CAPÍTULO 23
Khalid observou Linda que abraçava o rapaz assustado, o rosto pousado sobre o cabelo de Jason. Sussurrava-lhe palavras de consolo ao ouvido. Khalid avançou para a figura de Blakely, encostado à rocha. Os olhos do cientista estavam abertos e fitavam-no, a respiração ainda entrecortada e sibilada. O velho tinha informações de que precisava, dados necessários para concluir a missão. Ajoelhou-se ao lado de Blakely e ofereceu-lhe o seu cantil, despejando uma pequena dose de água para a boca do homem.
Blakely fechou os olhos e engoliu avidamente, depois afastou o cantil, lançando água sobre o peito.
— Obrigado — murmurou.
— Que aconteceu? — perguntou Khalid. — Como vieram parar aqui?
Blakely falou com os olhos fechados, como se se recordasse.
— O campo… foi atacado… destruído. — A sua respiração era laboriosa, procurando recuperar o fôlego.
A primeira ideia de Khalid foi a de que alguém tivesse agido mais depressa do que ele. Um segundo agente? Mas as palavras seguintes de Blakely afastaram tal ideia.
— Criaturas enormes… centenas delas… assaltaram o campo. Fugimos no barco. Acabámos aqui encalhados.
Khalid franziu o sobrolho perante as más notícias. Maldição, então eles eram mais. Tivera a esperança de que se tivessem deparado com os únicos existentes. Ergueu os olhos para o conjunto de quedas de água. Se conseguissem encontrar o caminho de volta, teriam à sua espera uma manada daqueles predadores. Sentou-se nos calcanhares e guardou a pistola no coldre.
— E agora? — balbuciou para si mesmo.
Blakely ouviu-o e respondeu, a voz ainda rouca, mas mais firme.
— Esperamos. Deixamos tudo nas mãos das forças armadas. Quando se aperceberem do que aconteceu, virão em grande número. Eles que nos encontrem.
Khalid esfregou a barba que crescia espessa no pescoço. Blakely tinha razão. As forças armadas seriam mobilizadas em breve, restabelecendo a segurança da base. E com toda a marinha dos Estados Unidos ali em baixo, a passar o local a pente fino, a sua missão seria muito mais difícil, senão mesmo impossível.
Esfregou os olhos vermelhos e cansados, sentindo areia debaixo das pálpebras. Teria de alcançar a Base Alfa antes das forças armadas. E com tempo de sobra para terminar a colocação das cargas explosivas e se pôr a andar. Um objetivo difícil, mesmo para ele.
Talvez aquele fosse um teste de Alá. As forças da natureza eram viradas contra ele, pondo-o à prova. De que outra forma poderia explicar que aqueles vis monstros os tivessem bloqueado, os inúmeros obstáculos, os horrores a cada curva? Só podia ser um teste de Deus.
Fechou os olhos e pousou as palmas das mãos contra o rosto, rezando pela força que lhe permitisse alcançar o sucesso e por um sinal, uma qualquer indicação de que estava certo na sua missão. Rezou durante cinco minutos, o coração a bater-lhe nos ouvidos. No entanto, não recebeu qualquer sinal. Por fim, recostou-se com um suspiro, pousando as mãos nos joelhos. Nada.
Então, quando ergueu os olhos, viu-a. Uma nuvem de fumo espesso que se erguia de uma abertura a meio da parede da gruta. Khalid sentou-se mais direito.
— Doutor, o campo estava a arder? Havia muito fumo?
O cientista limpou a garganta seca.
— Sim, coberto de fumo. Porquê?
Khalid apontou para a parede mais distante, com um sorriso encantado nas suas feições.
— Veja, ali! O fumo! Deve ser uma saída! — Continuou a fitar o fumo que se erguia, como se este fosse o dedo de Deus.
Continuando a segurar Jason pelo braço, Linda fitou a abertura do túnel repleto de fumo. Emoções guerreavam dentro dela: alívio por ter encontrado uma saída e receio em relação aos eventos que poderiam ocorrer. Que iria Khalid fazer? Não podia deixar que Blakely e Jason descobrissem os seus planos ou teria de os matar.
Virou-se para olhar para Khalid. A expressão deste ao olhar para o penhasco era de uma estranha exaltação, os seus olhos estavam muito abertos, vítreos. Quando esses olhos cruzaram os seus, Linda sentiu um arrepio. Khalid sorriu-lhe.
— Está quase terminado — disse.
Linda acenou com a cabeça. Tinha acontecido tudo tão depressa. Contara com dias de busca antes da descoberta do caminho para casa, o que lhe daria tempo para formular um plano, horas extra para decidir se devia tentar detê-lo ou limitar-se a salvar a própria pele e deixá-lo fazer o que queria.
Um puxão no braço distraiu-a. Baixou os olhos para Jason.
— Linda, então e a minha mãe? Achas que está bem?
Apertou o ombro do rapaz que a fitava. Devia mentir, dizer-lhe que ia ficar tudo bem, mas Jason era um miúdo esperto, até os olhos que a fitavam estavam secos e sérios. Ele queria uma resposta sincera.
— Jason, não sei mesmo. Mas o Ben e o major Michaelson estão com ela. Irão assegurar-se de que regressa em segurança.
Jason acenou com a cabeça.
Khalid tocou-lhe no ombro, sobressaltando-a. Acenou para que ela o seguisse durante alguns passos, para que pudessem falar em privado. O coração de Linda batia-lhe na garganta enquanto o seguia.
Ele olhou por cima do ombro para se assegurar de que estavam sozinhos.
— Escuta, quero que partamos esta noite.
A boca dela estava seca. Aquilo estava a acontecer demasiado depressa, como um comboio de mercadorias que acelera em direção a uma ponte demolida.
— Mas o Blakely ainda não pode ser movido.
Khalid nem pestanejou.
— Não estava a pensar levá-lo. Ou ao rapaz.
As palavras dele eram um sussurro.
— Prometeste-me que não matarias mais ninguém se eu permanecesse em silêncio.
— Não os vou matar. Só os vou deixar.
— Há alguma diferença?
Khalid encolheu os ombros.
— Eu disse-te, se descobrirem o meu plano, serei obrigado a matá-los. Pelo menos, ao deixá-los, terão oportunidade de se defenderem.
Fitando Khalid, imaginou Jason a morrer à fome e Blakely a ser devorado por uma besta. Com que facilidade ele condenava Blakely e Jason a uma morte lenta. Onde estaria o coração daquele monstro? Engoliu em seco.
— Odeio isto.
— Partiremos depois de eles adormecerem — sussurrou-lhe Khalid ao ouvido, como um amante que transmite um segredo. — Não terás de os enfrentar.
Como parasitas, as palavras dele devoravam-lhe o cérebro, ameaçando destruir a sua sanidade. Como podia ele planear as suas mortes com tamanha casualidade? Afastar-se deles a meio da noite? Como podia…?
Depois uma ideia formou-se na sua mente.
E se…? Remoeu a ideia, mas não tinha muito tempo e o risco era grande. Mordeu o lábio inferior, insegura. Observou Jason que sorria a algo que Blakely dizia. Vistos dali, os olhos dele brilhavam fortemente sob a luz dos fungos. Cintilavam de vida jovem, da muita vida que ainda tinham para explorar.
Linda fechou os olhos, firmando os seus planos. Ela podia fazer aquilo. Não, ela ia fazer aquilo.
— Muito bem, partimos esta noite — disse com determinação.
Enquanto Linda fingia dormir, Blakely e Jason dormiam envoltos nos cobertores extra. Blakely roncava, um gorgolejar assobiado que se sobrepunha à corrente da queda de água. Mas os olhos entreabertos de Linda mantinham-se fixos no perfil de Khalid, que se sentara, meio dentro do saco cama, encostado a um pedregulho. Esperava. Observava a sua cabeça a deslizar e a endireitar-se de novo, enquanto o sono quase se apoderava dele. Quase.
Linda conseguira convencer Khalid a descansar um pouco, fingindo-se exausta ela mesma. Nada mais que uma sesta de duas horas, implorara, o suficiente para recarregar as baterias para a fase seguinte da viagem. Ele concordara. Dissolvera secretamente vários dos seus ansiolíticos na água de Khalid e assegurara-se de que este bebia uma boa dose. O forte sabor mineral da água local disfarçava o gosto dos comprimidos. Estes deviam adormecê-lo. Tinham um efeito sedativo ligeiro, mas, naquela quantidade, o medicamento devia deixá-lo de tal forma sonolento, que poderia adormecer acidentalmente durante a vigia. Era tudo de que precisava.
Viu o queixo dele repousar contra o peito. Desta feita, a cabeça ficou caída.
Com o coração a bater nos ouvidos, escutou, tensa no seu saco-cama, suficientemente perto de Khalid para perceber quando a sua respiração se aprofundasse num ritmo regular. Sabia que não teria muito tempo.
Com uma lentidão agonizante, deslizou do saco-cama. Felizmente, o rugido da queda de água próxima abafava os movimentos.
Deslizou para junto dele e recolheu a lanterna e o capacete de uma rocha próxima. Originalmente, planeara tirar a pistola a Khalid, mas este adormecera com ela enfiada dentro do saco-cama. Tentar ir buscá-la agora era demasiado arriscado.
Por isso, recorreu ao plano de recurso. Tirou as pilhas da lanterna e do capacete. Ele podia ficar com a arma, pensou, mas vejamos se consegue deslocar-se às cegas.
Quando terminou, virou a sua atenção para o cientista adormecido. Linda pousou a mão nos lábios de Blakely, pressionando com força quando ele acordou de repente. Inclinou-se sobre ele e levou um dedo aos seus próprios lábios, pedindo silêncio. Uma vez recuperado do choque, ela afastou a mão e acenou-lhe, pedindo que a seguisse… em silêncio. Conduziu-o para vários metros de distância.
Tendo-se afastado o suficiente, encostou os lábios aos ouvidos dele, esperando que o rugido da queda de água impedisse que as suas palavras alcançassem as figuras adormecidas.
— Temos de fugir. Agora. Consegue deslocar-se?
Blakely fitou-a, de olhos semicerrados.
— Sim, mas porquê? Que se passa?
Linda ofereceu-lhe uma versão abreviada dos eventos reais que a haviam levado até aqui. Quando por fim terminou, a sua voz estava marcada pelas lágrimas.
As sobrancelhas de Blakely foram-se erguendo cada vez mais, enquanto ela contava a sua história.
— O sacana! Nunca pensei… Raios, a culpa é minha. Devia ter verificado de forma mais minuciosa. Fui demasiado ingénuo. Em relação a tudo!
Blakely parecia décadas mais velho do que há uma semana. Os olhos encovados, os ombros caídos, até o cabelo parecia mais encanecido. Linda pousou a mão no braço dele.
— Temos de ir buscar o Jason e fugir, agora.
Blakely abanou a cabeça.
— Porque não o atacamos e lhe roubamos a arma? Ou lhe batemos na cabeça com uma grande pedra.
— Ele é um assassino treinado. Uma máquina. — Linda não conseguia esconder o medo na voz. — Não somos um adversário à altura. Se ele for atacado e só o conseguirmos ferir, estamos mortos. É mais seguro se nos limitarmos a fugir. Se tentarmos entrar nos túneis mais escuros onde, sem luz, não nos conseguirá alcançar.
— Então e os ouros perigos? — Apontou para a parede mais distante. — Não sobreviveremos muito tempo sem uma arma.
Linda abraçou o corpo com as mãos.
— Eu sei. Mas prefiro correr riscos com o desconhecido do que com ele.
— Está bem. Mas teremos de ir com pouca carga. Apenas cantis e rações.
Linda acenou com a cabeça.
— Vamos buscar o Jason.
Jason entrou em pânico quando o abanaram para o acordar. Não conseguia respirar! Lutou violentamente durante vários segundos, até se aperceber de que a sua aflição para respirar se devia ao facto de Linda lhe estar a tapar a boca com a mão.
Ela pediu-lhe silêncio, encostando os lábios aos ouvidos dele.
— Silêncio, Jason. — As palavras dela pouco mais eram do que ar.
Jason parou de lutar, mas o seu coração ainda batia acelerado e doía-lhe a cabeça. Que fora agora? Mais monstros? Sentou-se e viu que Blakely reunia as caixas de rações secas, movendo-se como um ladrão na noite, cuidadoso com o sítio onde punha os pés.
Khalid dormia no seu saco-cama. Tanto Blakely quanto Linda iam lançando olhares na direção do homem que ressonava. Jason virou-se para Linda com uma pergunta nos lábios. Ela encostou um dedo aos seus. Não sabia porque tinha de manter tanto silêncio. As águas tumultuosas eram suficientemente ruidosas. No entanto, fez o que lhe diziam e ficou sentado em silêncio.
Passado menos de um minuto, Linda e Blakely tinham empilhado três cantis, lanternas e um saco de rações perto dele. Blakely mostrou a Linda uma pistola de cano largo que tinha encontrado junto das coisas que trouxera do barco. Uma pistola de sinalização, reparou Jason.
Blakely agachou-se junto dele e sussurrou:
— Ouve, rapaz, temos de ir embora. Deixar o Khalid para trás. Temos de nos mover depressa. Achas que consegues fazer isso?
Jason acenou com a cabeça, confuso, mas pelo rosto pálido e o olhar nervoso de Linda, havia algo a temer. Fitou Khalid, curvado como um ogre.
Linda e Blakely dividiram entre si a pequena pilha de mantimentos e acenaram-lhe para que os seguisse. Jason levantou-se e pegou no saco de desporto. Blakely fitou o saco e abanou a cabeça.
— Deixa-o — disse, silenciosamente.
Nem pensar! Conseguia transportá-lo. Não era nenhum bebé. Abanou a cabeça e apertou o saco com mais força.
Blakely abriu a boca, mas Linda tocou-lhe no braço e silenciou-o. Acenou aos dois para que a seguissem. Jason ia logo atrás dele, e Blakely seguia em último.
Ninguém falou enquanto avançavam, mesmo depois de o campo abandonado estar oculto por estalagmites e pedregulhos. O silêncio envolvia Jason, ainda mais assustador do que os gritos dos monstros e as detonações das armas. Todos os ruídos o faziam saltar, todos os passos pareciam gritar através da gruta. Felizmente, passada meia hora, alcançaram por fim as rochas e os pedregulhos caídos que lhes permitiriam aceder ao túnel fumegante.
— Olhem — disse Linda. Apontou para a abertura bem acima. — O fumo já diminuiu. Será mais fácil para nós respirar.
— Sim — disse Blakely —, mas poderá tornar mais difícil encontrar o caminho até lá acima. — A expressão dele era sombria enquanto fitava a subida.
— Consegue? — perguntou Linda.
— Tenho outra escolha?
Linda apertou o ombro de Blakely, depois virou-se para Jason.
— Jason, e tu? Consegues trepar por estes pedregulhos?
— É canja — disse ele com um risinho.
— Então é melhor despacharmo-nos. Não sei quanto tempo os comprimidos manterão o Khalid a dormir.
Khalid sonhava que agarrava a túnica da mãe enquanto a tempestade negra descia sobre o acampamento no deserto. Tentou avisá-la de que o vendaval se aproximava, mas ela continuava a falar com as outras figuras envoltas em túnicas sem se aperceber do rugido da areia e dos ventos que se aproximavam. Puxou-lhe pela túnica, tentando chamar-lhe a atenção, mas ela empurrou-o com a anca. Correu para a abertura da tenda, espreitando para o turbilhão revolto que varria a linha do horizonte. Virou-se para o grupo de figuras envoltas em túnicas, a mãe entre elas. Gritou-lhes, a sua voz um junco ao vento. Mas desta vez ouviram-no e viraram-se. Os rostos cobertos pelos véus voltaram-se na sua direção. Abriu a boca para repetir o seu aviso, quando viu os rostos que espreitavam sobre os véus. Não eram rostos! Eram caveiras. Amarelas, ossos limpos pela areia, que espreitavam por cima dos véus negros. Mãos esqueléticas que tentavam alcançá-lo por entre as pregas das túnicas. Recuou para a tempestade ribombante. Um grito preso na garganta.
Quando a tempestade os atingiu, Khalid acordou em sobressalto, confuso por o rugido o ter seguido para fora do sonho. Estremeceu com o som até se ter apercebido que era produzido pela queda de água próxima. Engolindo em seco, quase imaginando que a sua garganta estava coberta de areia, libertou-se do saco-cama. Levou a mão ao cantil. Tinha desaparecido. Levantou-se velozmente.
Bastou-lhe um olhar para os sacos-cama vazios, como peles de cobra descartadas, para perceber que fora enganado. Maldita. Ergueu a pistola como se esperasse um ataque. Olhou à sua volta. Não havia sinal deles. Olhou de relance para o túnel fumegante, ao longe, nada mais que uma pequena nuvem emergia ainda da abertura. Pelo menos sabia para onde tinham ido.
Pontapeou a tralha abandonada, tomando nota mental do que ficara. Todas as lanternas tinham desaparecido. As pilhas também. Não havia fonte de luz.
Levou a mão ao bolso e retirou o isqueiro. Abriu-o com um movimento do pulso. Uma chama ergueu-se. Seria um fogo a iluminar o seu caminho.
Um sorriso de determinação alisou-lhe os lábios. Ia ensinar-lhe uma lição. Em breve conheceria a sua raiva e imploraria o seu perdão.
Ele seria como a tempestade negra do seu sonho. Sem misericórdia e imparável.