CAPÍTULO 35

Ben estava sentado no sofá de cabedal no gabinete de Blakely, segurando o ombro dorido. Precisava de continuar em movimento. Estar ali sentado fazia latejar o seu ombro. Harry tinha-o dolorosamente voltado a colocar no sítio há algum tempo. Jason estava sentado ao seu lado, batendo com os calcanhares no sofá, ainda tenso. O rapaz tinha passado por muito. Relatara, por fim, os eventos que haviam conduzido à sua descoberta por Ben.

Sandy estava sentada na cadeira atrás da secretária de Blakely, torcendo uma madeixa de cabelo entre os dedos. Escuros círculos marcavam a parte de baixo dos seus olhos.

— Pobre doutor Blakely — balbuciou.

Ben acenou com a cabeça. Arrependia-se de todos os maus pensamentos que tinha tido em relação ao líder daquela maldita missão. Ele não merecia morrer assim.

Harry ressurgiu, finalmente, na porta do gabinete.

— Tenho tudo pronto, Ben. Vamos pôr-nos a andar.

Já não era sem tempo. A mensagem de perigo de Mo’amba ainda ardia com violência na mente de Ben. Aquela espera era agonizante, mas Harry insistira que Ben precisava de descansar durante alguns minutos enquanto ele organizava uma forma mais rápida para Ben regressar para junto de Ashley. Erguendo-se do sofá, Ben sentiu um toque de protesto do seu ombro.

— Deixa-me ver — disse Ben, estremecendo.

— Está logo à porta do gabinete. Vamos. — Harry seguiu à frente.

Depois de ter dito a Jason que ficasse onde estava, Ben seguiu Harry ao longo do átrio incendiado. A entrada estava em ruínas, a porta pendurada nas dobradiças.

Harry acenou aos dois caçadores mimi’swee que haviam conduzido os crak’an numa louca caça aos gambozinos. Tinham regressado, não parecendo sequer cansados depois de horas a jogar ao gato e ao rato. Harry deu uma palmada nos ombros dos seus amigos caçadores, depois prosseguiu para o exterior.

— Partirei com o rapaz logo depois de ti — disse Harry. — Seguiremos o elevador para um local seguro, mas tens de te apressar.

— Eu sei. Mas tem cuidado contigo e protege o rapaz. Ainda há um louco por aí algures a colocar outras bombas, e não quero que o Jason volte a cair nas suas garras. — Ben viu, pela primeira vez, a cratera da explosão. Tinha perto de um metro e oitenta de diâmetro. A superfície da rocha parecia queimada. Apercebeu-se de que não se encontrava ali a carcaça de Tiny Tim. Ben sorriu maliciosamente. O mais certo era que a besta tivesse sido feita em pequenos pedaços. Virou-se para Harry.

— Onde está aquela tua mota?

Harry exibia um sorriso «mete nojo».

— Vem ver. — Harry conduziu-o até à parede lateral do edifício. Apontou orgulhosamente. — A minha obra-prima.

Apoiada na parede estava uma motorizada preta e cromada. Ben assobiou de admiração.

— Fui buscá-la ao meu dormitório depois de ter reconhecido área. Calculei que seria uma forma mais rápida de regressar ao wormhole. Esta pequena irá ganhar a qualquer maldito crak’an.

— Uma ideia excelente. — Ben bateu no assento. — Tem combustível e está pronta?

— Sim.

— Então vamos pôr-nos a mexer. Não sei por onde anda aquele maldito Khalid, ou o que está a planear, mas acho que não devíamos esperar.

— Eu também não. Quanto mais depressa sairmos todos daqui, melhor. Vamos pôr-nos a andar.

Em minutos, Harry tinha tudo pronto. Ben estava montado na mota, uma espingarda surripiada presa à sua coxa esquerda. A mochila tinha sido esvaziada de tudo com exceção da estátua da ohna envolta em papel pardo.

Um dos caçadores mimi’swee — Ben não conseguia recordar-se do seu nome — subiu relutantemente para trás de si na mota.

Suspirando, Ben chamou Harry, tentando mais uma vez.

— Posso devolver a estátua sozinho.

— Não é seguro viajar sozinho. Decerto existirão outros bandos. Agora vai!

Jason estava ao lado da mota, obviamente nervoso em relação à partida de Ben.

Ben piscou-lhe um olho.

— Vou voltar. E vou trazer a tua mãe na parte de trás desta mota da próxima vez que me vires.

Aquela afirmação provocou um breve sorriso, mas os olhos de Jason ainda exibiam uma expressão preocupada.

— Tem cuidado, Ben.

— Sempre. — Ben acelerou e a mota rugiu, suscitando um sorriso involuntário nos seus lábios. O sorriso transformou-se num esgar quando os braços do seu passageiro se apertaram à sua volta a ponto de cortar a circulação da sua metade inferior. Ben deu uma palmadinha no braço que o apertava. — Calma, rapaz. Quero que os meus rins continuem a funcionar depois desta viagem. — O caçador soltou ligeiramente os braços… mas só ligeiramente.

Com um último aceno, Ben fez avançar a mota, deslocando-se a um ritmo hesitante. Havia demasiados destroços espalhados para que pudesse ir mais depressa do que a velocidade de corrida de um homem. Mas ao fim de alguns minutos, tendo-se habituado à condução da mota, aumentou a velocidade, com um grande sorriso no rosto. Voou para lá de um campo de tendas caídas, dirigindo-se para leste de modo a contornar o abismo, dado que a ponte havia desaparecido. Tentou o seu melhor para ignorar alguns dos restos humanos no caminho. Como animais atropelados, pensou amargamente. O seu sorriso morreu numa linha sombria.

Felizmente, passados alguns minutos tinham abandonado a base e aceleravam em direção à parede norte. Inspirava profundamente o ar mais limpo, apreciando a diminuição do fedor do fumo e da carne putrefacta.

Enquanto acelerava em direção às habitações distantes, seguindo a pista grosseira feita pelo homem, foi procurando quaisquer sinais da existência de crak’an à sua frente. Nada. Mas a escuridão para lá da luz do seu capacete podia esconder dezenas daqueles monstros.

Susteve a respiração enquanto acelerava, as palmas das mãos suadas nos punhos da mota. Procurava continuamente, esforçando-se por perscrutar a coluna negra em redor da mota. Algo uivou ao longe, mas para além disso não houve qualquer outro sinal das bestas. Felizmente, alcançou a parede norte sem se ter deparado com um único crak’an. Quase fora fácil demais.

Desligou o motor.

O pequeno caçador saltou da mota rapidamente, recuando como se esta fosse uma qualquer criatura vil. Utilizando a lanterna, Ben agarrou na espingarda e seguiu o seu ágil parceiro ao longo dos vários níveis de habitações até à câmara da ohna. O pequeno caçador foi o primeiro a chegar à câmara, praticamente voando para a sua segurança. Ben seguiu-o de perto.

Ao atingir a entrada da habitação, o caçador, que avançava poucos passos à sua frente, caiu de súbito para trás nos braços de Ben. Mas que raio? O cabo de um punhal projetava-se do seu peito pequeno. O caçador ficou rígido nos seus braços, depois agitou-se numa convulsão violenta. Ben não conseguia continuar a segurá-lo e deixou-o cair no chão.

Veneno.

Ben projetou a luz da lanterna para a frente. Dois homens da tribo dos mimi’swee curvados erguiam-se à sua frente, compactos, musculosos e muito familiares. Os silaris, os venenosos.

Ben recuou um passo do limiar da porta, dando espaço a si mesmo para erguer a espingarda. Precisamente quando erguia a arma, algo lhe bateu na parte de trás da cabeça. Caiu de joelhos, uma miríade de luzes a dançar à frente dos seus olhos. Caiu na entrada, deixando a espingarda escapar dos seus dedos inertes.

A dor reduziu a sua visão até um minúsculo ponto. Mas foi o suficiente para ver o físico esgalgado de Sin’jari passar por cima de si. Limpou do cajado o sangue de Ben, inclinou-se para a frente e fitou-o nos olhos. Sorria triunfante enquanto o mundo de Ben escurecia.

— É como te digo — disse Ashley, andando para trás e para a frente nas parcas dimensões da sala —, aquele maldito Sin’jari queria que tudo acontecesse como aconteceu. Planeou tudo.

Michaelson estudou os guardas no limiar da sua cela de prisão.

— Tendo em conta a forma como estes tipos não param de olhar para nós, não creio que estejam com vontade de dar ouvidos à razão, mesmo que soubéssemos falar a sua língua.

Ashley olhou de relance para os quatro guardas mimi’swee.

— Sabes o que é pior nesta situação? É que estas pessoas nos verão sempre como assassinos. E a culpa é minha. Há perto de uma década que sou antropóloga, e foi assim que agi no meu primeiro contacto com uma nova tribo.

— Ashley, para de te censurar. A situação é extraordinária. E foi Sin’jari quem a estragou. Não tu.

Ashley falava por entre os dentes cerrados.

— Se ao menos houvesse alguma forma de o corrigir. Se pudéssemos…

O súbito murmúrio entre os guardas interrompeu as palavras de Ashley. Deu um passo em frente para ver a quem se dirigiam os guardas e reconheceu o rosto cheio de cicatrizes de Tru’gula. O líder dos caçadores. E um bom amigo de Mo’amba. Aquilo não era bom presságio.

Tru’gula gritou com os guardas, os seus companheiros caçadores. Estes afastaram-se do seu ancião. Avançou para a câmara, com os nós dos dedos brancos em redor do bastão. Parou à frente de Ashley e Michaelson. Limitou-se a fitá-la, os olhos feridos. Parecia estar a avaliá-la, a julgá-la.

Ashley soube que não devia desperdiçar o momento. Talvez Tru’gula a escutasse. Virou-se para Michaelson e agarrou-lhe os ombros.

— Mas que… — começou Michaelson.

— Chiu — disse-lhe ela. — Vou tentar fazê-lo compreender. Esta poderá ser a nossa última oportunidade de conquistar um aliado. — Virou Michaelson de frente para ela. Depois inclinou a cabeça na direção de Tru’gula. Apontou para o major. — Mo’amba. — Agarrou de novo nos ombros de Michaelson e repetiu: — Mo’amba.

Depois deu um passo atrás e apontou para si mesma.

— Sin’jari. — Imitou o seu andar pretensioso e apontou de novo para si mesma. — Sin’jari.

Tru’gula limitou-se a fitá-la com o olhar vazio.

Ashley revirou os olhos. Depois imitou Sin’jari. Colocou-se à frente de Michaelson e fingiu retirar uma faca de uma bainha imaginária e imitou, em seguida, o mergulhar da faca no peito de Michaelson duas vezes. Depois recuou e tocou com o dedo no peito.

— Sin’jari! — repetiu ferozmente.

Os olhos de Tru’gula semicerraram-se, o seu rosto tenso de raiva.

Ashley afastou-se. Teria ele compreendido? Se compreendia, acreditaria nela? Tinha acabado de acusar um dos outros anciãos.

— Sin’jari — silvou Tru’gula. — Sin’jari! — Avançou para Ashley.

Ela resistiu ao impulso de se afastar. Precisava de se manter firme. De lhe demonstrar que dizia a verdade. Manter-se firme. Fitou-o nos olhos sem estremecer, enquanto ele se colocava à frente dela.

Tru’gula fitou-a durante o que lhe pareceram vários minutos, depois falou, claramente lutando com as palavras. Apontou para a sua cabeça.

— Mo’amba… sábio. — Agarrou o ombro de Ashley. — Mo’amba… confiar… tu.

Ela acenou, encorajando-o.

— É óbvio que Harry tem estado a trabalhar com ele — balbuciou Michaelson.

O líder dos caçadores virou-se para o major.

— Irmão de sangue. — Apertou os braços em redor do peito. — Confiar. — Depois virou-se para Ashley. — Tru’gula… Tru’gula… confiar… tu.

Teria ela ouvido bem? Compreendido corretamente? Ele acreditava nela! No seu alívio, estendeu os braços e abraçou Tru’gula, as lágrimas a encherem-lhe os olhos.

Tru’gula libertou-se do seu abraço.

— Peri… go. Aqui. Ir! Agora! — Tru’gula procurou empurrá-la para a entrada.

— Espera. — Ashley resistiu, libertando o braço das mãos dele. — Se confias em nós, então podes dizer aos outros. Não é preciso fugir.

Tru’gula fitou-a, confuso. Ele não compreendia. Olhou de relance para a porta, depois para ela. Suspirou de frustração.

— Tru’gula… confiar tu. — Agitou os braços como se envolvesse toda a aldeia à sua volta. — Não confiar.

Ashley apercebeu-se de que ele pretendia ajudá-los a escapar. A fugir dos seus acusadores. Não acreditava que a sua inocência fosse aceite pelo seu povo. Os aldeãos eram demasiado desconfiados em relação aos estranhos.

— Ir. Agora — repetiu Tru’gula.

Ashley manteve-se imóvel.

— Não.

Michaelson colocou-se ao seu lado.

— Acho que é melhor aceitarmos a sua ajuda.

— Se eu fugir, será como se estivesse a admitir a minha culpa. Não posso deixar este povo pensar que não passamos de assassinos a sangue-frio.

— Mas, Ashley. Estamos em risco.

Ela abanou a cabeça.

— Referiste um plano, anteriormente. Uma maneira de provar a minha inocência. Pensei que não passava de um sonho irreal. Mas com a ajuda de Tru’gula poderá funcionar.

— Poderá? Esse é um grande risco quando estás a jogar com as nossas vidas.

Ashley fitou-o nos olhos.

— Tenho de tentar.

As pernas de Linda estavam pesadas. Avançava atrás de Khalid em piloto automático, um pé a seguir ao outro. Fitava as costas de Khalid enquanto este avançava em direção ao elevador distante. Sabia que o devia odiar, desprezar.

Mas estava atordoada.

Tinha falhado com Jason. Prometera-lhe que regressaria. Recordou os seus olhos enquanto o prendia à coluna. Ele sabia que ia morrer. De alguma forma deveria ter sido capaz de o impedir, mas o seu receio tinha-a quebrado. O medo que sentia de Khalid. O medo da morte. Através da sua inação, tinha selado o seu destino.

Uma lágrima solitária rolou-lhe pelo rosto.

O medo sempre dominara a sua vida. Fosse a sua desprezível claustrofobia ou qualquer outra ansiedade, o medo guiara sempre os seus passos na vida. Um companheiro constante. Por fim, a sua fraqueza castradora tinha resultado na morte de um rapazinho.

Com a morte de Jason, o medo tinha, por fim, desaparecido. Agora tudo aquilo que restava era culpa. Não queria saber se vivia ou morria. O medo tinha sido vencido… mas a que preço?

Khalid parara à sua frente.

— Escuta. Ouves alguma coisa?

Linda não ouvia nada. Não lhe respondeu, as palavras eram demasiado difíceis.

Khalid apontou.

— Ali!

Linda olhou para onde ele apontava. À distância de um campo de futebol, os holofotes continuavam a apontar para a escuridão acima, realçando o poço imenso do elevador. Algo se movia lá em cima. Era a jaula do elevador que descia em direção ao chão. Vinha lá alguém.

Enquanto observava, tornou-se claro quem era. Espingardas e outras armas, incluindo lança-chamas, eram visíveis por entre as barras da jaula, como um porco-espinho armado. Os reforços vinham a caminho.

Os olhos de Khalid reduziram-se a duas fendas negras.

— Tão perto. Só mais alguns minutos.

Linda permitiu que um sorriso lhe assomasse aos lábios, apreciando a consternação de Khalid.

— Parece que não vamos sair por ali.

Khalid fitou-a de olhos muito abertos, retirou a mochila e começou a vasculhar o seu interior. Retirou um transmissor da mochila. Era diferente daquele que controlava as bombas que ela tinha ajudado a colocar.

— Que estás a fazer?

— Baixa-te. — Ergueu o transmissor e carregou no botão. Uma luz verde surgiu no aparelho. Khalid agarrou-lhe no braço e saltou para cima de um edifício parcialmente destruído. Uma explosão ergueu-se mais à frente, lançando destroços e fumo no seu caminho.

Depois de grande parte do fumo se ter dissipado, Khalid saiu de cima dela e verificou o seu trabalho. Seguiu-o para ver o que tinha ele feito.

Uma cratera fumegante abria-se agora onde outrora se tinham erguido os suportes do elevador. Ela ergueu os olhos. Apenas um dos holofotes se mantinha intacto, iluminando a cena atroz. Em câmara lenta viu o que restava da torre começar a colapsar. A jaula lançada ao solo da câmara, descontrolada. Mesmo com os ouvidos a zumbir da explosão, conseguia ouvir os gritos.

Ela lançou-se para trás da parede danificada, fechando os olhos. Durante o que pareceram anos, esperou. Depois ouviu-o. O estrondo ribombante da jaula a cair ao chão. Ficou à escuta. Os gritos tinham cessado.

Khalid colocou-se ao seu lado. Acendeu um cigarro, a mão a tremer ligeiramente.

— Ainda bem que montei aqueles explosivos na noite antes de a equipa ter partido. Eu sabia desde o início que esta missão podia terminar assim. Mas pensei que com planeamento… — Encolheu os ombros.

— Que vamos fazer agora? Não podemos partir.

Khalid soprou uma nuvem de fumo em direção ao teto distante.

— Tenho de tentar contactar os meus superiores, informá-los da situação. Podemos experimentar o centro de comunicações de Blakely. Ver se consigo falar com alguém.

— Então e depois?

Ele encolheu os ombros.

— Depois morremos.