Durante um tempo, ninguém deu por nada. Ela trocava mensagens com os ouvintes, as notícias eram obrigatoriamente positivas, não tinham conversado sobre isso, mas sabiam os dois, Rui Vieira e ela, que essa receita estava por praticar e que as boas notícias existiam, nem tudo era tristeza e fado. Aquelas horas, da meia-noite às seis, eram como uma alternativa ao oxigénio, a razão pela qual Susana Ribeiro de Andrade vivia. Não queria arrastar-se, tinha percebido que a tristeza era uma opção, porventura a mais fácil, uma opção que implicaria uma sucessão de outras coisas que não a satisfaziam, não lhe davam prazer. A tristeza trazia consigo a impossibilidade de admirar a beleza. Susana Ribeiro de Andrade não gostava de novidades, dificilmente gostaria de ver o corpo mexer-se com a música que, de repente, nos transporta para outros dias. O amanhã nunca existia, porque a tristeza se alimentava do ontem e só do ontem e do que não foi, e isso não era um amanhã. Durante os primeiros meses compilara as canções mais tristes que se fizeram pelo mundo, de norte a sul, sem preconceitos quanto a género musical ou idioma, o que era triste era triste e ela queria ouvi-lo, os seus ouvintes ouviam, por eles ou talvez por ela, pouco importava, mas agora as canções tristes pareciam ter-se esgotado.
Uma noite, Rui Vieira escrevera-lhe a dizer que talvez não fosse má ideia ver o que os artistas estavam a compor, coisas novas e não necessariamente sobre o vírus, e enviou-lhe três links que ela abriu de imediato e, com uma das canções, deu consigo a balançar-se. Tinha saudades de dançar, dançar até qualquer dor desaparecer como a sua amiga Fi, ou dançar porque era possível deixar o corpo ir na música, como quem vai à boleia de uma onda, e não pensar, estar-se positivamente nas tintas para quem olha de maneira depreciativa, a ver que talvez o ritmo não seja o certo, dançar apenas pelo prazer de deixar o corpo mexer-se como quer. Nesse momento, percebeu que estava cansada de ser triste.
A playlist animou-se ligeiramente na noite seguinte, não de forma exagerada, e os ouvintes aderiram e enviaram mensagens a dizer que lhes fazia lembrar as férias de Verão, quando existiam férias, que um dia tinham estado num país estrangeiro e ouvido essa mesma canção ou... contavam-lhe histórias cómicas que, geralmente, envolviam álcool, e Susana Ribeiro de Andrade, num outro gesto de ousadia, recordando as palavras de Che Guevara, um revolucionário deve fazer a revolução, abriu o microfone e disse, boa noite, deixo-vos um desafio no WhatsApp da rádio, conte-nos a sua história, conte-nos uma história que seja positiva, feliz, que seja boa. Estou aqui à espera das vossas histórias. Eu sou a Susana Ribeiro de Andrade, convosco da meia-noite às seis.
E assim começou o verdadeiro motim, porque esse era mais difícil de ocultar, de evitar uma reacção da grande líder que, nessa mesma semana, lhe telefonou para a informar de que estava consciente de que as madrugadas andavam diferentes, já o sabia há muito tempo, e que havia interacção com os ouvintes. Fez uma pausa e Susana Ribeiro de Andrade aguardou, a borrasca seria terrível, motivo para despedimento, ou processo disciplinar, ou qualquer outra coisa; sentiu a boca seca, o sistema nervoso a acusá-la. Sabia, mais uma vez, fora uma traidora. Não era o que se esperava dela. A sua chefe manteve-se calada, fazendo alongar uma pausa que, dir-se-ia, ser superficial, nem mesmo se poderia dizer que estivesse devidamente revestida de dramatismo, uns segundos desnecessários, talvez esperasse um pedido de desculpas, ou um esclarecimento consubstanciado numa teoria infalível, a provar que o seu plano era milagroso e crucial, Susana Ribeiro de Andrade não tinha nada do género para lhe dar, porém sentia, durante aqueles segundos de silêncio, que não poderia perder as horas mortas, aquelas horas. Camila Vaz suspirou, ou pareceu-lhe que suspirava, e perguntou-lhe o que tencionava fazer, porque as histórias das pessoas estavam a invadir o WhatsApp e o e-mail geral da estação e tinha de existir, necessariamente, sublinhou o advérbio de modo, um controlo, não era possível agora recuar, o que tencionava ela fazer? Susana Ribeiro de Andrade, ainda de boca seca, palmas das mãos suadas, gaguejou que teria de voltar a ver as histórias, algumas gostaria de as pôr no ar, e a chefe, rápida, fez o aparte, isso é redefinir o programa todo, é ser outra coisa?, porque é que não pode ser outra coisa?, quis ela saber. Não perdemos nada com isto, estamos a interagir com as pessoas, é crucial que se sintam próximas de nós, precisamos de audiência, não foste tu quem disse que a rádio a está a perder em alguns horários?, até disseste que a madrugada eram horas mortas. Não fui eu quem disse isso, é do conhecimento geral que são horas mortas. E ela, atrevida, arrogante, mal-educada, traidora, só serão horas mortas se quiseres que sejam. Sim, respondeu a outra mulher, num tom cansado de quem afinal não está para se aborrecer, porque tem três filhos em telensino e um cão velho, doente, e um ex-marido incompetente. Faz-me um plano, disse, e manda-mo por e-mail, tenho de falar com o resto da direcção. Sim, farei isso. Outra coisa, não cheguei a perguntar-te, como te dás tu com o Rui Vieira? Dou-me bem, quer dizer, por escrito, nunca falámos, já tentei ligar e não me atendeu nem devolveu a chamada, não insisti, respondeu já mais calma, a saliva a devolver-se à boca. Susana, Susana, o Rui Vieira é mudo, não é surdo, mas é mudo, perdeu a voz há uns anos, depois de um acidente, pensei que sabias, eu expliquei isso na redacção. Ela pensou que não tinha como saber, ninguém lho tinha dito. Mudo. Aquele homem que a animava por escrito, que alinhara com ela e reinventara as notícias da madrugada, aquele homem que dizia que a defenderia perante a grande líder, aquele homem não tinha voz. Não se apercebeu do fim da chamada, da putativa despedida da chefe, de repente estava sozinha em linha, com o telemóvel na mão. Só havia silêncio.
*
Rui Vieira mantinha o computador ligado vinte e quatro horas por dia, era quase como um amigo, ou uma banda sonora de vida, tudo na sua existência eram palavras e imagens, conseguia ainda lembrar-se do som de algumas coisas na sua voz, não insistia nessa memória, preferia nem saber como soam determinadas coisas, como seria a sua voz a dizer quarentena, confinamento era mais correcto, quarentena eram quarenta dias e o governo falava de catorze dias de reclusão. Alguém lhe dissera que o som é o maior condutor emocional, que confere verosimilhança seja ao que for, vês uma fotografia de um urso, é um urso, com a bocarra aberta, OK, ouves o urso rugir e aí tens o teu sentimento do autêntico, do verosímil, é um urso, é perigoso e tens medo, o teu cérebro sabe que é uma ameaça. É o poder do som.
Umas semanas antes tinha descoberto um áudio de uma peça que fizera sobre as comemorações do 25 de Abril em 2017, estranhou ouvir-se, teve quase a sensação de que aquele não poderia ser ele, não tinha saudades da sua voz, de dizer coisas, de cantar. Tinha exercitado em frente ao espelho, mexer a boca, gritar, gemer, fazer ruídos. O que lhe saía era sempre o mesmo pensamento, não te atrevas, não respires. Para o som existir é preciso ar, não respires. Sabia e não sabia que podia voltar a falar, sabia que não tentara uma única vez e sabia que o facto de não tentar era o resultado de um trauma e não de uma decisão, porque ninguém decide não falar, ninguém consegue deixar de cantarolar aquela música pirosa dos anos oitenta que lhe enche a alma, no caso Barry White, qualquer canção de Barry White, ou de simplesmente responder quando alguém o chama, Rui!?, ou coisa que o valha, falar está dentro de nós, é também por instinto que emitimos som, que escolhemos palavras, como fogo, adeus, sai daí, cuidado. É engraçado, considera Rui Vieira, dizemos estas palavras com facilidade, amo-te é muito mais complicado de dizer. Ou fica, ou preciso-te, de precisar de ti, entenda-se, ou beija-me... as palavras do amor são tão banais e tão difíceis, as mais difíceis de todas, incomparáveis, nem supercalifragilisticexpialidocious as ilumina ou facilita. Quantas vezes disseste, amo-te, Rui? As conversas em frente ao espelho tinham-se tornado interrogatórios mentais e, desde o acidente, existiam muitas questões, coisas simples ou muito complexas, pouco importa, surgiam quando olhava para si mesmo, quando percebia que tinha os cabelos quase todos brancos, o corpo a mirrar na sua pretensa juventude, ainda agora fez quarenta anos, envelheceu no hospital, durante a recuperação, e porquê? Para quê? Se se atrevesse a respirar, poderia dizer em voz alta o que o atormenta, escapar da imagem do outro lado, fugir de si. Quando se observava com demasiada atenção, era substituído pelo pai e voltava tudo ao mesmo, nunca mais apareças em nossa casa, não queremos saber de ti, és um paneleirote de merda, mais valia teres morrido, estava com esperança de que morresses, eu não sou teu pai. Escudava-se no trabalho, via filmes pornográficos para adormecer, não os via todos os dias, apenas quando precisava de se masturbar, nunca mais tinha estado com um homem, a casa perdera o cheiro de Miguel Noronha, não lhe apetecia recomeçar, mergulhar numa história amorosa qualquer, em alguém que o encheria de ilusões sobre a vida e a bondade da existência. Leu algures que o sexo é mais exacerbado quando se perde um sentido. Para um cego, para um mudo, para um surdo. O sexo é potenciado por ser agora uma linguagem de toque que precisa de se duplicar, ser pele e palavra, intenção e confissão. Lera e pensara se seria o caso, de momento não tinha como o saber. Existirmos: a que será que se destina? O amor é um saco de palavras que ele não queria aprender a dizer outra vez.
Aguarda pelas onze e meia da noite com certa impaciência, acumulando notícias e novidades, efemérides e outras curiosidades, pronto para as notícias. Se conseguir focar-se no trabalho será mais simples.
Boa noite, Susana, hoje vamos falar de Vinicius de Moraes e de Fernando Pessoa nas notícias, não te assustes, escreveu naquela quinta-feira, já perto das onze da noite, seguro de que ela estaria do outro lado. Sofriam os dois do mesmo? Não, ele sabia alguma coisa sobre Susana Ribeiro de Andrade, tinha chegado a ver o marido dela na estação de rádio, vinha dar uma entrevista ao jornalista que faz um programa cultural. Era um homem bonito, era um grande actor, portanto ele sabia sobre ela o que ela não sabia sobre ele. Conseguia perceber que o luto fora duro e que os tempos da pandemia tinham estragado todos os rituais de consolo que os homens inventaram para enfrentar a morte. Ela estava sozinha, fazia pena que estivesse tão só, mas ele percebia que existia nela a dignidade de fazer as madrugadas com um empenho redobrado, ela estava à procura de alguma coisa, de uma fórmula, a garantir que fazia sentido ainda cá estar. O mundo estava cheio de mortos, os números eram tão grandes que já não surtiam o efeito inicial, todos tinham alguém que morrera do vírus cujas mutações pareciam ser inelutáveis; a população começara a diminuir drasticamente, todos os dias se agravava a situação mundial e Rui Vieira tinha a certeza de que Susana Ribeiro de Andrade se interrogava sobre a pertinência de existir. Tal como ele.
E certo dia, meses depois de terem começado aquela aventura radiofónica, o tal motim inesperado, ela respondeu prontamente para depois se arrepender por dois minutos, olá, falei com a nossa líder, pensei que estava tudo lixado, pelos vistos não está. Ela disse-me que sofres de mutismo, é assim que se diz? E eu fiquei a sentir-me uma idiota, porque tenho insistido contigo para atenderes, para falarmos, desculpa a minha indelicadeza, não sabia. Pensei que enviavas por escrito por não teres equipamento em casa, algumas pessoas não têm. E carregou na tecla para enviar o e-mail e depois considerou que era outra indelicadeza, não deveria ter escrito nada, ela não tinha nada a ver com isso, ele entregava as notícias, era competente.
Ele cumpria a quota dos deficientes, foi uma estalada, escreveu-lhe em resposta, não valia a pena falarem sobre o assunto, pareceu-lhe evidente que ela desconhecia a realidade dele. Na verdade, felicitava-se diariamente, assim o afirmava, por ser mudo e não surdo.
E ela, num ataque de ingenuidade, escreveu, porquê?
Não ter voz era como o tal silêncio sofisticado da escrita. Quando escrevo o que penso faço-o com outra maturidade, com uma percepção exacta das palavras que aplico ao que quero comunicar, não me prendo ao impulso de dizer coisas por dizer, não vivo mal com isto, já passei essa fase. Às vezes, o cérebro sabe o que é melhor para nós, estive em coma, enfim, uma história triste, mas agora, aos quarenta anos, acabei de fazer quarenta anos, creio que não ter voz é uma bênção. Tenho a ponderação, mas também tenho a rádio, a tua voz, a música, os meus sobrinhos a gargalhar, sei o que é uma gargalhada, quanto mais penso nisto, mais me convenço de que as coisas não acontecem por acaso. Não precisamos de falar, salvo seja, sobre isto, Susana, está tudo bem. Conta-me da nossa líder, decerto castigadora, estás de castigo?
Susana Ribeiro de Andrade sorriu, leu tudo e sorriu, não havia castigo, tinha de existir um plano, se era para ressuscitar as horas mortas, exigia-se uma estratégia e ela estava a pensar nisso, não estava a pensar muito, estava simplesmente a tentar pensar. Talvez ele tivesse sugestões, afinal eram uma equipa.
No e-mail seguinte, minutos depois, aquilo que lhe pareceu uma eternidade, ele tinha o plano escrito, era um texto imaculado, institucional, não dizia nada e dizia tudo, garantindo assim que possuíam uma margem confortável para fazer o que quisessem, o que lhes desse na real gana, como diria o marido. Ela sorriu e respondeu-lhe que era genial, ele mandou um emoji amarelo com um sorriso que daria para tudo, felicidade, satisfação, retribuição ou simples resposta rápida, para despachar o assunto, ela não sabia. Não tinha importância.
Escolheu as histórias dos ouvintes, a sua maioria chegava-lhe num registo áudio, o que facilitava, era só preciso perceber quais as que podia partilhar, pôr no ar, quais as que precisavam de contenção. O que queria ela pôr no ar? Histórias dos dias que estavam a viver, cheias de má vontade contra esta nova forma de vida, esta normalidade anormal? Não. Tinha pedido histórias felizes para combater a tristeza que carregava em si, que percebia que os ouvintes tinham dentro deles, nas vidas anónimas, dores que eram indizíveis e inclassificáveis, eram dores de cabeça que desconhecia, tinham separações, zangas, mortes, todo o lixo da vida dentro deles e, como ela, talvez estivessem cansados de não dançar, de ouvir más notícias, de viver uma vida pela metade, mas de certeza que tinham histórias felizes para contar, podiam ser do passado, podiam ser do futuro, mas existiam. Essas histórias eram um alimento e ela não contava que as pessoas tivessem a generosidade de lhe dar tanto.
Boa noite, a Susana disse que queria ouvir uma história feliz, lembrei-me de lhe contar que, quando o meu filho nasceu, fiquei numa marquesa com ele junto de mim, no meu peito, no corredor do hospital, não havia quarto, já estávamos na pandemia, e ele olhou para mim directamente, como se me dissesse, estou aqui, não te atrevas a não sorrir, e eu chorei de emoção, todos os dias procuro sorrir. Ou então o senhor, com sessenta anos, dizia a idade e o nome completo e, depois, contava que trabalhara numa agência de viagens e era conhecido no meio como Carapau, porque eu era muito rápido e as pessoas chamavam-me Carapau de corrida por isso, não era depreciativo, ora eu liguei uma certa tarde para o aeroporto, tinha um grupo de turistas a chegar, um grupo grande, e disse, boa tarde, daqui Carapau, e a mulher que me atendeu desligou o telefone, a cena repetiu-se duas vezes e eu, que era novo e fogoso, meti-me no carro e cheguei àquele departamento do aeroporto e perguntei, alto e bom som, quem foi a galinha que me desligou o telefone?, casámos meses mais tarde, até hoje aqui estamos.
Fui um dos primeiros homens a casar em Portugal, quer dizer, gay, desculpe, sou gay, casei com o amor da minha vida, estamos juntos desde os dezoito anos, quando casámos tínhamos mais de cinquenta, ele continua a ser o amor da minha vida, eu continuo a pensar que não o mereço, as pessoas gostam da nossa história, dizem-nos muitas vezes que somos um exemplo, perguntam qual é o segredo e eu respondo sempre que não existe segredo, é uma escolha, é uma escolha diária e é saber que o amor é possível.
Eu queria ser astronauta, desde miúda, mesmo sendo uma menina, eu queria era ir ao espaço, queria ser como aquelas personagens das séries de ficção científica, estudei muito para ser engenheira, tive notas muito altas, fui estagiar na NASA e ainda não fui ao espaço, mas dizem-me que irei, ainda irei, acredito que o meu sonho irá concretizar-se, estou a ouvi-la aqui da Califórnia, sabe-me bem ouvir falar em português.
E seguia-se uma música de Van Morrison ou de uma banda nova, porque ainda havia quem conseguisse fazer música em tempos como aqueles, tempos em que as pessoas não circulavam, tudo minguava, era importante que a cultura continuasse, era urgente que continuasse.
Boa noite, Susana, ora aqui vai a minha história, estive internado, por causa do vírus, foi um pesadelo, parecia que estava dentro de uma série de televisão norte-americana, uma coisa assim espacial, e foi tudo muito doloroso, espere, não desista já de mim, a história é boa, recuperei do vírus e apaixonei-me pela médica que zelou por mim, não lho disse, por vergonha, sei lá, por falta de coragem, e quando saí do hospital, quando ela me deu alta, parecia um adolescente corado, só pensava em dizer-lhe que ela é linda, linda de morrer. Não disse nada. Voltei para casa, os meus pais morreram o ano passado, fiquei com a casa deles. O apartamento do lado estava em obras e eu sabia que teria um vizinho novo. Veja lá se adivinha quem é a minha vizinha? Pois é, a minha médica veio morar para aqui ao lado, estamos a pensar em mandar uma parede abaixo e ligar os dois apartamentos, estamos felizes, mal a vi subir as escadas com uma caixa na mão, mesmo de máscara, percebi que sorria, acho que encontrei o amor da minha vida, não acho, tenho a certeza.
*
No fim da emissão, trocavam ainda uns e-mails, era quase rotina, Rui Vieira tornara-se um amigo, talvez mesmo o melhor amigo, no tempo que viviam era simples perder os amigos, ela dizia que havia um peneirar do amor que fora a única bênção do vírus, seleccionámos as pessoas com quem queremos estar e deixámos de fazer fretes, e ele concordava com ela, não tenho muitos amigos, tenho um bom amigo que também é meu advogado, o Xavier Laje, e tenho a minha irmã, embora não a veja tanto quanto gostaria. E eu tenho a minha mãe, Susana Ribeiro de Andrade falava com a mãe várias vezes por dia, nada mudara, eram elas a fazer o que tinham feito sempre, então que tal?, novidades?, não, está calor, não achas?, precisas de alguma coisa? Assim, não era uma relação de intimidade, não se poderia dizer tanto, mas de contacto, mantinham o contacto. Susana Ribeiro de Andrade não possuía recordações más da sua infância, não estava traumatizada, não precisava de matar a mãe, agora que o pai já se fora, nada disso, aceitavam-se e estava tudo bem. Existem relações destas. Sim, eu percebo o que queres dizer, não vejo os meus pais há mais de quatro anos, não me faz diferença, nunca me entenderam, eu não os entendo, tão-pouco respeito as suas ideias, por isso é melhor esta distância, escreveu ele, e ela, muito rápida, mas não te sentes sozinho?, quer dizer, a família, ainda assim, é um chão, algo a que nos podemos agarrar. No meu caso, não faz diferença, acredita, morri para os meus pais, ou mais valia ter morrido no acidente, durante muito tempo andei a matutar nisto, no entanto concluí que a morte metafórica me serve na perfeição. Não preciso deles, eles não precisam de mim. Tenho a minha irmã e os meus sobrinhos, uma tia de quem gosto muito, e com quem não troco mensagens porque tem oitenta e nove anos e não usa e-mail, está muito velhinha, é até uma surpresa o vírus não a ter atacado. Vou vê-la, às vezes. Passamos a tarde de domingo a beber vinho do Porto e a olhar para a televisão. Não deixei de a visitar porque ela me disse, meu menino, nada de distâncias que eu estou muito velha, prefiro morrer com o vírus que possas trazer para dentro de casa a estar sozinha, sem a tua companhia. Eu nunca pensei que o vírus levasse tanta gente, sabes? Sei.
Numa manhã, já o sol estava no seu esplendor, trocaram fotografias um do outro, sendo que Rui Vieira sabia muito bem como ela era, bastava ir à Internet e lá estava ela, pequenina, perto de António Ribeiro de Andrade, acabado de vencer um prémio qualquer, ele já a tinha pesquisado. Não estava à espera de que a reacção dela fosse tão rápida, caramba, mas tu és muito giro, não há uma namorada por aí, ou mulher? Sou gay. OK, vou reformular, não há um namorado, um marido? Rui Vieira ouviu-se rir, não pensou nisso, o riso surgiu simplesmente dentro de si e estava a respirar, tinha encontrado espaço para sair. O riso, o que nos distingue dos animais, o riso dos homens é uma arma. Contou-lhe de Miguel Noronha. E ela foi fazendo mais perguntas, mais perguntas, e foi ao Google para verificar que o homem era agora secretário de Estado adjunto e da Saúde, e que tinha envelhecido brutalmente. Era muito giro quando começou, agora está um caco, pensou em escrever no e-mail; recuou e escreveu, então, e tu nunca mais lhe disseste nada? Estás feita casamenteira, Susana?, esquece lá isso, nem todas as pessoas encontram o amor como tu encontraste. Sim, tens razão, desculpa, foi uma pergunta parva.
O trabalho atingiu um volume tão grande, as mensagens eram tantas, que Camila Vaz se viu obrigada a seleccionar um produtor para o programa, não sabia quem deveria ser, estava numa posição complicada, não tinha orçamento para horas extra, era muito difícil, naqueles tempos, com a equipa tão reduzida, fazer omeletes, fazer fosse o que fosse. Comentou, numa das poucas reuniões de equipa, a sua preocupação e quase considerou estranha a maneira como Pedro Lopes se tinha precipitado para dizer, eu posso fazer de técnico e de produtor, posso ser eu. Camila Vaz fez contas, encarou-o em silêncio, ninguém a interrompeu, já sabiam que estava a considerar isto ou aquilo e que tomaria uma decisão, bom, Pedro, achas que consegues e fazes também os sábados?, é que se não for o caso, não tenho como te dispensar dos sábados, percebes? Percebo sim, Camila, não é um problema, os sábados são entre as duas e as sete, não há drama, já terei recuperado das madrugadas. Isso dizes tu que és novo, não sou assim tão novo, olha, pareces novo, comparado comigo pareces um menino, riram-se e ficou resolvido.
Susana Ribeiro de Andrade acatou as novas directivas, pousou o telemóvel e escreveu a Rui Vieira, vamos ter um técnico e produtor, e ele, duas pessoas?, o mundo parou ou quê? Não, é apenas uma pessoa, o Pedro Lopes, sabes quem é? Sei, sei, era o meu técnico quando voltei a trabalhar, depois do acidente, é muito bom, pode ser uma grande mais-valia. E, Susana, é giro que se farta. Não valeria a pena analisar e concluir, numa equação científica, como tinham chegado àquela intimidade, era uma empatia e reconhecimento um do outro, na palavra escrita e no que ela ia dizendo durante a emissão. Era bom ter alguém assim, alguém que não nos interrompe, já que os e-mails têm de ser escritos, têm de ser lidos e só depois se compõe a resposta. Havia entre eles o tempo e a consideração ideais. Parecia-lhes ideal.
Pedro Lopes começou numa segunda-feira e surpreendeu-a, porque já lá se encontrava quando ela chegou à cabine, estava no aquário dos técnicos e produtores. Ela atravessou o espaço para o cumprimentar, ele adiantou-se, abriu a porta e disse, olá, esta coisa de não ser possível cumprimentar as pessoas... desculpa, sou o Pedro, sempre estive em turnos desfasados dos teus, por isso não nos cruzámos. Ela gostou dele imediatamente. Reuniram por meia hora para acertar agulhas, com Rui Vieira do outro lado, em alta-voz no telemóvel, mas a escrever mensagens no WhatsApp em resposta ao que ouvia. Adaptavam-se, eram agora um trio, Rui Vieira tinha pensado nos três mosqueteiros e o pensamento levou-o a Rosa Braz e teve de se conter. Comovia-se com facilidade, era um dos resultados evidentes do acidente.
As madrugadas passaram a ter um ritmo frenético, a audiência a subir, o director comercial a tentar ver como poderia rentabilizar, ciente de que a queda de publicidade tinha atingido um nível histórico, era importante lutar por conseguir mais dinheiro e ele estava disposto a isso. Reuniu com Susana Ribeiro de Andrade. Ela acatou algumas coisas, bateu-se por outras tantas. Susana, desculpe, a rádio já não se fazia nestes moldes, é preciso termos lives, é preciso estarmos nas redes sociais, é aí que estão as pessoas, ninguém está na rua, não é? E isto já se fazia antes da pandemia, não se recorda?, enfim, recorda decerto, por isso vai dar-me razão, vou falar com a Camila, podemos pedir ao Pedro para filmar e animar as redes, não sei porquê, mas vocês agora têm mais ouvintes do que as manhãs. Ela não respondeu, ela sabia porquê, estava atenta às notícias, os números relativos ao desemprego eram uma calamidade, a economia estava a estrebuchar, a sobrevivência fazia-se com muito pouco, o tecido empresarial estava esgarçado aqui e ali, a população portuguesa descera quarenta e três por cento, a mortandade era mil vezes pior do que a da peste. Assim ia o mundo. Os seus ouvintes entravam numa ilusão, da meia-noite às seis sonhavam e era gratuito.
Miguel Noronha via os números e não podia acreditar na dimensão do desastre. Lia dossiês com palavras como confidencial, sigiloso, acesso restrito, para destruição. Os números derrotavam-no todos os dias. Não era a estatística a embelezar narrativas políticas ou a mostrar outras perspectivas, não era sequer estatística, eram números concretos, mais de duzentos mil mortos, mais de duzentos e oitenta mil e, doze horas depois, mais de duzentos e noventa e nove mil mortos. A sua luta era orçamental, os hospitais precisavam de muito mais dinheiro, a sofisticação da tecnologia era maravilhosa e era dispendiosa, já se sabia, o problema era conseguir comprar material. Miguel Noronha ouvia dizer muitas vezes, o dinheiro, nós temos, temos mesmo, o drama é que está tudo esgotado. As fábricas que subsistiam trabalhavam sem pausas, ventiladores a serem cuspidos como salsichas de uma máquina de talho. Ou máscaras. Ou qualquer outro equipamento. Um dia, esse dia estava próximo, não seria possível dizer que se tinha dinheiro, era mentira, o dinheiro era agora uma ilusão, virtual, como os beijos que se enviam por mensagem escrita, os beijos que já ninguém quer sentir. Era urgente formar médicos, porque os médicos também morrem e estavam a morrer como tal, como os mais velhos e todos os outros. Ele tinha-se vacinado, em teoria, seria uma vacina, uma coisa inventada pelos israelitas, Portugal recebera trezentas mil doses, por essa altura já estava perdida a vida de sempre, o governo optara por manter sigilosa a recepção da dita vacina. Miguel Noronha fora vacinado, não conseguira doses para a mãe nem para a avó, dois meses depois a avó foi a enterrar e, na ausência de rituais de morte, nem teve ocasião de chorar. A avó tinha-lhe dito ao telefone, estou muito cansada, Miguel, muito cansada, e já não me apetece, percebes?, e a quinta, avó, a quinta precisa de si, deixei aqui tudo o que tinha, Miguel, já chega, tem de chegar, o negócio do vinho está parado, há garrafas e garrafas armazenadas, tenho as pipas cheias, agora tu e a tua mãe decidem o que querem fazer. Não tinham decidido nada, começaram por despedir as pessoas que trabalhavam há anos naquelas terras, escreveram cartas de recomendação, com referências, ajudaram com papéis para o fundo de desemprego que estava totalmente esgotado. A mãe dissera-lhe, sabes, isto é tudo muito triste, demasiado triste, conheço pessoas que deixaram de pagar impostos por terem percebido que o estado social terminou, simplesmente, não estamos só na bancarrota, estamos com as calças no chão.
Miguel Noronha vivia o serviço público com um certo romantismo e o vírus roubou-lhe toda a ingenuidade, estava no Ministério da Saúde, sabia coisas que as pessoas nem sonhavam, a tristeza de tudo era pior que a metáfora da mãe. Sabia que, se existissem eleições, ainda se estava para ver se seria possível, o governo iria cair. A curva de popularidade era tudo aquilo que tinham ambicionado para o vírus, chata, achatada e sem graça, insignificante. O país odiava o primeiro-ministro, os ministros, os secretários de Estado, até odiava o Presidente que, hipocondríaco, deixara de lado a proximidade, estava isolado, protegido, escondido. A oposição parecia um teatro de fantoches, os fios quebravam-se, as personagens saíam de cena com a rapidez de uma ameaça, este sim, este irá fazer um bom trabalho, e, depois, caía porque era inevitável que acontecesse. Quem queria estar na política com tanto escrutínio? Quem queria ser oposição quando se viviam dias assim, sem futuro? O ministro tinha desabafado há uma semana, dizendo, nem os corruptos, Miguel, nem os corruptos querem vir para a política, já não há assim tanto dinheiro para se roubar.
Miguel Noronha não poderia regressar à quinta, não saberia o que fazer por lá, e o negócio, como dissera a avó, estava morto, ou parado. Conseguia imaginar um futuro em que as centenas de garrafas guardadas pela avó teriam um mercado, ganhariam prémios, fariam uma fortuna. Imaginava estas coisas nos intervalos do sentir-se impotente, sabendo que nada do que fizesse mudaria fosse o que fosse, era apenas mais um à espera do vírus.
O ministro falara da possibilidade de uma farmacêutica, de origem francesa; ele não se pronunciara, compreendia, em consciência, que os seus dramas eram coisa menor, mas era um sobrevivente e fazer parte de uma administração era um lugar como outro qualquer. Sabia-se velho. Tinha quarenta e dois anos e estava ali, naquele gabinete com alcatifa azul-petróleo, a sentir-se a maior vítima da pandemia que alguma vez existiu, a vida não deveria ser aquilo, não era o que imaginara. Mal tinha chegado ao gabinete do ministro projectara para si uma carreira ascendente que talvez até culminasse em secretário-geral do partido, porque não?, assinara a ficha de militante, fizera uma intervenção no último congresso. A vida era bela, tinha sido bela. Não adivinhava que voltasse a ser. Restava-lhe a imaginação.
Cruzara-se com Rita Vieira meses antes, ela acabara de se divorciar. Por fim, acrescentara com certa graça, corando, parecia-lhe que tinha corado, estava de máscara, era apenas uma possibilidade. Quando lhe explicou as mudanças na sua vida, perguntou pelo irmão dela, percebeu que Rui Vieira regressara ao trabalho, que os pais estavam reclusos da sua própria existência, alimentando teorias da conspiração e outras maldades. Os três filhos continuavam bem, o ex-marido nem por isso, não era novidade, ele tem uma perturbação qualquer, no início negava a pandemia, o vírus, agora é um especialista, acha que sabe tudo. O divórcio correu de feição porque o advogado, Xavier Laje, fora implacável, ela não dissera aos pais, não falavam sobre isso ao telefone; e como o medo era tanto, eles não queriam visitas, ela mandava fotografias dos miúdos, estão enormes, queres ver?, tu nunca os viste, pois não? Miguel Noronha gostou de a ouvir falar, apreciou o nervoso miudinho, achou-lhe uma certa graça, pensou-a quase sensual, com um botão da camisa mal apertado, na casa errada. Ele perguntou, trabalhas aqui, na farmacêutica?, sou a responsável pela comunicação, tu vens para a reunião com a administração? E ele que sim e depois, num gesto impensado, tirou a máscara, perguntou, queres jantar comigo? Tenho em casa refeições em vácuo que são muito boas. Ela sorriu, tirou a máscara, ele voltou a ver-lhe a covinha no rosto, de que se recordava; não posso, tenho os miúdos, mas podes ir tu lá a casa, devo ter as mesmas refeições em vácuo com autocolante premium. Riram-se. Foi o primeiro momento de normalidade em meses e ela era fácil, de sorriso fácil. Fazia lembrar o irmão, em certas expressões, era mais animada e Miguel Noronha apreciou essa vida redobrada que Rita Vieira exibia, não tenho outro remédio, tenho filhos, tenho a obrigação da alegria. E ele entrou naquele apartamento no Parque das Nações, não tenho vista para o rio, não penses, é um primeiro andar, olha, podes subir pelas escadas, escusas de usar o elevador, sabe-se lá, não é? E ele que sim, subiu as escadas, o cão ladrou, a porta abriu-se e ela surgiu-lhe com o cabelo preso, calças de ganga, uma t-shirt a dizer Nirvana e descalça. Os pés comoveram-no, ficou ali preso a ver as unhas dos dedos pintadas de vermelho, quase um segredo dela, porque nunca a vira com as unhas das mãos pintadas, era uma ousadia dela, percebia que era algo que não deveria olhar com tanta atenção, mas não conseguia evitar e ela, rindo-se, pegando na coleira do cão que o cheirava, vai-se a ver, és daqueles que tem fetiche com pés. E Miguel Noronha encarou-a e riu-se. O riso era uma bênção que morava dentro dela.
Despiu o casaco e enfiou-o num saco para descontaminação, fez o mesmo aos sapatos, passou as mãos e os antebraços por álcool-gel, ela deu-lhe ainda um spray que ele aplicou nas calças, na camisa, no cinto. Parece que estás limpo, entra.
Depois os miúdos apareceram, dois muito estridentes, a fingir uma luta com espadas; foi o Rui que lhas deu no Natal, sabes, são do Star Wars, portanto sabres de luz com tal som característico, zummm, zummm, e a mais pequenina, Laura de seu nome, a trepar pela mãe, tem cinco anos, é uma pirata, agora vai querer parecer envergonhada, dura dois minutos, não tarda está em cima de ti. E estava. Rita Vieira foi para a cozinha e ele entregou-se a tudo aquilo.
Foi a primeira vez. O jantar foi caótico e barulhento, com os miúdos, gémeos, a falar a uma velocidade sem fim, a rir, a fazer macacadas, a disparar um pouco de esparguete para a parede e ela, muito rápida, a avisar, é melhor tirarem o esparguete da minha parede já, nem o quero ver lá outra vez, e o Jaime a limpar a parede com o guardanapo e a fingir-se solene na operação, deixando o irmão, Gustavo, a tentar conter o riso. Vocês são terríveis, Miguel Noronha riu-se, e eles apreciaram-no pela ausência de sermão, és amigo da mãe?, sim, acho que sou, achas ou és mesmo?, sou mesmo. Pronto, estava resolvido, aquela figura masculina era amigo, estava para lá, na linha dos bons, portanto podiam ser simpáticos e até mostrar habilidades, e assim fizeram. Levantaram a mesa, Rita Vieira pôs tudo na máquina com a ajuda da pequena Laura, afugentando o cão, que se chama Alfredo, para não comer restos, para não lamber pratos, para estar quieto, tu queres ver. Seguiu-se uma hora de conversas cortadas com um filme de animação que estava a dar num canal de cabo, e que Laura achava delicioso, e dizia delicioso arrastando a palavra, gostava da personagem que deslizava nos patins de gelo, gostava do monstro que afinal não o era, conhecia a história e dedicou-se a instruir Miguel Noronha, enquanto Rita Vieira revia trabalhos de casa dos gémeos e ia suspirando, isto é só desatenção, Gustavo, achas mesmo que o resultado é este?, mas que raio de letra é que vocês estão a desenvolver?, isto é o quê? Dez e meia da noite, todos deitados, com mais ou menos vontade, Laura adormeceu em cinco minutos, consolada com a presença do cão aos seus pés, os outros dois guerrearam e riram no quarto já sem luz, e era possível ouvi-los; nem tentam disfarçar, os desgraçados, ria-se a mãe que, por fim, aterrou no sofá e incitou, então, conta-me tudo.
Tudo. O que seria tudo?