CAPÍTULO 27
Na manhã seguinte, Ashley percorria a divisão para trás e para a frente, debatendo-se com a informação que Ben recebera de Mo’amba, o seu único aliado entre aquelas pessoas. Como podiam combater a superstição? Como tantos missionários que foram mortos pelos nativos supersticiosos nos recantos perdidos do mundo, deu por si a perguntar-se como poderia aquilo estar a acontecer.
Ben avançou e abraçou-a por trás, pousando o queixo ao lado do dela.
— Vais abrir um rasto no chão se continuares assim — disse.
Ashley suspirou. Ele tinha razão; não havia nada que pudesse fazer agora senão esperar. A sua mente agitou-se com outra preocupação.
— Ouve, em relação à noite passada.
— Hum? — Ben apertou-a ainda mais contra si.
— Eu estava… bem, quer dizer… só porque nós… não estou à espera de que devas… tu sabes… foi só um momento.
— Ouve, minha senhora, não tentes escapar disto. Não sou nenhum caso de uma noite. Achas que me podes usar e deitar fora?
Ashley sorriu levemente e afastou-se do abraço dele, subitamente desconfortável com a intimidade. Estaria ele a ser tão sincero quanto parecia? Quantos outros homens tinham jurado um compromisso perpétuo apenas para fugir da sua cama e desaparecer na noite? E o ex-marido? Scott jurara devoção e amor com a mesma sinceridade e veja-se no que resultara. Pousou a mão na barriga, recordando a dor e a perda.
Afastou-se de Ben, tentando ignorar os seus olhos feridos.
— Temos de fazer um plano. Para o caso de não conseguirmos convencê-los pelo diálogo. O Michaelson ainda tem a mochila das armas. Devíamos…
Uma confusão na entrada para a câmara interrompeu-a. Contorcendo-se, viu Harry abrir caminho por entre os guardas. Michaelson coxeava atrás dele, usando uma das lanças como bengala improvisada. Ashley suspirou secretamente de alívio perante a interrupção, feliz por ter outros por perto para diluir a intimidade do espaço.
Pigarreou.
— Então, Harry, ouviste alguma coisa?
Este acenou afirmativamente com a cabeça.
— Passei a noite toda acordado a recolher informação junto de alguns dos elementos mais faladores. Eles têm uma espécie de zurrapa feita de um tipo de bolor… sabe a pasta de dentes quente. Mas raios, uma bebedeira é uma bebedeira.
— Continua — insistiu Ben, rudemente. — Não temos a porcaria do dia todo.
Ashley olhou de relance para ele. Não era normal Ben falar daquela maneira com as pessoas.
Harry pestanejou algumas vezes, obviamente cansado ou talvez um pouco zonzo.
— De qualquer maneira, esta pequena libação soltou algumas línguas. Parece que todos acham que vocês estão a matar os seus preciosos fungos.
Ashley acenou com a cabeça.
— Já sabemos tudo sobre isso.
As sobrancelhas de Harry ergueram-se.
— Como raio…?
— Esquece isso, agora. Que ouviste acerca do encontro do conselho? Ser-nos-á dada oportunidade para nos defendermos?
Harry olhou para ela, inquisitivamente.
— Corre o rumor de que Mo’amba irá defender o vosso caso. Embora já seja velho, é alguém que muitos não querem irritar. Por isso poderemos ter uma oportunidade do tamanho de uma ervilha de os dissuadir.
— Continuamos a precisar de um plano de apoio. — Ashley olhou para Michaelson apercebendo-se de que este levava a sua pistola no coldre. — Como estamos de armamento?
Michaelson bateu no coldre.
— Isto, uma AK-47 de canos cortados e a espingarda desmontável que deixei no quarto do Harry.
— Quais são as nossas hipóteses de sairmos daqui a tiro?
— Eu não apostaria um níquel furado. Já vi a câmara do conselho. Fica nas profundezas da aldeia. Duvido que chegássemos ao exterior. E, mesmo que conseguíssemos, ainda teríamos de encontrar o caminho para cima.
Ashley franziu o sobrolho.
— Nesse caso, é melhor que consigamos ser terrivelmente persuasivos.
Algures, ao longe, os tambores começaram a bater numa cadência lenta. Os guardas agitaram-se junto à porta. Um deles vociferou uma ordem.
Harry virou-se para ela.
— Está na hora do espetáculo.
A primeira coisa em que Ashley reparou na sala do conselho foi no chão. A pedra fora polida até brilhar, refletindo parte do brilho dos fungos no teto. Quase parecia escorregadio, como gelo negro. O piso inclinava-se até um pequeno fosso com a forma de uma bacia no centro da câmara. Posicionados em círculo em redor da câmara, como guardas, estavam pilares de pedras, polidos até alcançarem a mesma suavidade sedosa. Cordas de fungos, algumas delas brilhando vermelhas, outras verdes, desciam em círculos e espirais pelos pilares em padrões delicados. Desenhos semelhantes em linhas fosforescentes marcavam as paredes.
Oito almofadas fofas, cada uma de sua cor, rodeavam o fosso central. Ashley ergueu uma sobrancelha perante a depressão entalhada. Era a única área não polida de toda a câmara, parecendo ter sido grosseiramente cortada na rocha. A sua mente, embora estivesse num turbilhão com os receios por Jason e a ansiedade em relação a si mesma e a Ben, continuava a ser a de um antropólogo. Estava constantemente a pensar sobre os muitos mistérios daquelas pessoas. Como qual seria o significado cultural daqueles fossos? Quase todas as câmaras, mesmo as da Base Alfa, tinham um daqueles fossos cavados. Considerara-os, inicialmente, meros fossos para lareira, mas depois de ter visto como viviam aquelas pessoas, já não acreditava nisso. Ainda não vira qualquer lareira flamejante. Com as muitas nascentes borbulhantes, o calor vulcânico e a escassez de madeira, não compreendia a necessidade natural de tantas lareiras. Por isso, que raio seriam?
Uma mão, de um dos guardas, empurrou-a pelas costas. Ashley cambaleou para o interior da câmara.
Ben tocou-lhe.
— Parece que somos os primeiros a chegar.
Ashley desviou-se para o lado, de modo a permitir a entrada de Harry. Michaelson, com o seu tornozelo ferido, fizera um desvio até ao enclave dos caçadores para ir buscar as armas e as preparar. A pistola do major enterrava-se-lhe na zona lombar, onde a prendera no cinto, escondida pela t-shirt que caía larga. Para o caso de as coisas correrem mal e terem de usar a arma para chegar à zona dos caçadores e juntar-se a Michaelson… e ao arsenal deste.
Um dos elementos da tribo entrou por outra porta, transportando um bordão de ametista. Os seus seios pendulares indicavam que era uma fêmea e pela dimensão da barriga, muito provavelmente grávida. Avançou para se ajoelhar numa das almofadas, com os guardas junto dela, um de cada lado. Ignorou Ashley e o seu grupo, evitando o contacto visual, enquanto se sentava na almofada.
Contudo, reconheceu com um pequeno aceno a criatura que entrou na câmara em seguida. Era difícil olhar para ele: faltava-lhe uma mão, uma cicatriz irregular marcava-lhe o rosto, repuxando um pedaço de pele, semelhante ao da barriga dos peixes, sobre o olho. A perna esquerda arrastava-se ligeiramente, enquanto avançava para uma almofada roxa e se deixava cair com um forte suspiro.
Harry agitou-se junto de Ashley.
— Este é Tru’gula. É o líder do clã dos guerreiros. Pode parecer uma desgraça, mas é astuto.
As palavras de Harry, ainda que não fossem mais do que um sussurro ao ouvido dela, aparentemente chegaram a Tru’gula. Este dirigiu-lhes um olhar severo de sobrolho carregado. Harry afastou-se de Ashley, permanecendo em silêncio enquanto a procissão de figuras portadoras de bastão foi avançando até às almofadas vazias. Em breve, eram muitos os guardas armados que se alinhavam ao longo das paredes à sua volta. Ashley mudou de posição, tentando pôr a arma escondida num lugar onde não a incomodasse. Pese embora se enterrasse nas suas costas, sentia alguma segurança na sua pressão.
Mo’amba passou perto de Ashley, cambaleando em direção à sua almofada de xadrez vermelho e amarelo. Também ele ignorou a sua presença.
O último a chegar foi o líder da aldeia. Bo’rada. Harry disse-lhe que Bo’rada era o filho do último chefe. Tinha recebido a honra de os liderar por respeito ao seu falecido pai. A maioria dos anciãos tolerava-o, mas não era respeitado. Demasiado volátil, demasiado rápido a tomar decisões. O conselho gostava de pensar as suas decisões, por vezes demorando anos a decidir, mesmo no que dizia respeito às questões mais simples. O jovem chefe, com a sua inquietação e acessos de raiva súbitos, era um embaraço para os membros mais velhos.
Ainda assim, tinha os seus seguidores. Harry apontou para um membro da tribo excecionalmente magro, cujos olhos e ouvidos não paravam de dardejar em todas as direções. As suas mãos estavam constantemente a puxar pela almofada que tinha debaixo de si, como se se esforçasse por encontrar uma posição confortável para o seu traseiro magro.
— Sin’jari — disse Harry. — Um untuoso sicofanta de Bo’rada. Tenham cuidado com ele. É tão traiçoeiro como nervoso.
— Pelo seu aspeto, dir-se-ia que um vento mais forte o poderia partir ao meio — disse Ben.
— Não subestimem o sacana. Foi ele quem convenceu o líder de que deviam ser mortos. É um tipo adulador. Sabe como usar o medo das pessoas. Deixá-las num frenesi.
O líder bateu com o bordão três vezes no chão, depois sentou-se.
Harry colocou-se entre Ben e Ashley, traduzindo à medida que se iniciava a reunião.
Ashley pensara que o seu destino seria o primeiro ponto na agenda, mas estava muitíssimo enganada. O primeiro ponto da agenda parecia ser a colheita dos campos. Uma demorada disputa pareceu centrar-se no momento de a iniciar, se agora ou depois de permitirem aos animais ungulados mais um mês de pasto. Depois de muito debaterem, altura em que Mo’amba pareceu dormitar, optaram pela colheita imediata.
Ashley endireitou-se, na expectativa de que o seu destino fosse debatido em seguida. Estava enganada. O único membro feminino do conselho, Jus’siri, levantou-se em seguida, auxiliada por um dos guardas devido à preponderância da sua barriga de grávida.
Ashley mudou o peso sobre os pés. Então e agora? Aquela espera interminável começava a afetá-la. Até Ben começava a resmungar.
Observou enquanto Jus’siri avançava até ao pequeno fosso no centro da câmara. Os restantes anciãos rodeavam, muitos sorrindo de prazer.
Ashley ficou de queixo caído com o que aconteceu a seguir.
Ben fez uma careta.
— Isso é nojento.
Jus’siri introduziu as mãos na sua bolsa abdominal. As duas mãos desapareceram na sua prega. Com alguma tensão no rosto, mas com os olhos a brilhar de orgulho, retirou da barriga um ovo de manchas castanhas, mais ou menos do tamanho de um ovo de avestruz. Ergueu-o, a barriga pendendo agora vazia. Os outros anciãos começaram a bater com os bordões e a dar vivas. Jus’siri colocou em seguida o ovo com cuidado no pequeno fosso — que não era um fosso, percebeu Ashley por fim, mas um ninho! A mãe orgulhosa recuou.
— Meu Deus — balbuciou Ashley, chocada. — Eles também são monotrématos.
— O quê? — perguntou Ben, os lábios ainda revirados num esgar de nojo.
— Eu e a Linda debatemos a questão. Monotrématos. Como os crak’an. Mamíferos que põem ovos. Considerados uma ligação evolutiva entre os répteis e os mamíferos, partilhando traços de ambos: põem ovos como os répteis, mas têm com pelo e produzem leite como os mamíferos. Devia tratar-se de um beco sem saída evolutivo.
— Parece que este grupo fez um desvio — disse Ben.
Ashley virou-se para Harry.
— Que estão a fazer?
— É uma cerimónia da escolha do nome. Jus’siri está a oferecer o seu filho à tribo.
Ashley observou Mo’amba a erguer-se com esforço da almofada e a avançar até ao ovo. Ajoelhando-se, pousou as duas mãos suavemente no ovo.
— Que está ele a fazer? — perguntou Ashley.
A pergunta era dirigida a Harry, mas foi Ben quem respondeu.
— Está a ler o ovo e a criança no seu interior.
Ashley ergueu uma sobrancelha na direção de Ben, mas este limitou-se a abanar a cabeça, como se ele próprio não estivesse certo de como sabia tal coisa.
Mo’amba ergueu a cabeça para a mãe, continuando a segurar o ovo.
Sorrindo, balbuciou-lhe qualquer coisa.
— É saudável — traduziu Harry.
Depois Mo’amba saltou subitamente para trás, quase fazendo o ovo cair acidentalmente do ninho.
Ben saltou ao seu lado.
— Eu também o senti — disse. — Como um bebé a dar pontapés.
— Sentiste o quê? — perguntou Ashley.
Ben limitou-se a abanar outra vez a cabeça.
Ashley observou Mo’amba a pousar de novo as mãos no ovo, com uma ternura ainda maior, as mãos a tremer devido a mais do que a sua provecta idade. Voltou-se uma vez mais para Jus’siri, que tinha agora uma expressão preocupada no rosto. Com lágrimas nos olhos, Mo’amba falou-lhe.
A multidão irrompeu em vivas, com os bordões a baterem no chão, rejubilantes.
Ashley virou-se para Harry, impaciente por receber a tradução.
— Então?
Uma vez mais, foi Ben a responder:
— A criança é heri’huti. Tem o traço que lhe permite ver e falar com a mente. — Virou-se para Ashley, maravilhado. — Eu senti, de facto, a criança a mexer.
Mo’amba levantou-se, a sua alegria de tal modo forte que nem precisou de usar o seu cajado. Bateu com o bordão para acalmar a multidão. Quando o alarido deu lugar a um burburinho, voltou a falar, pontuando a sua afirmação ao bater duas vezes com o bordão.
— Chamo a esta criança Tu’shama, Aquele que Vê o Futuro.
A multidão gritou de entusiasmo, o nome Tu’shama entoado por muitas gargantas.
— Pelo menos, — disse Ben —, estarão de bom humor quando chegar o momento de decidirem o nosso destino.
Ashley acenou com a cabeça.
— Espero que não se limitem a adiar a decisão. Não quero perder outro dia.
Como se o homem com as cicatrizes Tru’gula tivesse compreendido as suas palavras, bateu com o bordão para que lhe dessem atenção e propôs que a decisão sobre o futuro de Ashley e Ben fosse adiada. Em resposta muitas cabeças acenaram, incluindo a de Bo’rada.
Depois o esquelético Sin’jari bateu com o bordão para que o ouvissem. Com Harry a traduzir, as palavras dele deixaram-nos gelados.
— É, sem dúvida, um momento de alegria, mas não podemos esquecer que a alegria é acompanhada de tristeza. Quantas viúvas choram agora?
As palavras deixaram os presentes mais sérios.
— Aqui se erguem os demónios que pretendem destruir-nos. — Apontou um dedo comprido com nós fortes na direção deles. — Desde que chegaram e conspurcaram o nosso mundo, que começámos a morrer. Tentámos tornar-nos seus amigos — prosseguiu, acenando com a cabeça em direção a Harry —, mas continuamos a morrer. Acho que mais é mais do que um mero acaso que, quando por fim decidimos destruir os demónios, um novo heri’huti apareça de súbito. Eu digo que é um sinal dos deuses. Um sinal de que temos de expulsar os demónios do nosso mundo. Sem demora!
Várias cabeças acenavam o seu acordo com as palavras de Sin’jari.
Ashley levou a mão atrás das costas e enterrou a pistola ainda mais no cinto, prendendo-a. Começou a analisar os obstáculos que a separavam da porta.
Mo’amba bateu com o bordão para chamar a atenção.
Os movimentos nervosos de Ben aquietaram-se quando viu que Mo’amba ia falar em sua defesa. Estendeu o braço e apertou a mão de Ashley.
— Ele fá-los-á ver a razão — disse.
Mo’amba esperou que o ruído se desvanecesse antes de falar. Os olhos de Sin’jari piscaram, e as mãos apertaram o bordão, claramente preocupado. Mas quando Mo’amba começou a falar, o seu sorriso acentuou-se cada vez mais no rosto descarnado de Sin’jari, revelando demasiados dentes.
Harry traduziu:
— O Sin’jari tem razão ao afirmar que muitas das nossas barreiras protetoras caíram. Que muitos elementos do nosso povo pereceram. Tenho pensado muito sobre esta questão, passei muitas horas a rezar e a procurar a orientação dos nossos antepassados. E cheguei apenas a uma resposta. — Apontou com o bordão na direção de Ben e Ashley. — Sin’jari tem razão. Eles são os culpados!