CAPÍTULO 24

Ashley deu um passo atrás, perguntando-se se os seus ouvidos lhe estariam a pregar partidas. Como podia aquela criatura falar a sua língua? Teria sido apenas uma coincidência, uma série de sons que, por acaso, eram iguais a uma palavra na sua língua?

Morte — repetiu a criatura de cabelo grisalho, apontando com o cajado e abanando-o como se quisesse obrigá-la a compreender. Depois pousou o bordão e apoiou-se pesadamente sobre ele, os ombros tristemente caídos. — Dobori dobi! — disse, por fim, numa voz cansada.

Perante as suas palavras, um arquejar ergueu-se à volta dela, despoletando uma confusão apressada. Os poucos curiosos que ainda permaneciam junto dela correram para longe, desaparecendo nas aberturas das cavernas, descendo os panos sobre as entradas e prendendo-os. Nem um rosto espreitava de uma qualquer esquina.

Apenas um pequeno grupo de criaturas ali permanecia: as que estavam armadas com lanças de diamante. E mesmo estes guerreiros saltitavam, nervosos.

Ben falou ao lado dela:

— Ash, vamos ter problemas.

Ashley olhou para ele de relance, vendo os seus olhos muito abertos.

— Ben? — sussurrou, sentindo-se exposta sob os olhos da criatura. — Que fazemos?

— O diabo se sei. A antropóloga és tu.

— Talvez devêssemos… — Ashley foi interrompida pelo firme bater do bordão da criatura na pedra, exigindo a sua atenção.

Dobori dobi! — trovejou a criatura, apontando para Ben com um longo dedo curvo, depois virou-se e afastou-se.

— Espera! — chamou Ben.

A criatura virou-se para ele, mas o esforço necessário era demasiado. Estava claramente exausto, tossindo roucamente e apoiando-se pesadamente no bordão. Ashley apercebeu-se da magreza da sua figura, nada mais que pele e osso, a curvatura da coluna saliente, um mapa dos seus muitos anos.

Com olhos grandes, húmidos, fitava Ben. Ergueu um dedo e levou a ponta à orelha, depois baixou o dedo até ao centro do desenho pintado no peito, logo acima do coração, em seguida virou-se e avançou pela rocha nua, desaparecendo na abertura de uma caverna.

— Ash, o que pensas daquilo?

— Não sei ao certo. Estava a tentar dizer-nos alguma coisa. Mas quem sabe o que será? — Engoliu em seco, tentando desalojar o caroço que ficara preso na sua garganta. Girou para olhar para trás de si. Nada. Ela e Ben erguiam-se sozinhos no limite dos campos amarelos. As paredes do penhasco que continha a aldeia envolviam-nos.

Voltando-se de novo, contou dez guardas no exterior, colocados nas rampas que conduziam ao segundo nível das habitações. Guarda algum os impedia de saírem para os campos.

Quando estava prestes a sugerir que talvez se devessem ir embora, e tentar encontrar o caminho de volta através dos campos, um profundo ribombar irrompeu da face do penhasco, ritmado e lento. Bum bumbum. O bater baixo e ressonante atravessava-lhe o diafragma, vibrando através dela, como se fosse uma corda a ser dedilhada. Sabia que, mesmo que enfiasse os dedos nos ouvidos, continuaria a sentir a batida sonora.

— Tambores — explicou Ben, desnecessariamente.

Ashley acenou com a cabeça.

— As culturas usam os tambores para marcar rituais. — Virou-se para olhar de novo para os campos amarelos. Em especial rituais de morte, mas omitiu essa parte.

Ben, contudo, conhecia o significado dos tambores. Raios, tinha assistido a filmes do Tarzan suficientes para perceber que os nativos estavam inquietos. Ainda assim sentiu uma estranha calma envolvê-lo. Sabia que devia ter o coração acelerado, que as palmas das mãos deviam estar húmidas de medo. Mas, não, em vez disso sentia desprendimento, como se assistisse àqueles eventos pelos olhos de outra pessoa. Desde que o velho levara o dedo ao peito que uma sensação de paz descera sobre si.

A cada novo bater do tambor, estranhos pensamentos foram-no invadindo, quase como se os tambores falassem consigo. Bum… A morte aproxima-se. Bum… Sobrevive e viverás. Bum… Só há uma saída. Bum… Prova o teu sangue.

— Ben? — O rosto de Ashley surgiu à sua frente, vindo do nada, a sua voz tão fraca quando comparada com o chamamento dos tambores. Acenava com uma mão à frente dele. — Estás bem?

— Estou ótimo. — Abanou a cabeça. — Só estava a tentar pensar.

— Estavas a balbuciar qualquer coisa. Algo acerca de sangue.

— Não é nada.

— Tens a certeza de que estás bem?

— Tendo em conta a situação em que nos encontramos, estou ótimo. — Dirigiu-lhe um sorriso fraco, na esperança de que ela engolisse a sua mentira, ao mesmo tempo que se perguntava o que haveria de errado consigo. — Estou ótimo — repetiu.

No entanto, Ashley tinha ainda uma expressão de preocupação estampada no rosto.

— Alguma ideia acerca do que podem estar a planear? — perguntou ela, enquanto perscrutava o penhasco.

Ben encolheu os ombros. Podia haver toda uma série de maneiras de os assassinarem: atacá-los com lanças, lançar pedregulhos sobre eles, acicatar aquelas criaturas parecidas com lobos para que os atacassem, deixar que as malditas sanguessugas os deixassem exangues. Quem poderia dizê-lo? Esfregou as fontes. Estranhamente, ele podia. Seriam atacados pelo ar. A morte aproxima-se. Mas como raio saberia ele aquilo?

Virou-se e olhou para os céus por cima dos campos, tentando ver se algo se aproximava. Nada para além dos fungos brilhantes cobria o mundo. Mas tinha a certeza. Até sabia de onde viriam. Semicerrou os olhos para a sua esquerda. Depois viu-os, pontos negros contra o brilho esverdeado do teto, a aproximar-se rapidamente, crescendo cada vez mais em tamanho, à medida que a distância que os separava desaparecia. Apontou.

— Ali, Ash. Estás a vê-los?

— O quê? Onde?

Ben inclinou o queixo dela para que olhasse na direção certa.

— Os tambores deviam estar a chamá-los — disse. — Calculo que funcionem como o sino para o almoço.

— Que são? — perguntou ela.

— Algo faminto. Porque estão a vir muito depressa!

Ashley apontou para a arma na cintura dele.

— Quantas balas disseste que te restavam?

— Apenas duas. — Deslizou os olhos pelo horizonte, contando as figuras negras e esvoaçantes. Agora maiores do que pontos, as grandes asas visíveis a bater no ar. — Eu diria que são um bando de pelo menos quinze a voar na nossa direção.

— Então não podemos abrir caminho a tiro. Precisamos de encontrar abrigo. — Ben virou-se para a aldeia, os tambores tinham aumentado em fúria, martelando loucamente, tornando mais difícil pensar com clareza. Fitou a aldeia. Todas as aberturas das residências estavam agora fechadas com panos grossos. Os guardas nervosos, postados nas rampas, observavam-no de olhos semicerrados, apertando com força as lanças. Nenhum guarda se erguia entre ele e uma mão-cheia de aberturas ao nível do solo. Empurrou Ashley e acenou para as seis aberturas negras. — E se nos abrigássemos numa daquelas?

— Será que os guardas o vão permitir? Aquelas lanças não parecem muito convidativas.

— Repara que só estão a proteger as subidas. Aquelas residências — disse, movendo o braço de modo a abarcar as seis aberturas negras — estão descobertas e desprotegidas.

— Então é melhor arriscarmos. Olha!

Ben virou-se.

— Que raio é aquilo? — O bando aproximara-se o suficiente para permitir que se distinguissem alguns pormenores. Asas de pele curtida estendiam-se por vários metros, tinham bicos negros em forma de gancho e garras de ébano mais compridas do que o seu antebraço. E os olhos! Orbes negras e baças, que não pestanejavam, como as do grande tubarão branco.

— Um predador voador! Um descendente do pterodáctilo, talvez — disse Ashley, puxando-o pelo braço. — Vamos. Estão quase em cima de nós. Temos de nos abrigar.

Afastou os olhos do bando que se aproximava, agora a uns meros cinquenta metros de distância.

— Corre! — uivou, enquanto a empurrava para a frente. Os guardas não fizeram qualquer tentativa para os impedir.

Os tambores pararam subitamente, o frenético bater interrompeu-se, deixando atrás de si um pesado silêncio. Ben estugou o passo, lutando por acompanhar Ashley.

Atrás dele, ouviu um forte baque, seguido de muitos outros, como pedregulhos a cair ao chão. O bando aterrara com gritos a irromper de várias gargantas.

À frente, Ashley já quase chegara à primeira abertura, os outros cinco buracos negros estendiam-se ao longo da parede. De repente, Ben lembrou-se da mensagem dos tambores, quase como se as palavras ardessem em frente ao olho da sua mente: Só há uma saída! Voltou a estudar as seis aberturas. Seis! E só há uma saída! Reparou numa pequena gravura por cima da entrada para onde Ashley corria: um círculo com um triângulo no seu interior. Não era o símbolo correto. Caminho errado!

Acelerou e placou Ashley quando esta se tentou enfiar pela abertura. Rolou para o chão, batendo com o ombro, enquanto a protegia da queda.

Ashley lutou para se libertar.

— Que estás a fazer?

— Não há tempo! — Ben levantou-se, puxando-a consigo. — Segue-me.

— Ben! Atrás de ti!

Voltou-se, sacando da pistola, sabendo o que iria encontrar. A criatura erguia-se mais alta do que uma avestruz, mas, ao contrário desse pássaro de pescoço fino, este era só músculo e bico. Mergulhou sobre ele, apontando para baixo, tentando esventrá-lo com o seu bico em gancho.

Que diabo! Estava a ficar cansado de coisas que o tentavam comer. Disparou dois tiros para o crânio, o último quase à queima roupa.

— Põe-te a andar! — gritou, desviando-se, puxando Ashley para o lado.

Com Ashley a reboque, correu pela base do penhasco, procurando o símbolo correto. Atrás de si, a carcaça da besta foi atacada pelos outros. O sangue quente salpicou-lhe a parte de trás das pernas enquanto corria. Rezou para que o corpo lhes desse o tempo de que precisavam.

Continuou a sua busca. A abertura seguinte tinha uma linha contorcida com um círculo por cima, depois uma seta torta, em seguia um círculo dentro de outro círculo, como um donut. Errado, errado, errado! Correu para lá daquelas aberturas!

Depois viu-a! Gravada por cima do túnel seguinte estava uma estrela grosseira. Como uma explosão no seu cérebro, imaginou o avô na gruta dos seus sonhos, chamando-o para o interior de uma abertura com uma estrela idêntica. Aquela era a única saída!

Voou para lá, arrastando Ashley consigo. Ao tombar para o buraco, quase chocava contra uma figura que se erguia a poucos metros da abertura. Havia apenas luz suficiente para distinguir o desenho pintado no peito da figura apoiada no bordão. Vacilando, o velho ergueu uma mão minúscula e pousou-a no ombro de Ben. Grunhiu roucamente, mas as palavras eram compreensíveis: «És um de nós.»

Ashley libertou a mão da de Ben. Que se estaria a passar? Afastou-se quando o homem de idade acenou com o bordão para que saíssem da divisão. Usando o bordão como uma bengala, avançou entre eles até à beira da entrada. Acenou-lhes para que espreitassem.

— Ben? — Ashley dirigiu-lhe um olhar inquisitivo. Ele encolheu os ombros e juntou-se ao velho. Franzindo o sobrolho, Ashley avançou para junto deles, tendo de se agachar para conseguir ver melhor.

No exterior, o bando de pequenos predadores tinha acabado de canibalizar o companheiro morto, deixando espalhados pelo chão rochoso o sangue e os ossos. Um par de monstruosidades aladas tentava passar pelos guardas e subir a rampa até às habitações, mas as lanças cortantes mantinham-nos ao longe.

Um assobio fez-se ouvir à sua esquerda e das outras cinco aberturas avançou um pequeno cortejo de criaturas unguladas, que mugiam, empurradas por lanças empunhadas por outros elementos da tribo. As criaturas eram semelhantes em tamanho a um bezerro, mas mais parecidas com cavalos, com exceção das presas afiadas que se projetavam, curvas, de ambos os lados do focinho. Recuavam e batiam com as patas na pedra, o branco visível nos olhos que se reviravam de terror. Uma vez livres das lanças que os espetavam, dispersaram-se, correndo em todas as direções. Os seus movimentos captaram a atenção dos predadores, e as criaturas de bicos córneos lançaram-se sobre a manada de animais ungulados.

— Se tivéssemos escolhido um qualquer outro túnel que não este — murmurou-lhe Ben —, teríamos sido empurrados juntamente com aqueles animais para a morte. Era um teste.

Ashley começou a virar o rosto à carnificina, mas não antes de ver um pequeno animal afastar-se dos restantes e estacar ao vê-la, de olhos enlouquecidos, no exterior da caverna. Estremeceu ao ver um predador que se aproximava por trás, movendo o bico curvo para a frente, determinado a empalar a pequena criatura. O animal mugia suplicante, os olhos muito abertos de medo. Sem pensar, Ashley saiu a correr da caverna, agarrando o animal aterrorizado pela parte de trás do pescoço e arrastando-o para o interior.

— Nesse caso, este pequenino também receberá santuário — disse, arquejando e puxando o animal para uma zona mais profunda do túnel.

O velho virou-se para ela, de olhos muito abertos em sinal de choque. Com as costas viradas para a entrada, não viu o bico aberto que mergulhou na sua direção. O caçador ludibriado não ia desistir assim tão facilmente da sua presa.

Ashley abriu a boca para o avisar, erguendo um braço.

Mas, antes que conseguisse emitir um som, o velho, sem sequer olhar por cima do ombro, moveu para trás o seu bordão. O estalar deste contra o bico ecoou pelo túnel; havia uma força surpreendente naqueles braços magros e velhos. Continuando a olhar para ela, balbuciou para si mesmo e avançou, pousando-lhe a mão no ombro. O seu toque era quente sobre a t-shirt fina. Acenou-lhe e continuou a avançar pelo túnel, parando apenas para lhes fazer sinal de que o seguissem.

Um forte clangor irrompeu no exterior, como tachos e panelas a bater. Ben afastou-se da entrada e avançou para ela.

— Agora que se alimentaram, o ruído está a afugentar aqueles malditos.

— Como periquitos treinados — disse ela. Levantou-se e seguiu o velho; o pequeno animal avançou atrás dela, mugindo baixinho.

Ben fitou a criatura ungulada.

— Podias ter sido morta.

— Foi um impulso — disse, embaraçada. — Estava a pensar que, se não tivesses escolhido corretamente, seríamos nós a gritar por ajuda. Não consegui abandoná-lo à morte. — O animal chocou com ela, tocando-lhe na bota com o focinho enquanto andavam.

Ben envolveu-lhe os ombros com um braço e apertou.

— Acho que fizeste um amigo.

Ashley aninhou-se nos braços de Ben.

— O Jason sempre quis um animal de estimação.

Juntos avançaram pelo túnel escuro, iluminado apenas por manchas ocasionais de fungos brilhantes. Passados alguns minutos, ela disse:

— Já agora, como é que sabias qual era a abertura certa?

Ashley sentiu-o ficar tenso ao seu lado.

— Ash, vais pensar que estou doido.

— Depois desta viagem, acho que consigo acreditar em quase tudo. — Fitou as costas da criatura idosa que os conduzia para o coração da aldeia, uma criatura que falava inglês e cuja tribo era mais antiga do que o homem em vários milhões de anos. Sim, naquele momento, sentia-se com bastante abertura de espírito.

— Está bem. — Ben inspirou fundo. — Lembras-te de te ter dito que já tinha visto o desenho do velhote antes?

— Algo relacionado com um sonho com o teu avô.

— Certo, bem, nesse sonho, o meu avô conduziu-me para uma abertura com o mesmo símbolo gravado por cima da entrada. Disse-me que era seguro.

Ashley parou e fitou-o.

— Estás a falar a sério?

Ben riu debilmente, puxando-a para a frente.

— Estamos vivos, não estamos?

— Já alguma vez tinhas tido experiências de clarividência?

— Nem penses. Se tivesse, não estava metido neste sarilho. Estava a gozar o sol de Las Vegas, à espera do meu próximo espetáculo como Sr. Clarividente.

— Então, porquê agora?

Ben deu uma gargalhada nervosa, deslizando para a frente dela, enquanto seguiam o velho.

— Tenho uma ideia. Mas é bastante bizarra.

— Qual é?

— Estes sonhos com este lugar. Tenho-os tido desde que soube desta viagem. Tornaram-se mais claros e mais frequentes desde que chegámos.

— Então achas que tem algo a ver com a gruta.

— Não, com ele. — Apontou para as costas nuas do homem. — Acho que ele tem estado a comunicar comigo. Quando os tambores começaram a tocar há bocado, senti que estranhos pensamentos e palavras se intrometiam. Pareciam estranhas.

— Telepatia? — perguntou ela, considerando as implicações. — Mas porquê só tu?

Ben encolheu os ombros.

— Não sei. O meu sangue aborígene, talvez?

Ashley fitou os olhos azuis e o cabelo louro.

— Tendo em conta a tua aparência, esse sangue é muito rarefeito.

— Bem, deve ser suficiente.

— Porque achas que está relacionado com os teus antepassados?

— As imagens nos meus sonhos — disse, contando pelos dedos os argumentos. — Primeiro, o meu avô apareceu envergando as roupas tradicionais dos aborígenes. Depois, a recente recorrência do meu antigo pesadelo de infância na gruta. Até as palavras dos tambores: «prova o teu sangue». Tudo parece apontar para uma qualquer capacidade inerente ao meu sangue ancestral.

Ashley inspirou fundo. O bom senso e a lógica levavam-na a ridicularizar tal alegação. Tinha de ser banha da cobra. Ainda assim, Ben dera provas ao escolher a abertura certa. Lembrou-se de um colega cuja tese de doutoramento era sobre as tribos aborígenes.

— Há muito misticismo no folclore aborígene. Caminhos espirituais. Anciãos capazes de comunicar através de grandes distâncias, usando piscinas de sonhos. Esse tipo de coisas.

— Certo — disse Ben. — Eu sempre pensei que eram tretas. Um amigo aborígene com quem costumava praticar espeleologia jurava que tinha visto algumas coisas bastante esquisitas, mas nunca acreditei nele.

Distraída, Ashley afastou a pequena criatura ungulada para o lado, quando esta se tentou enfiar no meio das suas pernas. Esta baliu e meteu-se por uma passagem lateral.

— Qual é a ligação entre uma tribo nunca antes descoberta de marsupiais evoluídos na Antártida e os aborígenes na Austrália?

— O diabo se sei. Mas aquele desenho que descobriste nas habitações no penhasco da Caverna Alfa, a oval com o relâmpago a atravessá-la, faz-me pensar.

— Em quê?

— Lembras-te de te ter dito que já a tinha visto? Nas pinturas rupestres aborígenes.

Ashley acenou com a cabeça.

— Uma espécie de guias espirituais dos aborígenes.

— Certo, aqueles que, supostamente, ensinaram os primeiros aborígenes a caçar. Os mimi.

O velho olhou de relance para eles. Balbuciou qualquer coisa.

Gota trif’luca mimi’swee.

Ben e Ashley olharam um para o outro.

— Tu é que és telepático — disse Ashley. — Que disse ele?

Ben encolheu os ombros e abanou a cabeça.

O velho pareceu compreender a sua confusão e suspirou pesadamente. Apontou para o peito.

Mimi’swee. — Depois moveu o braço para abarcar toda a aldeia. — Mimi’swee.

— Continuo sem perceber — disse Ben.

Ashley ergueu uma mão.

— Mee… mee… swee — gaguejou, tentando imitar a pronúncia correta. Apontou com o dedo para o velho.

O seu velho pescoço moveu-se de cima para baixo; depois virou-se.

Ben olhou de relance para ela com uma pergunta nos olhos.

— Que foi?

Ashley sentia dificuldade em mover o maxilar. Aquilo era impossível.

— Ele estava a dizer-nos o nome da sua tribo. Os mimi’swee.

— E…?

Ashley revirou os olhos.

— Ben, a que soa esse nome?

Ele encolheu os ombros.

Mimi’swee. Os mimi — disse ela. — São a mesma coisa.

Os olhos de Ben abriram-se quando subitamente compreendeu. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, o túnel desembocou numa grande caverna iluminada por fungos nas paredes e no teto. Ashley fitou espantada as colunas que apoiavam o teto distante. Mas não foram as colunatas rochosas que lhe chamaram a atenção. Foram as plantas espessas que envolviam as colunas, das quais se projetavam ramos brancos carregados de um fruto vermelho e carnudo, que pendia como candeeiros japoneses.

— Raios — disse Ben atrás dela. — Aqui outra vez, não.

Ben hesitou antes de seguir Ashley e o velho guia até à câmara. Estudou o espaço, esperando ouvir as vozes dos fantasmas ou ver o avô mover-se entre as sombras. Mas, claro, nada disso aconteceu. Quando analisou mais de perto, as plantas com frutos eram a única semelhança entre aquela câmara e a gruta dos seus sonhos. As formações estavam erradas e as plantas não eram tão espessas nem tinham tantas folhas quanto no seu sonho. Inspirando fundo, seguiu as costas esguias de Ashley.

Ashley estacou, levando a mão a um dos frutos vermelhos.

— Acho que são uma espécie de cogumelo — disse, sem fôlego, acenando para as plantas. — Repara na falta de estrutura da folha. O sistema de raízes interligado. Como hifas. A Linda ia dar em doida se visse uma coisa destas.

— Por falar na Linda — disse Ben —, tudo isto é fascinante, mas temos amigos que dependem de nós.

— Eu sei, Ben. Eu sei. Não me esqueci. Talvez com à compreensão rudimentar da nossa linguagem, eles nos possam indicar uma saída daqui.

— Bem, vamos perguntar.

Ashley abanou a cabeça e continuou a avançar atrás do velho.

— Primeiro temos de ganhar a sua confiança. A tua proeza na fuga aos predadores ajudou, mas ainda parecem desconfiar de nós. Reservados. Temos de avançar com cautela ou ainda damos por nós a caminho do cadafalso.

Por aquela altura tinham chegado ao centro da câmara. Ali, o piso estava livre de colunas rochosas e das plantas bulbosas que nelas cresciam. Um fosso pouco profundo fora aberto no centro, com a profundidade aproximada de um palmo. Perto da inclinação, a pedra fora polida, adquirindo um brilho vítreo, e desenhos cor de sangue rodeavam o fosso central.

O velho apoiou-se no seu bordão no lado oposto.

— Meu Deus! Olha para o pormenor! — disse Ashley, saindo de junto de Ben para estudar um desenho mais de perto. Ajoelhou-se para ver melhor uma imagem de uma criatura a ser atacada por um grupo de guerreiros minúsculos. — Olha, a tinta vermelha tem a mesma cor daqueles frutos esquisitos. As cabaças são, provavelmente, uma espécie de tinta caseira.

— Excelente — disse Ben em tom sarcástico. — O covil de um artista qualquer.

— Não, acho que é um espaço religioso. As culturas primitivas atribuíam grande importância às imagens enterradas. Ídolos, estátuas, pinturas, esse tipo de coisas. Dá-me alguns minutos para as estudar. Talvez consiga aprender alguma coisa. — Ashley deslizou para o lado, de modo a examinar a pintura seguinte, sem se dar ao trabalho de olhar para ele.

Ben sentiu o olhar fixo de outros olhos, como no seu sonho, que lhe perfuravam a parte de trás do crânio. Virou-se.

O velho erguia-se do lado oposto, dirigindo apenas um rápido olhar de relance a Ashley antes de voltar a pousar nele os olhos cinzentos. O ancião acenou e sentou-se de pernas cruzadas no chão, o bordão equilibrado sobre os joelhos. Fez sinal a Ben para que o imitasse.

Baixando-se, Ben apercebeu-se, por fim, de quão cansadas estavam as suas pernas. Por aquela altura já devia ser tarde. Muito tarde. Com um suspiro sonoro, instalou-se no chão duro. Distendendo um nó nas costas, permitiu que o seu corpo se afundasse numa posição mais relaxada. Sonhou com uma grande garrafa de cerveja morna.

Erguendo os olhos de relance, apercebeu-se de que o velho o fitava sem emitir qualquer som, apenas aqueles intensos olhos cinzentos perscrutando-o. Parecia querer alguma coisa, mas o quê?

Ben sorriu-lhe, um dos seus «encantos» de marca, famoso por transformar um crocodilo num gatinho. Mas o ancião limitou-se a franzir o sobrolho, o olhar ainda expectante. Bem, que se lixasse, pensou Ben, deixando que as pálpebras se fechassem enquanto relaxava ainda mais. Tinha resolvido mistérios suficientes para um dia. Agora não queria senão encontrar um sítio para dormir. O seu queixo desceu lentamente até ao peito. Talvez uma sesta.

Deslizou para uma terra turva, apenas meio consciente dos pequenos sons que Ashley fazia ao avançar de desenho em desenho, ignorando os pequenos «ah» e «oh» das suas descobertas. Sabia tão bem libertar-se das pressões do dia, permitir que se afundassem na pedra. A sua respiração tornou-se mais profunda e um ligeiro saiu do seu nariz. Se ao menos pudesse…

— Ben! Benny, meu rapaz. Acorda, filho!

Os olhos de Ben abriram-se. Que raio? Ainda estava na mesma gruta, o anel de colunas e os frutos carnudos à sua volta. Mas, em vez da velha criatura, era o avô quem se sentava de pernas cruzadas do outro lado do fosso. O avô moveu a mão, cheia de manchas de idade, na sua direção. Ben olhou à volta. O local estava, em tudo o mais, vazio. Nem Ashley ali se encontrava. Esticou o pescoço, espreitando. É estranho, ainda a conseguia ouvir, afastando-se para a esquerda, até a ouvia balbuciar algo para si mesma, mas estava invisível.

— Benny, o que procuras?

— Onde estou?

O avô ergueu um dedo retorcido pela artrite e apontou para o seu crânio.

— Aqui dentro, meu rapaz.

Ben inspirou fundo, com o coração a bater mais depressa. Aquilo era uma loucura. O avô e a câmara começaram a desaparecer na escuridão.

— Uau. Então, rapaz. Tens de te acalmar. Não podes ficar tão enervado ou isto não vai funcionar.

Engolindo em seco, Ben começou a ter uma ideia do que se estava a passar. Concentrou-se em permitir que o seu corpo relaxasse, começando pelos dedos dos pés e subindo gradualmente. As imagens à sua volta intensificaram-se, ganhando nitidez.

— Assim mesmo, Benny. Assim está melhor.

Concentrou-se em respirar de forma constante e profunda enquanto falava.

— Não és o meu avô.

— Não, não sou. — O avô sorriu-lhe brevemente, depois a imagem diminuiu lentamente e redemoinhou, o sobrolho tornou-se mais carregado, os olhos afastaram-se mais; sobre os seus joelhos surgiu um bordão. O turbilhão cessou, assumindo a figura da velha criatura tolhida. — Esta, claro, é a minha verdadeira imagem. Chamo-me Mo’amba.

A voz do ancião era ainda como a do seu avô. Era desconcertante ouvi-la num rosto que lhe era tão estranho.

— Como? Porquê? — As perguntas agitavam-se na sua mente.

— Benny, nenhum de nós fala a língua do outro. Por isso falo-te na linguagem da mente. Os meus pensamentos são traduzidos pela tua mente em imagens e palavras que compreendes.

— Então roubou a memória do meu avô para se representar a si.

— Não fui eu. Foste tu. Foi a tua mente que recorreu à imagem do teu avô para representar os heri’huti.

Ben imaginou o rosto firme e sóbrio do avô.

— E que diabo é um heri’huti?

— Sou eu. És tu. Alguém com capacidade para estabelecer uma ligação no plano onírico. Para ver mais além, nos escuros caminhos do desconhecido.

— Mas porquê eu?

— Consigo ler a história do teu sangue. Um heri’huti forte desliza na tua linhagem desde o passado distante. Muito forte. Ainda não foste ensinado, mas com o tempo as tuas capacidades poderão suplantar as minhas. Isto é algo de que a minha aldeia necessita para sobreviver.

— Como assim, sobreviver?

— Sou o último do meu povo com esta capacidade — disse Mo’amba, a expressão subitamente infeliz. — Com o passar do tempo, fui vendo os outros heri’huti partir deste mundo e só eu fiquei. Agora, nem mesmo eu posso conduzir os caçadores para alimentarem o nosso povo e proteger as fronteiras dos crak’an. Os caçadores saem sozinhos. Às cegas. Sem a orientação de um heri’huti que veja para lá da curva seguinte, é muito perigoso, e já perdemos muitos caçadores. Todas as noites as viúvas choram. Não poderemos sobreviver muito mais tempo sem um novo heri’huti para guiar o nosso povo. — Apontou um dedo a Ben. — És tu quem procuro.

— Eu?

— Há muitos anos que chamo, tentando atrair outros como eu até à nossa aldeia. Mas tu foste o único a responder.

— Que raio, deve haver outros. Outros como… bem, como tu. Talvez outra aldeia partilhe os seus heri’huti com esta.

Mo’amba abanou a cabeça.

— Depois da Dispersão, as outras aldeias ficaram perdidas. Nos sonhos profundos, ouço por vezes sinais dos Perdidos, mas talvez sejam apenas sonhos esperançosos, mais do que sonhos verdadeiros.

— Ainda assim, não podes esperar que eu…

A forma de Mo’amba voltou a transformar-se na do avô, com rugas de raiva à volta dos olhos.

— O sangue corre verdadeiro! És um de nós!

Ben abriu a boca para objetar, quando a voz de Ashley se intrometeu subitamente:

— Ben, tens de ver isto!

Com as palavras dela, as imagens à sua volta dele desvaneceram-se, o rosto do avô foi engolido pela escuridão. Abriu os olhos e abanou a cabeça, limpando as persistentes teias de aranha do seu sonho.

Ashley fitava-o com uma sobrancelha erguida.

— Credo, como consegues dormir num momento destes?

— Como? — Atordoado, esfregou as fontes, um vago latejar ainda presente.

— Vem ver isto — disse Ashley, ignorando o que acabara de acontecer. Avançou alguns metros e ajoelhou-se junto de uma pintura, acenando para que ele se aproximasse.

Ben olhou de relance para o velho, do outro lado do espaço vazio. Continuava a fitá-lo.

Com um arrepio, Ben ergueu-se e deslizou para junto de Ashley, sem saber ao certo o que lhe dizer.

— Que descobriste, Ash?

— Olha para este petróglifo pintado. É um tríptico.

— Um trip… quê?

— Três imagens. Vê esta última. — Ashley agachou-se perante três círculos pintados a vermelho e apontou para o terceiro.

Ben ajoelhou-se mais perto, sem acreditar no que estava a ver. O terceiro círculo incluía um mapa rudimentar das massas terrestres do hemisfério sul.

— Meu Deus, é a Austrália.

— Eu sei. É grosseiro, mas bastante exato. Agora olha para os outros dois.

Ben estudou os outros dois círculos. O primeiro mostrava o continente australiano ainda ligado ao continente antártico através de uma larga ponte terrestre O segundo mostrava a mesma massa de terra enorme a afastar-se.

— Então e eles?

— É a ligação! Isto explica como os mimi da Austrália, pelo menos alguns deles, acabaram aqui.

— Continuo sem perceber.

Ashley suspirou como se já tivesse explicado adequadamente.

— Há vários milénios, pontes terrestres ligavam os diversos continentes. Com a movimentação das placas continentais e as alterações dramáticas nos níveis dos oceanos, as pontes terrestres surgiam e desapareciam com frequência. Algumas desapareciam em poucos meses. O registo fóssil também corrobora a existência de uma dessas pontes. Foram encontrados os restos fossilizados de muitas espécies de marsupiais extintos na Antártida.

Ben encolheu os ombros.

— Então, achas…?

— Sim! Olha para o primeiro mapa. — Apontou para a ligação entre os continentes. — Aquela é a ponte terrestre. A segunda imagem mostra a quebra da ponte. A terceira mostra como os continentes acabaram por ficar isolados.

— Mas como podem estas pessoas sabê-lo? Tê-lo mapeado?

Ashley sentou-se sobre os calcanhares.

— Claramente viveram-no. E mapearam-no, como os índios americanos com as linhas de costa. E através de uma história oral ou pictórica, mantiveram a recordação viva. — Apontou para a Austrália e a Antártida no terceiro mapa. — Outrora estiveram ligados. Depois algo levou estes povos a abandonar a Austrália, pelo menos parte deles. Ficaram presos aqui quando a ponte terrestre se afundou.

Ben estudou os desenhos, imaginando um povo obrigado a fugir para o continente gelado através de uma ponte terrestre. Pousou o dedo na Antártida. Duas tribos separadas.

— Meu Deus, a Dispersão — balbuciou. — Talvez fosse sobre isto que Mo’amba estava a falar.

— Quem? — perguntou Ashley, virando o nariz da imagem do meio.

— Ash, é melhor sentares-te para isto. — Ben fitou-a enquanto ela lhe dedicava toda a sua atenção, as sobrancelhas tensas e juntas. Mas enquanto explicava o que acabara de ocorrer entre ele e o velho, as sobrancelhas dela afastaram-se e subiram bem alto na sua testa.

— Quer dizer que ele consegue falar contigo! — exclamou quando ele terminou. — Eles usam uma qualquer forma de telepatia. — Olhou de relance na direção da criatura sentada de pernas cruzadas. — Ele está a ouvir-nos neste momento? A ler as nossas mentes?

— Não creio. Temos de estar ambos num estado de transe. Como os aborígenes fazem nas suas piscinas de sonhos quando comunicam.

— E ele é o último do seu povo com esta capacidade?

Ben acenou com a cabeça.

— Para além de mim.

A expressão de Ashley tornou-se pensativa.

— Do ponto de vista da genética populacional, a perda deste traço entre a tribo faz sentido. Esta comunidade está isolada há milhares de gerações. A consanguinidade neste grupo fechado, sem a infusão de matéria-prima genética nova, enfraqueceria a complexa cadeia de genes que cria esta capacidade, acabando por destruí-la. — Voltou-se para ele com os olhos muito abertos e inexpressivos. — Podia passar uma vida só a estudar o efeito deste traço sobre a população. Iria virar o campo da antropologia de cabeça para o ar. Quer dizer…

Ben ergueu uma mão.

— Ash, isso é tudo muito bonito, mas ainda precisamos de sair daqui. Ou, pelo menos, encontrar Michaelson e os outros.

O rosto de Ashley ficou sério com aquelas palavras.

— Tens razão — disse, acenando com a cabeça. — Há tempo mais do que suficiente para iniciar uma investigação depois de regressarmos à Base Alfa. — Apontou para a figura sentada. — Perguntaste a Mo’amba como sair daqui?

— Não. E não me parece que ele vá ser muito cooperante. Quer que eu fique. Que ocupe o seu lugar na tribo.

— Isso poderá ser um problema. — Ashley começou a bater com a ponta do dedo no queixo. — Há algo que não faz sentido. Se és tão diabolicamente importante para a tribo, por que razão te querem matar?

— Não sei.

— Aparentemente nem todos partilham o ponto de vista de Mo’amba. Aquele jovem com o bordão de rubi que talvez seja o líder da aldeia não queria ver-nos por perto, isso é certo. Talvez pudéssemos…

Uma súbita confusão irrompeu atrás deles. Ben virou-se e viu uma figura familiar a coxear na sua direção por entre as colunas cobertas. Um pequeno grupo de criaturas armadas seguiam-no, com as lanças a bater nas cabaças vermelhas e a fazê-las balançar.

Ashley levantou-se de um salto.

— É o Michaelson!

Os olhos de Ben deslizaram pela legião de espadas que seguia o major. Estudou o número de guerreiros armados. Ainda que a maioria segurasse as lanças casualmente, sobre os ombros, alguns mantinham as mãos desconfiadas nas facas embainhadas.

Avançando para Michaelson, Ben deu-lhe uma palmada no ombro. Apercebeu-se das manchas de sangue no seu rosto.

— Que aconteceu? — perguntou. — Parece que passaste um mau bocado.

Ashley juntou-se a eles, com uma expressão preocupada no rosto enquanto procurava ferimentos.

Michaelson evitou os seus olhos com uma expressão envergonhada.

— Não é nada. A maior parte do sangue nem sequer é meu. Além disso, não é importante. Escutem, não temos muito tempo.

A multidão de guerreiros agitou-se atrás deles. Michaelson olhou de relance para trás. Uma figura alta, envergando uma farda militar, usava os cotovelos para abrir caminho entre os guerreiros. Quando avançou para Michaelson, Ben reconheceu a semelhança de família. O mesmo cabelo negro e olhos azuis. O mesmo nariz aquilino.

— O meu irmão, Harry — declarou Michaelson.

— Só podes estar a brincar — disse Ashley. — Encontraste-o.

— Na realidade, foi ele que me encontrou. Tem estado a viver com estes… estas criaturas nos últimos três meses.

Ben reparou que os olhos de Harry vagueavam pelo corpo de Ashley com uma expressão apreciativa.

— Disseste-lhes? — perguntou Harry ao irmão.

— Não. Estava prestes a fazê-lo.

Acenando com a cabeça, Harry virou-se para Ben e Ashley.

— Desculpem. Pensei que eram todos refugiados.

— Como assim? — perguntou Ben.

Harry engoliu em seco.

— Pensei que já soubessem. Ou teria tentado alcançar-vos mais cedo.

— O quê? — perguntou Ashley em tom nervoso, tentando que Harry dissesse de uma vez o que estava a evitar.

Michaelson pigarreou.

— A Base Alfa. Foi destruída.

Ashley estacou, a boca entreaberta numa pergunta por fazer, depois virou-se lentamente para Ben, o medo a brilhar-lhe nos olhos.

— Não pode ser — sussurrou. — Então e o Jason?

Ben tomou-a nos braços, apertando-a contra si.

— Chiu — sussurrou. — Estou certo de que ao primeiro sinal de problemas, Blakely o levou para longe do perigo.

As palavras dele pareceram acalmá-la, dando-lhe uma âncora à qual prender as suas esperanças. O seu tremor abrandou, depois parou. Libertou-se dos braços dele, o maxilar numa expressão feroz.

— Temos de ir lá acima. Preciso de saber o que aconteceu.

Ben conseguia ouvir as lágrimas logo atrás das palavras.

— Eu sei. Partiremos imediatamente.

Harry avançou.

— Escutem, não podemos simplesmente… — Saltou quando um estalido se fez ouvir atrás deles.

Ben virou-se e viu o chefe da aldeia a avançar na direção deles. Bateu uma vez mais com o seu novo bordão no chão fazendo um som ensurdecedor na câmara.

— Uh, oh — disse Ben, num sussurro. — Parece que alguém está muito chateado.

Mo’amba esforçou-se por se erguer perante o súbito aparecimento do líder da aldeia, apoiando-se no seu bordão. Avançou com dificuldade para intervir. Foram trocadas palavras acaloradas entre eles. O rosto do chefe passou de vermelho a negro enquanto discutiam. Por fim, numa explosão de grunhidos, o chefe varreu o chão com o seu bordão, retirando o bordão de Mo’amba de debaixo dele. Sem esse apoio, o velho caiu.

Um arquejo ergueu-se entre os guerreiros que rodeavam o grupo, vários viraram as costas. O chefe fitou os outros cautelosamente, o peito a subir e a descer. Por fim, pareceu acalmar-se um pouco e ajudou Mo’amba a levantar-se. Foram então trocadas palavras mais calmas, seguidas por um momento de silêncio confrangedor, enquanto se fitavam mutuamente. O chefe rosnou, bateu com o bordão no chão rematando o assunto, e afastou-se com passos pesados.

Michaelson virou-se para Harry.

— Conseguiste perceber alguma coisa?

Harry acenou com a cabeça, o rosto privado de cor.

— Problemas.