Deu-se aquele momento bizarro em que percebeu que o coração estava a martelar no peito, ameaçava sair pela garganta, o coração em modo terrorista e, depois, a percepção de que nada iria correr bem, um suor súbito. Fechou os olhos com força, demasiada força, pareceu-lhe que não sentia as pernas, que o tejadilho do carro o iria esmagar. Havia o barulho de tudo aquilo e a rádio que continuava a tocar, como se nada fosse, ainda hoje entende aquela canção como um prenúncio de morte, Randy Crawford, «One Day I’ll Fly Away», algo que faria pouco sentido, porque se sabia dentro do carro. Nunca tivera desejos de voar, não sabia se gostava realmente daquela canção, mas estava a ouvi-la, embora fosse óbvio que uma parte significativa da estrutura do carro estava desfeita, porque não conseguia mexer-se, nem o máximo do esforço o ajudaria, estava de cabeça para baixo e sentia-se latejar, um latejo permanente e alargado, invadindo o corpo todo, sabia que estava a ver, que conseguia ver, a mão tinha sangue, o cinto vincava-lhe o peito, doía-lhe o peito, pensou, se morrer agora é mesmo muito estúpido, não posso morrer agora. Um apito nos ouvidos, tinha um apito contínuo, tortuoso, dentro da cabeça. O corpo estava preso, ele estava preso dentro do corpo. Mantinha-se ali não sabia há quanto tempo, as mãos pareciam-lhe gigantes e desfocadas, conseguia perceber que o corpo suava e sangrava, teve consciência do seu odor, da urina quente nas calças. Depois disso não existe memória completa. 

Rui Vieira ficou ali. Os bombeiros chegaram com os apetrechos para aquela situação, um pé-de-cabra, ele sabia dizer que era um pé-de-cabra, o pai usara um desses para salvar a tia que ficara presa na arrecadação, ninguém conseguia abrir a porta e o pai, com aquela pose habitual de homem prático, grande e solucionador de qualquer mal que possa existir no mundo, conseguiu abrir a porta, dizendo sempre, que chatice, vais ter de comprar outra porta, dei cabo da porta, e a tia a chorar e a dizer que estava ali há horas, que ainda bem que alguém a ouviu, graças a Deus que alguém a ouvira, porque não há rede de telemóvel na garagem. Portanto, havia um pé-de-cabra e ainda uma máquina que soldava, não, soldar não pode ser, a ideia era separar a chapa, tirar o rapaz lá de dentro, é um rapaz, não é? Sim, é um rapaz, ou um homem, não se percebe, não é uma mulher. Era uma máquina de dessoldar, decidiu Rui Vieira, ciente do erro, do seu diminuto vocabulário especializado, nunca sonhara em ser bombeiro, e havia faíscas e barulho, ele já não ouviu porque a verdade é que estar inconsciente é estar sem memória, pelo menos no seu caso. Mais tarde, quando recuperava o episódio e fazia o filme dentro da sua cabeça, pensava sempre no erro de decidir por máquina de dessoldar. Não se recorda de ser transportado na ambulância, de ter entrado pelas urgências do Hospital de Santa Maria, de lhe terem rasgado as roupas, de ouvir um médico internista berrar que precisava de um cirurgião, tem a cabeça toda aberta, depressa, chamem o Villar, por amor de Deus, se é para se salvar, este homem precisa do grande médico. Nada, não tem uma recordação, nem a ideia de morte a pairar sobre si, um túnel de luz. Nada. Rui Vieira não reteve qualquer fragmento, vislumbre, sombra do acontecimento que, por mero acaso, foi notícia de jornal. O homem que o levou a guinar o volante do carro vinha em contramão, estava com os copos, um azar, poderia acontecer a qualquer um, o homem estava desgraçado, seria preso, já tinha sido preso, duas filhas pequenas, perdera o emprego na véspera, não era mau tipo, existiriam atenuantes, o que interessava era que o rapaz inconsciente deixasse de o estar. 

Esteve em coma durante quatro dias. A mãe apressou-se a chegar a Lisboa, o namorado, apanhado de surpresa, limitava-se a dizer, meu Deus, não posso acreditar, meu Deus, não posso acreditar. O pai manteve a serenidade, sempre com aquela pose de gigante esclarecido, a eventual aflição via-se no olhar e somente aí. A irmã tinha deixado os sobrinhos com a sogra, dois rapazes endiabrados e eléctricos e uma menina doce, e ali estavam os quatro, no hospital, à espera. Nos primeiros dois dias não arredaram pé, limitaram-se a ficar ali, a mãe a olhar o namorado, o namorado a olhar a irmã, o pai sem olhar. A enfermeira-chefe veio conversar com eles, manteve o tom de voz baixo, um esboço de sorriso, sei que estão preocupados, mas não adianta estarem todos aqui, façam turnos, precisam de descansar, o hospital não possui as melhores condições para as famílias, peço desculpa, quem é o contacto de emergência? Responderam todos, a mãe claramente ofendida com a presunção do namorado. Quem é ele?, quis saber a mãe, e a irmã de Rui Vieira, na aflição, sem considerar o segredo que jurara proteger há tantos anos, no cansaço de tudo aquilo, a deixar cair o pano, a anunciar que aquele ali ao lado era o namorado. É namorado dele, ele que estava a lutar pela vida, se é que estava a lutar, a irmã tinha ideia de que ele era uma pessoa que aceitava tudo com certo sentido de normalidade, fosse isso o que fosse, não lutaria, portanto talvez estivesse a pairar no bloco operatório, a ver-se moribundo e aberto na mesa, a cabeça aberta, pessoas, médicos, a bisbilhotar o que se passava lá dentro. Conseguiu ouvir a Suite n.o 1 de Bach, a irmã num múltiplo pensamento a vê-lo esvoaçar, olhar-se com curiosidade, enquanto um violoncelo triste, com a melancolia divina de Bach, mantinha a tensão, a urgência de tudo, a vida suspensa. Ela imaginava o cenário com facilidade, não queria pensar em mais nada, muito menos na sua inconfidência, o irmão passara uma vida inteira a disfarçar, a evitar este confronto com os pais. Os pais católicos, a missa ao domingo, o grupo de leitura da Bíblia, os pais que eram, assumidamente, homofóbicos, tal como eram racistas. Há quanto tempo é que isto dura, perguntou a mãe com hostilidade, como se tivesse sido esbofeteada, e ela abanou a cabeça, há uns meses, creio que há uns meses, mas ele é..., ó mãe, é gay, sim, sempre foi, o que estás para aí a dizer, filha, é o quê?, desde pequenino? 

O namorado, Miguel Noronha, um homem alto, barba bem aparada, o cabelo curto, os olhos verdes, as mãos grandes, mãos de pianista, não percebia se devia estar ali ou se o correcto seria dar espaço à família, àquela mãe que o encarava com suspeição, ao pai que nem considerava a sua presença. Estar apaixonado não lhe conferia qualquer estatuto oficial. Não, espera, não era verdade, não sabia se estava apaixonado, sentia-lhe a falta, o sexo era bom, com a mesma dinâmica, mas a paixão era algo que se rezava com um entusiasmo que não sentia. Talvez fosse por Rui Vieira ser mais novo, não muito mais novo, ainda assim poderia dizer-se de outra geração. 

A experiência, que o moldava, revestia-se de importância, a experiência era ter já chorado, ter já disfarçado, ter já feito o luto de um amor que podia ser o amor certo e, por fim, fora apenas um amor com prazo de validade. Não iria ceder facilmente, não poderia dizer que estivesse apaixonado, palavra desgraçada e sem tino, pronta para pregar partidas. 

Miguel Noronha encarava Rui Vieira desvalorizando-o, infantilizando-o, promovendo a sua pouca relevância, não que fosse insignificante, nada disso, não poderia é ser muito relevante, não poderia ser mais do que ele, Miguel Noronha. Não estava disposto a sofrer. Autopreservação. Assim, poder-se-ia dizer, mais uma vez, que não estava apaixonado, ou não contava estar outra vez desse modo ardente, cego e impróprio, porque não se atrevia, porque antecipava a dor de uma separação, era melhor nem pensar. A separação era o seu tema, a inevitabilidade disso mesmo, a precaridade de tudo, dele próprio, do corpo que não lhe respondia do mesmo modo, um traidor, um empecilho. Não, não era só a crise da idade, de ver como a experiência se acumula e rouba a capacidade de deslumbramento, de ilusão. Era mais do que isso, Miguel Noronha vive em dois mundos paralelos, no carril da vida é conservador, gentil, católico, profissional, no outro carril, menos ligeiro, menos recto, é bissexual, desconfiado, um não-sentimental, rude. Em ambas as dimensões há ainda o medo, não que padeça de um medo constante, porém existe e revela-se em pequenas coisas, pensamentos circulares, uma tendência para projectar o futuro numa toada sempre sem remédio, pessimista, entristada. Acima de tudo, em Miguel Noronha, o que se destaca é a elegância e, num hospital, cenário pouco propenso a certas evidências, a elegância serve-lhe de pouco, é atormentado com os piores pensamentos, ele vai morrer, é evidente que é para morrer, e eu nem consigo rezar, pedir-Lhe, pedir por ele. Incapaz de se concentrar, começou a andar de um lado para o outro, evitando passar perto da família. Tinha a certeza de que ele, o seu amante moribundo, quem sabe se já morto, não lhes dissera nada, a família é sempre um tecido frágil e ele conhecia a verdade sobre a infância e a adolescência de Rui Vieira. 

Era uma história quase banal, tinha-o dito a rir durante o segundo encontro. E ele não argumentara, deixando-o contar em linhas gerais o interior do seu armário almofadado, e a banalidade fizera com que Miguel Noronha apenas retivesse vagamente a história, era demasiado para um segundo encontro, uma relação que se propiciara através de uma aplicação na Internet. Não precisou de ouvir concentradamente, ouvir e fixar pormenores era conferir àquele encontro um poder que não estava disposto a dar-lhe. Apesar disso, soube que a sexualidade sempre fora um tabu, que existem famílias como as de Rui Vieira, capazes de não ver, de não acreditar que, no fim de tudo, não haverá um casamento com uma moçoila loira que dará muitos netos, reforçando a prole e a ideia de uma família tradicional. O que seria uma família tradicional? 

Miguel Noronha já se instalara em Lisboa havia dez anos, vivia num apartamento em Campo de Ourique, chão em tacos de madeira, tectos trabalhados, uma certa patine que, segundo acreditava, coincidia com a elegância de que a vida deveria ser feita. Um amigo tinha-o instigado a ter a aplicação Grindr, tinha mais anos de existência do que o Tinder, explicara, um pouco mais explícito em termos de sexo, rira-se, podes descarregar e ver quem está próximo de ti e escolhes, se é para sexo é para sexo, mas também tens as outras possibilidades, tu que és um romântico, rematou, irónico, o amigo. A ironia era a sua figura de estilo preferida. Sim, ele entendia a ironia, tinha extirpado o romantismo da sua pessoa, à pancada, porém conscienciosamente. Fora, em tempos, romântico, vinha-lhe dos livros e dos Verões em casa da avó, as vinhas e o Douro e aquele raio de luz que possibilita todos os sonhos. A avó dizia-lhe que tudo era possível, até uma mulher mandar em hectares e hectares de vinhas, uma mulher a mandar nos destinos da família é o melhor que pode acontecer, querido, as mulheres têm talento para o futuro, para assegurar o futuro. Naquele Agosto iniciático em que acabara de fazer treze anos, e em que o corpo parecia ter um comando exterior, obrigando-o a coisas por instinto, Miguel Noronha soube que o mais estimulante, o que fazia a temperatura subir, o corpo criar um suor estranho, frio e quente ao mesmo tempo, incapaz de se entender, era observar o corpo dos rapazes que trabalhavam na quinta, observá-los à distância e sonhar com as suas acrobacias. A avó sabia, ele tinha a certeza de que ela sabia tudo, porque era esse tipo de mulher, razão pela qual ele sempre se sentira bem perto de mulheres. Não as temia, não as julgava, ou melhor, acreditava que eram capazes de tudo, talvez por ser esse o exemplo, a avó poderosa, a mãe independente, todas as mulheres podiam ser assim, podiam ser o que entendessem. A infância tinha essa lucidez e ingenuidade, Miguel Noronha deixava-se acarinhar por aquela bonomia feminina. A avó testava os barris e ele tomava notas, acidez em demasia, este está perfeito, que é feito dos taninos aqui?, saiu mal, este vinho, ora prova, Miguel, prova que já tens idade para ir sabendo dos mistérios do vinho. O pai, em Londres, exigia dez dias por ano, e ele entrava no avião com a solenidade de quem vai para uma missão militar; a avó dizia-lhe, Miguel, nada de caretas e muito menos de lágrimas, é o teu pai, não é um carrasco, vais dez dias, não vais um mês, tudo é relativo, quantos dias tem um ano, pois, trezentos e sessenta e cinco, o que são dez, nada, é isso, nada, tens razão. E ele ia para a casa do pai, uma casa estreita com janelas altas e ornamentadas com cortinas de veludo, a madrasta exclamava, oh, Miguel, e o nome arrastava-se, how are you, dear?, e o dear, ele mesmo, que sim, muito bem, o melhor possível no seu inglês de professor privado, jolly good, dez dias a ser outra pessoa, a ser elegante, como lhe assegurava a avó, era a ordem do mundo, do mundo que interessa. O pai encarava-o com a diplomacia inglesa, distância social garantida, para que a intimidade não se revelasse demasiado amarga, na verdade, a melhor receita para as relações familiares era mesmo essa, intimidade zero, nada de partilhas e desabafos sobre a vida, tu não contes a vidinha, já o dizia um poeta de quem Miguel Noronha gostava, embora, aos doze ou treze anos, lhe fizesse falta sentir que tinha um pai que iria cumprir o seu papel. Existem pessoas que não são capazes, não é que não queiram, não são capazes, e ele que sim, mãe, a considerar a ingenuidade dela, a amá-la com uma certa comoção, sabendo que já então sabia mais do que ela, o que sei eu?, era uma pergunta da mãe, não primava pela arrogância. O pai tinha sido um erro muito evidente, muito esperado, a avó contava com certa graça, mal pus os olhos no teu pai vi-te, era claro que a tua mãe ia engravidar, é como se ela tivesse escolhido aquele homem como se escolhe um cacho de uvas, acontece que as uvas eram promissoras e revelaram-se apenas azedas e pouco interessantes, o vinho é outra conversa. O vinho era ele. Do que gostava eu no teu pai, Miguel?, tu fazes com cada pergunta, olha, gostava de ele ser frio e pragmático e de me ter convencido de que sexo sem conversa era melhor, ele beijava mal, coitado, eu sabia pouco de beijos, está tudo num beijo, não olhes assim para mim, se eu não te disser estas coisas, vais aprender onde? E ele a ver-se na adega velha, na nova já não daria, porque a avó decidira instalar umas câmaras que tudo viam e que não faziam intervalo no seu registar da vida, isto depois de um assalto, havia uns anos, portanto a adega velha era melhor a muitos níveis, no entanto ele evitava ir para ali beijar os rapazes e as raparigas para descobrir os mistérios que confirmavam o que a mãe dizia, está tudo num beijo. Não se recordava de ver os pais juntos, muito menos de se beijarem; quando os imaginava juntos era como ver um filme a preto e branco, o pai solene, chato como o raio, palavroso e cheio de sabedoria, a mãe pequenina, a fazer do sorriso uma opção de estar, a conversar sobre sexo e sobre droga com aquele à-vontade de quem não é mãe, porque ele sabia que as mães dos outros estavam longe de ser como aquela mulher. Por isso, amava-a, com a tal comoção de saber que tinha sido gerado dentro do seu corpo miúdo, o respeito estava todo na avó. Não que a mãe não fosse respeitável, decerto que sim, não sabia bem como a definir, o mundo era governado pela avó e ela fazia-o de tal forma bem, com tanta eficácia e poder, que era para ela que olhava sempre. Uma mulher que se esquecia de ser velha. O pai perguntava sempre pela avó, nunca pela mãe, e Miguel Noronha estava treinado para responder com delicadeza, estamos todos bem, não há novidades, nem a pneumonia da avó, a colheita do late harvest falhada, a mãe que experimentara um namoro com um professor universitário convidado da Faculdade de Arquitectura do Porto para descobrir que não era por ali, ela ia tentando não desistir do amor, o amor é que parecia não querer nada com ela, ora era demasiado ambicioso, ora controlador, e ela demasiado livre, a minha mãe é a pessoa mais livre que conheço, disse ele certo dia, já adulto. A liberdade dela fora conquistada com sabedoria, não se opunha à mãe, não merecia a luta, a avó não estava interessada em exercícios de maternidade correntes, era uma mãe sem marido que criava uma mãe solteira e, entre as duas, tinham definido regras que não vinham nos manuais de psicologia infantil ou nos infelizes e sempre previsíveis manuais de auto-ajuda. Elas não precisavam de ajuda para se entenderem, era um facto que o melhor era ficar cada uma no seu canto, cada uma olhando a outra de soslaio, educadas, a tirar o chapéu num aceno como quem passa por alguém na rua, a reconhecerem-se, embora sem se verem realmente. A mãe de Miguel Noronha dizia, a minha mãe não me vê, não sabe nada, isso é muito importante para a boa relação que temos. E ele escutava estes comentários e compunha um puzzle de recordações alheias, reconstruindo a história das duas e dessa figura bizarra que era o avô, sobre quem não se falava, ou raramente se falava, porque era dispensável e nada trazia de bom. O avô abusador. O avô alcoólico. O avô excessivo. O avô que fora corrido da quinta a pauladas e pontapés, obra do responsável pela vinha de então, António Cunha Serra, a quem o mundo conhecia por António das Uvas, homem humilde, analfabeto, devoto da avó até morrer, sempre a dizer, a senhora é que manda, a senhora diga o que quer que acontecerá como quer. Tu não te lembras do António, não te lembras, Miguel?, era a avó nostálgica, já com um copo de vinho a mais, um jantar de domingo que se estendia preguiçoso pelas horas, e ele, encantado com a importância da mesa dos crescidos, a ouvir pequenos pormenores que enriqueciam a história da família. Foi descobrir o retrato do avô dentro de um livro de Kipling, junto a um poema intitulado «If», e aí estava sublinhado como a desgraça e o triunfo são igualmente impostores, um risco irregular a lápis, muito leve, sem grande convicção. Talvez tivesse sido o avô numa fase existencialista, o poema também referia mentiras e ódios, Miguel Noronha deveria ter catorze anos e não perdeu tempo com o que lhe escapava, admirando-se por encontrar na tal fotografia os olhos da mãe, algo que reconhecia em si mesmo e que não podia nomear. Tentara recolher informações avulsas junto de António das Uvas, sem sucesso, embora com a enunciação de pistas, pelas quais seria possível correr, durante muito tempo pensei que era um bom homem, não se trata as mulheres assim, muito menos a nossa, quer dizer, menino, não há violência que baste na vida?, olhe, com a sua mãezinha poderia ter sido bom e nem isso, eu cá não lhe sinto a falta, sabia de vinho como poucos, isso ninguém pode dizer o contrário, embora a senhora sua avó seja mais do que competente, tem os seus caprichos, é certo que sim, tem até muitos, não obstante, a maldade não lhe conhece o corpo ou a alma e já do seu avô não se pode dizer o mesmo, corri com ele naquela madrugada e não o matei porque Deus não quis, tinha desgraçado a minha vida, era o que era, se o tivesse matado se calhar tinha vivido em calma durante mais tempo, ainda teve a ousadia de voltar por três vezes, a insistir, a exigir, a sua avó nem saiu de casa, ele não passou da entrada da quinta, havia um cão que não gostava nada dele, cada vez que o via ladrava, ladrava, da última vez que cá apareceu, isto foi há muitos, muitos anos, vi jeitos de o matar e acho que o seu avô finalmente percebeu, por vezes os animais são melhores nestas coisas que as pessoas, fazem-se entender. 

Mãe, não sentes falta do teu pai?, e ela, muito rápida, naquele tom de voz semi-sussurrado de quem não precisa de gritar ao mundo para se fazer entender, a devolver a pergunta, tu sentes falta do teu? Estavam esclarecidos. Miguel Noronha prescindia bem da figura paternal, não o conhecia, não o idealizava. De certa forma, poderia dizer que pressentia um excesso no pai e que isso o perturbava, por não confiar no que poderia acontecer dentro desse exagero indefinido. O exagero era de maneiras, de contenção, de fachada, era um figura que vivia para o público, poderia ser alguém com quem se cruzava circunstancialmente, alguém que ele entendia ter poder, fosse quem fosse, era importante manter as aparências, viver na ilusão de que não é preciso praticar o bem, apenas a boa educação. A avó não era o contrário absoluto desta realidade, porém toda ela era coração, generosidade, atenção; era boa ouvinte e apaixonada pelo único neto de modo saudável, não penses que não vejo as tuas falhas, Miguel, vejo-as e tomo nota, o meu amor por ti não é cego, não me digas que não tiveste sorte, não estudaste simplesmente, se te digo que é à meia-noite, Miguel, entras por aquela porta à meia-noite, não me importa que idade tens, a casa é minha, faz-se como eu digo, a vida é muito mais simples se entenderes algumas coisas que são básicas, és educado, és dedicado, és altruísta na medida certa e egoísta quando tiveres de ser, não há uma receita exacta, cinquenta gramas disto e duzentos daquilo, tens de aprender, tens de estar atento, e vigia-te, vê quem és e quem queres ser. Raras vezes ficou de castigo e sentiu uma única vez a mão aberta da avó na cara, num encontro doloroso com a realidade, não se fala da família com outras pessoas, não se contam as nossas coisas, não se diz que os primos são isto ou aquilo, não se diz que temos transtornos, maluquices, coisas, somos elegantes acima de tudo e não discutimos dinheiro, Miguel, estamos entendidos? 

Quando chegou à idade de frequentar a faculdade, Miguel Noronha considerava-se um homem do mundo e romântico, a vida era-lhe favorável. Viajara, lera, vivera experiências com outros homens, com mulheres, com álcool, sabia de vinho o que muitos enólogos não suspeitam. Era um homem, tinha dezoito anos, era um homem feito. Não era precoce, tornara-se um bom observador do mundo e fizera da bitola da avó a sua. A vida era boa, prazeres pequenos e inúteis, crescera na certeza de que era possível ser-se feliz e, quando chegou à faculdade, o mundo ruiu porque se apaixonou e o alvo de tanta paixão era o seu oposto. Era irresistível, era um acontecimento nuclear. Parecia um príncipe árabe, diria mais tarde Miguel Noronha, os olhos num oceano, triste como as coisas tristes, afundado no desgosto de amor que conseguira evitar durante toda a adolescência, não te prendas, Miguel, o amor tem tempo, dissera-lhe a mãe. E ninguém o avisou de que poderia ser assim, repentino e mortal, absurdamente incoerente. Sim, agora compreendia como a desgraça poderia revelar-se uma impostora, como o triunfo era o seu avesso frágil e sem importância. Miguel Noronha, dezoito anos, morreu de amor às mãos de Rodrigo Casaco, aluno do segundo ano do curso de Arquitectura, moreno, atlético, misterioso, cruel e mentiroso. Foram três meses lancinantes, sem qualquer ordem, Miguel Noronha classificaria a experiência como uma guerra, três meses que duraram a eternidade de uma dor permanente, atormentado com a dúvida e com o medo, o medo de o perder, a dúvida de ser bom ou insuficiente. As discussões que tinham eram violentas, palavras atiradas, corpos espetados num prenúncio de pancada que acabava por não acontecer. Discutiam por qualquer átomo que esvoaçasse para a esquerda ou para a direita, a direcção não era importante, não saberiam explicar como surgiam, era uma palavra, o gesto de impaciência a deixar-se ver no rosto e, depois, a primeira incompreensão e Rodrigo Casaco a falar demasiado depressa, demasiado alto, a reduzir Miguel Noronha a um estatuto perto da inexistência, mas quem pensas tu que és, tu achas que tens razão, és uma merda, és uma merda. Saía porta fora com aparato e ruído condizente, nunca mais volto, vai-te daqui, vai-te agora, e a porta a bater e Miguel Noronha a sacudir as lágrimas, a tentar manter-se à tona de tudo e depois, rápido, ao telemóvel a pedir perdão, a assumir a culpa de o mundo ser redondo, de a gravidade existir. Miguel Noronha, esse astronauta do amor, a perder-se na rota, a evitar a colisão da maneira mais rasca possível, a dizer-se culpado de tudo, a suster o ar. Se me responder volto a inspirar, se me responder nunca mais nos chateamos. Três meses em estado pré-comatoso, a sofrer todos os dias, sem entender a razão de tudo aquilo. 

Quando Rodrigo Casaco apareceu na noite do Porto com um rapaz de Lisboa, não havia a menor dúvida de que tudo estava perdido, e Miguel Noronha, enfim, nada aprendera com a avó ou com a mãe, suplicou, chorou, fez perseguições e outras enormidades que não vale a pena mencionar, gestos de uma indignidade quase animal e dos quais se envergonharia uma vida inteira. Não era só a cabeça que o torturava com a imagem permanente do amante, agora ex-amante, era o corpo que ansiava só por ele. Estava condenado, não sairia dali, queria morrer. E estava neste estado lastimoso, escorraçado e infeliz, quando a mulher do costume o salvou. A avó chegou ao Porto com a sua importância, o cabelo impecável, as calças beges com pinça e vinco bem marcado, camisa azul-escura, Deus me livre do preto, colar de pérolas e um casaco de malha sem grande história além do conforto. Apareceu-lhe no pequeno estúdio que Miguel Noronha ocupava, uma casa em miniatura na qual a mãe vivera uns tempos antes de engravidar e o ter. É uma pequena casa protectora, dissera-lhe a mãe, fui muito feliz ali, tu também serás, é o princípio da independência. Amaldiçoado por Rodrigo Casaco, ele estava num lodo emocional que tinha assumido outra aparência, foi o que pensou a avó, que vinha com o discurso pragmático e que optou pelo silêncio, mal o encarou e teve dificuldade em reconhecê-lo, abraçou-o durante muito tempo e depois ouviu tudo, a história, os pormenores mais sórdidos, já que ele se esquecera de que ela era a avó, não teve vergonha ou pudor, precisava de contar tudo o que estava a viver, a razão pela qual já não queria viver. Tu não imaginas, ele mexia comigo de uma maneira, mas havia sempre um problema, um problema de merda, e as vezes que existiu penetração foram violentas, mas eu gostava tanto dele, avó, tanto, percebes?, era confuso e, por vezes, violento, mas era amor, tenho a certeza de que era amor, não podia ser outra coisa, nunca me senti assim. Ela ouviu, não interrompeu, não questionou. Ouvir é uma arte que poucos dominam, muitos consideram que o que dizem é mais importante do que aquilo que ouvem, a avó sabia ouvir, aprendera cedo, e ouvir, a maioria das pessoas não sabe, é um enorme poder. Quando o neto terminou o seu relato, mais infeliz do que um romance barato, ela despiu o casaco de malha e foi à cozinha ver se havia por ali uma garrafa de vinho, tinto de preferência, e um monocasta seria o ideal para o momento. Ele tinha uma garrafa de um precioso Julia Kemper Reserva e ela sorriu enquanto abria a garrafa, nem tudo estava perdido. Se ele esperava solidariedade ou uma repreensão, a falácia de tudo aquilo que estava a viver, a avó desiludiu-o com a seguinte frase, tens duas hipóteses, Miguel, ou ficas aqui e vais definhar porque tens idade para fazer demasiadas asneiras, ou vais para Lisboa, acabas o curso, conheces outras pessoas e não se fala mais deste homem miserável que te partiu o coração. Ele abanou a cabeça, não sabia, não sabia. Duas horas mais tarde, acatou. Entregou-se nas suas mãos e ela tratou de tudo, transferência de faculdade, aquisição de um pequeno apartamento com dois quartos, a tua mãe vai visitar-te, vais ver, e fez um acordo com o neto, tu fazes o curso até ao fim, e fazes de seguida, nada de deixar disciplinas para trás, porque o que podes resolver hoje não deixas para depois, fazes o curso até ao fim e depois começas a trabalhar, tentas ser feliz, és a melhor pessoa que consegues ser e eu estou aqui, estarei sempre aqui, sou solidária contigo até na asneira. Ele conseguiu esboçar um sorriso e, com os meses, a vida transformou-se. 

 

 

Conheceu Rui Vieira numa aplicação. Não era o Tinder, era equivalente, versão gay, realmente mais acentuada na vertente sexual e, se fosse honesto consigo e com qualquer outro homem, só estava disponível para isso mesmo, para nada mais. Havia dias em que nem para conversas de preliminares, vamos ao que interessa, és bottom? E no fim, o gesto sagrado e purificador de um banho, não se ocupava um minuto a considerar o outro, queria era que fosse à sua vida, é tarde, se não te importas vai-te, amanhã começo a trabalhar muito cedo. Amanhã é sábado, Miguel, fico mais um pouco; não, preciso mesmo que vás. Era sexo satisfatório, sem o peso do resto. 

Um dia, disposto ao sexo, entediado, foi para a aplicação pesquisar. Viu o perfil de Rui Vieira, não estava muito perto, evitava a eventualidade de encontros com homens que estivessem perto, a aplicação mostrava-lhe as possibilidades e as distâncias. Por vezes, assinalava alguém a metros de distância e Miguel Noronha tentava adivinhar quem seria, era uma pena não ter tanto conhecimento sobre a vizinhança, poderia ser um daqueles que é casado, que não saiu do armário. Odiava a expressão, quem a inventara?, porquê um armário, que sentido fazia? Sair da sua pele, como fazem as cobras, seria mais adequado, seria até apropriado, embora no seu caso a sexualidade não fosse um tormento. 

Uma noite percebeu que um dos homens na aplicação era um colega, estava mesmo muito perto, do outro lado da rua, e decidiu enviar uma mensagem, então, vens cá a casa? Trocaram uns galhardetes, sabiam que não estavam interessados um no outro. E Miguel Noronha era bissexual, achava que era, dormira com mais homens do que com mulheres, mas apreciava-as e não poderia dizer que o sexo não fosse satisfatório, o problema estava nas mulheres nunca chegarem a cumprir a expectativa mais ligeira, havia sempre um pormenor que as condenava e ele perdia o interesse. Poderia ser uma frase, um gesto que o enervava, o não se calarem, o vazio, havia por aí muitas mulheres vazias. 

Sexo por sexo, sim, porém existia um critério, uma escolha, era a magia das aplicações, e verificava sempre os perfis de homens, ia automaticamente para o mundo gay. Gosto de um homem moreno, enxuto, não demasiado alto e com mãos bonitas, isso era uma das primeiras observações, a fotografia mostrava as mãos ou não; muitos perfis não tinham sequer fotografia e isso Miguel Noronha não podia compreender. A exposição não o preocupava, se uma pessoa está numa aplicação aceita o jogo. Nunca escolheu um encontro com alguém que não mostrasse a cara. Poderia ir ao engano, muitas vezes foi, mas gostava de poder dizer, ah, gosto da cara deste, não aprecio barbas, parece másculo. As aplicações eram sempre um universo de pequenas surpresas, com variantes, as aplicações gay eram muito masculinas, muito rudes, sexualizadas. Sim, a ideia de uma comunidade gay em coro, a cantar Barbra Streisand e algo feminina, era um grande logro e era risível. A mãe tinha-lhe perguntado, é a mesma coisa?, quer dizer, ser gay é o mesmo que ser heterossexual?, e ele rira-se, mãe, estás a dizer disparates, estás a perguntar o quê?, se o sexo é igual, é o que cada um quer que seja, tal e qual como num homem e numa mulher, mas não há coisas só gays? Ela insistia, e ele a ser mauzinho, tipo, uma decoração gay? Uma comida? Bom, não gozes, Miguel, há um sentido de comunidade, imagino que nas gerações anteriores se possa dizer isso, mas agora és gay, és gay, não precisas de te inscrever num clube especial, e ela, olha, desculpa, não sei exactamente perguntar o que pensei que queria perguntar, acontece-me muitas vezes. 

Rui Vieira tinha um perfil com graça, uma boa fotografia de corpo inteiro, um sorriso cativante e mãos bonitas, pareciam bonitas. Trocaram mensagens, o tom inicial levou a que Miguel Noronha, incompreensivelmente, se contivesse, não era sobre sexo, depressa percebeu que não era por ali, e poderia ter desligado com facilidade, ele andava à procura de sexo, mas por alguma razão misteriosa deixou-se ficar a enviar mensagens de princípio de descoberta, sou arquitecto, embora não tenha a certeza de que alguma vez chegue a exercer a profissão, ah, jornalista, não sou de Lisboa, sou do Porto e sim, tenho algum sotaque, acho sexy o sotaque do Norte, já estás a gozar comigo, nada disso, é verdade, acho sexy

Ao fim de dois dias, diz lá se gostas de japonês, se foste ver aquele filme, se vives sozinho, se a fotografia corresponde a quem és, estás outra vez a gozar comigo, foram tomar um copo num pequeno bar de ostras, na Rua da Escola Politécnica. Miguel Noronha estava em modo vigilante, não queria gostar muito, não queria uma relação, faltava-lhe o sexo, sentia falta desse contacto, do prazer e da sedução e, de novo, o mistério de alimentar conversas era só isso, misterioso, e optou por não pensar. E as duas vezes que estiveram juntos foi também sobre isso, sexo depois de um copo. Miguel Noronha deixou-se levar pela conversa, apesar de uma certa urgência física. Rui Vieira viu-lhe uma perfeição até ali desconhecida, em especial admirava o seu porte, era um homem orgulhoso de ser homem e belo, a beleza era uma dádiva, pensava ele. A conversa fluía e o sexo foi, desde o início, impetuoso, algo agressivo ao começar, mas não no final. Rui Vieira teria dito, se lhe tivessem perguntado, que estava entusiasmado. 

Foi Miguel Noronha quem deixou o contacto esmorecer, não respondeu a umas mensagens, ignorou um e-mail, um telefonema. O outro foi menos rápido a perceber o recado, insistiu e depois concluiu, afinal era só sexo. Estiveram cinco anos sem se ver, sem saber nada sobre o que a vida lhes reservara. Durante esses anos, muitas coisas aconteceram, outras mantiveram-se exactamente na mesma. 

Rui Vieira ganhava estatuto na rádio pública, fazia as manhãs, era um esforço levantar-se às cinco, madrugada menina, pelas dez da noite estava impróprio para consumo, o corpo a exigir-lhe cama. Teve um caso com um homem casado, também jornalista, a quem o mundo achava piada e não imaginava que fosse bissexual. Ele não se importava com o casamento, muito menos com a mulher do seu amante, que era simpática, desempoeirada, sempre sorridente. Não estava apaixonado, era uma companhia num horário conveniente, seis da tarde, antes do jantar, uma hora e meia que ainda levava lá dentro conversa e partilha de fofocas sobre o meio. Os jornalistas estão sempre em actividade, mesmo quando têm os amantes despidos no sofá, conseguem dizer de repente, viste aquilo na Assembleia da República?, podiam ser mais desorganizados, é um partido infantil, no sentido de não terem crescido, eu acho-lhes graça, não votaria neles, mas acho-lhes graça, eu nem ando à procura da graça, cala-te, chega aqui. 

Outras histórias, pontuais, sem narrativa digna desse nome, foram acontecendo e ele manteve-se focado no trabalho, gostava de trabalhar, de sentir que podia fazer mais e mais. Possuía o brio dos desassombrados, sabia do seu talento, da sua capacidade de perceber que ali há uma notícia, aquela pessoa tem uma boa história para contar, e existia nele a disponibilidade para ouvir. Tinha uma noção romântica do jornalismo, perturbava-se com a dimensão absurda das fake news, com as manipulações e com os factos não confirmados, aborrecia-se com a politiquice, nunca com a política. Era capaz de discutir durante horas a necessidade de manter o jornalismo de investigação, sem jornalismo não há democracia, a informação não pode ser um poço sem fundo, não vale tudo. Ele sabia estar a viver um tempo em que a verdade era essa: valia tudo. Se anteriormente se dizia que uma notícia durava vinte e quatro horas, agora parecia-lhe que era uma correria maior e que não existia edição ou estratégia na divulgação da informação. Qualquer pessoa nas redes sociais era jornalista, dizendo coisas, atiçando os espíritos, destilando fel, muito fel. A Rui Vieira faltava-lhe a capacidade para compreender como a ética deixara de ser fundamental. Como qualquer pessoa poderia dizer fosse o que fosse. Sim, assumia o seu romantismo, o jornalismo tinha regras, o jornalismo não era opinião, eram factos, não sentimentos. Pasmado perante o desenrolar da vida de todos os dias, esforçava-se para ser o melhor profissional que conseguia, não se deixava enredar em jogos próprios da política, meio que cobria enquanto repórter, embora não lhe tivesse sido atribuído pela chefia um partido específico. Tudo na vida é política, dizia ele, tudo sem excepção, basta perceber que há liberdades, deveres e direitos, regras e fronteiras, isso tudo é um espírito político de ordenação, uma maneira de querer governar o estado das coisas. Durante esses anos, Rui Vieira esforçou-se por cumprir e ganhou o respeito da chefia e dos colegas. Era opinativo o quanto bastasse, era zeloso e nunca se atrasava. Era solidário com os seus colegas, ajudava, cobria faltas, substituía. Gostava de ser assim, profissional e afável. Os colegas tinham-lhe respeito, embora, se não quisesse branquear os acontecimentos, tivesse sido um percurso de conquista. Não tinha um néon na testa a afirmar-se gay, disfarçava de forma consciente como, aliás, fizera desde sempre com a família e com os amigos. Uma redacção, repleta de jornalistas, é uma montanha-russa, agora somos maus, agora somos simpáticos. Rui Vieira teve de fazer essa via-sacra, as bocas, as indirectas, a colega a perguntar-lhe, vou casar, vens à festa, diz-me só quem trazes, é menino ou menina? Ele driblava, era tão encantador que as pessoas se esqueceram de inventar olhares e tendências, já não queriam saber da sua sexualidade, dali não viria nada. Ele é um túmulo, giro que se farta, mas não aparece com ninguém, que diferença faz, um homem assim é um desperdício. Sabia de todas as conversas porque as conseguia imaginar, e sabia que o tempo esmorecia o interesse, o lado voyeur dos seus colegas, ávidos de maledicência, de uma surpresa. 

Sempre que se sentia mais cansado, lamentava a sua vida sem grande adrenalina e dizia, isto tinha tudo para ser um país, mas lá vou eu para mais um congresso partidário, uma comissão parlamentar, uma conferência de imprensa. Efabulava sozinho, construía universos paralelos com a mesma liberdade das crianças. Dentro da sua cabeça via-se em cenários de guerra, a visitar os campos de refugiados, a fazer reportagens que fossem isso mesmo, o reportar do que está errado no mundo. Ficava sentado no sofá a fazer zapping e a imaginar-se outra pessoa. Gostava de ser quem era e irritava-se com a sua própria bonomia. As pessoas são uma contradição, assegurara-lhe a irmã que, desde sempre, era a pessoa em quem podia confiar, a quem podia dizer tudo. Formavam uma boa equipa, protegiam-se dos excessos dos pais, das normas rígidas, do parecer bem. Rui Vieira dizia à irmã, fui adoptado, de certeza, ah, isso querias tu, mas és as trombas do pai, não digas isso, digo, digo. 

O pai. Sim, eram parecidos, ele porventura teria mais uns centímetros de altura, coisa pouca. O pai, vestido sempre com as mesmas cores, respeitador das normas, calado e assustador. Um olhar, bastava um olhar e eles, irmão e irmã, encolhiam-se, tinham essa imagem de si próprios, anos a fio a temer aquele olhar. O que tinham os olhos do pai?, o mesmo de sempre, o mesmo que todos os olhos têm e, no entanto, ali residia todo um rol de castigos que importava evitar. Tratava a mãe deles por jóia ou minha linda, tratavam-se na terceira pessoa do singular e, socialmente, faziam cerimónia um com o outro, como se andassem sempre em bicos dos pés, a evitar as minas terrestres da relação. Tu achas que os pais são felizes, eles nem sabem o que isso significa, o que gostam é de ter uma fachada para consumo externo, tu és cruel, e tu não tens memória. Mas tinha, Rui Vieira tinha memória e sabia que certas coisas, certos assuntos, não poderiam ser abordados. Cá em casa não se fala de política, de futebol ou de coisas esquisitas, dizia a mãe, no alvoroço da sua certeza. Coisas esquisitas, Rui Vieira conseguia encher folhas e folhas com elas, embora tivesse a palavra sexo no topo, associada a outras tantas que constituíam uma família de palavras. Aprendeu a viver em bicos dos pés, ele e a irmã, cúmplices nas coisas esquisitas, a votarem à esquerda sem o dizerem aos pais, tão conservadores, tão, a palavra seria demasiado próxima do fascismo, se fossem a pensar seriamente no assunto, por isso era melhor não o fazer. Conservadores teria de bastar. E era o grande pretexto para qualquer coisa, o racismo, tem de trazer esse seu colega de cor cá para casa?, atirava a mãe com desgosto, e ele, adolescente ainda aprendiz de terrenos prontos a explodir, a pensar nas cores, nas pessoas de cor, no bege da sua pele e de como gostava daquele colega que lhe sorria da carteira ao lado, que queria exibir por ser tão divertido, não pensara na cor, não pensara que as pessoas têm cores. A revolta fazia-a com a irmã, para lá da meia-noite, a fumar cigarros à janela, a cochichar desgraças e a expor ideias. Não, eles não eram racistas, não eram homofóbicos, não eram maus. Os pais sim, os pais eram maus. Compilaram vários volumes de estratégias militares para garantir que seria possível sobreviver e fizeram a promessa de que, na primeira oportunidade, sairiam de casa, tens de esperar por mim, é um ano, tens de esperar por mim, prometes-me? 

 

 

Numa conferência de imprensa, Rui Vieira era o jornalista, Miguel Noronha o assessor do secretário de Estado que chegaria a ministro. Acenaram, apenas um reconhecimento visual, cada um observando o outro de tempos a tempos, ambos concentrados nas respectivas tarefas. No final da conferência de imprensa, Miguel Noronha escreveu uma mensagem, um copo?, e a resposta foi, continuas parvo ou precisas de sexo? Miguel Noronha sentiu-se indignado, zangado, vilipendiado, ofendido. A pergunta de Rui Vieira desmascarava a sua elegância, a tal que prometera à avó. Viu-o despedir-se de um colega jornalista, arrumar um telemóvel na mochila, um tablet; optou por confrontá-lo, não pensou muito, foi impulso, lembrou-se de que ele tinha um sinal perto do coração, na verdade um conjunto de sinais que formavam um triângulo. Como o corpo tem memória, a sua pele recordou-se da pele daquele homem do outro lado da sala, arrepiou-se, julgou-se infantil no arrepio e depois apressou-se na sua direcção e disse, sei que fui estúpido, desculpa, era tudo muito intenso e eu não estava bem. Rui Vieira sorriu-lhe, um sorriso aberto, e manteve-se em silêncio por instantes, os olhos diziam mil palavras, a boca mantinha-se cerrada, até que, bom, podemos jantar um dia destes, que tal hoje, hoje?... e foram jantar nessa quarta-feira, era uma quarta-feira e durante muito tempo, vivendo na ilusão de uma paixão que sabia estar prestes a rebentar, Rui Vieira encarava todas as quartas-feiras como uma comemoração, ainda estamos juntos. Miguel Noronha deixou-se apanhar até certo ponto, não cedia na totalidade, era até ligeiramente cruel, tu sabes que eu já dormi com mulheres, tu não, que estranho, porquê?, não entendo. E Rui Vieira a dizer-lhe, sei quem sou desde sempre, sou gay, é assim, a minha família não faz ideia, nunca falámos sobre isto, nunca conseguiriam acreditar caso lhes fossem dizer, ah, o nosso filho, credo, não, Rui Vieira imitava uma voz esganiçada, que pretendia ser da mãe. Ele rira-se, temo o pior, não imaginas. Nunca falar sobre a sexualidade de um filho pareceu, a Miguel Noronha, um enorme engano, um desperdício de energia aplicada a guardar um segredo que não o era, e explicou o tipo de mãe e de avó que tinha. O outro não estava tão interessado nesse contar de histórias, entristecia-o, e era a prova de que a sua vida estava do avesso. Miguel Noronha gozava-o, era melhor teres experimentado com o sexo oposto, talvez andes enganado, e voltava a falar de mulheres, gosto de mamas, é simples, e cada vez que dormi com uma mulher não foi um sacrifício, foi uma descoberta, e depois concluí, até ver, que gosto mais de homens. Então és bissexual, gosto de homens, está bem. 

Ali no hospital, Miguel Noronha sabia que não se tinha deixado apanhar totalmente pelas teias amorosas, não era uma paixão, porque nada seria como aquele amor que o desfizera e o exilara do Porto, nada, estava impossibilitado de lhe acontecer o mesmo desastre, a fragilidade de ser possuído na íntegra, engolido por outro. Sentia o estômago a diminuir, as mãos a suar, não conseguia sossegar e pensava que deveria ter sido espontâneo e amoroso, deveria ter sido outra coisa. Rui Vieira não podia morrer, se morresse ele afundar-se-ia, ele perderia a cabeça. Talvez, talvez fosse amor. 

 

 

Rui Vieira marinou naquele estado misterioso em que o corpo é e não é, vigiado por médicos e pela mãe que, num súbito ataque de maternidade, agia como se fosse uma águia, observando, fazendo inúmeras perguntas, ocupando o silêncio com as palavras mais vazias, o que pensará ele, será que pensa?, e quando falamos deve ouvir-nos, vi num filme que as pessoas conseguem ouvir durante o coma, diz-se o coma, não é estranho?, soa melhor a coma, ou talvez não, a senhora enfermeira acredita que ele está confortável, tudo isto, de tempos a tempos, com a filha a considerar múltiplos cenários de destruição, vendo a boca da mãe cosida com linha grossa, cenários maldosos que a compensavam da aflição em que existia, se tu morres, Rui, o que vou eu fazer?, ainda não te disse que preciso de me separar, que já não o aguento, afinal não é o meu marido, não é para a vida, foi um erro, tens de acordar para eu te contar isto, para tu me dizeres que faço bem, que tenho razão, Rui, estás a ouvir?, acorda. E depois voltava a encarar a mãe, actriz de um guião de preocupação com o filho que ela encenava decentemente, para consumo externo. Era preciso reconhecer que estava bem no papel. Imaginava que a cara dela começava a borbulhar e que a boca era engolida. Tinha sido um jogo deles, o irmão deitado ao seu lado, na cama de adolescente, a espicaçar-lhe as ideias, se nós os matássemos, como seria?, qual era o teu truque para não seres apanhada pela polícia?, dizia que a culpa era tua, estúpida, quem diz é quem é. Agora imaginava a mãe atada à cadeira desconfortável, com uma mordaça a prender-lhe as palavras vazias, temendo que só a sua existência fosse suficiente para o irmão não querer voltar para o mundo dos vivos. Podia estar mesmo a ouvi-la e talvez desistisse de abrir os olhos, de respirar sozinho. O pai entrava e saía, porque manter-se no mesmo espaço era-lhe penoso, a gente da terra precisa de ar, costumava dizer, Rui Vieira nunca entendera aquela tirada, a gente da terra, o pai era engenheiro, não trabalhava no campo, debaixo do sol, não lidava com animais, não conhecia os humores das plantas ou dos ventos. Era quadrado, termo que usava amiúde para o definir, com certo embaraço, afinal era o seu pai, quadrado podia abarcar quase tudo e era melhor do que dizer que era homofóbico, preconceituoso, racista. O que as pessoas fazem para sobreviver, pensava a irmã, sentada ainda a imaginar matar a mãe, depois o pai e, idealmente, o irmão erguer-se-ia e o mundo seria melhor, só por ele estar ali e sorrir sem tubos enfiados pela garganta abaixo. A sua irritação era crescente, sabia que iria acontecer a qualquer momento, seria ríspida e gritaria com a mãe, pare, esteja calada, não diga nada, finja-se morta. A mãe dissera-lhe, depois de o médico os ter informado do estado do paciente e do diagnóstico, de como era muito cedo para dizer fosse o que fosse, a mãe sussurrara-lhe ao ouvido, por amor de Deus, livra-te lá desse amigo do teu irmão. E ela, cobarde, mil vezes cobarde, a cumprir o comando materno, a aproximar-se de Miguel Noronha para dizer, olha, sabes, desculpa, mas terás de ir embora, os meus pais não se sentem bem contigo aqui e não te querem no quarto do Rui, desculpa, espero que possas compreender, deixa-me o teu número que eu vou enviando mensagens para saberes da evolução. A rainha da cobardia, disse tudo isto corada e com o coração a ameaçar vomitar-se do corpo, desculpa, são os meus pais... Miguel Noronha saiu do hospital sem saber onde deixara o carro, havia que pôr um pé à frente do outro e ir à vida, apesar de o namorado estar a morrer algures no edifício. Da boca, a meia-voz, sai-lhe um foda-se e as lágrimas surgiram pela primeira vez. Estava exausto. 

Durante três dias, o seu mundo foi aquela estrutura de metal, bancos com estofos de pele, o seu carro de sempre; deitou-se, tentou dormir, ouviu rádio, insurgiu-se com a repetição das notícias à hora certa, pensou que seria bom ter uma garrafa de rum ou de vinho ou de cerveja, falou sozinho e esperou pelas mensagens que, de duas em duas horas, se repetiam como as notícias, o governo anunciou hoje, não há alteração no estado do Rui, a protecção civil impõe estado de alerta para a zona do litoral, ele não acordou ainda, o trânsito na Quinta da Pimenteira começa a adensar-se, o médico diz que tudo isto pode não significar um desastre. Miguel Noronha ponderava na palavra, desastre, depois desistia. Ao terceiro dia, pelas cinco da tarde, no carro que cheirava a suor e a medo, com o corpo dorido e com vontade de fugir dali, viu o pai do namorado sair porta fora, viu a irmã atrás dele, em passo de corrida, e depois, aos berros na direcção do homem que avançava para um carro com as chaves na mão, a irmã de Rui Vieira a gritar, está satisfeito?, está muito contente consigo?, tem ideia da merda que fez?, devia ter vergonha, vergonha. E o pai nada, impávido, a caminhar no mesmo ritmo, as pessoas a olhar de soslaio, a ver e a não ver ao mesmo tempo, a tentar compreender se a mulher que gritava tinha razão ou era uma louca, existem pessoas que são loucas e que precisam de muito palco, precisam de fazer cenas públicas, mas talvez não fosse o caso, porque a desgraçada estava visivelmente transtornada, repleta de lágrimas e de ranho, a gaguejar e a gritar como um animal. O homem entrou no carro e surgiu a mãe, num passo de corrida, cruzou-se de raspão com a filha, abriu a porta com rapidez e, segundos depois, o carro avançou para a cancela e a mulher ficou ali a ver aquela partida, a chorar e a agarrar as mãos, esfregando uma na outra, a visão completa do desespero. Miguel Noronha precipitou-se para a tomar nos braços e ela quase deu um salto, de susto, de repulsa, sem reconhecer aquele homem com barba e ar desgrenhado que a vinha abraçar. Depois rendeu-se e ficaram ali muito tempo. 

 

 

Rui Vieira tinha acordado, diz-se assim porque é o que as pessoas costumam dizer e não vale a pena complicar, e o pai estava no quarto, a olhar para ele, como quem comanda as operações, como se fosse Deus, a irmã diria isto depois, a olhar para ele e a exigir que abrisse os olhos, e ele abriu. Mal o fez, o pai disse, com aquela voz baixa e mortal que conheciam de sempre, nunca mais apareças em nossa casa, não queremos saber de ti, és um paneleirote de merda, mais valia teres morrido, estava com esperança de que morresses, eu não sou teu pai. Virou as costas e abandonou a sala, a irmã paralisou para depois, abrupta e veloz, seguir no seu encalço aos berros, como é que é possível?, o senhor é uma besta, uma besta. Por ter ido atrás do pai, perdeu a cena seguinte que, não sendo original, não deixou de surpreender a enfermeira que tinha começado a trabalhar ali há uma semana. A mãe aproximou-se do filho, pôs a sua mão em cima do peito dele, olhou-o fixamente, abanou a cabeça, virou as costas e não disse adeus, não tinha qualquer palavra para lhe deixar. A enfermeira viu-a pegar na mala, viu o rosto confuso do doente que, sempre em silêncio, ainda agitou a mão, ele a pedir para ela parar e ela, sem querer perceber, a seguir para junto do marido, para ficar perto do que conhece e do que tem por bom. Será que sim, que é bom?, interroga-se a irmã nervosa de regresso ao quarto, a esfregar as mãos uma na outra, com um olhar descompassado, incapaz de permanecer tranquila, sem dar conta de que o irmão, ali de olhos abertos, continuava sem proferir uma palavra. 

Dois dias depois, o médico optou por se sentar, gesto que intrigou a enfermeira, não estava habituada a ver os médicos a investir mais tempo do que o estritamente necessário e, para todos os efeitos, permaneciam de pé, até por vantagem de visão e, talvez, para manterem uma certa autoridade. Este médico sentou-se e olhou para o paciente e para a irmã alternadamente, sorriu, um sorriso curto, e começou a explicar os mistérios do corpo, cada organismo reage de acordo com as suas necessidades, por muito que se estude, os organismos não são iguais, uns precisam de mais tempo, outros de um pouco menos, não se pode dizer já que tipo de lesões restarão, mas estou convencido de que o Rui Vieira terá uma recuperação total, teremos de ter paciência e, sobretudo, evitar o stress e a frustração de não conseguir viver uma vida normal. A enfermeira considerou a veracidade da palavra normal e decidiu que normal é sempre uma grande mentira e, logo a seguir, saiu do quarto porque, na verdade, não estava ali a fazer nada, era apenas uma espectadora, e a família precisa de recato e de um médico, ninguém se lembra de uma enfermeira. Sentia compaixão por aquele doente, tão novo, bonito, com umas mãos tão elegantes, sempre grato nos olhares que trocavam, o pior era o pai, e aquela mãe?, ninguém merece uma família assim. Salvava-se a irmã, menos mal. E seguiu caminho até à copa, à espera de ter coragem para avançar para outro doente, porque a vida num hospital não é um livro e não se compraz com toda a curiosidade que se possa sentir. Todos os doentes são histórias interrompidas, pensou ela. 

 

 

Rui Vieira teve uma recuperação lenta. Sentia-se dentro de uma cápsula espacial, confinado à cama, preso a fios, incapaz de perceber como é que tinha chegado àquele estado. A irmã e o namorado revezavam-se, o médico era um homem calmo, Rui Vieira considerava-o insanamente optimista. Experimentou sentar-se quatro dias depois de ter acordado. Precisava de fisioterapia, precisava de tempo. O verbo precisar era um incómodo que ele quereria evitar, mantinha-se atento, porque não era capaz de dizer uma palavra, perdera o som, a capacidade de proferir palavras, ou talvez não, talvez fosse apenas uma protecção, e o silêncio servia-o bem porque bastava acenar, estás bem?, como te sentes?, melhor?, um abano de cabeça para a direita, ah, que bom, vais ver que isto passa, outro aceno e estava resolvida a conversa, nada de explicações, de definições, de não conseguir dizer o que realmente queria dizer. Quando é que tinha dito o que realmente queria dizer? Sabia o que era importante, se tivesse esgotado as palavras por serem todas uma mentira; viveria devagar, viveria dentro de si, a cabeça a matutar, ele a ver a irmã e a pensar que estava mais velha, tinha um ar cansado, preocupava-se com ele, ligava para saber dos filhos, tinha voltado a roer as unhas. Havia ali alguma coisa, não era só o seu estado e a preocupação, não, a irmã tinha outra dor, o coração diminuído, algo que a afligia, e ele, sem uma palavra, pegou-lhe na mão, depois largou-a, afastou-lhe o cabelo da cara, ela cabisbaixa, já com as lágrimas a escorrer, contou-lhe, não aguento mais, não tens ideia de como tem sido, ele gosta dos miúdos como o pai gosta de nós, na fotografia, sentados direitos à mesa para outras pessoas os gabarem, não brinca com eles, não quer saber, e não gosta de mim, não me toca há meses, disse-me que não podia, porque eu sou como os coelhos e engravido logo, como os coelhos, foi o que ele disse. Não suporto o seu cheiro, a maneira como come, quando come frango mastiga tudo, os ossos, a cartilagem, aquilo faz um som estranho e eu só tenho vontade de sair da mesa. Olha, sei lá, os miúdos são tão pequenos. E Rui Vieira voltou a dar-lhe a mão, apertou-a, um toque ligeiro, a confirmar que estava tudo bem e que ela poderia fazer o que quisesse, e ela perguntou se poderia ligar ao amigo dele, que é advogado e faz divórcios, e depois riu-se, vais ver que o pai também me renega, uma megera que se atreve ao divórcio, e ele rodou a aliança que ela tinha no dedo e começou a puxar, devagar, a irmã sorriu, achas que vou conseguir? Decidiram que tudo ficaria bem no abraço que lhes pareceu infinito. 

 

 

Miguel Noronha passara do registo de alívio do primeiro dia, que bom que já cá estejas, para ir e vir com a regularidade matemática de quem aceita que o mundo se transformou, agora estás acordado, isto passa, tudo passa, vou ter de ir trabalhar, hoje não sei a que horas consigo cá vir, é um dia importante, tenho de acompanhar o ministro, se acontecer alguma coisa, bom, a tua irmã liga-me. Rui Vieira não perguntou nada, poderia ter escrito, seria o mais normal, mas não queria escrever nada, não queria saber de nada em concreto, estava fixo ainda no olhar terrível do pai, na maldade em forma humana, e na palavra que dançava com os seus neurónios, estava embutida nele como um azulejo de má qualidade, paneleirote. Ele. Uma vida a tentar não ser aquilo e, num segundo, tudo se transformara. Pensava que o pai não podia ter tanto poder, esse poder que ele lhe tinha e que perturbava a ordem das coisas, a sua cabeça, invadia-o com ferocidade e ele, submisso, baixava a cabeça, não podia ser, o pai só tinha o poder que ele lhe conferia, tinha de o dizer muitas vezes, tinha de o repetir como oração esquecida da infância, uma oração a Santa Rita, que sempre lhe foi uma santa simpática, não sabia porquê, mas era um boa santa e tinha o nome da irmã. 

Como um arco-íris, uma ilusão de óptica, o tempo encarregou-se de ir fazendo com que a vida mudasse e, quando Rui Vieira se decidiu a ligar o computador, estava em casa havia dois dias, tinham-se passado cinco meses de fisioterapia e exames, de neurologistas a tentarem encontrar lesões cerebrais, de um psiquiatra à cata de um trauma que lhe tivesse roubado a voz e ele, sem vontade, a fazer tudo o que se esperava dele e a não responder, a escrever relutantemente que sim, já se sentia melhor, que não, não queria falar, não quer ou não consegue?, e ele a responder, não falo, é assim. Assim seria. 

Miguel Noronha já não o vigiava, era perceptível que estava cansado de viver sozinho, sem a voz de outro para o validar, para fazer eco, tu estás deprimido? Não sei se estou deprimido, pensava Rui Vieira, enquanto via Miguel Noronha a mandar SMS do telemóvel, não sentia sequer a curiosidade de saber com quem trocava ele mensagens, via-o a outra luz, bonito, seria sempre um belo homem, e tinha sido impecável com a irmã, fora correcto, elegante. Talvez estivesse tudo gasto e durante o coma o amor tivesse desistido. Não tinham sexo, não dormiam de mão dada, essa era a sua referência, uma amiga contara-lhe que dormia de mão dada com o marido e ele pensara nos filmes de domingo à noite, as comédias românticas que fascinavam a irmã mesmo que ela fingisse que não. O amor invisível era esse procurar de mãos durante o sono, improvável, insustentável, mas real. Talvez não fosse verdade, os corpos invadem-se de sono e permitem-se uma distância, esse largar de mãos que é mais humano, menos cinematográfico. Dois corpos que dormem na mesma cama e se procuram sem a consciência desse procurar? Podia ser. 

Agora preferia que Miguel Noronha anunciasse um afazer, a necessidade imperativa de ir para os braços do secretário de Estado, agora feito ministro, a fim de pôr o país na ordem, para tornar o mundo melhor. Observava-o sentado no sofá e via-o a andar de um lado para o outro, a evitar o contacto visual, metido no telemóvel, e depois a dizer, felizmente que o dizia, tenho de ir, desculpa, tenho mesmo de ir. O corpo a aproximar-se do sofá, um beijo sem história e o mesmo corpo a ir porta fora, levando a mala com o computador, a mochila e o guarda-chuva azul-escuro com varetas metálicas. Seguiu-se o silêncio da casa, a sua casa, paredes brancas, muitas fotografias, capas de revistas e jornais emolduradas, uma cozinha americana, o sofá branco com almofadas a mais, a mesa de apoio que um dia foi uma palete de fruta, o candeeiro que a irmã lhe ofereceu, feito com garrafas, o plasma desproporcionadamente grande, a varanda com uma única poltrona de vime, a espreitar. Rui Vieira meditou na casa, era outra quando Miguel Noronha ali estava, sempre com o casaco largado numa cadeira da mesa de jantar, os sapatos à entrada, a mala e o computador em geografias distintas, um copo de água esquecido, uma confusão que não era muito confusa, nem condenável, tinha apenas o condão de o aborrecer, é verdade. Levantou-se do sofá, endireitou a cadeira, levou o copo para o lava-loiça, abriu o frigorífico e tirou uma garrafa de vinho, voltou a sentar-se para ouvir as notícias e foi engolido pelas coisas do mundo. 

 

 

Rui Vieira escreveu ao seu editor. Um e-mail curto, mas explicativo, e obteve resposta horas depois. Escreveu porque queria voltar a trabalhar e sentia-se preparado para tanto. A resposta do chefe: era cedo. Discordavam. Ele não iria pedir mais baixa médica, o chefe a dizer que não sabia como se iriam organizar para ele trabalhar, o facto de não falar era uma desvantagem, como é que um jornalista faz o seu trabalho sem falar?, para mais na rádio. Ele não fazia a pergunta, mas Rui Vieira sabia que estava implícita, não era possível, teria de analisar a situação com a gente do departamento dos Recursos Humanos. E começou a luta para voltar a ser ele, não seria o corpo a dar-lhe vida, era voltar a trabalhar e sabia-o. A luta foi burocrática, longa, desgastante, estavam à espera que desistisse, e porque não pedes uma reforma por invalidez?, talvez tenhas direito, e ele a pensar como era bom não ter de responder a perguntas parvas, tinha trinta e oito anos, não era nenhum miúdo, mas não era velho, queria sentir-se válido e queria voltar a trabalhar, tinha esse direito. A irmã arranjou-lhe uma reunião com o amigo comum que era advogado, não sendo especialista em Direito do Trabalho, era terrivelmente competente. Para facilitar a comunicação, Rui Vieira escreveu-lhe um e-mail a explicar, com uma estratégia para ser incorporado na profissão. Queria voltar para a rádio. Como outras pessoas querem regressar a casa. O advogado teve reuniões com a sua chefia, com a direcção, com um administrador, ameaçou de forma simpática, sem ser hostil, embora sempre com certa frieza. Rui Vieira escreveu sete longas exposições sobre como poderia exercer a sua profissão sem prejudicar a rádio. Ao fim de dois anos, já totalmente recuperado em termos físicos, com os médicos a não saberem dizer como e por que razão não recuperava ele a fala, Camila Vaz, a editora, escreveu-lhe. Ouvi falar do teu caso ao almoço e fiquei muito surpreendida com o que está a acontecer, queres vir à rádio e conversamos? Não percebeu a ironia da pergunta, porém para Rui Vieira tanto fazia, era uma frincha e ele abriria o portão e voltaria a fazer o que gostava. Levou o tablet e a conversa foi feita assim, ela a falar e ele a escrever ao mesmo tempo, com uma rapidez invejável, sem olhar para o teclado, a antecipar as perguntas dela, até que escreveu e mostrou-lhe, eu sou bom jornalista, faz-me um teste, põe-me a trabalhar uma manhã, uma tarde, uma madrugada e depois decides. Camila Vaz gostou muito dele, sabia da sua reputação, sério, cumpridor, e percebeu que ela, se estivesse na situação em que ele se encontrava, ela, Camila Vaz, lutaria para regressar ao trabalho. Afinal, qual era o problema?, ele só não falava. 

 

 

Havia a vida para viver, como na canção, e Miguel Noronha conseguia perceber que a teimosia de não falar era uma intenção, um evitar dos tormentos e do confronto. Era quase Natal, a irmã de Rui Vieira pedira um encontro e tinham-se decidido por algo a meio caminho, ele no ministério, ela na empresa de qualquer coisa, Miguel Noronha nunca se preocupara em saber, e portanto era um encontro com ela, o primeiro desde que se tinham visto no hospital, no último dia, a mala com as roupas, o cuidado com o irmão e ele a fazer de papel de parede para não perturbar porque era algo que pertencia à família. A mãe não estava, nunca mais estaria?, e ele não tinha o direito de se preocupar, além de que estava entediado com tudo aquilo. Havia tanto para resolver e ele estava bem, não falava porque não queria. No Café Moderno, com smoothies e tostas de abacate, ele pediu uma limonada sem açúcar para depois se arrepender, não fazia mal, e ela chegou pouco depois, com a mala a tiracolo que parecia trazer lá dentro um mundo inteiro, mais um outro saco e o cabelo por pentear. Sorriu-lhe, surgiu uma cova mínima na face, sentou-se, pediu desculpa, não sabe porquê, e depois um café com adoçante. Olharam-se com interesse, da parte dela; com pressa de sair, ele. Eu vou perguntar, porque não há razão para não o fazer e eu estou preocupada, a situação com os meus pais, bem, tu sabes, não vai ter emenda, por isso queria saber, eu sei que isto é chato, tu desculpa, mas achas que na noite de Natal podes ficar com o meu irmão?, tenho a certeza de que não terá lugar à mesa, não conheces o meu pai, é um monstro de egoísmo e cheio de preconceitos, não conheço ninguém mais homofóbico. Talvez diga alguma coisa sobre ele mesmo, arrisca-se Miguel Noronha, mas ela prossegue sem dar conta ou sem querer responder, pois então, no dia 25 eu vou convidá-lo para nossa casa, estarão os meus sogros e cunhados, mas também tenho os miúdos e o Rui adora os miúdos... Parou de falar de repente, como se a frase tivesse sido cortada, suspirou, bebeu o café, que merda não poder fumar, eu não fumo, tenho fumado ultimamente, só um cigarro a seguir ao café, acalma-me, têm sido tempos complicados, sabes? Ele sabia. E sabia que ela tinha ameaçado separar-se e que o marido retrocedera no seu comportamento abominável e que agora parecia tudo bem, tinha de parecer tudo bem. A limonada estava intragável, não se podia ingerir, fingiu que a bebia apenas para ganhar tempo e depois disse, vou ao Porto no Natal, tenho a minha mãe e a minha avó, sabes que sou lá de cima, e no dia 26 tenho de ir na comitiva do primeiro-ministro para Cabo Verde, quer dizer, o ministro, o meu ministro tem de ir e eu também vou, enfim, é um trabalho estranho, mas eu gosto, e por isso terás de me desculpar, não tenho como ajudar. Pensei que eras namorado do Rui, bom, talvez tenha pensado mal. Na reticência que veio a seguir Rita Vieira julgou-o, condenou-o e ateou a fogueira. Mal sabia ela que ali teria pouca sorte, Miguel Noronha não era permissivo a chantagens e não sentia culpa alguma de coisa alguma, não pedia desculpa pela vida que fazia, assim rematou com alguma veemência, não sei se sou namorado do teu irmão, durmo com ele, vamos estando juntos. E ela disse que isso já era há uns meses e, portanto, era apenas natural assumir que eles eram. Namorados. Partiu a frase e Miguel Noronha considerou que ela tinha uma forma algo estranha de falar, talvez fosse um problema de pontuação, embora, no caso dela, pontuação ao nível coloquial, não o disse em voz alta, olhou-a a pensar que não poderia ser transparente, mantém-te neutro, prática acumulada nos corredores da política e muito fácil de adquirir, o teu rosto não tem emoções, Miguel, concentra-te. Não queria passar o Natal com um namorado mudo. Não o queria levar ao Porto, muito menos à quinta da avó, perto de Lamego, a mirar o Douro, não queria nada ter de o carregar como um fardo sem expressão apenas para o consolar, nem gostava do Natal, que raio, ela não tinha o direito de lho pedir. Eu não vejo o teu irmão todos os dias, Rita, estamos quando estamos, se queres saber não tenho ideia alguma do que pretende para o futuro, nunca falamos sobre isso, aliás, não falamos sobre nada. Era cruel dizer aquilo, tinha a noção disso, a crueldade é fácil de verbalizar e ele era rápido, exímio em agressões verbais ditas em tom contido, mais uma vez a política era uma escola infinita nesses baixios de lodo humano. No café havia o burburinho do final do dia, pessoas que entravam para se abrigar do frio, que bebiam um café, grupos de estudantes. Observaram-nos por instantes e depois voltaram a olhar-se; ela conseguiu esboçar um sorriso, sabes, eu só queria que estivesse bem, na verdade, que todos conseguíssemos essa proeza de estar bem, porque o mundo está feio, não está? Dizem que 2020 é que será o ano, eu não acredito, mas eu sou mãe de três crianças pequenas, estou exausta por definição, tu tens um trabalho importante, eu votei no Partido Socialista, não tenho nada contra a geringonça, embora lhe fizesse muita falta uma oposição digna desse nome, enfim, é o final do ano, eu nem sei porque te pedi para vires ter comigo, tens tanto que fazer, e se não são namorados, realmente, como é que o podes levar contigo e apresentá-lo à família?, dirias o quê, eis o meu amigo que não fala?, não podes, eu percebo, vou falar com ele. 

Não teve coragem para a conversa, porque se sabia má irmã, ela que estaria com os pais, que se sentaria à mesa dos pais, com o marido e os filhos, ignorando olimpicamente as achegas racistas do pai, a alarvidade constante que ouvira uma vida inteira e que parecia ser apenas uma música má, ao fundo, uma música sem importância. Naquele ano, teria de enfrentar tudo aquilo sem o apoio tácito do irmão, ele que iria fazer caretas e terminar as frases do pai com aquele comentário ambíguo que era só deles, impressionante, pai, impressionante. Ela ainda tratava o pai por papá e sentia-se ridícula por isso mesmo. Ela ainda tinha a ideia de ter obrigações para com as duas criaturas que a tinham criado, eram os seus criadores, não podia abandoná-los. Na adolescência, o irmão repetira-lhe até à exaustão, ainda bem que és tu quem irá cuidar deles quando forem velhinhos, a menina do papá e da mamã, cala-te, és cruel, não, não, sou o rapaz e para mais gay escondido. E riam, e ela agora sabia que seria assim, porque estava já combinado que em Janeiro iria com a mãe ao médico dos olhos e depois fazer uma série de exames anuais, três dias, ir buscar a mãe, vê-la dizer coisas às pessoas no hospital, ao recepcionista, assistente, naquele tom de arrogância que a envergonhava tanto, tanto, depois o exame, a seguir a queixa, ela a conduzir e a mãe a dizer que não o sabe fazer, não tens cuidado, não devias ter carta de condução, não sei como te deram a carta. Por tudo isto e mais uma centena de outras razões, entre elas a cobardia, Rita Vieira escreveu um e-mail ao irmão anunciando que no dia 25 de Dezembro lá o esperava, ignorando a existência e o simbolismo do dia 24 e da noite, porque não lhe dava jeito, ele era inteligente, ele aceitaria. Rui Vieira respondeu-lhe, não te preocupes, começo a trabalhar nesses dois dias e no final do ano também trabalharei à noite, fiquei nas madrugadas e começo mesmo no Natal, o fim de 2019 é o meu recomeço. E ela burra, indignada, mas não podias começar em Janeiro?, afinal é Natal, escreveu a frase e depois apagou-a, respondeu, OK, imagino que estejas contente por voltar a trabalhar, ainda bem, qualquer coisa apita. Ele não apitaria coisa nenhuma, porque não telefonava a ninguém no seu silêncio, naquela maneira de estar que parecia, para quem estava de fora, um conforto suspeito. Não se poderia dizer que o seu mutismo fosse um regresso ao útero, porque Rui Vieira não tinha esse tipo de relação com a figura maternal, quantas vezes pensara que era adoptado?, não fosse o nariz ser igualzinho ao do pai, teria construído toda uma salvação nessa premissa. 

 

 

Tentava não pensar muito em Miguel Noronha. Amava-o, não o amava, era indiferente, não podia falar só por causa dele, não era razão suficiente e, por isso, talvez não fosse amor. O tempo depois do acidente tinha-os definido: ele a recuperar o corpo, Miguel Noronha a driblar as horas do dia em reuniões e comissões parlamentares, e viagens e jornalistas burros que não compreendiam nada, desabafava depois do sexo, porque no sexo o silêncio até pode ser conveniente. Rui Vieira tinha dito, certa vez, que conversa e sexo era demasiado e que desmoralizava, não falavam, não sabia se por ter dito isso ou se por serem os dois silenciosos, tanto fazia, depois do sexo ouvia-o com atenção, embora conseguisse abstrair-se com facilidade, porque Miguel Noronha não era o centro do mundo, não era o que o devolvia à vida. Estava a reciclar tudo dentro de si, a infância, a adolescência, a porra do armário da sexualidade, a profissão, estava a mastigar e não tinha tempo para se aborrecer com questões sobre o Serviço Nacional de Saúde ou a contratação de enfermeiros e médicos para a zona do Algarve, estava ocupado a fazer algo que ninguém conseguia ver. Não tinha ideia de como seria regressar ao trabalho, não tinha planos para 2020. Miguel Noronha comprara um fato novo na Rosa & Teixeira, aquele azul que não é escuro e também não é berrante, uma marca italiana, cheio da tal elegância que a avó mantinha como legado, e preparava-se para um Natal com os mimos do costume, a mãe a fazer de conta que a comida talvez pudesse estar melhor, está divinal, mãe, por favor, a avó a contar dos dramas das vinhas, das intrigas dos concorrentes, de quem teima em fazer vinho com uvas que não casam com aquela terra, a avó a ficar com rosetas e um brilho nos olhos. Os vizinhos do lado, primos afastados que, por serem civilizados, compareciam à ceia e traziam sempre presentes inauditos para os quais era preciso uma explicação, bom, com isto podes fixar na parede qualquer coisa, sustém qualquer coisa, até quase cem quilos, imagina tu, Miguel, cem quilos. Não era um cenário idílico, era até um pouco aborrecido, contudo era a sua família e há anos que tinha limitado as visitas, a avó condenava-o por isso, tu não te interessas por isto, um dia eu morro e quero ver como a quinta fica e como é que a terra é amanhada, a tua mãe não quer saber, não há mais ninguém, não penses que vendes o negócio que levei décadas a erguer, estás a ouvir, Miguel?, sim, sim, ninguém vende nada, arranjo um gestor, ah, e tu achas que isso funciona?, vão ficar com tudo o que é teu. 

Fazia a mala para seguir viagem, estava contente com a entrevista que o ministro dera a um jornal de grande circulação online, e estava contente por o ministro estar contente, tinha-lhe dito, Miguel, tenho planos para si, um dia destes ainda o faço meu secretário de Estado, aquela conversa com tubo de ligação directo ao ego era sempre eficaz e Miguel Noronha dizia como a avó, o que seria?, num tom de graça que fascinava o ministro que, embora casado, não se importaria de ter uma aventura com homem tão bem-posto, de fato azul esquisito e gravata de bolas. Sobre isto, Miguel Noronha nada dizia, não contava a ninguém, não havia ninguém a quem contar, talvez um dia acontecesse alguma coisa e fosse possível falar sobre isso, décadas mais tarde, porém, o homem agora era ministro e ele, para todos os efeitos, solteiro e bom rapaz, sem compromissos. Apesar de tudo, não foi com enorme alívio que leu a mensagem de Rui Vieira, olá, vou estar a trabalhar no Natal e no fim do ano, não temos estado juntos, creio que talvez faça sentido darmos um tempo, sem drama, só um tempo. Misturou o alívio com a obrigação de ficar ofendido, de manifestar uma qualquer revolta, ele tinha de ter qualquer importância, muita importância e, no amor, era sempre quem mandava o outro passear. Mesmo que não fosse amor, era ele quem ditava as regras, depois do que lhe acontecera em jovem, com Rodrigo Casaco, era o mínimo que podia fazer pela sua auto-estima, ser ele a acabar, ser ele a começar, ser ele a dizer como o mundo roda. Ficou sem saber o que responder por dois segundos e depois, na tal crueldade absurda de que era capaz com a facilidade de quem conta pelos dedos, escreveu, não deves ter visto a minha mensagem, vou para o Norte e depois na comitiva do primeiro-ministro para Cabo Verde, estou sem tempo para nada. Rui Vieira não respondeu. 

 

 

E chegou então o dia em que todas as pessoas queriam correr para casa, ou para o centro comercial mais próximo despachar ainda um presente ou outro, e ele ia para a rádio, finalmente ia trabalhar. Mudo como uma pedra, sem o peso das pedras, quase com alegria, entrou na estação de rádio às seis da tarde e Camila Vaz recebeu-o com o pragmatismo típico da sua personalidade despachada, tens aqui o Pedro Lopes, que fará a emissão da meia-noite às seis, e tens aqui a Rosa Braz, que é estagiária, ela fará telefonemas de que precises e lerá as notícias que escreveres, está um pouco nervosa, é uma estreia e isto não é uma situação normal, é o que temos, temos de viver com o que temos, desejo-vos um bom Natal e nada de invenções, OK?, não quero sarilhos com a direcção, não quero ouvir falar deles até ao dia dois de Janeiro, entendem? Ele já nem acenava, contava que os olhos dissessem tudo e sentia-se tão contente por estar ali que faria tudo como Camila Vaz quisesse. Pensou que teria de se cruzar com o seu antigo editor, isso seria um aborrecimento, porque sabia que seria constrangedor para o homem que o tinha condenado a pedir a reforma por invalidez, era o que tinha pretendido, lutara por isso, e o advogado de Rui Vieira chegou a perguntar-lhe, desde quando é que uma pessoa que quer trabalhar, com a idade do Rui, vai para a reforma só porque a empresa onde está não quer fazer um esforço para o reintegrar?, não vai pedir reforma antecipada coisa nenhuma, vai voltar a trabalhar. A conversa tinha sido relatada durante um jantar, Xavier Laje era a única criatura no mundo que não ficava à espera que ele respondesse, comiam juntos, bebiam juntos, Xavier Laje fazia as despesas da conversa, odeio aquele gajo, sabes, é um prepotente, não sei como tu o aguentavas como chefe, mas isto vai-se resolver, ah, vai, vai, porque a lei está do nosso lado e porque eu já o ameacei de ir para os jornais, estás a ver o que seria, rádio pública dispensa trabalhador sem mais nem menos?, uma bronca, é o que seria, uma bronca, e tu achas que o Miguel poderia ajudar?, afinal está no governo, deve conhecer alguém que tutele a televisão e a rádio, não?, pois, não, não é uma grande ideia, é melhor não confundir as coisas, eu percebo-te. E Rui Vieira, num sorriso, a agradecer ter um advogado, agora amigo, assim, capaz de o entender tão bem, de exigir tão pouco. Pensava muito na exigência dos outros, na manipulação, no que deixara de fazer por alguém o censurar directa ou indirectamente. Estava cansado de ser bonzinho, não era ingénuo, era aceitação e aquela ideia de que os conflitos serviam pouco à rotação do planeta. Desta vez, tinha a certeza, iria até ao fim, voltaria a trabalhar mesmo que a rádio em peso assinasse uma petição para correr consigo. 

Por tudo isto, aquele primeiro dia tinha o sabor das coisas mais doces e belas, estava disposto a ceder no que fosse, Camila Vaz não precisaria de se preocupar. Olhou para o técnico e ele sorriu-lhe, bem-vindo, disse, e Rui Vieira teria considerado a sua presença, reconhecido o seu interesse, porém estava distraído, não era tempo para perceber o homem que ali estava, e depois considerou Rosa Braz discreta e rapidamente. Era uma miúda, mas teria de servir. 

Rui Vieira começou por organizar o computador que lhe deram, não era o seu antigo, e a secretária também era outra, alguma coisa tinha mudado na sua ausência, percebeu depois que as paredes estavam limpas, pintadas, e que as mesas tinham outro formato. Não que fizesse diferença, era só um espaço. Começou por ler os jornais estrangeiros, por ouvir os noticiários das televisões sem encarar o ecrã e depois percebeu que estava a cometer um erro gravíssimo. Escreveu no tablet que tinha levado consigo, Rosa, desculpa, não te estou a dar atenção, vem para aqui ver as notícias comigo, e ela a sorrir, pequenina, muito magrinha, quase anoréctica, seria?, a saltitar como uma criança, teria o quê?, vinte anos, vinte e um, acabei de chegar esta semana e claro que fiquei com as madrugadas e que me calhou o Natal, a minha família ia tendo uma coisa má, o meu pai fartou-se de maldizer tudo e todos, na verdade acho que ficará orgulhoso e tenho a certeza de que ouvirá as notícias todas que dermos. Rui Vieira sorriu-lhe, tanta energia era quase encantadora, e Rosa Braz era uma romântica, precisava de cair na pista de gelo, partir o nariz e perceber a maldade do mundo. Repreendeu-se mentalmente, não podes ser tão cínico, por favor, Rui, controla-te, a miúda não tem culpa e é melhor que a formes para fazer o que é certo. Ouviram juntos o som que um dos repórteres deixara, reportagem no Parque Eduardo VII, famílias ansiosas por entrar nesta ou noutra diversão, a combater o frio com churros e algodão-doce. Depois o som, já editado, de uma conversa com o provedor da Santa Casa e ainda a mensagem de Natal que o Presidente da República deixara aos portugueses nas páginas do Jornal de Notícias. Esperava-se que fosse algo de positivo, sobre o fim de uma década e início de outra, sobre a situação no mundo e a necessidade de ajudar o Outro. Não era um discurso com uma toada religiosa, o homem sabia que não podia ir por aí, andava nisto há muitos anos, tinha a sabedoria dos estafados da política, como é que querem que eu diga isto?, com jeitinho, eu, graças a Deus, tenho jeitinho e bom senso e, sobretudo, tenho a originalidade de não ir para a televisão, há três anos que vos escrevo uma mensagem de Natal, deixo a televisão para o primeiro-ministro. O Presidente disse que tinha uma sensação difusa de que o dia-a-dia deve prevalecer sobre os horizontes de médio e longo prazo, mal sabia ele que Dezembro seria uma espécie de fim de capítulo. Rosa Braz fez um outro comentário, era evidente que era uma moça da palavra, tagarela, possuía essa apetência para as palavras, como se as tivesse todas no céu-da-boca prontas para sair para o mundo, e ele olhava-a com espanto e depois com um certo cansaço. Não sejas mau, Rui. Escreveu as notícias com lentidão, por estar enferrujado, por ter receio de escrever algo que Rosa Braz não conseguisse decifrar, ou dizer, porque existem palavras que, ditas em voz alta, não casam com outras e só atrapalham. Ele sabia, estava destreinado, é verdade, escreveu a primeira notícia assim, depois a segunda com mais vontade, sugeriu um alinhamento, os áudios aqui e ali, a mensagem do Presidente, o que dissera o primeiro-ministro, a assinalar os quarenta anos de existência do Serviço Nacional de Saúde, a confirmar que mais do que celebrar o passado, é dever responder às necessidades do presente e do futuro. Rosa Braz saíra da cabine, Rui Vieira ainda lhe chamava assim, o que lhe conferia uma certa antiguidade, a dizer, blá-blá-blá, pensei que fosse morrer, que perderia a voz, ai desculpa, Rui, estava tão nervosa, correu bem, estive bem? Ele sorriu-lhe, teve noção do seu sorriso, dos músculos do rosto nesse exercício genuíno de dizer a alguém que estava tudo bem, Rosa, estiveste muito bem. Seriam uma boa equipa. Rui Vieira ensinou-lhe que uma notícia precisa de mais do que uma fonte, que existem palavras que em rádio não se podem dizer, por exemplo?, respectivamente, não entendo, não dizes respectivamente, porque as pessoas podem não ter apanhado a primeira parte e têm de perceber o que queres dizer. Explicou-lhe que o El País era o jornal estrangeiro essencial, até tinha uma versão brasileira, que algumas publicações francesas eram indispensáveis, eu não falo francês, não precisas de falar, precisas de fazer um esforço para ler e há dicionários online de francês-português, tudo isto escrito numa folha de Word, em corpo dezasseis, com entrelinha a um e meio, fonte Arial, as comunicações dele para ela. E Rosa Braz na sua permanente festa de existir, de ser jovem, de ter o cabelo comprido e de não se preocupar com o dia de amanhã, achas que se eu fizer um blogue a Camila se aborrece?, e ele, que tipo de blogue?, queres ser jornalista ou queres ser animadora?, o silêncio dela, a processar, e depois, tens razão, quero ser jornalista, preciso de ganhar credibilidade, e ele a pensar, linda menina. Tudo isto se passou naquelas madrugadas inaugurais que seriam também o princípio de uma nova era para a Humanidade, mas Rui Vieira não fazia ideia, escreveu a notícia sobre a colecta de amostras de um vírus na China no dia 24 de Dezembro e, no dia de Natal, Rosa Braz leu a notícia que tinha ajudado a escrever, dois médicos na província de Wuhan estavam infectados com um novo vírus e tinham sido colocados em isolamento. Eles tinham trocado galhardetes sobre o verbo colocar e o verbo pôr. 

No dia 29 de Dezembro, um domingo para o qual Rui Vieira se voluntariara e Rosa Braz também, não por solidariedade antes por entusiasmo, havia um rumor a circular, o tal do vírus, associado à pneumonia, andava a matar pessoas que tinham circulado pelo mercado de marisco e animais selvagens de Huanan. Não havia como confirmar, Rosa Braz escreveu a notícia, Rui Vieira descartou-a e explicou porquê. Era preciso confirmação, um rumor na Internet não era o suficiente, era óbvio que ela o considerava demasiado certinho, com muitas regras, falou de jornalismo de cidadão e de redes sociais e ele encheu-se de paciência e escreveu-lhe uma nota de dimensões significativas que, esperava, reduzia a sua teoria a uma insignificância qualquer. Jornalismo não é dizer que se ouviu dizer, e não pode ser feito pelo cidadão comum, tem regras, técnica, existe um código de ética, pode ser que o mundo não o cumpra, mas nós aqui cumprimos. Rosa Braz anuiu. Foi escrever sobre as crianças cantoras em Viena. O técnico, Pedro Lopes, mantinha-se à margem, por vezes descobria-o a sorrir. Rui Vieira não estava atento. 

No dia 30 de Dezembro, o vírus passou a ter nome e com isso surgiram algumas piadas de efeito rápido, a imagem de Vin Diesel a fazer de Dominic Toretto no filme Velocidade Furiosa, a dizer que preferia as Coronas. As autoridades chinesas prenderam o doutor Li Wenliang no princípio do ano, acusando-o de falsas declarações, ele mantinha que existiam mais casos do que as autoridades queriam dizer ao mundo. Rosa Braz interrogou-se sobre o futuro do doutor e Rui Vieira limitou-se a encolher os ombros e depois ela disse que lera, anos antes, um livro que começava por dizer que alguém, em pequeno, tinha sido convencido de que se todos os chineses do mundo saltassem ao mesmo tempo, o eixo da Terra se alteraria de forma drástica. Esse alguém, pequeno e crédulo, rezava todos os dias para que os chineses não saltassem todos ao mesmo tempo. Rui Vieira rira-se, era mais do que um sorriso. 

O doutor Li morreu a 7 de Fevereiro de 2020, de coronavírus. Descartou-se a hipótese de ser uma estirpe da gripe, de ser algo que não um mistério invisível e altamente contagioso. Começaram a surgir famílias de palavras que revelariam o cenário, isolamento, ventilador, insuficiência respiratória. O verbo alastrar passou a ser constantemente aplicado. O vírus era invisível. As autoridades chinesas mandaram dizer ao mundo que tinham tudo controlado. Não tinham. O vírus não estava apenas em território chinês, era um acontecimento mundial, invisível e atingindo sem critério fosse quem fosse. 

Por esta altura, o início daquele ano que seria o retomar de uma ideia louca de anos vinte, Rui Vieira deu-se conta de que se esquecera de Miguel Noronha, não era que não o tivesse dentro de si, havia aquela memória da pele, às vezes, no entanto não era o mesmo que ficar a pensar e a repensar se deveria escrever-lhe, se deveria propor um encontro. Desta vez tinha sido ele que não respondera, dia 1 de Janeiro, bom ano, Rui, como estás? Ele dormira o dia todo, tinha chegado a casa às sete da manhã e estava cansado. Responderia mais tarde. Miguel Noronha teria enviado aquela pergunta por má consciência, devia estar numa festa, devia estar na cama com um qualquer que seria esquecido no dia seguinte. Quando se deitou, Rui Vieira ainda teve um momento de fraqueza, masturbou-se para descarregar adrenalina e hormonas, limpou-se e dormiu. Miguel Noronha não era sequer uma imagem de estímulo na sua mente, a imaginação guarda o melhor e o melhor na masturbação é o desconhecido, a fantasia por cumprir. O clássico homem das obras, o actor musculado e com uma voz baixa, o médico que o curara que, se a memória não o traía, era bem-parecido e calmo. Rui Vieira queria que a masturbação fosse sexo consigo e com o outro que imaginava, e era nesse filme mental que concentrava as suas energias, era o guião eficaz para o prazer possível. Depois adormecia. 

Em Janeiro fez bastante frio, Rui Vieira já se instalara numa certa rotina, o trabalho salvava-o, tal e qual como se tinha convencido. Camila Vaz estava satisfeita, marcou um encontro, disse-lhe que era bom saber que as madrugadas estavam em boas mãos e, depois, com certo constrangimento, pedira-lhe para assinar uns papéis, eu digo-te o que isto é e espero que tu percebas que não te diminui minimamente, não és tu, a administração percebeu que contigo pode cumprir com a quota de deficientes e pode ainda encaixar uma parte do teu ordenado, já cá estás há algum tempo, sabes como esta gente é, não têm qualquer respeito, não se ralam com mais nada a não ser dinheiro, eu disse-lhes que falaria eu contigo, porque não quis que tivesses de ir aos Recursos Humanos ter esta conversa, porque, além deste documento, é preciso um relatório médico, que tenho de te pedir, para oficializar isto, a coisa boa é que assim não corres o risco de eu sair daqui e correrem contigo, percebes? Camila Vaz agradeceu o silêncio, e ele acenou afirmativamente e pegou na caneta que trazia sempre consigo e assinou. Numa folha nova de Word escreveu, está tudo bem, eu tenho relatórios médicos para encher um dossiê de dois quilos, amanhã faço cópias e deixo na tua mesa, pode ser? E ela, num gesto, talvez não inapropriado, mas realmente inesperado, quase o beijou, disfarçou mal e parcamente o alívio que sentia e ele considerou a posição dela. Uma mulher no jornalismo, em Portugal, é um alvo ambulante, porque as chefias e as administrações são compostas, na sua maioria, por homens. Ela conseguira chegar onde poucas jornalistas conseguem chegar, era respeitada, não aturava desaforos e era frontal. A frontalidade nunca me trouxe muitas amizades, costumava dizer, eu nunca quis ter muitos amigos, não é? 

Rosa Braz tinha dias de férias em finais de Fevereiro, folgas acumuladas, ia a Madrid com o namorado, uma viagem planeada há meses e meses, tinham poupado para isso durante algum tempo. O namorado era um artista, queria ser artista, explicara ela, iam ver exposições e ser felizes por dois dias. Rui Vieira acenou-lhe em concordância, ela mostrou-lhe uma fotografia do rapaz artista. Escreveu-lhe na folha de Word a que tinham dado o nome de conversa, grande pinta que tem o teu rapaz. Ela corou. 

Mais tarde, soube-se que tinham jantado com um grupo de artistas e galeristas italianos e que talvez não tivessem tido o cuidado devido, embora não se possa dizer que Rosa Braz não soubesse. Todas as noites escrevia sobre o vírus, acompanhava a sua evolução, estava informada, seguia as palavras sábias de Rui Vieira, um jornalista que é jornalista está informado, é-se jornalista, não se está jornalista. No regresso a Portugal, Rosa Braz acordou a meio da noite com uma febre, a febre foi subindo, a mãe, ainda vivia com os pais, chamou um anjo da noite, esses médicos que vão a casa e que custam algum dinheiro, a filha não estava em condições de ir a uma urgência. O médico, novo, bem-posto, informado como alguns jornalistas, trazia uma máscara, foi a primeira vez que a mãe de Rosa Braz percebeu que alguma coisa estava a correr mal, não tinha pensado naquele vírus de que se falava agora, achava até um exagero, o médico pediu uma ambulância e Rosa Braz nunca mais foi vista pela família. No dia 9 de Março, Itália fechou as fronteiras, Portugal decretou o confinamento. Rosa Braz manteve-se nos cuidados intensivos, isolada, sem dar acordo de si, um dia, dois dias, cinco dias, dez dias e depois morreu. Morreu com a imagem de alguém dentro de um fato branco, uma viseira, alguém que lhe terá dito, vai em paz, pareceu-lhe ouvir isso mesmo, ela não queria ir, mas tinha de ser, estava tão cansada. Rui Vieira recebeu a notícia dos lábios de Camila Vaz e não se escondeu, chorou na redacção convulsivamente, como uma criança que perdera o melhor amigo. Pedro Lopes ficara ali sentado, sem dizer nada, a vê-lo chorar. Sabia que não podia fazer nada, não existiam palavras ou gestos. 

No dia seguinte, Rui Vieira escreveu uma mensagem a Miguel Noronha, a vida é curta, não quero que fiquemos assim, talvez um dia possamos beber um café, quando tudo isto passar. 

Não obteve resposta.