CAPÍTULO 33

Linda apercebeu-se de duas coisas enquanto se agachava na latrina parcialmente destruída. Primeiro, que seria impossível que ela e Khalid pudessem colocar todas as cargas explosivas antes de o tempo de Jason acabar. Restando-lhe apenas vinte minutos, ainda tinha mais três cargas para colocar. Segundo, chegara à conclusão de que Khalid nunca tencionara libertar Jason.

Fitou a figura fria de Khalid enquanto este espreitava pela porta partida do edifício. O fedor a desinfetante de pinho era carregado no espaço exíguo. Desde o início dos tiros que ele não fizera qualquer tentativa para acabar de colocar as cargas; em vez disso, procurara o abrigo mais próximo e decidira manter-se discreto.

Ela deslizou para junto de Khalid.

— O cronómetro de Jason está a chegar ao fim.

Ele acenou com a cabeça.

— Eu sei, mas o combate está entre nós e o rapaz. Uma pequena bolsa de resistência, claramente, sobreviveu ao ataque inicial. E preferia evitar o que quer que seja que esteja na mira dos seus tiros.

Certo, sacana. Uma desculpa conveniente. O idiota nunca tinha pensado voltar atrás para ir buscar Jason. Por aquela altura, já se tinha apercebido do padrão nas cargas de Khalid. Estava a avançar em torno do campo, colocando cargas na base das colunas maiores que iam do chão ao teto. Pretendia destruir a maior parte delas e fazer abater o teto. Fazer abater o vulcão sobre as grutas.

Também se apercebeu de que o seu caminho era sinuoso, terminando perto do elevador. Pretendia, claramente, acabar de colocar as cargas e depois saltar para o elevador e escapar. Deixando Jason como bomba humana.

Claro que os tiros tinham prejudicado os seus planos cuidadosamente delineados.

De súbito, um rugido de raiva irrompeu do outro lado da base. Uma daquelas criaturas. Parecia irritada. Apercebeu-se de que Khalid estremecia a cada rugido. Estas coisas pareciam gerar nele mais do que simples medo. Mesmo naquele momento, balbuciou algo em arábico. Parecia uma oração.

Embora gostasse de ver o frio Khalid finalmente abalado, esse medo deixara-o paralisado, temendo abandonar aquele esconderijo. E o tempo estava a chegar ao fim.

— Temos de continuar — disse Linda com firmeza. Khalid virou-se para ela, os olhos escuros. Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, ela prosseguiu: — Os tiros vêm nesta direção, Khalid. Ouve. — Apontou para a porta. — Quem quer que seja o alvo dos tiros está a vir para aqui. Nesta direção.

Ele apertou os punhos, não de raiva, mas de medo e frustração.

— Temos de continuar a avançar. — O medo quebrava a sua voz normalmente firme.

— Então vamos!

Um estalido ecoou pelo desfiladeiro quando Tiny Tim soltou a ponte de corda. Enquanto mergulhava, Ben, segurou com mais força a corda. Rezou para que Nob’cobi tivesse prendido com segurança a outra ponta. Estremecendo, observou a parede oposta aproximar-se dele. Aquilo ia doer, mas tinha de continuar agarrado. Se a colisão lhe arrancasse a corda das mãos, não seria mais do que uma mancha ensanguentada no fundo do desfiladeiro.

Virou-se para receber o grosso do choque nas pernas, mas de pouco serviu. Quando bateu, sentiu-se como se tivesse saltado de um prédio de dez andares. A anca esquerda bateu contra a parede, quase o cegando de dor, mas ele ignorou-a, concentrando-se apenas numa coisa — continuar a agarrar a corda, obrigando os dez dedos a apertá-la com força. Fez ricochete contra a parede e voltou. Desta feita, as pernas sustiveram a maior parte do impacto e parou, pendurado quinze metros abaixo da beira do penhasco.

Do outro lado do fosso, Tiny Tim rugia de raiva. Andava para trás e para a frente junto à ponte danificada, procurando uma maneira de atravessar.

Ben estremeceu face aos penetrantes gritos de raiva.

— Cala-te! — gritou-lhe.

Tiny Tim ficou tenso com a sua explosão e agachou-se do outro lado do desfiladeiro. Ben sabia que a criatura o conseguia ver. Por um momento, pensou que o crak’an poderia saltar num gesto suicida, mas em vez disso silvou uma última vez e correu na direção do labirinto de edifícios. Boa viagem.

Suspirando de alívio, Ben ficou pendurado, a descansar. Conseguia sentir o sangue a correr pelas pernas das calças, ao mesmo tempo que se agarrava à corda. Precisava de subir antes de ficar ainda mais fraco.

Prendendo uma perna à corda, arriscou-se a libertar uma mão para atar a corda ao arnês de rappel à volta da sua cintura. Com uma ligeiríssima rede de segurança, subiu de forma mais constante até ao cimo do desfiladeiro.

Uma vez ali, Nob’cobi ajudou-o a içar-se para terreno plano. Ben rolou, ficando de costas sobre o solo duro, a respiração áspera. O caçador tocou com um dedo na perna das calças ensopadas em sangue. Disse algo numa linguagem gutural e a sua voz soou preocupada.

— É só um corte. Sobreviverei. — Levantou-se. — Já agora, amigo, obrigado pelo salvamento. Eu tinha a certeza de que ia ser paparoca de monstro.

Nob’cobi ergueu uma sobrancelha numa expressão confusa.

— Oh, esquece. — Ben tentou levantar-se, mas a sua anca ferida protestou. Não estava partida, mas doía como o diabo. Saltitando, afastou-se do desfiladeiro. — Vamos. Ainda temos de chegar ao cofre.

Nob’cobi seguiu-o, mas, passados alguns metros, agarrou no braço de Ben e apontou para as gotas de sangue que pingava enquanto ele andava.

— Eu disse-te que não era nada. Blakely tem um kit de primeiros socorros no gabinete. — Ben virou-se para continuar, mas o pequeno caçador persistiu, puxando-o para trás. Recorrendo à mímica, fingiu cheirar o rasto ensanguentado, depois emitiu com bastante exatidão o rosnar rouco de um crak’an.

— Achas que estou a deixar um rasto? — Ben olhou para a fiada de gotas. — Tens razão. Acho que seria melhor se não deixássemos um convite tão óbvio.

Ben tirou as calças ensanguentadas e torceu-as. Só de calções, examinou a ferida. Um corte irregular na parte de cima da coxa. Ia deixar uma cicatriz feia, mas nada mais. Franzindo o sobrolho, usou as últimas gotas do seu cantil para lavar a ferida, depois prendeu um lenço em volta da coxa para estancar o fluxo de sangue.

— Pronto — disse Ben, enfiando de novo as calças. — Satisfeito?

O caçador tinha de novo uma expressão de tédio estampada no rosto, aparentemente satisfeito.

— Ótimo. Vamos. — Ben avançou à frente, deslizando de sombra em sombra. Já estava farto daqueles malditos crak’an e não queria dar de caras com qualquer outro.

O caminho estava livre. Passados cinco minutos, estava à porta do gabinete de Blakely. A porta de vidro para o gabinete da administração tinha sido destruída, mas de resto o edifício de betão estava intacto. Avançando de forma hesitante através da entrada, tendo cuidado com os vidros, Ben entrou na área da receção. Algo grande tinha destruído a divisão. Uma espessa substância amarela que tresandava a amoníaco cobria as paredes.

— Parece que um maldito gato de rua veio marcar território — murmurou Ben, enquanto examinava o que restava da secretária e dos ficheiros. Abrindo caminho por entre os destroços, chegou à porta de metal incólume que dava acesso aos gabinetes. Tentou a maçaneta. Trancada.

— Maldição! — Deu um murro na porta, magoando o punho. Tentou girar a maçaneta.

Uma voz chamou-o do outro lado da porta:

— Olá! Está aí alguém?

Deus do céu, alguém estava vivo! Bateu à porta.

— Abra. É o Ben Brust da equipa de exploradores.

Uma pausa, depois debilmente:

— É seguro?

— Por enquanto. Agora abra.

Ouviu o ferrolho a ser corrido. A porta abriu-se. Uma mulher pequena e loura de cabelo desgrenhado erguia-se à sua frente. O fato elegante em farrapos sobre o corpo magro.

— Sandy? — Ben reconheceu a secretária de Blakely. — Está bem?

Ela correu para o abraçar.

— Graças a Deus que está aqui!

Nob’cobi avançou para junto de Ben e balbuciou algo, apontando para a porta.

Sandy fitou o pequeno caçador nu, de olhos muito abertos, os dedos cravados no braço de Ben. Soltou um pequeno gemido e recuou.

Ben acenou a Nob’cobi para que saísse de modo a não a assustar mais. Empurrou Sandy para o corredor na direção do gabinete de Blakely.

Uma vez lá dentro, avançou para o cofre onde Blakely guardava a estátua de diamante, o ídolo ohna dos mimi’swee. Não sabia a combinação, mas havia explosivos e detonadores suficientes na base para que não fosse difícil abri-lo. Harry sabia onde estava esse equipamento e como usá-lo. Mas onde estava Harry?

Sandy aninhou-se num sofá.

— O que… que é aquela… criatura?

— É um amigo. Um dos habitantes das habitações dos penhascos.

— Como… quer dizer… quando…?

Sentou-se ao lado dela.

— É uma longa história, mas confie em mim, é um amigo. Não a magoará.

Sandy envolveu o peito com os seus próprios braços e estremeceu.

— Porque ficou para trás? — perguntou Ben. — Porque não foi evacuada com os outros?

Ela fitou-o como se ele fosse louco.

— Não houve evacuação. Atacaram repentinamente. Não houve tempo. Estão todos mortos.

— O quê? Mas e os reforços vindos lá de cima? Já passaram quatro dias!

— Perdemos a capacidade de comunicar por rádio quase de imediato. No dia a seguir ao ataque, ouvi o motor do elevador e decidi correr o risco e correr para ver. — O seu rosto empalideceu enquanto relatava a história. — O elevador estava cheio de soldados. Mas eles não sabiam. — Virou-se para Ben, os olhos repletos de lágrimas. — Eles não sabiam. O ruído atraiu as criaturas. Dezenas delas. Quando o elevador se abriu, os homens foram atacados, feitos em pedaços. — Pôs o rosto entre as mãos. — Desde esse momento, mais ninguém tentou descer.

Ben acenou com a cabeça.

— Sendo McMurdo no fim do mundo, não é de admirar. Provavelmente precisarão de uma semana para lançar um ataque em grande escala. Até lá, estamos por nossa conta.

Os soluços de Sandy aumentaram.

Ben tocou-lhe na mão.

— Esperaremos até lá.

Com o rosto lavado em lágrimas, ela prosseguiu:

— Fugiram todos. Fiquei completamente só. Não pude fazer nada.

— Então e o Blakely?

Ela abanou a cabeça.

— A última vez que o vi, estava a fugir daqui com aquele rapaz, o Jason.

O coração de Ben saltou um batimento.

— Sabe se chegaram a um lugar seguro?

— Não sei o que aconteceu. Fechei-me aqui dentro. Mas os gritos… os gritos prolongaram-se por vários dias. Depois nada. Absolutamente nada. Isso foi o pior. O silêncio. — Ergueu os olhos para ele, tremendo. — Pensei que era a única sobrevivente.

— Bem, não é. — Levantou-se. Que raio havia de dizer a Ashley? Começou a andar para trás e para a frente e olhou de relance para o relógio. Tinham passado catorze horas. Ainda tinha de explodir o cofre e regressar à aldeia dos mimi’swee. Isso não lhe dava tempo para uma busca minuciosa da base, com tantas daquelas criaturas por perto. Parou à frente do cofre e cerrou os punhos. Onde raio estava Harry? Virou-se para Sandy. — Suponho que não saiba qual é a combinação do cofre de Blakely?

Ela acenou com a cabeça e disse-lha.

Por fim, talvez a sua sorte estivesse a mudar. Rodou o disco como ela lhe indicou e abriu a pesada porta. Por um momento, não pensou que lá estivesse, até ter percebido que a estátua fora embrulhada em papel pardo e cordel. Pegou nela e rasgou o papel, segurando-a contra a luz filtrada. Ben deslizou um dedo pela barriga proeminente da estátua. Esperava que ela lhe trouxesse sorte.

Nesse preciso momento, Nob’cobi entrou a correr, com uma expressão de pânico estampada no rosto.

Ben soube que tinha ficado de novo sem sorte.

Lágrimas de frustração corriam pelo rosto de Jason. Continuava a não conseguir acreditar. Primeiro pensou que tinha imaginado, mas o sotaque era claro. Ben! Tinha-o ouvido a falar com alguém, seguido de um estrondo. A pouca distância! Não conseguia distinguir as palavras, mas só podia ser Ben. Jason tentou chamá-lo, mas a mordaça abafava o som, não deixando escapar senão um suave gemido que mal chegava aos seus próprios ouvidos.

Por fim, ouviu uma porta fechar-se, seguida de silêncio. Esforçou-se por ouvir qualquer indicação de que Ben ainda estivesse por perto. Nada, devia ter entrado no edifício.

Jason lutou com as cordas. Se ao menos pudesse libertar uma mão e arrancar a mordaça. Tinha de encontrar uma forma de chamar Ben quando este saísse do edifício. Se falhasse… Olhou de relance para o ecrã LED no cinto. O número onze brilhava no ecrã e, enquanto olhava, transformou-se num dez.

Precisava de ajuda… depressa. Lutou com as cordas uma vez mais, mas era inútil. Deixou-se cair sobre si mesmo. Precisava de outro plano.

Preso ao pilar, ocorreu-lhe de súbito outra ideia. Talvez…

Moveu as ancas. Se conseguisse levar a mão esquerda ao bolso do casaco… Fechou os olhos com força enquanto esticava e contorcia o corpo, lutando com as amarras. Sentiu os dedos fecharem-se sobre a familiar caixa de plástico. Tendo o cuidado de não a deixar cair, lutou por libertá-la do bolso, mas ficou presa no tecido. Parou e inspirou fundo. Sem pressas! Com mais concentração, lutou lentamente para a libertar do casaco, suspirando de alívio. Tinha sido a única coisa que Khalid o deixara guardar do seu saco de desporto.

Rezou para que as pilhas ainda funcionassem e ligou a sua Nintendo. A música familiar ergueu-se do brinquedo. Girou o controlo do volume para o nível mais alto. A música não estava particularmente alta, mas, com sorte, a estranheza do som atrairia Ben quando este deixasse o edifício.

Esperou. Por favor, Ben, depressa. E se ficasse sem pilhas demasiado cedo? E se estivesse enganado e Ben já tivesse partido? E se o cronómetro no seu cinto chegasse a zero antes de Ben o ouvir? A sua mente era um turbilhão de terríveis receios.

Mas não lhe tinha ocorrido um até ver o focinho negro a contornar a curva à sua direita. E se o som atraísse outra coisa que não Ben? Jason observou a criatura enquanto ela silvava baixinho, as narinas a abrir e a fechar. Desligou a Nintendo com o polegar e imobilizou-se. A criatura avançou, ficando plenamente visível. Viam-se feridas ensanguentadas na barriga e no pescoço, mas não parecia afetada pelos ferimentos, avançando lentamente na sua direção.