CAPÍTULO 36
O mundo recuperou a nitidez numa explosão. Ben levantou-se, confuso. Demorou alguns segundos a situar-se. Tudo voltou à sua mente como uma torrente. Aquele maldito Sin’jari! Ben ergueu-se, estremecendo. A sua nuca latejava a cada movimento. Os ecos da explosão que o haviam despertado reverberavam ainda pela caverna.
Gemendo, Ben ergueu-se, trémulo. Espreitou na direção da base que brilhava ao longe. Que teria acontecido? Mas ele sabia a resposta: Khalid.
Ben não se mexeu, indeciso. Devia regressar à base? Harry e os outros poderiam estar em apuros. Tocando na zona ferida na parte de trás da cabeça, olhou de relance para o relógio. Estava a ficar sem tempo. Tinha estado inconsciente durante quase uma hora. Precisava de chegar junto de Ashley. Libertá-la.
Primeiro, contudo, tinha de saber o que se estava a passar. Sentou-se no chão da gruta e fechou os olhos, deixando a mente vaguear. Imaginou Nob’cobi e chamou-o.
A resposta foi quase imediata. A imagem de Nob’cobi surgiu da escuridão. Os pelos do seu rosto estavam queimados.
— Que aconteceu? — perguntou Ben. — O Jason está bem?
Nob’cobi acenou, sem fôlego.
— Coisa jaula destruída. Sem forma de subir. Harry e o outro caçador foram em busca do homem mau. Para tentar impedi-lo. Eu levei o rapaz e a mulher para o gabinete. Ali ficam seguros. Eu protejo-os. O Harry diz que tens de te despachar.
— Eu sei.
— Traz ajuda!
Ben quebrou o contacto e levantou-se. Precisava de devolver aquela estátua antes que… Raios! Apercebeu-se de que faltava algo. A espingarda jazia no chão onde ele a deixara cair. Tocou nas costas e vasculhou a câmara minúscula. A mochila tinha desaparecido. Tal como a estátua que continha.
Sin’jari!
O sacana não tinha acabado com ele porque descobrira aquilo de que precisava para frustrar a missão. Sem a estátua, Ashley morreria.
Sacana matreiro. Ben olhou em volta e os seus olhos pararam sobre o trenó de alumínio com o eixo de diamante. Agarrou na faca que retirou do cinto e cortou o comboio de skates de plástico que continuavam presos ao trenó maior. Talvez…?
Ashley apercebeu-se de que Tru’gula estava perturbado com as suas exigências, mas tinha por fim aquiescido e concordado em levá-la à câmara de umbo. Para alcançar a câmara, Tru’gula teve de empurrar os outros caçadores do seu caminho, vários deles lançando ao líder um olhar que indicava que o julgavam louco. Conseguiu, pela força e pelo que soava como ameaças, lá chegar.
Michaelson andava na divisão, para trás e para a frente, fitando a estátua masculina do umbo com um ténue olhar de desagrado nas suas feições.
— É só uma suposição — disse ele. — Não gosto que arrisques a vida com base numa suposição.
— O teu raciocínio está certo. Sin’jari irá, sem dúvida, tentar regressar à aldeia por aqui. Precisamos apenas de esperar por ele. De o confrontar.
— E se ele já tiver regressado?
Ashley suspirou.
— Não creio. Ter-se-ia dado a conhecer. A sua voz ter-se-ia erguido ruidosamente contra nós. — Ashley olhou de relance para a pequena câmara. Parecia apinhada com os seis guardas mimi’swee e Tru’gula. Outros caçadores guardavam o caminho até ali, mas mais tarde ou mais cedo a notícia espalhar-se-ia e outros viriam investigar. Esperava apenas que conseguissem capturar Sin’jari antes do início do circo. Uma multidão podia tornar as coisas complicadas antes de ser capaz de provar a sua inocência.
Como que em resposta aos seus pensamentos, a confusões que começava a fervilhar no túnel tornou-se audível. Havia vozes que se erguiam. De súbito uma explosão de corpos entrou na câmara. Várias figuras, que continuavam a lutar, rebolaram pelo chão.
Michaelson puxou-a para trás de si. Até Tru’gula avançou para a frente dela, bloqueando o caminho até ela.
Ashley observou enquanto os caçadores se batiam com outros mimi’swee com ar de pugs, mas os poucos caçadores foram rapidamente subjugados pelo grupo de atacantes. E, para piorar as coisas, uma só estocada da lança ou do punhal de um dos atacantes provocava convulsões no caçador, por pouco ferido que estivesse.
Em breve, apenas ela, Michaelson e Tru’gula permaneciam de pé. Pelo menos dez daqueles atacantes baixos e musculosos rodeavam-nos.
— Silaris! — disse Tru’gula e cuspiu na sua direção.
Os atacantes não tentaram avançar sobre eles, aparentemente nervosos com a ideia de atacarem um dos anciãos.
Um som atrás deles chamou a atenção de todos para o wormhole. Enquanto observava, Sin’jari deslizou do túnel, seguido por dois feios mimi’swee. Ashley reconheceu-os como os dois que estavam com Sin’jari antes. Também reconheceu a semelhança entre eles e os atacantes que bloqueavam a saída. Eram os homens de Sin’jari, o seu clã.
Sin’jari sorriu, mostrando todos os dentes. Não teve de dizer uma palavra. Limitou-se a tocar num punhal e a avançar na direção de Ashley.
Gemendo, Ashley apercebeu-se de que os havia conduzido a todos para uma armadilha.
Ben desejou que o trenó de Harry conseguisse atingir velocidades ainda maiores, as paredes rochosas eram um borrão à sua volta. Descer com o acelerador ao máximo tinha aumentado a velocidade do trenó para oitenta quilómetros por hora. Nas curvas deslizava até ao teto.
Semicerrou ou olhos, precisando de prestar atenção. Pronto para travar mal visse a saída. Um voo para o exterior do wormhole seria morte certa. Desviou a espingarda de baixo da sua anca onde o magoava.
Vamos, a saída não devia estar muito longe. Talvez se se concentrasse e utilizasse os seus poderes heri’huti, conseguisse perceber a distância que ainda tinha de percorrer.
Relaxou os olhos e forçou o seu coração a abrandar. Mesmo antes de ter conseguido atingir o devido estado, alguém falou com ele. Alguém o estava a chamar. Uma imagem surgiu à sua frente, sobrepondo-se ao que se encontrava no caminho como um fantasma etéreo. Um rosto marcado por uma cicatriz. Tru’gula.
A figura pestanejou algumas vezes, depois falou.
— Depressa!
— Eu sei. Já recebi a mensagem — disse Ben.
— Então vê com os meus olhos.
Durante alguns segundos, o túnel desapareceu e ele estava na câmara do umbo. Ele viu. Arquejando, sentiu um aperto no coração e a ligação estilhaçou-se.
Ben rezou por mais velocidade, a raiva impelindo-o em frente.
Michaelson tentou impedir Sin’jari de se aproximarem-se de Ashley, mas, depois de um movimento rápido do pulso do ancião, cinco silaris arrastaram-no para trás.
Ashley olhou de relance para Tru’gula. Ele debatia-se inutilmente nas garras de dois dos seus atacantes. Dali também não obteria ajuda.
Sin’jari avançou para ela.
— Ele não ajuda. Ele fraco.
Ashley ficou estupefacta perante as suas palavras.
— Tu falas a minha língua.
Ele acenou com a cabeça.
— Eu aprender o meu inimigo. Melhor maneira… — Uniu as sobrancelhas, pensando nas palavras seguintes.
— De o conhecer — tentou ela.
Ele sorriu como se ela fosse uma criança pequena.
— Não. De o matar.
Erguendo o punhal para o peito dela, sorriu-lhe.
— Veneno. Essa palavra certa? — Apontou para os caçadores mortos.
Ela acenou com a cabeça.
Ele espetou o seu próprio dedo. Depois agitou-o como se não fosse nada.
— Eu lidero os silaris. O veneno não nos matar. Nós fortes. Nós liderar.
— Então e Bo’rada? Pensei que ele era o vosso líder.
— Bo’rada? — Emitiu um som de desagrado com a boca. — Nada esperto. Eu liderar Bo’rada.
Ashley apercebeu-se de que aquele golpe já estava a ser pensado muito antes de a sua equipa ter aparecido. A sua chegada quase destruíra o plano de Sin’jari, mas ele tinha conseguido virá-lo a seu favor.
— Agora eu liderar. Eu dizer matar-vos todos. E quaisquer outros que aqui apareçam.
Ashley abanou a cabeça.
— Não vais ganhar. Os caçadores de Tru’gula não o permitirão.
Um olhar astuto ensombrou-lhe os olhos. Apontou para Tru’gula.
— Mau. Ele ajudar os outros a matar Mo’amba. — Depois bateu no próprio peito com o punhal. — Eu descobrir. — Fez um gesto de corte através do ar. — Eu parar.
Então Tru’gula ia ser acusado de cumplicidade no crime, de ser um coconspirador. E os homens mortos não contam histórias. Ashley olhou para ele, mas Tru’gula tinha os olhos meio fechados.
Sin’jari também se apercebeu. Tocou no caçador ferido com um dedo, chamando-lhe a atenção. Falaram durante alguns minutos. Palavras furiosas. Por fim, Sin’jari virou-lhe as costas e enfrentou Ashley de novo. Apontou com o polegar para Tru’gula.
— Nada esperto. Ele pedir ajuda. Mas não estar lá ninguém. Mo’amba morto. — Sorriu-lhe. — Agora tu.
Ergueu o punhal envenenado e avançou na direção dela. Ashley tentou recuar, mas foi impedida pelos silaris atrás de si.
Precisamente quando Sin’jari agarrava a garganta de Ashley com uma mão esquelética, um ruído saiu do wormhole. Sin’jari voltou o pescoço para olhar.
Ashley saltou quando o trenó de transporte saiu disparado pelo wormhole e voou através da câmara, colidindo com vários dos silaris e fazendo-os cair.
A distração foi o suficiente para permitir que Ben emergisse do wormhole. Já estava de pé antes que alguém se apercebesse do que tinha acontecido. Levou a espingarda ao ombro e apontou-a a Sin’jari.
— Amigo, sugiro que largues a senhora.
Sin’jari silvou-lhe e mergulhou o punhal na direção do peito dela.
Ben disparou.
Ashley viu o lado esquerdo da cabeça de Sin’jari voar. O seu corpo permaneceu de pé durante meio segundo, o punhal ainda apontado, depois caiu no chão.
Um par de silaris correu na direção de Ben. Este girou a espingarda e, com dois tiros, dois corpos caíram ao chão.
— Mais algum?
De súbito, por trás do grupo de silaris, como por magia, surgiu um grupo de caçadores, empunhando longas lanças.
— Eis alguns dos meus amigos — disse Ben com um sorriso. — Fiz uma chamada rápida antes de chegar. Este meio de comunicação heri’huti poderia acabar com o negócio das companhias telefónicas.
Os silaris, sem o seu líder, deram pouca luta e foram violentamente afastados.
Ashley correu para Ben e envolveu-o com os seus braços.
— Estás bem. Eu não sabia… não sabia o que Sin’jari tinha feito lá em cima. — Ela apertou-o e, abafadas contra o seu peito, ele disse as palavras que há tanto tempo guardava no peito. — Eu amo-te.
— Hã? Que foi isso? — disse ele, afastando-a para a olhar nos olhos.
— Eu… eu amo-te.
Ben deslizou de novo para os braços dela.
— Oh, isso. Eu sabia que sim. Só me estava a perguntar quando ias descobrir.
— Cala-te. — Ela ergueu-se e beijou-o.
Ben deslizou, em seguida, os seus lábios para o ouvido dela.
— Sabes, há alguém lá em cima que também está à espera de um grande abraço e de um beijo.
Ashley afastou-se dele, as mãos a apertar-lhe os ombros.
— Queres dizer…?
— O Jason está bem. Só um pouco abalado, como todos nós.
As lágrimas toldaram-lhe a visão enquanto Ben lhe sorria. Em seguida ele puxou-a para um forte abraço. Nos seus braços, ela sentia a força da família que nunca antes experimentara.
Ainda nos seus braços, Ashley viu Bo’rada avançar para a câmara, a confusão evidente nas suas feições. Avançando para a figura de rosto marcado por cicatrizes, falou acaloradamente com Tru’gula, que lhe respondeu com gestos veementes. Os olhos de Bo’rada abriram-se muito.
— Deixo-te por um segundo — sussurrou Ben — e vê os problemas em que te metes.
Quando Tru’gula acabou, o líder fitou com desagrado o corpo de Sin’jari, depois virou-se para Ashley e Ben. Curvou solenemente a cabeça na sua direção. Um pedido de desculpas ou um agradecimento, ela não tinha a certeza.
Ben libertou-se do abraço dela.
— Já me esquecia. — Avançou até ao corpo de Sin’jari e abriu a bolsa no cinto do homem morto. Levou a mão ao interior e retirou a estátua de diamante.
— Ohna! — Ben ergueu a figura para que todos a vissem, depois avançou e colocou a estátua feminina ao lado da masculina. — Fazem um belo casal, não achas?