CAPÍTULO 22 

De manhã, Maddy encontrou sem ajuda o caminho para o imenso vestíbulo medieval, com as suas vigas escuras e paredes de pedra. Parecia quase tão imponente como na noite anterior, com a sua altura incrível, o soalho ressoante, os raios de luz silenciosa através das janelas estreitas. Por sorte, deparou-se-lhe o coronel Fane, que entrava acompanhado pelos cães, os quais lhe serviram amavelmente de guias até à sala do pequeno-almoço. Durham já se encontrava ali, ocupado com as suas papas de aveia, que comia de pé enquanto contemplava pela janela a magnífica vista do campo. 

– Bom dia, minha senhora – foi a sua alegre saudação. – Quer um pouco de kedgeree? Chá indiano ou chinês? Café? 

Sem que ela se apercebesse, conduziu-a até à cabeceira da mesa coberta com uma toalha de linho e serviu-a pessoalmente dos recipientes de prata que se encontravam sobre o aparador, persuasivo como sempre que entrava em ação. Sentou-se ao lado dela e indicou ao coronel Fane que se instalasse. 

– Aqui podemos falar a sós. Os criados não aparecerão a menos que os chamemos. – Passou-lhe a nata. – Como acha que tem corrido tudo até agora? 

– Não sei – respondeu Maddy. – Sinto-me tão... estranha. 

Fane aproximou-se e deu-lhe uma palmadinha na mão. 

– São os nervos. O casamento. A primeira noite é sempre a pior. 

Durham pigarreou. 

– Fane, por favor. Tenta mostrar alguma delicadeza! 

– As minhas desculpas! – O coronel corou e apressou-se a dar uma salsicha a Devil. – Esqueci-me das minhas boas maneiras. 

– De qualquer maneira, que sabes tu do casamento? 

O coronel mantinha os olhos baixos. 

– Tenho irmãs. Era o que a minha mãe lhes dizia. Lamento, minha senhora. 

– Não te preocupes – disse Maddy. – Quem me dera que a tua mãe pudesse aconselhar-me. Há muitos anos que não tenho a minha ao meu lado. 

– Lamento sabê-lo, minha senhora. – A vergonha passageira dele desapareceu. – É uma pena que a minha não esteja aqui, porque lhe deixaria as coisas claras num instante. 

– Bom, mas não está – atalhou Durham. – Graças a Deus. – Olhou para Maddy: – O Shev vai demorar, parece-lhe? 

– Não sei – respondeu ela, a olhar para a papa que começava a engrossar no prato. – Depois de vocês se retirarem, ele adormeceu na poltrona. O mordomo disse-me que normalmente não tem quem o ajude quando se deita tarde, por isso pensei que... não queria que se interrogassem mais acerca dele do que já devem interrogar-se, por isso pensei... – Afastou o prato. – Por isso, deixei-o lá! – disse de rompante. – E não o devia ter feito. Mas o mordomo intimidou-me e eu não quis perguntar-lhe onde o duque ia dormir, limitei-me a ir para onde me levaram, ele não apareceu e eu não sabia como voltar! 

Aquela informação foi acolhida com um silêncio incómodo. Maddy levantou-se e aproximou-se da janela. Através do antigo painel de vidro ondulado contemplou o vale lá ao fundo, as árvores e os campos sob o sol da manhã e os meandros brilhantes do rio de um cinzento acastanhado. 

– Olhem para isto – disse, desesperada. – Olhem para este lugar. Nunca haverá quem acredite que pertenço a este lugar. Ah! Quero ir para casa! 

Encostou a cabeça ao caixilho. Devil aproximou-se e meteu-lhe o focinho na mão. Maddy recolheu a mão e abraçou-se. 

– Archimedea – chamou-a Durham –, o Shev está a melhorar, não é verdade? 

– Sim. 

– Foi o que me pareceu. Mesmo só nestes poucos dias. 

Maddy não desviou o olhar da janela. 

– Cada dia que passa, ele fica melhor. Quando o vi pela primeira vez em Blythedale Hall, não falava de todo. 

– Então... é possível que em breve esteja bom. Superará a maldita audiência e isto acabará. 

Maddy nada disse. 

– De momento, esperam-nos uns quantos obstáculos – reconheceu Durham. – A família apresentar-se-á aqui assim que eu lhes contar o que se passou. Lady de Marly... mas já a conhece. O Shev julga que ela não se importará com o casamento; eu não sei, mas será melhor que esteja preparada para qualquer coisa. Quanto aos restantes, disso não há dúvida, eu mentiria se dissesse que não vão armar uma enorme confusão... mas, se a Archimedea se mantiver firme, tenho a certeza de que nada poderão fazer. Absolutamente nada. Se tentarem levá-lo à força... ora, nesse caso chamaríamos o comendador real. 

– O Shev é o comendador real – observou Fane. 

– Por Deus! Claro, tinha de ser. É dono e senhor de todo o maldito condado. Será também o juiz de paz? Bem, não interessa... logo vejo. Só precisa de se manter firme e haveremos de chegar a bom porto. 

Maddy virou-se. 

– Que porto? Para mim, não existe outro porto. Não posso estar casada com ele. Não posso ser duquesa! 

Durham observou-a intensamente. 

– Não quer ser duquesa... ou não quer estar casada com o Shev? 

– Não compreendes! – gritou ela. – Não posso! Não posso fazer nenhuma dessas coisas. Quando os Amigos souberem, vão repudiar-me. 

Durham assentiu lentamente. 

– Compreendo. – Respirou fundo. – Não estava ciente disso. Sabia só que as suas crenças a deixavam um pouco desagradada com a situação. 

– Desagradada! – repetiu Maddy. 

Virou-se de novo para a janela e soltou uma gargalhada curta. Devil saltou para o banco debaixo da janela e encostou-se a ela. Ela só podia afagar-lhe a cabeça. Era a única maneira de evitar que ele lhe colocasse as patas sobre os ombros e lhe lambesse o rosto. 

– O casamento... – Durham hesitou. – Não será... consolo suficiente pela sua perda? 

Perguntou-lho com amabilidade, mas Maddy percebeu o argumento na sua voz. Ele julgava que toda aquela riqueza, o castelo e o título de duquesa deviam ser suficientes para compensar o que quer que fosse. 

– Não compreendes. Recusas-te a compreendê-lo. – Acariciou as orelhas macias do cão. – Nunca pertencerei a este lugar. 

– Tem de se dar um pouco de tempo. Não está habituada. É um lugar antigo e fantasmagórico, eu sei. E, além disso, frio como o gelo. Já todos nos perdemos nele uma vez ou outra. 

– Oh – disse Maddy com uma voz trémula –, eu estou perdida agora mesmo. 

– Ele precisa de si. 

– Precisa de mim? Achas mesmo que eu conseguiria evitar que alguém fizesse alguma coisa? Olha para mim. Olha para este castelo. Ninguém me faria caso! 

Mordeu o lábio com força. Não se permitiria derramar lágrimas de fraqueza por aquilo que já estava feito. Mas se não fosse assim, se na realidade não... 

Falou sem se virar: 

– Pergunto-te: há alguma maneira de desfazer este casamento? É demasiado tarde? 

Houve uma pausa. 

– Deseja anulá-lo? 

– Sim. 

– Oiça – pediu-lhe Durham –, só por um instante, esqueça a religião. Esqueça tudo, exceto o Shev. Os parentes dele não tardarão a saber que se encontra aqui, quer eu lhes diga, quer não. Quando chegarem, o Fane e eu faremos tudo o que estiver ao nosso alcance, mas, se ele não consegue falar, se ainda é incapaz de se defender por si mesmo, podem pôr-nos imediatamente na rua. Mas a menina... a duquesa de Jervaulx... poderá expulsá-los a eles. Poderá protegê-lo com toda a legitimidade, até que ele esteja completamente recuperado. 

– Tens a certeza disso? 

Ela fitou o rio reluzente até que os olhos começaram a doer-lhe. Devil abandonou-a de repente, afastou-se e desceu do banquinho da janela. 

– Faz sentido, não faz? – replicou Durham. – Deixe as coisas como estão. Pelo menos, até que ele se possa defender sozinho. 

– Então existe uma maneira de o anular. 

– É possível. 

– Tens de me dizer como. 

– Santo Deus, Maddy! Vai abandoná-lo? 

– Diz-me! 

Tinha as mãos apertadas. O rio, tão prateado e brilhante no meio da paisagem invernosa, irritava-lhe os olhos, mas ela não conseguia afastar o olhar. 

Durham disse em voz baixa e sem inflexão: 

– Não dormiu com ele. 

Era uma meia pergunta. Maddy sentiu as faces a arder e abanou a cabeça. 

– Nesse caso, não o faça. Não consume o casamento. E, quando decidir que não suporta continuar a ser duquesa e mulher dele, venha ter comigo, Sua Senhoria. – O tom da voz dele tornara-se amargo. – E eu logo lhe explicarei o que precisa de saber para anular o matrimónio. 

Maddy escutou o ruído da cadeira dele a arranhar o chão. De seguida, ouviu-o resmonear uma imprecação em voz baixa. 

Virou-se, viu Jervaulx, com Devil e Cass junto aos pés, em frente à porta fechada, a observá-la. 

 

 

Christian saía para os parapeitos do castelo quando queria estar sozinho. Conhecia todos, mantinha-os sempre bem conservados e reservava-os para uso próprio, guardando todas as chaves das portas que levavam às amuradas. Quanto mais altas, melhor. E a torre mais alta de todas as torres do castelo de Jervaulx colocava-o acima de tudo aquilo que conseguia abarcar. 

Envolto no sobretudo, inclinou-se sobre as pedras caiadas de uma frecha. A partir dali, a vista alcançava a torre Whitelady, a mais antiga, sólida e atarracada, e que partilhava a função de vigilância com a torre Knight e, um pouco mais longe, a Phoenix, que rodeava a torre nordeste e os aposentos isabelinos, reconstruídos e redesenhados por Christopher Wren, onde tinham alojado Maddy na noite anterior, nos aposentos da sua mãe. Para além destas, havia Beauvisage e Mirabile, que não se viam devido à curva de Belletoile, onde se encontrava. 

Conhecia-as. Amava-as. Quando acordara naquela manhã, nem se recordara de que alguma coisa tivesse mudado, de que ele pudesse ser outro que não o duque de Jervaulx, senhor do seu castelo e do seu destino. Depois tentara falar com o criado que lhe levara o pequeno-almoço. 

Alegrava-se por não ter sido capaz de pronunciar palavra. Decerto passara por sisudo e não por louco. Mas isso era apenas uma prorrogação. Não poderia votar o pessoal ao silêncio para sempre. 

E Maddy. Apoiou os braços no muro e encostou a cabeça neles. 

Para ser honesto, demorara muito tempo a recordar-se dela. Só se apercebeu disso quando saltou da cama e se viu completamente vestido. E, mesmo então, não se sentira muito preocupado, apenas um pouco deslustrado por ter adormecido na noite de núpcias. Tomara banho, com o auxílio de um lacaio, passável, que mantivera um rosto agradável e sereno, apesar do silêncio sombrio de Christian. Era óbvio que o tinham escolhido para aquele cargo inesperado por ambicionar ser criado de quarto. 

Enquanto descia as escadas, pensara no que poderia fazer para a compensar. Apesar de correr o risco de ser considerado imbecil, estava decidido a deixar-lhes bem claro onde a mulher dormiria. Ponderava a melhor forma de o fazer quando entrara e deparara com Durham a aconselhá-la a nunca dormir com ele. 

Christian fingiu não ter percebido. Não fora difícil. Permanecera imóvel e tinham-no tomado por estúpido. Mudo. Surdo. Néscio. 

Maddy fitara-o com uma expressão de culpa. Mas ele lançara-lhe um sorriso, dirigira-se ao aparador e servira-se de chocolate. 

Eu compreendo, Qu’ridaMaddy. 

Entre a pedra branca e um céu azul e cinzento de aguarela, o vento revolteava por Belletoile e erguia o colarinho de Christian até lhe cobrir o rosto. Era uma novidade que alguém pudesse descurar o castelo de Jervaulx. Não apenas descurá-lo – rejeitá-lo por completo. E a si, por acrescento. 

Conseguia compreender essa parte, dado o seu estado atual, mas isso dificilmente o tornava menos doloroso. Pensara, presumira, que as suas carências seriam amplamente recompensadas por tudo o que tinha para oferecer. O próprio castelo, e tudo quanto este continha, não era coisa de somenos. Ele julgara que, quando ela se encontrasse ali, quando o contemplasse, veria naquele lugar o mesmo que ele via. 

Bom, se não era assim... nada havia a fazer. 

Qu’ridaMaddy. Vais deixar-me, então? 

Olhou para o céu. Sentiu-se impotente, magoado, furioso e desamparado. 

Soltou uma imprecação e enfiou os punhos com raiva nos bolsos do sobretudo. Se ela queria anular o que fizera, não a impediria. Durham suplicara-lhe que ficasse até que a sua presença não fosse necessária, mas Christian nem sequer lhe exigiria isso. Convertê-la em sua mulher fora uma decisão tomada num momento de fraqueza e aturdimento. Ela era quaker. Não era ninguém. Como ela mesma declarara com tanta franqueza, não pertencia àquele lugar. 

Que se fosse embora. 

Ele já estava melhor. Ia ficar perfeito. Que se fosse embora. Não precisava dela, nem da fraca proteção que pudesse oferecer-lhe. Não lhe faria falta. Mal notaria a sua ausência quando ela partisse, pequena presumida teimosa beijos doces. 

Contemplou o aspeto invernal dos montes. Tomara tudo – castelo, o seu património – como garantido na sua vida. Tentara não o fazer, mas fizera-o. Com reformas triviais, participando em falsas batalhas, sempre a salvo na sua torre inexpugnável. Sem nunca saber a sorte que tinha. 

Poderia voltar a perder tudo. Sentiu uma nova sensação a gelá-lo até aos ossos. Seria sequer seu, naquele momento? O instinto impelira-o a refugiar-se em Jervaulx; por um hábito adquirido durante tantos anos, o lugar funcionava sob as suas ordens. Mas na Chancelaria tinham-no reduzido a nada. E se fossem até ali, se tentassem levá-lo... 

Encarcerado, acorrentado, vencido. Esmagado. 

Não permitiria que tal coisa acontecesse. 

Sabia tudo o que havia a saber quanto ao castelo de Jervaulx. Sabia que os antemuros de Belletoile distavam vinte metros do solo lá em baixo. E ele era o único que tinha a chave da torre. 

 

 

Encontrou Maddy na saleta da duquesa, a contemplar um quadro de Herodes com a cabeça de São João Batista. Por baixo da pintura encontrava-se um crucifixo do género sangrento. 

Alegre – comentou, a tentar mostrar-se sarcástico. 

Ela virou-se para ele. 

– É um quarto sumptuoso. 

– Obrigado – respondeu, como que a desafiá-la a dizer que aquilo não tinha sido um elogio. 

Ela voltou-se para outro quadro. Duas crianças encostadas a um mastim mais alto do que elas. 

– Este é bonito. 

Ele fez uma ligeira vénia. 

– Irmão. 

– Teus irmãos? 

Jervaulx observou o quadro. James era real; o lado em que o próprio Christian aparecia é que tinha um ar nebuloso, até que se obrigou a concentrar, ergueu a mão e apontou para a criança de cabelo encaracolado e casaco curto. 

– Mim... eu e... irmão. Dez anos... James... seis. Morreu... há muito. Febre... escarla... escarlatina. – Recordou posar para o quadro. Oh, que sofrimento, que tormento permanecer imóvel quando havia jogos, campos e rãs. – Cão era... Killbuck. – Sorriu. – Nunca fez mal a ninguém... esse cão... nem uma borboleta. 

Maddy olhou para o quadro em silêncio. Nessa manhã estava com um ar severo, o cabelo apertado, como se se quisesse mostrar o mais diferente possível do ambiente que a cercava. 

– Queres... anular. – Não conseguia abordar o assunto com maior subtileza. – Casamento? 

Maddy olhou-o incisiva e pôs as mãos atrás das costas. 

– Compreendo – disse ele. – Pequeno-almoço... Durham anular... casamento. 

– Parece-me que seria... sensato. – Não afastou os olhos dele. – Mas ficarei aqui até que te encontres suficientemente recuperado. 

– Agora. Suficiente bom! Vai... agora. 

– Queres que vá embora agora? 

Christian contraiu o maxilar, zangado pela transferência de responsabilidade. 

Eu... não disse. Tu. Pequeno-almoço a... Durham... anular casamento. – Afastou-se dela. – Não dormir juntos. Ouvi. – Virou-se. – À noite... cama... não. Por isso. Anular. Chama Durham... agora para anulação. – Estendeu o braço para puxar o cordão da campainha. 

– Eles saíram – explicou ela. – Esperaram por ti, mas não te encontraram em lado nenhum. 

– Saíram. – Ao ouvir aquilo, interrompeu-se, sem poder descarregar a hostilidade que guardava no interior. Deixou cair a mão. – Saíram. – Percebeu o que isso significava – Demasiado tarde! Eles... visitar. Contar casamento. Família. Para o diabo com eles! 

– Pensei... – Maddy sentou-se numa cadeira e pousou as mãos no colo. – Acho que eu devia ficar, pelo menos, até à audiência. Se estiveres de acordo. – Entrelaçou os dedos com força e Christian viu o anel de sinete no dedo dela. – Peço-te... se estiveres de acordo, que não consumemos o casamento... e assim poderá ser anulado quando estiveres bom. – Humedeceu os lábios. – Nessa altura já não precisarás de mim. Seria um fardo e uma mágoa para ti. Não pertenço ao teu mundo. Quando estiveres completamente recuperado, vais perceber isso. 

Queria rebater o que ela dissera, mas faltavam-lhe argumentos. Sentia-se completamente derrotado e presa de uma angústia que não sabia expressar. 

– Se não... bom? – quis saber. – Se nunca... completo? Ir embora? 

– Não sei. A única coisa que posso afirmar é que ficarei até à próxima audiência. 

– Até... próxima? 

– A audiência. Outra vez perante o lorde-chanceler. 

Todo o seu corpo se retesara. 

– Outra vez? 

– Sim. Terás de voltar a comparecer. 

Quando? 

– Não tenho a certeza. Faltam alguns meses. Lady de Marly deve sabê-lo. 

Deu dois passos na direção dela e deteve-se. 

– Outra! Porquê? 

A agressividade do tom de voz pareceu sobressaltá-la e fez com que se recostasse no assento. 

– Os teus cunhados. Insistem que deves ser declarado incapacitado. 

Christian olhou-a fixamente. Pensara... 

Pensara que isso já tinha sido deliberado. 

Com a respiração acelerada, incapaz de formular uma pergunta com o tropel de palavras que lhe inundavam a cabeça, começou a percorrer a sala de um lado para o outro. 

– Significa capaz... agora? 

Ela parecia não o compreender. 

Agora! – gritou. – Capaz... agora? Livre... agora? – Pegou-a pelos ombros e debruçou-se sobre ela. – Diz! 

Até à audiência – respondeu Maddy, imóvel sob as mãos dele –, aos olhos da lei és igual a qualquer outra pessoa. – Ele ficou imóvel a olhá-la, incapaz de a libertar, ou sequer de se mexer. – Se não fosse assim, como terias podido casar? – acrescentou ela. 

Claro. Era óbvio. Estivera demasiado desorientado. Isso nem lhe passara pela cabeça. Julgava que já o tinham despojado da sua existência legal, que o haviam declarado incapaz. Escondera-se atrás de Durham e Fane, atrás de Maddy e do castelo de Jervaulx, como um idiota a brincar às escondidas, como se isso o pudesse proteger quando o fossem buscar para o levar de volta. 

Outra audiência. Meses. 

– Maddy. – Apertou-a com mais força. – Ajuda... me. Bom. Recuperado. Quero... concordo... sem cama. Ficar e ajudar. Acordo. Depois vais... quando eu... recuperado. Audiência. 

Ela fitou-o. 

– Não haverá consumação? 

Procurou a mão dela, encontrou-a e apertou-a. 

– Não. Audiência. Recuperado. Não... con... consu... cama. Anular casamento. 

Ela baixou as pestanas, aquelas pestanas eróticas. A observá-la, arrependeu-se da promessa, mesmo antes de ela ter feito um ligeiro gesto de assentimento e a aceitar. 

 

 

O acordo tornou as coisas mais fáceis entre eles. Maddy já não se sentia tão incomodada com o que a rodeava, sabendo que era apenas um ínterim e não um compromisso formal. Quando o duque lhe sugeriu uma visita guiada ao castelo, acompanhou-o de bom grado. Até deixou que lhe arranjassem um dos vestidos mais simples da duquesa viúva, já que não podia usar para sempre o seu fiel vestido cinzento. 

Escolheu um de cetim azul-escuro. Dentro do roupeiro, ao lado dos outros, não parecia demasiado luxuoso, sobretudo tendo insistido para que a criada lhe tirasse os enfeites; porém, quando o vestiu e se viu à plena luz do dia, em frente a um espelho, a cor pareceu-lhe de uma enorme opulência. 

A jovem aguardava. 

– Muito bonito, Sua Senhoria – disse-lhe, com a caixa de costura na mão. 

Era belíssimo. Maddy nunca vestira nada parecido. Alisou o tecido de cor forte. 

– Sim – disse e olhou-se maravilhada. – Eu... é... muito bonito. 

Depois de terem descido a bainha e retirado pregas e enfeites, e com um xaile branco de seda indiana sobre as mangas em balão e o decote, sentiu-se preparada para se juntar a Jervaulx. Ao vê-lo, teve um momento de dúvida, convencida de que ele julgaria um disparate que tivesse escolhido um vestido tão luxuoso, mas Christian limitou-se a contemplá-la durante mais tempo do que o devido. De seguida sorriu com um dos cantos da boca enquanto lhe dava o braço. A cor do vestido condizia com os olhos dele. 

– Maddy – disse-lhe ele. – Lamento... concordar... não consu... 

Ela achou que compreendia o que ele queria dizer, mas ignorou-o sem mais perguntas. 

Os quadros da galeria continuavam a exibir a sua desaprovação, o que a recordava da estranheza que sentira ali durante a noite. Jervaulx deteve-se diante de um dos mais imponentes. Um quadro enorme com uma figura séria e condescendente, vestuário vermelho e uma enorme gola de tufos branca, de aparência entediada e majestosa, que segurava um bastão de alto cargo. 

– Lord Jervaulx – disse. – Primeiro. Poder... grande conde. 

– Muito distinto – replicou Maddy em voz baixa. 

– Casar dezassete. Uma jovem... conseguiu casar herdeira rica. Ela escreveu antes... a ele... carta. Tenho-a. Ela diz meu doce amor... digo o que penso... penso rendimento. Peço imploro-te... meu amor... quero duas mil e seiscentas libras por trimestre. 

– Céus – disse Maddy, num tom duvidoso. – Não era uma quantia elevada para a época? 

– Muito... elevada. – Jervaulx sorriu. – Além disso... para deixar as coisas claras... escreve... quero três cavalos meus... duas damas de honor... um cavalo para cada uma, seis ou oito cavaleiros... duas carruagens... veludo... quatro cavalos cada uma... lacaio... criado... seiscentas libras para caridade todos os trimestres... tudo... custeado por ele. 

– Muito razoável – disse Maddy, começando a sorrir. 

– Além disso... todos os anos... vinte vestidos... oito para o campo... seis bons... seis excelentes. Mais seis mil para comprar joias... quatro mil para colares pérolas. Mais... todas as casas... móveis... quartos... com camas... tamboretes... cadeiras... almofadas... tapetes... dosséis. Mais... ele pagar-lhe as dívidas. Mais... comprar terras. Mais... não emprestar dinheiro... lorde-chanceler. Mais... suplica... quando chegar... a conde... mais duas mil... dobro dos acompanhantes. 

– Dizia tudo isso na carta? – Maddy continha o riso e já não se sentia tão impressionada pela majestade daquele pobre cavalheiro nobre. 

– Sim. Ele deu – disse Jervaulx. – Tudo. E nunca emprestou... chanceler. Conselhos sensatos. Morreu conde... conselheiro... tesoureiro do rei. Rico. Poderoso. Construiu... torre nordeste. Boa esposa. 

Maddy fez uma careta. 

– É essa a tua ideia de uma boa esposa?! 

– Sim! Rica. Astuta. Caprichosa. Elegante. Ambiciosa. Boa esposa. 

– Pois casaste mesmo com a mulher errada. 

Ele lançou-lhe um olhar pensativo. Maddy sentiu-se a aquecer, e arrependeu-se de o ter dito. Enquanto baixava o olhar, ele levantou-lhe o queixo, inclinou-se e beijou-a suavemente nos lábios. 

Maddy afastou-se e respirou fundo. 

Quando ia protestar, ele abanou a cabeça com um sorriso trocista. 

Cama não... única promessa. 

Voltou a dar-lhe o braço e recomeçou a andar como se nada tivesse acontecido.