De súbito o irmão ficou tenso e projetou a lança para a frente, aparentemente vendo algo que Michaelson não conseguia ver de onde estava. O caçador minúsculo encostou o corpo à parede da passagem. Harry prendeu o cabo da lança num pequeno buraco no chão e manteve-a fixa com o pé, inclinando o cabo para a frente, a lâmina a apontar para o fundo do túnel. Agachou-se, mantendo a lança firme.
Um rugido de raiva ecoou pelo túnel; depois tornou-se visível, enchendo todo o túnel, gigantesco, maior do que qualquer dos monstros que Michaelson vira antes. Negro, como se tivesse sido coberto de pez, movia a cabeça para um lado e para o outro, fungando explosivamente. Quando viu Harry, estacou, retesando as duas patas traseiras fortemente musculadas. Recuou um passo, depois esticou o pescoço para a frente, abriu a boca e gritou.
Harry manteve a posição, mas respondeu ao monstro com o seu próprio grito:
— Vai-te foder!
Michaelson deixou que um pequeno sorriso lhe aflorasse os lábios. Nada intimidava aquele sacana. Deitado de barriga no chão, Michaelson semicerrou os olhos, erguendo a coronha da arma contra o ombro, olhando através da mira. O irmão estava na linha de tiro. Merda.
Com um uivo de raiva, a besta lançou-se na direção do irmão, projetando-se pelo espaço que os separava. Tudo aconteceu demasiado depressa para Michaelson reagir. Harry baixou-se quando a cabeça mergulhou na sua direção, depois retesou o corpo, ao mesmo tempo que a besta chocava contra a lança que prendera ao chão, empalando-se através do peito. O cabo partiu-se ao meio, ao mesmo tempo que Harry rolava para longe.
Nesse preciso momento, o minúsculo caçador saltou da parede lateral e aterrou montado sobre o pescoço do monstro, uma faca comprida apertada na mão. Mergulhou a lâmina nos olhos da besta, cortando violentamente.
A besta recuou com um rugido de agonia, lançando a cabeça para trás e desalojando o caçador. A faca comprida, contudo, permanecia presa no olho esquerdo do monstro.
O minúsculo caçador aterrou com força no local para onde foi projetado, mas depressa se ergueu e se afastou da besta que se agitava, gatinhando na direção de Harry.
O predador viu-o com o olho bom, a cabeça inclinada, e tentou abocanhar o seu atormentador peludo. Harry tentou alcançar o seu companheiro de caça primeiro e puxá-lo para longe do alcance da besta, mas a mão ficou a poucos centímetros de o alcançar. O pequeno homem foi apanhado pelas mandíbulas do monstro. Ainda assim o irmão avançou, com o cabo partido da lança, aparentemente determinado a usar os restos afiados como arma para libertar o amigo.
Michaelson cerrou os dentes. O irmão ainda impedia parcialmente o seu tiro, mas era óbvio que não ia deixar o caçador minúsculo nas mandíbulas da besta. Maldição! Sustendo a respiração, Michaelson semicerrou os olhos e puxou o gatilho, a explosão da espingarda foi ensurdecedora no espaço apertado.
O ruído súbito fê-los estacar a todos. Harry interrompeu a sua aproximação para atacar a criatura, o coto da lança ainda preso na mão. A besta imobilizou-se.
— Harry! — chamou Michaelson. A voz estilhaçou o quadro. A besta caiu ao chão, morta, com uma bala no cérebro. Ao cair, libertou a sua presa e o caçador tombou das suas mandíbulas. Harry correu para a frente na direção do amigo.
Michaelson arrastou-se do espaço onde se escondera e aproximou-se do irmão, fitando o corpo da besta que bloqueava a passagem.
— Como é que ele está?
Harry ajudou o minúsculo caçador a levantar-se.
— Vai sobreviver. São tipos de pele grossa. Alguns furos no ombro. Mas não há ferimentos graves.
— Ótimo. — Michaelson ajoelhou-se ao lado do caçador mimi’swee e pousou uma mão no seu ombro bom.
Harry sentou-se sobre os calcanhares.
— Dennis, pensei que te tinha dito para saíres daqui.
Michaelson franziu o sobrolho.
— Para além de ser o teu irmão mais velho, também sou teu superior.
— De repente, sinto-me feliz por teres subido mais depressa do que eu de posto. Caso contrário, podias ter-me dado ouvidos. — Harry virou-se para ele, os olhos sérios. — Obrigado, Dennis.
O caçador minúsculo começou a dizer algo incompreensível, com uma expressão de dor estampada no rosto. Harry acenou com seriedade. A figura minúscula levou a mão ao ombro ferido e mergulhou o dedo no sangue que corria dele, depois virou-se para Michaelson.
— Nob’cobi quer partilhar contigo o seu il’jann — explicou Harry. — É uma honra entre o seu povo. O equivalente a irmãos de sangue.
O caçador peludo esticou o braço e pousou o dedo ensanguentado na testa de Michaelson.
— Ir… irmão — disse num meio grunhido.