Faltavam cento e vinte dias para o Natal quando a mãe de Susana Ribeiro de Andrade morreu, de repente, sem causa aparente, o coração desistiu de bater. Rui Vieira escreveu-lhe um e-mail comovente, quase poético, revelando que não conhecia a ternura materna, duvidava até da possibilidade da sua existência, contudo sabia que a descrença se devia aos seus traumas e nada mais, as mães podem ser um enorme consolo, espero que a tua o tenha sido e que fiques com memórias felizes. As infelizes deita-as fora, a morte leva-as, já não precisam de pesar tanto. Na verdade, o e-mail era mais para si próprio, como reconheceu mais tarde junto de Pedro Lopes que, por seu turno, quis abraçar e reter todo o sofrimento de Susana Ribeiro de Andrade, mas não se permitiu, ou o vírus já não o permitia, as liberdades eram restritas, o comportamento condicionado, e ela ficou ali, depois de lhe ter dito, a minha mãe morreu, não sei como será agora, embora soubesse, e Pedro Lopes limitou-se a sussurrar, lamento, lamento imenso, do que precisas? Não precisava de nada, estava sozinha. Sem marido, sem pais. Restava-se. Tinha, por isso mesmo, de se bastar, e essa ideia era perturbadora, abatia-a pensar na sua solidão, na imensa solidão de ser sozinha, para depois encarar Pedro Lopes e dizer, em jeito conformado, eu não tenho muito jeito para a vida, pois não. Não era uma pergunta, poderia parecer uma pergunta, faltava-lhe, todavia, a entoação certa, ela confirmava em voz alta o que sentia e o homem à sua frente, sem a poder abraçar, sem dominar com mestria as palavras para aquele momento, limitou-se a dizer, estamos todos sozinhos, Susana, estamos todos. Ela afastou-se para ir lavar a cara na casa de banho, foi o pretexto para se afastar, conter as lágrimas, ver-se ao espelho para entender se ainda existia, e que existiria ali da sua mãe, ficara com o quê? Pedro Lopes começou a trocar mensagens com Rui Vieira. O que os uniu em definitivo, concluiriam certa manhã a tomar o pequeno-almoço na cama, foi a tragédia de Susana Ribeiro de Andrade. Rui Vieira deixou de estar desatento. 

Nessa madrugada, pelas cinco e quarenta, Rui Vieira entrou na estação de rádio. O segurança estranhou, a hora e o rosto, não sabia quem ele era, teve de mostrar o cartão da empresa, a carteira profissional de jornalista e, por fim, o Cartão de Cidadão, o segurança era minucioso e lento. Havia ainda o gel para as mãos e antebraços, os protectores de sapatos, a máscara que era retirada de um suporte que as cuspia imaculadas, dentro de uma protecção. Onze minutos mais tarde, bateu à porta da cabine de Pedro Lopes e sorriu, sentiu-se a sorrir, por conhecer aquele rosto e, em simultâneo, por lhe parecer que era a primeira vez que o via. Entrou e o técnico fez-lhe um gesto com a mão, estava a falar com Susana Ribeiro de Andrade, olha quem temos aqui. Ela olhou, viu tudo ligeiramente desfocado, era a sua mania de dispensar os óculos, não preciso de ver ao longe, o longe está precisamente longe, por isso os óculos ficavam por ali, mas mesmo com eles no rosto perguntou-se, quem é aquele homem?, nunca tinha visto Rui Vieira, só aquela fotografia que teria dez anos. Mas olharam-se, num reconhecimento fácil, sorriram, ela percebeu que Rui Vieira viera fazer o possível, mostrar o rosto, dizer estou aqui, não te conheço, mas somos amigos, não conheci a tua mãe, mas estou aqui para ti, estamos juntos, é possível dizer-to, sem to dizer realmente, que não estás sozinha, não estamos sozinhos. Se aquele momento fosse encenado haveria uma pausa deliberada, todos a verem-se uns aos outros, a estarem uns para os outros. Ela abriu o microfone e despediu-se, amanhã cá estarei, Susana Ribeiro de Andrade, da meia-noite às seis.