SER ARTISTA SIGNIFICA ESTAR CONSTANTEMENTE EM BUSCA DA aprovação de outros. Seja na música, na literatura, na pintura ou na dança, a arte, por definição, busca interagir com os espectadores e se conectar com eles. Para mim, esse é um aspecto fundamental do que faço. Os momentos que me deixam mais feliz são quando me vejo no palco, cercado pelos meus músicos, e diante de uma plateia enorme, empolgada e genuinamente vibrando com a minha música. Adoro sentir que as pessoas estão gostando da minha música, que ela tem algum significado para a vida delas, e que de alguma maneira estamos conectados. Quando alguém gosta do que faço, isso alimenta minha alma.
Existem artistas que dizem criar música ou fazer sua arte para si mesmos e que a aprovação do público é irrelevante. Embora seja um ponto de vista que respeito totalmente, não compartilho essa crença. Sou artista porque amo minha música e adoro dançar, mas, se ninguém mais gostasse, não me sentiria muito bem. Pode chamar isso de ego, medo ou falha, necessidade de ser aceito, ou o que quiser, mas sinto honestamente que a música precisa criar uma conexão real com o mundo a sua volta.
Foi por isso que, quando “María” decolou, seguida por “La copa de la vida” e, depois, “Livin’ la vida loca”, fiquei extremamente feliz. Todo o trabalho, as viagens, as horas passadas no estúdio, dando entrevistas, em sessões de fotos... estava agora colhendo os frutos de todo o trabalho, e sentia profundamente que estava vivendo um momento único e extraordinário, uma verdadeira bênção. No entanto, aquele momento – pelo qual havia ansiado com cada centímetro do meu ser – trouxe com ele uma série de desafios que talvez eu não estivesse pronto para enfrentar. Em grande medida, já estava acostumado a fazer o que as outras pessoas esperavam que fizesse: no início da carreira, quando sempre seguia as instruções dos empresários da banda e, mais tarde, quando adotei a mesma postura com os diretores de teatro e televisão com quem trabalhei, com os produtores musicais, os executivos da gravadora... Passei tanto tempo seguindo conselhos dos outros – na maior parte bem-intencionados, felizmente – que, sem perceber, tinha começado a perder minha identidade. Queria tanto que as coisas corressem bem e alcançar o sucesso tão ansiado, que raramente parava para pensar se poderia fazer – menos ainda se queria fazer –, de forma realista, tudo o que se esperava de mim. Os anos da minha ascensão à fama foram uma era maravilhosa – não há dúvida –, mas também foram os anos em que senti que estava começando a perder de vista para onde aquilo tudo estava indo.
INSPEÇÃO INCANSÁVEL
A ORIENTAÇÃO DE quem já percorreu o caminho antes de você é muito valiosa, e outro conselho útil que a Madonna me deu foi: “Ricky, se a música, a arte ou a sua carreira começar a tomar conta da sua vida, desconecte-se. É você quem deve controlar sua carreira; não deixe que ela o controle”. A Madonna, obviamente, é uma mulher muito experiente, e entendi perfeitamente o que ela queria dizer, mas, para mim, foi muito difícil colocar em prática seu conselho.
No ano anterior ao Grammy, não achava que a música ou a minha carreira me controlavam. O mundo inteiro estava ouvindo minhas músicas e eu me sentia no auge, com controle de tudo o que estava por vir. Mesmo assim, algumas coisas me causavam um pouco de ansiedade. Estava completamente focado em fazer todo o possível para manter o impulso extraordinário que havia me levado àquele ponto, mas havia, contudo, momentos em que as horas de trabalho me pareciam muito longas, simplesmente por ser incapaz de dizer não. Meu agente aparecia com um itinerário e eu dizia sim para tudo, sem nunca parar para avaliar as consequências. Eu estava, é claro, saboreando meu sucesso, mas não consigo deixar de achar que talvez estivesse tentando fugir do pesado fardo emocional que carregava. Exatamente como nos tempos no Menudo, quando me concentrava no trabalho o tempo todo porque, em certa medida, queria fugir do que estava acontecendo entre meus pais, durante o frenesi de “Livin’ la vida loca” estava tentando evitar as emoções contraditórias quanto à minha sexualidade que estavam sempre me rondando. Até certo ponto, estar ocupado o tempo todo significava não precisar pensar em coisas que me deixavam pouco à vontade.
Foi por volta dessa época que voltei a namorar a mulher maravilhosa que havia conhecido no México. Estar com ela sempre me deu muita paz. Havia muito amor e atração entre nós, e me sentia seguro com ela. Sentia-me amparado. Focado. Ao longo de todo o tempo que passei com ela, nunca olhei para mais ninguém. Nunca quis mais ninguém, e nosso relacionamento realmente fazia eu me sentir ancorado. Dava-me a estabilidade de que sentia falta na minha vida, e permitia que eu me distanciasse da atração por homens, o que sempre me enchia de culpa. Sentia-me ótimo quando estava com ela; eu a amava e me sentia amado por ela, então, não tinha nenhum motivo para pensar em outra coisa, ou outra pessoa.
No entanto, a ilusão de que eu tinha minha carreira e minha vida pessoal sob controle não durou muito. Meu relacionamento com essa mulher incrível durou um pouco mais, e, depois de muitas idas-e-vindas, terminamos definitivamente. É difícil explicar o que faz um relacionamento terminar e, embora hoje eu veja claramente que meus próprios conflitos internos tiveram muito a ver com isso, outros fatores nos afastaram, e finalmente decidimos – sempre com muito amor e carinho – nos separar.
E foi então que comecei a perder o controle.
Enquanto minha equipe e eu trabalhávamos sem parar para manter toda a operação funcionando sem problemas, com turnês promocionais, shows e vídeos, de repente, minha vida pessoal tornou-se um assunto constante na mídia. Naturalmente, o público queria saber quem era esse Ricky Martin de quem todo mundo estava falando e, então, começaram as perguntas. Em todas as entrevistas daquela época, as pessoas queriam saber de onde eu era, como tinha sido a minha infância, como eram meus pais e se eu tinha alguém especial na minha vida...
Há uma diferença fundamental entre estrelas de cinema e cantores, que a maioria das pessoas não percebe. Quando um ator promove um filme, as perguntas nas entrevistas geralmente giram em torno de seu papel naquele projeto, o enredo do filme ou a experiência durante as filmagens; há um número incontável de assuntos que podem ser explorados sem que a vida pessoal do artista se torne o tema central da conversa. No entanto, quando se trata de um cantor, há uma variedade muito menor de assuntos a serem discutidos, e a entrevista tende a se voltar para a vida pessoal, que, no fim, é a inspiração para a música As perguntas costumam ser de natureza mais íntima, especialmente quando, como no meu caso, a música trata de temas como amor e decepções amorosas.
Como eu nunca dizia não, havia entrevistas comigo em todas as revistas, todos os programas de televisão e jornais. Meus vídeos passavam na MTV a cada dez minutos. Nas entrevistas, falava muito pouco sobre minha vida privada, e como o que eu contava dava pouco o que falar – era um cara saudável, trabalhava muito, sem vícios –, alguns membros da imprensa devem ter decidido descobrir meu “lado negro”.
E assim começaram os rumores. Não tenho ideia de quando exatamente eles começaram, ou de quem pode ter falado o que, mas os tablóides começaram a dizer que eu havia saído com um ou outro cara – ironicamente, nenhuma das histórias era verdadeira, embora eu estivesse, de fato, tendo relacionamentos com homens. Entendo que rumores vendem revistas, e que muitas vezes as pessoas querem ler sobre isso, mas, na verdade, a invasão da minha vida privada me atingiu como uma tonelada de tijolos. Não podia entender por que havia me tornado alvo de tanta especulação. Tudo o que queria era continuar com a minha música e viver a minha vida sem ninguém interferindo. Tinha acreditado, ingenuamente, que, apesar de ser uma celebridade, ainda tinha direito à privacidade.
O resto do mundo não achava a mesma coisa.
O PREÇO DA NEGAÇÃO
NA VERDADE, O PROBLEMA não eram tanto os rumores sobre minha sexualidade. O problema real era eu mesmo não saber como me sentia sobre o assunto. Apesar de ter tido relacionamentos com homens depois de me separar do meu primeiro amor, ainda não estava pronto para me aceitar como gay. Meu momento ainda não havia chegado, e, apesar de todos sabermos agora que os rumores se baseavam na verdade, na minha cabeça, ainda não era um fato. Era um assunto que constantemente eu precisava enfrentar e me causava muito sofrimento e ansiedade. Toda vez que alguém escrevia em uma matéria que eu era homossexual, cada vez que me perguntavam sobre isso em uma entrevista – e não muito sutilmente –, eu me afastava ainda mais da minha verdade. Os rumores e as perguntas só aumentavam minha insegurança e minha autorrejeição; eles me faziam lembrar todos os motivos pelos quais não me sentia bem comigo mesmo. Às vezes, sentia que me odiava. Como isso era apresentado sempre sob um ângulo tão negativo, como uma coisa escandalosa e ruim, meu desejo de negar meus sentimentos era reforçado. E como naquele momento eu estava longe de estar pronto para me assumir, o único resultado era que tudo me causava uma enorme dose de sofrimento.
Anos depois, foi feito um documentário biográfico sobre mim para a televisão, e muitas pessoas da indústria foram entrevistadas, assim como jornalistas do meio musical. Nesse trabalho, foi dita uma coisa que acho muito astuta: quando um fenômeno enorme como Ricky Martin atinge o mundo da música, também atrai uma grande quantidade de inveja e ódio. Às vezes isso é chamado de “inveja de quem está por cima”. Joe Levy, que era editor da Blender naquela época, não poderia ter se expressado melhor: “Quando um artista pop se veste bem demais, é super bem cuidado ou é muito perfeito, é tão fácil odiá-lo quanto amá-lo”. É possível que algumas pessoas quisessem desenterrar fofocas sobre mim ou dizer coisas que, aos olhos delas, pudessem ser negativas pelo simples motivo de não querer que eu me saísse bem. Qualquer que tenha sido o motivo, permanece o fato de ter sido, para mim, uma época de grande angústia.
Acredito que um dos fatores que contribuíram para os rumores sobre minha sexualidade tenha sido as pessoas acharem minha imagem de “amante latino” excessiva. Em outras palavras, possivelmente achavam que tudo que eu fazia – o modo como dançava, as letras das minhas músicas, minha movimentação sensual sobre o palco – não passava de uma tentativa de disfarçar minha homossexualidade. E isto é o que sinto que preciso deixar claro: sou o artista que sou graças às muitas experiências que me influenciaram ao longo do caminho, e isso não tem nada a ver com minha sexualidade. Embora eu saiba muito bem que toda a minha música e encenação têm um componente “sexualizado”, isso não quer dizer que o modo como danço, mexo meu quadril e me movimento com o ritmo seja uma expressão da minha sexualidade, não importa se eu sinta atração por mulheres ou homens. Quando estou no palco, sempre busco uma forma de me conectar com a plateia e se descubro um movimento ou um passo de dança de que as pessoas gostam, que as faz vibrar ou as deixa empolgadas, então vou continuar a usá-lo. Tem a ver com a própria natureza da encenação seduzir a plateia, e isso não tem nada a ver com minha vida pessoal.
Quando estou no palco, estou trabalhando. E faço meu trabalho com dignidade. Com respeito. Trabalho porque gosto do que faço e porque quero que as outras pessoas gostem das minhas músicas e das minhas apresentações. Nos países fora da América Latina, a cultura latina sempre teve uma conotação sensual, mas essa sensualidade que os outros parecem captar é completamente normal para quem vem desta parte do mundo. Os movimentos da salsa, do merengue e da cumbia existem em todos os países latinos.
O momento que melhor condensa essa questão sobre os rumores e o mal que estavam me fazendo talvez seja a malfadada entrevista a Barbara Walters. Conhecida por suas entrevistas com algumas das pessoas mais famosas e poderosas do mundo, ela tem uma habilidade única de extrair detalhes pessoais nunca antes revelados. Minha entrevista foi ao ar na noite da entrega do Oscar, no dia 26 de março de 2000, um domingo. Na época, eu era provavelmente uma das pessoas mais conhecidas do mundo da música e, por causa de toda a divulgação na mídia que eu vinha fazendo nos quatro ou cinco anos anteriores, estava superexposto. O álbum Ricky Martin e a música “Livin’ la vida loca” ainda estavam vendendo como água, e na época eu também estava em turnê mundial de shows.
O especial com Barbara Walters era uma parte da programação na TV muito aguardada, em uma noite com um dos maiores índices de audiência do ano todo.
A entrevista foi gravada em Porto Rico. Depois de andar um pouco pela praia, sentamos em uma varanda para a entrevista. Ela me perguntou sobre meu sucesso, minha vida como cantor, minha família e, como boa investigadora que é, quando eu menos esperava, ela disparou a pergunta que eu mais temia: ela me perguntou sobre minha sexualidade.
Respondi da mesma forma que sempre respondia: disse que era um assunto particular e que não era da conta de ninguém. Mas, em vez de aceitar minha resposta e continuar a entrevista, ela continuou a indagar sem ceder. Até certo ponto, entendo que ela só estava cumprindo seu dever, mas me pressionou bastante, talvez achando que pudesse conseguir algum tipo de confissão minha para o programa. Não sei. Mas o fato é que não dei a ela o que ela queria.
Continuei firme com minhas respostas – tanto quanto foi possível –, mas lembro-me de que minha visão ficou turva e meu coração disparou. Senti-me como um lutador de boxe que acaba de ser acertado por um soco decisivo – cambaleante e na defensiva, mas já nocauteado, prestes a cair. Mas não caí. Não sei como consegui, mas fiquei firme. Agora, enquanto escrevo, dou risada, mas não tenho certeza se é uma risada nervosa ou se, a uma certa distância, acho engraçada aquela situação absolutamente ridícula. O fato é que só posso rir.
Anos depois, Barbara admitiu que talvez não devesse ter feito aquela pergunta, e lamentou tê-la feito. O que passou, passou, mas eu apreciei muito o gesto, porque significa muito para mim ela compreender que eu simplesmente não estava pronto. Apesar dos rumores que circulavam, as coisas ainda não estavam claras na minha cabeça, e sair do armário simplesmente não era uma opção. A pressão externa só serviu para aumentar minha angústia. E, em vez de fazer o meu momento – o dia em que me sentiria à vontade para revelar minha verdade ao mundo – aproximar-se, afastava-o ainda mais. Cada episódio desse tipo me fazia enterrar ainda mais meus sentimentos, em uma tentativa de continuar a abafar meu sofrimento.
Hoje, acho que teria sido fácil dizer sim, e tenho orgulho de quem sou. Apesar de nunca ter realmente mentido, eu me esquivava da questão e era muito desajeitado em relação a ela. Agora vejo que era muito simples, eu estava fazendo uma tempestade em copo d’água, mas, naquela época, não era assim que eu via, nem como me sentia. Não importa como eu vejo – o importante é que não era a hora. Por quê? Porque não era. Simplesmente não era.
Na verdade, não permaneci em silêncio só por mim. Apesar de assumir toda a responsabilidade pelas minhas decisões, também sentia que precisava pensar em como minhas atitudes poderiam afetar minha família, meus amigos e todas as pessoas ao meu redor. Sempre cuidei dos que estão perto de mim, e faço isso porque gosto. Minha vida sempre foi assim, e isso realmente me deixa feliz. Algumas pessoas acham que não é saudável, e eu concordo. É algo que precisa de dedicação. Sei bem que o que faço inevitavelmente repercute nas vidas de outras pessoas e, naquele momento, sentia que, se falasse sobre minha sexualidade, as pessoas me rejeitariam e minha carreira provavelmente estaria acabada. E, se minha carreira acabasse, quem iria sustentar minha família? Agora, muitos anos mais tarde, percebo como até mesmo pensar nisso era absurdo, mas era como eu via então. Assim, continuei a ter relacionamentos com homens, mas sempre os escondia. Ficava furioso ao pensar que as pessoas achavam que podiam entrar na minha casa e ver quem estava na minha cama. Qualquer que fosse minha orientação sexual, eu ainda deveria ter direito à privacidade.
Toda a pressão do trabalho, assim como da mídia, começou a se tornar tão opressiva que o palco era o único lugar onde conseguia ter alguma sensação de paz. No entanto, depois de algum tempo, até isso começou a perder o apelo. Pela primeira vez na vida, até no palco frequentemente me sentia pouco à vontade, insatisfeito e vazio. Não entendia por que estava fazendo o que fazia. Foi quando disse a mim mesmo: “Espere! Espere um pouco! Essa é a única coisa que você realmente adora fazer, e até aí você está começando a se sentir mal? Está na hora de parar”. O palco era a única coisa que me restava, a única coisa que adorava sendo um artista, e até isso eu estava começando a perder.
Não sei se o público percebeu, mas tenho quase certeza que sim. Em outras palavras, se alguém tivesse visto um dos meus shows em Nova York ou Miami, que aconteceram no começo da turnê, quando eu estava me divertindo, e depois assistisse ao mesmo show na Austrália, quando a turnê estava para ser encerrada, definitivamente teria notado a diferença. No fim, eu estava lá, cumprindo meu dever, mas o tempo todo estava pensando: “Mal posso esperar que isso acabe para poder voltar para casa”.
Só queria dormir. Não queria mais nada. Então, chegou o momento em que segui o conselho da Madonna e me desconectei. Estávamos na Austrália, e a parada seguinte era a Argentina. Um estádio cheio de gente nos aguardava em Buenos Aires, mas eu cancelei. Simplesmente não aguentava mais. Esse era o segundo concerto que cancelava na vida, e a primeira vez havia sido porque estava doente.
Todo mundo na banda perguntava: “Mas o que aconteceu? O que você quer dizer com nós vamos para casa?”.
“É isso”, dizia para eles, “vamos para casa. Estou totalmente acabado; simplesmente não aguento mais.”
“Mas Ricky, só falta uma semana para a turnê acabar”, eles me diziam. “Vamos lá, só mais uma semana”.
Em circunstâncias normais, teria feito aquele esforço extra e me forçado a consumir até a última gota de energia que me restasse. Mas dessa vez foi diferente, e sabia que eles nunca seriam capazes de me convencer. Simplesmente não podia – não conseguiria – continuar, e não havia uma alma viva que pudesse me convencer do contrário. Tudo que queria naquele momento era ir para casa.
Acho que foi uma crise de ansiedade. Eu estava esgotado, e nem mesmo o palco era o suficiente para amenizar meu desconforto. Se não queria mais fazer shows, qual era o sentido de tudo aquilo? Precisava parar, porque quem sabe o que aconteceria comigo se tivesse continuado mais uma semana naquele ritmo?
Estava trabalhando sem parar há dezessete anos – mas os últimos quatro tinham sido brutais. Primeiro, a turnê de A medio vivir, depois Vuelve, logo em seguida o Grammy e toda aquela loucura de “Livin’ la vida loca”. Quatro anos em turnê era demais. Fazia todo sentido eu estar me sentindo daquele jeito.
Além de tudo, não gostava de quem eu era. Não gostava do que estava sentindo. Comecei a me comportar como nunca tinha me comportado antes. Não desrespeitava ninguém, não gritava com ninguém ou alguma coisa desse gênero, mas comecei a perder minha disciplina. Chegava atrasado. Brincava com o tempo dos outros. Lembro que uma vez estava em turnê na Alemanha e tinha um compromisso às nove da manhã, e cheguei no fim da tarde. Talvez para outros artistas isso seja sem importância, mas não para mim. Cada um tem seus padrões. Para mim, não aparecer nos ensaios ou faltar a um compromisso é o fundo do poço.
Então, parei de trabalhar. Voltei para casa e me isolei do mundo. Ficava limpando minha casa, tinha muito pouco senso de humor e nenhuma paciência. Passava dias inteiros em casa de pijama – o que é totalmente contra minha natureza. Sempre fui muito ativo, energético, totalmente desperto logo de manhã cedo, sempre pronto para o dia que me aguardava. Mas, naquele momento, não queria saber de horários, obrigações ou compromissos. Tudo o que queria era silêncio.
Agora, quando penso nisso, vejo essa época como o início da minha metamorfose. Comecei a avaliar o que queria da minha vida, do que precisava ou não. Foi como um renascimento. Junto com esse renascimento, foi como se também estivesse passando por um processo de desintoxicação espiritual para poder voltar à essência, à calma. Estava deixando de ser a pessoa que havia sido naqueles últimos anos para me tornar um novo eu. Achei o processo muito interessante, mas quem me conhecia melhor, meus amigos mais próximos, simplesmente não conseguiam entender o que estava acontecendo.
Um dia, uma amiga próxima veio me ver e, chocada com o que estava acontecendo, gritou comigo, como se quisesse me acordar do torpor em que me encontrava.
“Você está se acabando”.
“Não!”, gritei em resposta. “É assim que eu sou. Se não estiver gostando, vá embora!”
“Não vou a lugar nenhum”, ela respondeu.
Nisso, atirei um copo contra a parede e ele se quebrou em pedacinhos. Parece besteira, um ato isolado de desespero, mas o efeito que teve naquele momento da minha vida foi totalmente inesperado. Em vez de assustar minha amiga e ela ir embora, fui eu quem ficou chocado: a explosão me deu um baque emocional. Nos cacos de vidro espalhados pelo chão, vi o que estava acontecendo com a minha vida. Se não fizesse o que era necessário para consertar aquilo o mais rápido possível, eu também acabaria despedaçado em um milhão de pedacinhos. Não me reconheci em um gesto tão violento e compreendi como o problema era ainda mais sério do que estava disposto a admitir. Uma coisa é ser famoso e outra é ser totalmente controlado pela fama. Ser famoso pode ser muito positivo, mas ser controlado pela fama não é nem um pouco positivo. Embora achasse que estava fugindo de tudo para ser eu mesmo, meu comportamento errático era a prova de que a fama ainda estava controlando minha vida.
Não guardo arrependimentos, porque tudo o que aconteceu tinha de acontecer. Doeu? Com certeza. Mas aprendi muito. E isso é o importante.
A VIAGEM
HOJE POSSO DIZER que me perdoei por me deixar afundar tanto. Ainda há momentos em que penso sobre como deixei minha vida sair tanto de controle, como me deixei ser seduzido pela fama. Talvez pudesse ter agido e feito as coisas de outra forma, mas foi uma lição. Precisei enfrentar todos os desafios que se colocaram diante de mim para poder avançar no meu caminho espiritual. Cheguei aonde cheguei para aprender a lição e não cometer os mesmos erros no futuro.
Para compreender isso, porém, precisei chegar ao fundo do poço, segundo os meus padrões. Foi então que comecei a olhar para dentro de mim, para encontrar o caminho do meu despertar. Quando aquele copo se espatifou na parede, enxerguei tudo. Imediatamente comecei a reparar todo o dano que tinha causado a mim mesmo. Estava na hora de fazer algumas mudanças importantes. Parei de ter contato com as pessoas que tinham uma influência negativa sobre mim, voltei à academia e meditei muito. Fiz uma faxina geral e me dispus a avançar na minha busca espiritual. Precisava deixar todas as coisas materiais para trás – os carros, as casas e o jatinho particular que havia comprado – e andar a pé por onde ninguém soubesse quem eu era, ou, se por acaso fosse reconhecido, não fizesse a menor diferença. Precisava me reconectar com o menino de seis anos dentro de mim e, era uma questão de prioridade, deixá-lo feliz novamente.
Perguntei-me: Quem sou eu? Por que estou aqui? Qual é a minha missão? Minhas memórias mais felizes são da minha infância. O tempo passado com meu pai. Tomar café com meus avós à tarde. Ficar com minha avó na sala enquanto ela trabalhava em algum de seus projetos. Ouvir música com minha mãe. Voltando a pensar naqueles dias simples, tão felizes, percebi que precisava voltar ao início. Precisava voltar a ser um garotinho.
Comecei a praticar artes marciais e, em seis meses, fiquei um pouco obcecado: tomava café, almoçava, jantava, vivia e respirava capoeira – uma arte que combina elementos de música, jogo, luta e dança. Era como voltar a ser criança. Ia a uma academia de capoeira frequentada por pessoas dos dezoito aos quarenta anos. Mas quando estávamos praticando, todos virávamos crianças.
Também reservei um tempo para viajar. Atravessei os Estados Unidos com alguns amigos em um trailer. Claro que poderíamos ter feito a viagem em um ônibus luxuoso, como os usados nas turnês, com motorista e todo o conforto imaginável. Mas eu disse não. Não queria aquilo. Para começar, queria dirigir. E não queria por perto nada que me fizesse lembrar o trabalho. Se tivesse resolvido viajar em um ônibus bonito e grande, isso me faria voltar a lembrar a loucura das turnês, correndo de um show para outro.
De fato, o que eu mais queria era simplicidade. Nas paradas, não procurávamos um hotel chique, íamos a um camping onde pudéssemos ficar até a hora de voltar à estrada. Dirigíamos em turnos. Um dia, estávamos passando por uma pequena cidade no Texas e eu estava na direção. Ao que parece, ultrapassei o limite de velocidade, e um policial me parou.
“Eu estava mesmo acima do limite de velocidade?”, perguntei. “Nesta coisa enorme?”
“Sim, estava”, respondeu o policial. “Você estava a cinquenta e cinco quilômetros por hora e o limite é cinquenta”.
Entreguei a ele minha carta de motorista e, quando ele olhou, não acreditou no que estava vendo.
“Como?”, ele disse. “Ricky Martin? Aqui?”
“Sim, sou eu”, disse, resistindo à vontade de dar risada.
“Mas o que Ricky Martin poderia estar fazendo em uma cidadezinha como esta?”
Conversamos um pouco, contei sobre as férias e perguntei como fazia para chegar a um hotel. Mais tarde, naquela noite, morri de rir só de pensar em como sua família e os colegas da delegacia provavelmente não iriam acreditar nele quando contasse a história.
E assim foi toda a viagem. De uma cidade para a outra, sem luxo ou ostentação. Fui com um grupo de amigos, e no caminho encontramos outros grupos de amigos que moravam em várias das cidades pelas quais passamos.
Passei pelo Grand Canyon, Las Vegas, Vail, Aspen e pelo deserto de Mojave. Ia para onde queria, fazia o que queria, sem praticamente planejar nada. Adorei.
Pela primeira vez em muito tempo me senti totalmente livre, poderoso, capaz de fazer o que quisesse, sem me importar com o que diriam ou achariam. Tinha passado tanto tempo pensando em trabalho, no que se esperava de mim e no que precisava fazer a cada dia que tinha me esquecido de como é acordar de manhã sem ter planos.
Também fui algumas vezes para a Ásia. Fiz uma viagem à Índia que mudaria minha vida. Voltei. Passei uns tempos em Nova York e depois fui para o Brasil, em busca de novas sonoridades. Viajei para o Egito com alguns amigos, sempre tentando permanecer anônimo. Usava um chapéu e, quando chegávamos ao hotel, um dos meus amigos fazia o check-in, e eu ia direto para o quarto. Todo dia, quando eu saía, as pessoas olhavam para mim e diziam: “Será que é ele? Não. Não pode ser... Mas parece muito”.
Um dia, no Egito, contratamos uma guia para nos levar aos lugares históricos e turísticos e explicar o que estávamos vendo. Enquanto passeávamos, ela me olhava com o canto do olho, mas o tempo todo não disse uma palavra. No fim da tarde, ela não resistiu mais e perguntou: “Com licença. O senhor é o Ricky Martin?”.
Sim, sou. Mas não o que você conhece.
Agora sou o Kiki, prazer.
As coisas estavam mudando. Sentia agora necessidade de dedicar o maior tempo possível ao menino dentro de mim. Sentia que precisava desaparecer por um tempo e mergulhar em mim mesmo para me conectar com meus sentimentos mais verdadeiros, meu eu mais profundo. Amores apareceram e se foram, e me permiti vivê-los integralmente. Com mais calma e menos medo, com menos culpa e mais aceitação. Aprendi a amar-me novamente e a ser o menino espontâneo e cheio de alegria que tinha sido um dia.
O PRAZER DO SILÊNCIO
A PRIMEIRA COISA que fiz quando voltei a trabalhar foi gravar um disco em inglês, que seria o primeiro a ser lançado depois de Sound loaded. Mas ele demorou uma eternidade para ser feito. Então, quando estava mais ou menos na metade do caminho, parei de gravar em inglês e voltei a gravar em espanhol. Disso nasceu Almas del silencio, onde está a música “Asignatura pendiente”, citada anteriormente. Acredito que esse álbum, e mais especificamente essa música, dedicam-se ao menino dentro de mim. A experiência de fazer esse disco sem nenhuma pressão, fazer o álbum que queria fazer, foi um presente para o Kiki. Na verdade, a música de Arjona, “Asignatura pendiente”, é um tributo a esse menino, vem de tudo por que passei ao longo daqueles meses.
Não saímos em turnê para Almas del silencio, o que foi totalmente novo para mim. Em vez disso, fui para a Europa, Ásia, Austrália e América Latina só fazendo divulgação aqui e ali – tudo como eu queria, sem nenhuma pressão. Também fiz uma certa divulgação, e de um jeito ou de outro, o álbum acabou vendendo 1,7 milhão de cópias só nos Estados Unidos e recebeu discos de prata na Espanha, Argentina e Estados Unidos. É claro que isso nem se compara ao sucesso de Vuelve ou A medio vivir, mas fiquei satisfeito, porque foi um disco feito com tempo e sob as minhas condições, e, para um disco em espanhol, os números na verdade foram bastante bons. Depois, voltei ao estúdio para terminar de gravar o álbum em inglês, que eu tinha deixado pela metade. Aprendi a minha lição: nunca mais sair em turnê enquanto estiver gravando um álbum. É uma loucura desnecessária, nunca mais vou fazer isso.
O nome do álbum em inglês acabou sendo Life, lançado em 2005. Apesar de ser um disco sem dúvida interessante, com muitas influências e sons, devo admitir que não é meu favorito. Queria fazer um disco introspectivo, contemplativo e multifacetado, como a vida. Queria me conectar com minhas emoções. Acho que consegui, pelo menos até certo ponto. Mas esse álbum acabou sendo influenciado por muitas culturas diferentes, e uma parte da crítica a ele foi que, apesar de as músicas serem boas por si mesmas, o álbum como um todo sofria de uma certa falta de coerência.
Minha resposta sempre era: “A vida é exatamente assim”, já que cada fase ou período é diferente. Nesse sentido, não sou a mesma pessoa de uma hora atrás, ou a mesma de ontem, ou a que era de manhã. E é justamente isso que torna a vida tão interessante. Dito isso tudo, porém, sei que os críticos estavam certos: a produção ficou espalhada, em grande parte devido ao fato de o álbum ter sido lançado cinco anos depois do começo das gravações. Quando se começa a trabalhar em uma coisa, após cinco anos provavelmente muitas coisas terão acontecido. Novas emoções, novas experiências de vida – e até nova tecnologia! Pode ser um computador, ou uma mudança na fabricação de um instrumento, mas a tecnologia cria uma série de novos sons e influências. E tudo isso afeta o produto final.
De qualquer forma, o álbum era de uma qualidade impecável. Quando paro e penso sobre por que demorei tanto tempo para gravá-lo, acredito ter sido porque estava me escondendo. Em certa medida, acho que ainda estava afetado por tudo o que tinha acontecido com “Livin’ la vida loca”, a completa exaustão a que tinha chegado e a intensidade de toda a experiência. Foi quase como ficar com o coração partido depois de se apaixonar loucamente. Ainda amava o palco, e me sentia bem diante da plateia, mas, no fundo, temia que o que tinha acontecido antes acontecesse de novo. De certa forma, queria estar lá, mas também não queria. De jeito nenhum.
Demorei algum tempo antes de estar pronto para encarar o mundo novamente. O tempo que passei sob os olhos do público foi um dos períodos mais importantes da minha vida. Aprendi uma lição de humildade: por muito tempo me vi como uma espécie de super-homem que nada poderia deter. Aprendi quais eram os meus limites e, o mais importante, aprendi como dizer aos outros quais são os meus limites. Não iria mais fazer tudo que me fosse pedido; não podia mais estar em todo lugar ao mesmo tempo. E nem queria. Aprendi a amar a minha vida novamente, e, acima de tudo, reconectar-me com a pessoa que era antes. Percebi que tudo por que tinha passado nos últimos anos tinha sido sem dúvida um sonho – mas no caminho tinha me esquecido de ser eu mesmo.
Aprendi que, para ser o dono da minha vida, precisava tratá-la com respeito e responsabilidade. Quem deve decidir o que é melhor para mim sou eu; preciso buscar o que preciso, e quando preciso, e não deixar outra pessoa ditar que eu deveria ou não fazer. Minha vida é minha e eu a controlo. Até hoje, esse é um propósito a que me prendo muito, porque, se eu não cuidar do meu templo, ou impedir que outros o invadam, então quem vai?