PRÓLOGO
Monte Érebo, Antártida
O gelo azul revestia o continente de horizonte a horizonte, polido num brilho cru pelos ventos tempestuosos que arrastavam estilhaços pela paisagem gelada. Nada vivia na superfície, com exceção das áreas de tom ferruginoso onde cresciam líquenes amarelos, muito mais velhos do que qualquer um dos homens destacados na Base de McMurdo.
Três quilómetros abaixo do monte Érebo, sob o glaciar, o pergelissolo e o granito, o soldado Peter Wombley limpava o suor dos olhos. Sonhava com o frigorífico do seu quarto no bunker, onde o aguardava uma caixa de Coors.
— Este sítio é de loucos. Uma tempestade de neve dos diabos lá em cima e mais quente do que a rata de uma prostituta cá em baixo.
— Se parares de pensar nisso, não será tão mau — respondeu-lhe o tenente Brian Flattery. Libertou a lanterna da motorizada de transporte. — Vamos. Ainda precisamos de calibrar mais três retransmissores antes do final deste turno.
Peter agarrou na sua própria lanterna e acendeu-a, varando a caverna com um feixe de luz, e seguiu o tenente.
— Olha, cuidado ali — disse Brian, apontando a luz para uma fenda no chão da caverna.
Deslizando para lá da fenda negra, Peter olhou para ela, desconfiado. Desde que ali chegara, há três meses, desenvolvera um respeito saudável por aquelas grutas em forma de favos. Debruçou-se na beira e apontou a luz para a base da fenda. Parecia descer diretamente até ao fundo do mundo. Estremeceu, perguntando-se se o Inferno teria uma entrada.
— Espera!
— Vou seguir até ao retransmissor — disse Brian, colocando em posição um trenó de transporte, que aguardava na boca do túnel. — Podes fazer uma pausa de cinco minutos até eu regressar.
Peter suspirou secretamente de alívio. Odiava aqueles wormholes como todos chamavam às passagens lisas e sinuosas que ligavam cada caverna à seguinte, passagens de diâmetro tão pequeno, que um homem quase não conseguia rastejar ao longo delas. Apenas os trenós motorizados tornavam possível o transporte através dos wormholes.
Como um rapazinho num tobogã, Brian deitou-se sobre o trenó, a cabeça virada na direção da boca do túnel. Carregou no acelerador e o motor despertou com um ronco, fazendo eco nas paredes, que duplicavam e triplicavam o nível de decibéis. Erguendo o polegar num derradeiro sinal, Brian rodou o acelerador para a frente. O trenó lançou-se veloz pela passagem estreita.
Peter agachou-se vendo Brian partir. As luzes desapareceram quando o trenó, rugindo, contornou uma curva distante. Passados mais alguns instantes, o som do trenó enfraqueceu até desaparecer. Peter encontrava-se sozinho na caverna.
Usando a lanterna, verificou as horas. Brian devia regressar dentro de cinco minutos. Sorriu. Talvez vinte se precisasse de desmontar o retransmissor e substituir algumas partes. Isso dava-lhe tempo mais do que suficiente. Fez deslizar um charro do bolso do colete.
Peter pousou a lanterna e rodou-a para obter uma dispersão mais alargada do seu feixe e assim iluminar a área. Depois relaxou, encostando-se à parede da caverna, pescou um fósforo do bolso e acendeu-o. Inalou profundamente o charro fino, sentindo os lábios colar-se ao papel. Ah! Inclinando a cabeça para trás, saboreou o fumo que inalara profundamente.
De súbito, o som de algo a raspar na rocha ecoou pela caverna.
— Merda! — Peter engasgou-se com o fumo e agarrou na lanterna. Procurou pelo espaço aberto, movendo a lanterna de um lado para o outro. Ninguém. Nada mais do que uma caverna vazia. Ficou quieto, tenso, mas não ouviu mais nada. As sombras saltavam constantemente sob a luz da lanterna.
De repente, pareceu-lhe estar muito mais frio e muito mais escuro.
Olhou de relance para o relógio. Tinham passado quatro minutos. Brian devia estar de regresso. Apagou o charro. Ia ser uma longa espera.
Brian Flattery fechou o painel lateral da estação de comunicações. Estava tudo bem com a unidade. Já só faltava verificar outros dois retransmissores. A equipa de apoio podia levar a cabo os testes de rotina, mas aquele era o seu bebé. Aquelas falhas eram uma afronta pessoal à sua perícia. Bastaria uma pequena afinação e tudo ficaria perfeito.
Aproximou-se do trenó que o aguardava e fê-lo deslizar para a posição certa. Rodou o acelerador para arrancar e baixou um pouco a cabeça ao avançar pelo túnel. Era como ser engolido por uma serpente, pensou. As paredes lisas voaram para lá dele, o farol dianteiro guiava-o para a frente. Passado um minuto, o trenó deslizou do túnel para a caverna onde deixara Peter.
Brian desligou o motor. Olhou à sua volta. A caverna estava vazia, mas pairava no ar um cheiro familiar. Marijuana.
— Maldição! — Afastou-se do trenó e ergueu a voz: — Soldado Wombley! Volte aqui, imediatamente!
A sua voz ecoou nas paredes. Não obteve qualquer resposta de Peter. Vasculhando a câmara com a lanterna, Brian não conseguiu encontrar nada. As duas motorizadas que tinham usado para se deslocar até ali continuavam no mesmo lugar, do outro lado da gruta. Por onde andaria o desgraçado?
Avançou na direção das motorizadas. A bota esquerda escorregou numa área húmida; agitou os braços, tentando encontrar um ponto de apoio na parede — não conseguiu. Com um grito rouco, caiu com força sobre o rabo. A lanterna deslizou pelo chão, acabando por parar, com a luz a apontar na sua direção. Um líquido quente impregnava-lhe a parte de trás das calças de caqui. Rangeu os dentes com força e praguejou.
De novo em pé, Brian limpou os fundilhos das calças com uma careta. Havia um certo soldado prestes a descobrir um pé enfiado num certo sítio. Preparava-se para entalar a camisa quando se apercebeu de que tinha as mãos a pingar. Arquejou e saltou para trás, como se lhe fosse possível escapar às suas próprias mãos.
Sangue quente cobria as palmas das suas mãos.