CAPÍTULO 26

Ashley puxou a manga de Harry, apercebendo-se de quão parecido este era com o major Michaelson, em especial quando exibia uma expressão firme. Como agora, os mesmos lábios cerrados, a mesma ruga profunda entre as sobrancelhas.

— Sobre que raio estão a discutir? — perguntou.

Mo’amba já tinha seguido o chefe para o exterior da câmara, apoiando-se pesadamente no seu bordão. Uma boa parte dos guerreiros tinha igualmente desaparecido em diferentes direções. Ashley olhou de relance à sua volta. Um pequeno grupo de elementos da tribo, empunhando lanças, continuava à sua volta, as expressões desconfiadas.

— Em que tipo de problemas nos metemos agora? — perguntou, virando de novo a atenção para Harry.

Este fitou os guardas por entre as pálpebras semicerradas, depois falou:

— Problemas é uma palavra demasiado fraca. Decidiram que vocês dois terão de morrer, na mesma.

Os olhos de Ashley abriram-se mais.

— Mas porquê? E quanto a ti e ao Michaelson?

— Fomos adotados pela seita dos guerreiros. O grupo tem um código de honra rigoroso, chamam-lhe il’jann. Nem mesmo os anciãos se atrevem a contrariá-lo. Vocês os dois, por outro lado, são estrangeiros. Bodes expiatórios.

Ashley olhou de relance para Ben. Devia sentir-se aterrorizada perante a possibilidade de perder a vida, mas era o destino do filho que mais lhe apertava o peito e tornava difícil a respiração. Não podia morrer… não enquanto não soubesse que Jason estava em segurança.

Ben não parava de olhar para os guerreiros nus à sua volta, mas Ashley conseguiu captar-lhe a atenção. Ele estendeu a mão e apertou-lhe o braço.

— Eu sei, eu sei — disse, como se lhe lesse a mente. — Vamos conseguir escapar e encontraremos o Jason.

Ashley inspirou fundo e virou-se para Harry.

— Então e Mo’amba?

Harry abanou a cabeça.

— O líder, Bo’rada, convenceu o resto da tribo a ficar contra vocês. Mas têm de dar os parabéns ao velhote, o Mo’amba conseguiu uma audiência perante o conselho, antes de levar a cabo a sentença, mas foi por pouco. Está marcada para amanhã de manhã.

Ben avançou.

— E se tentássemos fugir esta noite?

Abanando a cabeça, Harry suspirou.

— Não irão conseguir. Há demasiadas armadilhas e bestas por aqui. Mesmo que conseguissem escapar ilesos, estes pequenos conhecem bem este território. Cortar-vos-iam a garganta antes mesmo de os ouvirem chegar.

Ben esfregou as fontes.

— Bem, para o diabo se acham que vão ficar com a minha cabeça sem luta. Eu…

Ashley interrompeu-o.

— Harry, ser-nos-á dada oportunidade para falar nesta audiência do conselho?

— Suponho que sim.

— Podes traduzir por mim?

— Sim, claro. Pode ser um pouco rude, mas darei o meu melhor.

— Ótimo. Têm estado a agir com hostilidade em relação a nós, mas pelo que vi nos petróglifos parecem ser, normalmente, uma sociedade protetora. Comunal. Todos partilham, os fracos e doentes são apoiados, quase como uma grande família.

— Eles acolheram-me como um dos seus — concordou Harry.

Ashley acenou com a cabeça.

— Houve algo que os abalou e deixou enervados. Se conseguirmos descobrir o que foi, talvez possamos salvar o couro.

— E se não conseguirmos? — murmurou Ben.

A voz de Ashley tornou-se gelada.

— Nesse caso, lutamos.

Um gongo soou subitamente algures nas profundezas da aldeia, quase fazendo vibrar a rocha que a compunha. Como se tivessem sido chamados, os guardas armados empurraram o grupo através de um labirinto de túneis até uma câmara grande. Ben e Ashley foram conduzidos para o seu interior, e vários guardas colocaram-se junto à porta, garantindo que não voltavam a sair.

Harry falou com ela da porta.

— O Dennis e eu temos de passar a noite no covil dos guerreiros, mas assegurar-me-ei de que estou aqui logo pela manhã. Talvez possamos meter algum bom senso nas suas cabeças.

— Assegura-te de que vens — disse Ben. — Nunca fui muito bom com charadas.

Ashley observou os irmãos a saírem. Depois virou-se para analisar a divisão. Espalhadas pela câmara estavam almofadas com um metro de largura, sobre as quais repousavam cobertores dobrados, cada um deles num padrão de tecelagem e cor diferente. Nos cantos da sala, bacias de pedra com água cobriam o chão.

— Suponho que seja a nossa cela — disse Ben, tocando numa das almofadas com um pé.

Ashley acenou com a cabeça, os braços cruzados sobre o peito. Depois de toda a emoção daquele dia, sentia-se entorpecida.

Ben envolveu-a com o braço.

— Vamos ficar bem — disse, as palavras pronunciadas tão baixo e ditas com tal lentidão que ela ergueu para ele os olhos, como se esperasse encontrar outra pessoa que não Ben de pé ao seu lado. Onde estava a sua bravata habitual? Ben apertou-lhe o ombro e deixou-se ficar em silêncio, apoiando-a.

— Estou tão preocupada com o Jason — disse ela, aninhando-se nos braços dele. — O facto de não saber é uma agonia. Será que está bem? E se…

Ben encostou um dedo aos lábios dela.

— Chiu. O teu rapaz está bem. — Uma vez mais as palavras dele eram tão firmes e simples que se descobriu a acreditar nelas. Ashley fitou os sérios olhos azuis dele, não mais os olhos sorridentes de um bobo. Teria sido tão simples perder-se nele, deixar que aqueles ombros largos transportassem os seus fardos e preocupações durante algum tempo. Confiar nele.

Velhas feridas emocionais tentaram objetar com veemência, levando-a a abrir a boca para discutir. Mas, antes que conseguisse pronunciar uma palavra, Ben inclinou-se sobre ela e substituiu o dedo que lhe tocava ainda nos lábios pela sua própria boca, os lábios dele pressionando com firmeza, recusando permitir que ela desse voz às suas desconfianças. Apenas um pequeno gemido lhe escapou.

Depois os lábios dele deslizaram pela garganta dela, o rosto coberto de pequenos pelos, tocando-lhe nas maçãs do rosto enquanto procurava o ponto sensível na base do pescoço. Perdendo-se na força suave do abraço de Ben, Ashley inclinou a cabeça para trás, oferecendo ainda mais do seu pescoço.

Por um momento, ele parou, erguendo os olhos para fitar os dela, o rosto enrubescido pela paixão. Ashley sabia que aquela era a sua última oportunidade. Podia pará-lo agora, diziam os seus olhos. Por um momento assustador, gelou, temendo entregar-se a ele tão completamente, abrir-se uma vez mais à possibilidade da dor e do abandono.

Parecendo pressentir aquele receio, ele puxou-a ao de leve para trás, o fogo nos seus olhos diminuindo numa preocupação quente. Nunca tinha encontrado um homem tão apaixonado… e, ao mesmo tempo, tão compassivo. Observou a sua própria mão erguer-se e mergulhar no espesso cabelo dele. Puxou-o para si, como uma mulher que se afoga, esforçando-se por chegar à superfície.

Enlaçada nos braços dele, permitiu-se ser erguida e, suavemente, deitada no chão coberto de almofadas.

Ben fitava o teto rochoso, o sono continuava a iludi-lo. Ashley estava enroscada ao seu lado, um braço sobre o seu peito, uma perna sobre a sua barriga. Enquanto se agitava num qualquer sonho, os seus pequenos movimentos despertaram um calor crescente. Teve de resistir a rolar sobre ela e procurar, uma vez mais, explorar a profundidade da paixão de ambos. Sabia que ela precisava de dormir. O dia seguinte reservava-lhes muitos desafios. Ainda assim… não conseguiu resistir a estender a mão e deslizar um dedo pela curva do seu seio direito. Ashley gemeu suavemente no seu sono.

Precisamente quando se virou para depositar um beijo suave na sua têmpora, a escuridão deslizou sobre ele, de súbito, como um pesado cobertor. Deixou-se cair na escuridão, para longe da luz e de Ashley.

Depois uma voz sobressaltou-o:

— Já não era sem tempo, Benny, meu rapaz!

A escuridão tomou a forma do avô sentado de pernas cruzadas, numa almofada a um metro de distância. Resmungando, Ben sentou-se. Enquanto tentava concentrar-se no avô, a figura transformou-se na imagem de Mo’amba.

O velho acenou-lhe.

— Estou à espera há imenso tempo que ouças o meu chamamento.

Limpando a garganta, Ben baixou os olhos para a sua figura nua, o corpo alardeando ainda a sua paixão. Cobriu-se com as mãos.

— Tenho estado ocupado.

Mo’amba pigarreou.

— Acho que três vezes são mais do que suficientes. É tempo de falarmos.

Ben puxou um cobertor para cima do colo.

— Tens razão. Tenho muitas perguntas para ti. Como por que diabo é que o vosso líder quer as nossas cabeças?

— Ele e a aldeia estão assustados. Morreram muitos. Os crak’an aumentaram as incursões no nosso território, aniquilando manadas inteiras dos animais que nos servem de alimento, surpreendendo as nossas sentinelas ao irromperem nas profundezas do nosso território, matando muitas delas.

— E o que temos nós a ver com isso?

— Ao longo de gerações, o nosso povo e os crak’an têm lutado. Depois da Dispersão do nosso povo, ficaram aqui presos connosco. Quando procurámos abrigo aqui, no submundo, para lhes escapar e ao frio, seguiram-nos cá para baixo. A determinada altura, um grande cataclismo fechou o acesso ao mundo superior, encurralando-nos juntos aqui em baixo.

— Como sobreviveram?

— Adaptámo-nos. Enquanto vocês concebiam máquinas e utensílios de ferro para ajudar na vossa vida, nós concebíamos ferramentas vivas: plantas e animais para nos ajudar. Ao longo da história aprendemos a escolher os aspetos de ambos que melhor se adequam às nossas necessidades e depois a propagá-los. Aprendemos a criar alimento. — Apontou para as paredes. — Até a cultivar a luz que nos guia. Adaptámo-nos. Mas os crak’an, não. Têm caçado na periferia, vivendo dos restos do nosso trabalho. Mas não me entendas mal, são astutos. Estão constantemente a testar as nossas defesas, tentando encontrar uma falha que os traga até nós.

— Com toda a vossa inteligência porque não realizaram um esforço concertado e os arrasaram? Acabaram com eles?

Mo’amba abanou a cabeça.

— Não podemos. Tal como eles precisam de nós para sobreviver, nós precisamos deles. As suas fezes contêm uma substância de que necessitamos para cultivar o nosso alimento. Sem ele, as plantas morreriam. E depois nós morreríamos. Chegamos a levar os nossos animais leiteiros já velhos, que já não produzem, para o território dos crak’an para os alimentar.

— Vocês alimentam aqueles monstros? Não é de admirar que sejam tantos.

— Necessitamos de manter o seu número elevado para que produzam fezes suficientes. O principal objetivo dos nossos caçadores é recolherem fezes e trazerem-nas para aqui.

— Coletores de merda — disse Ben. — Que negação da imagem do nobre caçador.

— Eles são nobres. Arriscam muito para se aventurarem no reino do crak’an. Em especial agora, sem a ajuda da visão de um heri’huti. — O velho fitou-o com um olhar carregado de significado.

— Não vamos a falar desse assunto — disse Ben, temendo que Mo’amba voltasse a exigir que ele ficasse e ajudasse a sua aldeia, uma aldeia que, naquele momento, o queria morto. — Bem, ainda não me disse por que razão paira sobre as nossas cabeças esta sentença de morte.

— Estava quase a chegar lá. Sabes, há gerações que afinamos as nossas ferramentas para manter os crak’an sob controlo, longe do centro das nossas vidas. Uma das nossas principais defesas é o tin’ai’fori. Este…

Ben acenou com a mão.

— Espere um segundo. Que é isso?

Mo’amba cerrou os lábios pensativos, semicerrando os olhos.

— Não tens uma palavra para ele. — Estendeu o braço para trás e raspou uma amostra do fungo brilhante da parede. — É um tipo especial disto. Mas mata. Rodeámos a câmara central com um espesso perímetro de tin’ai’fori. Protege a nossa aldeia.

— Então como é que esses monstros… hum, os crak’an, são agora capazes de passar e atacar-vos?

— A resposta é um segredo conhecido apenas pela seita dos guerreiros e pelos líderes. — Mo’amba pigarreou, a voz ligeiramente mais baixa, como se alguém os pudesse ouvir. — O tin’ai’fori está a morrer. Lentamente, os limites das nossas defesas foram enegrecendo e morrendo, enfraquecendo a barreira entre nós e os crak’an. Com o tempo, esta barreira irá cair.

Ben imaginou bandos de animais a varrer o vale abrigado. Embora aquelas pessoas o tivessem condenado à morte, não deixava de estremecer perante a perspetiva de uma tal carnificina.

— Então, o que tem tudo isso a ver connosco?

— O tin’ai’fori começou a morrer pouco depois da chegada do teu povo.

— O quê! Como?

— Não sei. Eu e alguns dos guerreiros acreditamos que é um sinal. Um sinal de que é tempo para regressarmos ao mundo superior, mas muitos outros acreditam que vocês são demónios determinados a destruir-nos.

— E suponho que o teu chefe seja um dos que acreditam nisso?

Mo’amba acenou com a cabeça.

— Tal como a maioria dos outros.

— Então como é que o vamos convencer do contrário? Suponho que a palavra de um demónio não tenha para ele grande significado.

— Não, não terá. Por isso, amanhã tens de seguir o meu exemplo. O teu companheiro, Harry, irá ajudar. Sem que ele saiba, tenho estado a ensinar-lhe os rudimentos da nossa língua enquanto dorme. Tenho-o ajudado a aprender a nossa linguagem. Ouve-o.

— Mas o que está a planear?

A figura de Mo’amba desvaneceu-se, ao mesmo tempo que o contacto era quebrado, uma mão erguida em sinal de despedida.

Amanhã.