CAPÍTULO 31

Linda gatinhou pelo espaço entre o pedregulho e o chão, demasiado cansada, sequer, para reconhecer a sua persistente inquietação claustrofóbica num espaço tão apertado. Os quilómetros de pedra por cima dela eram, naquele momento, menos preocupantes do que os olhos a arder e os músculos doridos.

Aquele era o segundo dia, desde que fora capturada por Khalid e o ritmo que este estabelecera era extenuante: pausas para descansar mínimas, sem pausa para almoço, nada mais que um parco pequeno-almoço e um jantar frio de barras de ração. Restava-lhes, a ela e a Jason, acompanhar o ritmo. Khalid avisara-a de que não iria parar e esperar que ela o alcançasse. Se queria que introduzisse o código no cinto de explosivos de Jason a cada duas horas, era melhor que o acompanhasse. Como tal, o dia foi passado a tentar acompanhar Khalid.

Com um último puxão, Linda passou o pedregulho e ergueu-se, respirando pesadamente. O túnel era mais largo ali. Por aquela altura, o fumo sufocante tinha começado, a transformar-se numa pequena irritação, o que lhe permitia respirar com mais facilidade. No entanto, era esta contínua dispersão do fumo que impelia o ritmo frenético de Khalid. Se o fumo se dissipasse por completo antes de conseguirem percorrer o caminho até à base, ficariam verdadeiramente perdidos.

Havia mais uma razão para correr contra o fumo. Até ali, nem um predador bloqueara a sua ascensão. Linda dera voz à sua opinião de que o fumo acre estava, provavelmente, a atuar como repelente. Khalid limitara-se a acenar com a cabeça perante a avaliação dela e, com uma expressão estranhamente preocupada, estabelecera um ritmo ainda mais veloz.

Quando Lisa esticou as costas e ajeitou o lenço sobre o nariz, a luz do seu capacete dispersou a escuridão à sua frente. Khalid tinha parado vários metros mais abaixo, no túnel, inclinado sobre algo no chão. Continuava a agarrar o braço de Jason. Que era agora?

Jason virou-se para ela.

— Vem ver.

Esgueirando-se ao lado de Jason, viu o que atraíra Khalid. Uma lata metálica com cerca de meio metro de altura erguia-se no centro do túnel; dela saíam grossos cabos que se perdiam na escuridão. Um disco de rede metálica, como um recetor de satélite em miniatura, encimava a lata.

— Que é? — perguntou.

— É um daqueles rádios especiais do doutor… do doutor Blakely. — Jason gaguejou ao pronunciar o nome do falecido. — Os cabos devem conduzir-nos de volta à base.

— Então é isso — disse Linda. — Conseguimos.

Khalid continuou pelo túnel, seguindo os cabos.

Jason agarrou na mão dela.

— Vamos.

A mente de Linda corria, enquanto os seus pés se arrastavam. Estavam quase lá, mas ainda longe de encontrar um lugar seguro. Que mais teria Khalid reservado para si e para Jason? Quase não dissera uma palavra durante os dois dias de viagem, apenas um ronco aqui ou uma ordem seca ali. Que estaria ele a planear?

— Linda — disse Jason ao seu lado —, acho que ele não me vai libertar.

A bióloga apertou-lhe a mão.

— Vai, Jason. Quando já não fores preciso como refém, ele irá libertar-te.

O rapaz ficou em silêncio por um momento, depois falou:

— Quando alcançarmos a base, quando lá chegarmos… — A sua voz perdeu-se.

— Que foi, Jason?

— Se vires uma oportunidade para fugir, usa-a. Deixa-me para trás.

Linda parou, fazendo-o estacar.

— Não te vou deixar com ele. Havemos de descobrir uma saída desta confusão.

— Ele vai matar-me de qualquer maneira. Consigo percebê-lo.

— Jason… querido, não vou deixar…

— Está nos seus olhos — disse ele, interrompendo-a. — Ele olha… olha para mim como se eu não estivesse lá de verdade. Como se já estivesse morto.

Linda ajoelhou-se e tomou o rosto dele nas mãos.

— Prometo-te. Vamos conseguir ultrapassar isto. Juntos.

Jason abanou a cabeça, libertando-se das mãos dela.

— Ele vai deixar-me morrer. — Em seguida virou-se e seguiu pelo túnel.

Linda observou as costas pequenas de Jason a desaparecerem numa cuva. O tanas, pensou. Erguendo-se, seguiu-o, determinada a impedir aquele animal de magoar Jason. Alcançou o rapaz e passou um braço em redor dos seus ombros. Ambos permaneceram em silêncio enquanto avançavam através do túnel, seguindo o cabo serpenteante e as costas de Khalid.

Depois de uma caminhada de trinta minutos, o túnel parecia iluminar-se à sua volta. Jason ergueu os olhos para ela. Linda desligou a luz do capacete, já não precisando da iluminação. Quando dobraram uma esquina do túnel, viram lâmpadas presas às paredes.

Ainda estavam acesas! Isso significava que os geradores se encontravam ativos. De acordo com o relato de Jason, calculara que a base devia ter sido destruída e mergulhada na escuridão. Talvez houvesse uma possibilidade de que a base já tivesse sido recuperada. Talvez os reforços já tivessem chegado.

Enquanto percorria o túnel iluminado, ia vendo Khalid mais à frente. Este parara na boca do túnel.

— A Base Alfa — disse sem olhar para trás.

Apressou-se a alcançá-lo, sustendo a respiração, esperançosa. Olhou de relance e o seu coração afundou-se. O túnel desembocava na parede oeste da caverna, num ponto ligeiramente erguido. A Caverna Alfa estendia-se em baixo, com a base a um mero quilómetro de distância.

Ou o que restava da base. O local estava em ruínas. As luzes ainda tremeluziam aqui e ali, mas quase todos os postes tinham caído. Todos os edifícios ainda de pé tinham marcas de incêndios ou explosões, e vários focos vermelhos fumegantes sugeriam que ainda havia alguns fogos ativos. Uma neblina de nuvens escuras pairava sobre a base, como se tentasse mascarar os danos. Mas mesmo dali era possível ver corpos, que se assemelhavam a bonecas de trapos atiradas em todas as direções, nas vielas vazias, entre os edifícios caídos. Mas, pior de tudo, nada, absolutamente nada, se mexia. A base estava morta.

Linda tentou impedir que Jason visse, mas este libertou-se e fitou em silêncio a carnificina mais abaixo.

— O elevador ainda está intacto — disse Khalid. — Podemos prosseguir.

Jason puxou pelo braço de Linda. Esta baixou os olhos para ele, de relance, arrancando-os à devastação. A criança erguera a t-shirt e apontava para o monitor LED no cinto. O número trinta brilhava agora no painel. Trinta minutos até o plástico explodir.

Linda acenou com a cabeça.

— Khalid, está na hora de reiniciar o cronómetro de Jason.

Khalid olhou de relance para ela, os olhos gelados.

— Mais tarde.

Linda olhou para Jason. Este limitou-se a devolver-lhe o olhar com resignação.

Fechando a retaguarda atrás do ruidoso trenó de transporte, tudo o que Ben conseguia ver era o traseiro peludo do caçador mimi’swee no skate seguinte.

O caçador nu dava pelo nome de Nob’cobi. Harry tinha apresentado o minúsculo guerreiro como irmão de sangue de Dennis. O caçador insistira em acompanhar o grupo, dado que Dennis não podia ir. Nob’cobi perderia uma boa quantidade de pontos il’jann se lhe fosse negado um lugar no grupo. Era uma obrigação dos irmãos de sangue.

Ainda assim, tendo em conta a maneira como Nob’cobi agarrava o skate e tremia com cada salto do trenó de transporte, provavelmente desejava, com ou sem il’jann, ter ficado para trás. Os outros dois caçadores à sua frente não pareciam estar a sair-se melhor.

Ben estendeu a mão e tocou na perna de Nob’cobi num gesto de conforto. Contudo, o seu toque fez o caçador guinchar de pânico e quase perder o controlo.

— Calma, rapaz — gritou por cima do ruído do motor. Tentava parecer tão calmo quanto possível, algo difícil quando se está a gritar. — Estás a sair-te bem. Só mais um bocadinho.

Ben olhou de relance para o relógio. Estavam a viajar há quase uma hora. Se tivesse estimado corretamente a sua velocidade, faltavam mais três horas. Deviam chegar ao cimo pelo meio-dia. Não estava mau.

Ben pousou a testa no braço, fechando os olhos, deixando que o movimento embalador e o roncar persistente do motor o adormecessem. Se ao menos os caçadores mimi’swee conseguissem relaxar… Pensou em Nob’cobi. O pobre desgraçado tinha sido arrastado para aquela operação brutal.

Sem sequer abrir os olhos, Ben conseguia imaginar o caçador a agarrar-se à tábua como um homem prestes a afogar-se. O Nob’cobi que imaginou virou-se para ele e falou:

— Consigo ir igualmente depressa sozinho. Isto… isto é… uma loucura.

— Bem, nós não conseguimos — pensou em resposta. — Não temos um formato compacto como vocês.

— Odeio isto!

— Oh, para de te lamentar — pensou Ben.

De súbito, os olhos de Nob’cobi abriram-se tanto que pareciam quase inteiramente brancos.

— És mesmo um heri’huti.

Uma outra voz intrometeu-se de súbito na conversa. Uma voz familiar.

— Muito bem, Benny, meu rapaz. Estás a aprender. — A voz de Mo’amba desvaneceu-se.

— Espera… o que…? — Ben abriu os olhos e viu Nob’cobi a olhar para trás, na sua direção, de olhos muito aberto.

Heri’huti — disse, depois virou-se para a frente.

Ben considerou as implicações. Tinha conseguido. Tal como Mo’amba o havia contactado, ele contactara Nob’cobi. Até a sua cabeça latejava com a dor familiar de uma conversa mental. Mas como teria conseguido fazer aquilo tão facilmente? Nunca fora capaz de fazer algo assim.

A voz sem corpo de Mo’amba voltou a falar com ele.

— Os caçadores estão habituados às sugestões dos heri’huti. As suas mentes são treinadas para aceitar o nosso contacto. As do teu povo não estão. — A voz de Mo’amba desvaneceu-se de novo.

Que diabo, pensou Ben. Já bastava daquela treta. Aquela treta da manipulação mental ao estilo Vulcano não o ia ajudar a recuperar a estátua do cofre de Blakely.

Nesse preciso instante, o ritmo do trenó mudou outra vez. Harry estava a abrandar.

— Que se passa? — gritou.

Harry respondeu:

— Estamos a chegar a meio.

Ben olhou para o relógio. Tinha passado mais uma hora.

— Porque paramos?

— O motor precisa de arrefecer. Está a escaldar. Construí este pequeno para ser veloz, não para transportar carga. É como puxar um camião de carga com um carro de corrida.

De súbito, o comboio deixou o wormhole e entrou numa câmara do tamanho de uma garagem para dois carros. Na parede oposta abria-se um segundo wormhole.

— Que é isto? — perguntou Ben, rolando para fora da sua prancha. Resmungou enquanto se libertava, retirando a mochila das costas.

Harry erguia-se a poucos metros de distância, movendo o pescoço para trás e para a frente.

— Mo’amba disse-me que havia um local de descanso a meio caminho para viajantes religiosos. Pensei que seria um bom ponto para esticar as pernas, esvaziar os nossos lagartos e deixar arrefecer o motor.

Nob’cobi e os outros dois caçadores já estavam a descer das pranchas e mantinham-se tão longe do comboio de plástico quando possível. Os três estavam mergulhados numa conversa animada. Os gestos que realizavam na direção da engenhoca, mesmo sem tradução, eram claramente desagradáveis.

Ben avançou para Harry.

— Como está o nível de combustível?

— Está ótimo. Para de te preocupar.

— Quanto tempo até o motor arrefecer?

Harry encolheu os ombros.

— Não sei. Meia hora. Uma hora.

Ben acenou com a cabeça, mas as suas mãos não paravam de se abrir e fechar. Percorria o espaço exíguo. Desde que estivessem em movimento, não era muito mau. Aquela paragem era agonizante.

— Relaxa! — acabou por dizer Harry. — Estamos a avançar a bom ritmo. E ainda te queixavas tu por eu estar com uma pressa dos diabos.

— Eu sei, eu sei. — Ben procurou algo que o distraísse, mas a câmara era um espaço monótono e uniforme. Fitou o trio de caçadores.

— De que falam eles?

— Acima de tudo, queixam-se. — Harry retirou uma faca de diamante de uma bainha de couro presa à cintura e começou a tirar a sujidade das unhas. — Também estão a contar histórias populares acerca do grande êxodo das suas moradas originais, mais acima, para a aldeia onde vivem agora.

— Sim, porque partiram?

— Pelo que consigo perceber, houve uma espécie de terramoto e a caverna ficou inundada. Muitos deles morreram. Parece que há um local sagrado mais acima que Nob’cobi quer visitar. Algo acerca dos guerreiros antigos que morreram numa grande inundação. As suas cabeças estão enterradas em pedras transparentes. Não compreendo essa parte.

— Eu acho que percebo. — Ben imaginou a câmara das pérolas que a sua equipa descobrira com os crânios embutidos no centro.

Harry olhou para Ben como se este fosse louco.

— Sim, como queiras. De qualquer maneira, depois de terem partido, os crak’an apoderaram-se da caverna. Os sacanas usam-na como uma espécie de local de acasalamento. Ao que parece, há vários grupos destas criaturas. Uma vez a cada década, convergem para a grande caverna e procuram companheiro.

— Algo me diz que este foi o décimo ano. — Ben tentou imaginar bandos daqueles monstros sanguinários, carregados de agressividade territorial e sexual. A Base Alfa nunca tivera a menor hipótese.

Harry acenou, com o rosto ensombrado.

— É melhor ir ver o trenó.

Por fim, depois de ter trabalhado no motor durante vinte minutos agonizantes, Harry fez-lhe um sinal de polegar erguido. Depois de muita hesitação, o grupo de mimi’swee trepou para as suas pranchas e partiram.

O que restava da viagem não teve nada merecedor de registo. Nem demoras, nem problemas. Ainda assim, pareceu uma eternidade. Durante a viagem, Ben verificou o relógio pelo menos sessenta vezes.

Por fim, Harry desligou o motor.

— Fim da linha, malta.

Um dos caçadores trepou por cima de Harry para alcançar a porta de pedra mais à frente. Mexeu em algo do lado direito da porta e a parede de rocha abriu-se para a câmara da ohna. Harry seguiu o caçador até à pequena gruta, puxando o comboio atrás de si.

Uma vez na câmara, Ben rolou de cima da sua prancha e avançou agachado até à entrada. Avaliou rapidamente o espaço, esperando encontrar manadas de animais a acasalar. Mas não havia lá nada, apenas o lago calmo a lamber suavemente a margem rochosa por baixo deles.

Olhou de relance para o outro lado da caverna. A quilómetros de distância, conseguia ver as luzes que tremeluziam no acampamento distante. A Base Alfa. A partir dali parecia bem, mas, quando olhou com mais atenção, percebeu que não havia luzes suficientes. A base estava parcialmente apagada.

O ar, outrora tão limpo, fazia-lhe agora arder as narinas. Fedia a fumo queimado e a combustível, cheirava a problemas.