Capítulo 13

Francesca acordou confusa. Ao voltar-se e descobrir Kamal, a rezar ajoelhado em direção a Meca, embrulhado num lençol, a nitidez do que tinha vivido obrigou-a a suspirar. Ficou calada, na cama, respeitando a solenidade do ritual, presa dos movimentos e da cantilena na voz do amante. Ouviu o muezzin, que, da torre de uma mesquita próxima, convocava os fiéis para a oração da manhã, o fair. «Deus é grande, não há mais Deus que Deus e Maomé é o seu profeta. Vinde orar.» Muitas vezes tinha ouvido aquele chamamento em Riade. Nessa altura pensava que nunca lhe interessaria, que nada teria a ver com ela. Naquele momento, no entanto, ao contrário de tudo quanto tinha imaginado, o homem a que acabara de se entregar rezava ao seu Deus com a devoção e o temor que só um árabe pode professar.

Deviam ser cerca das cinco da manhã. «Que cedo!», pensou e o esgotamento de uma noite intensa pesou-lhe nas pálpebras. Mais tarde, revolveu-se entre os lençóis com a certeza de que só tinham passado alguns minutos; no entanto, sem encontrar Kamal ao lado, e com os olhos incomodados pelos raios de sol que se coavam pelas frestas da porta, deduziu que a manhã já devia ir alta. Angustiou-se ao comprovar que na realidade passava do meio-dia. Saltou da cama, vestiu-se enquanto o diabo esfrega um olho e desceu as escadas a correr em direção ao salão. Jacques Méchin e Dubois preparavam-se para almoçar quando Francesca entrou na sala, atordoada e ofegante.

– Boa tarde – disse e, ainda que procurasse uma razão válida para justificar a ausência, conjeturou que não a mencionar seria mais ajuizado.

– Boa tarde – respondeu Méchin, e foi ao seu encontro. – Chegas mesmo a tempo do almoço. Anda, querida – e ofereceu-lhe o braço para entrar na sala de jantar.

Dubois manteve-se pensativo e taciturno, como já estava há uns tempos. Méchin, que se esforçava por aligeirar o ambiente tenso, também não era o mesmo aos olhos de Francesca.

Esta lembrava-se das visitas à embaixada com o professor Le Bon e das conversas amenas sobre política e história e percebia que ele não aprovava a sua relação com o príncipe Al-Saud.

Considerariam indecente da parte dela? Julgariam que Kamal merecia uma mulher à sua altura? Pensaria Dubois que ela tinha traído a sua confiança, envolvendo-se com o seu melhor amigo, um herdeiro da dinastia saudita? Julgá-la-iam uma doidivanas, uma mulher sem princípios? Com tudo aquilo, o almoço caiu-lhe como chumbo no estômago.

Perguntou-se, com ansiedade, onde estaria Kamal. Necessitava desesperadamente dele; necessitava da segurança do seu rosto tranquilo, da paz dos seus movimentos lentos, de um sorriso que lhe desse a entender que tudo estava bem. Como podia tê-la deixado sozinha, depois do que ocorrera na noite anterior? Sentiu aquilo como uma falta de consideração. Nem uma nota, nem uma mensagem deixada aos criados, e Dubois e Méchin também não diziam nada. Talvez agora, acalmado o instinto, Kamal não voltasse a olhar para ela. Ficou angustiada e lembrou-se dos presságios de Sara como uma condenação bíblica: «Possuir-te-á como pode fazer com uma flor que encontre à beira do caminho e depois abandonar-te.»

Depois do café, Jacques retirou-se para descansar e Mauricio Dubois ordenou a Malik que preparasse o automóvel para ir à cidade. Francesca achou a ideia tentadora, um passeio pelas ruas de Gidá havia de a distrair; além disso, conversaria com o chefe e limariam arestas. Mas Mauricio não a convidou. E, minutos depois, ao ouvir o carro à porta, despediu-se laconicamente e partiu, deixando-a sozinha e amargurada.

Recostou-se nas almofadas e lançou uma vista de olhos em redor. Aproximou-se da estante e investigou, curiosa, as lombadas dos livros. Nenhum a atraiu. Os poucos que havia em francês tratavam de criação de cavalos, das curas das doenças mais comuns dos muniqui e de outras questões relacionadas com os equinos que em nada constituíam tema do seu interesse. «Se ao menos houvesse um romance ou um ensaio», suspirou, e voltou a atirar-se para os almofadões.

Sadún entrou pela porta do jardim com uma resma de toalhas e nem sequer se deteve a cumprimentá-la, o que a incomodou sobremaneira. O seu temperamento tinha sofrido duros embates naquele dia e qualquer pormenor a irritava. Há já algum tempo que o mordomo também se mostrava parco em palavras e distante, quando, no princípio, e apesar da limitação da língua, tudo tinha feito para a servir e lhe agradar.

Saiu para o jardim e sentou-se na beira da fonte. Tocou na água e os nenúfares oscilaram sobre as suas folhas carnudas. Uma brisa morna arrastou os aromas misturados do rosmaninho, do mirto, dos muguets e do louro, e ela seguiu a esteira dos aromas, que a conduziu à zona do harém, onde ficou a mirar as janelas fechadas, meio ocultas atrás das plantas. Lembrou-se de pedir autorização a Sadún para tomar um banho na piscina, mas depois pôs a ideia de parte, porque lhe pareceu atrevida na ausência da senhora Fadila. Os acontecimentos tinham-se precipitado desde a manhã que passara com a senhora. A sua vida tinha dado uma volta decisiva e nada voltaria a ser como antes. Já era mulher. A mulher de Al-Saud. Perguntou a si própria qual seria a razão da fuga repentina da mãe de Kamal. Nem sequer se despedira e, como se pressionada por um assunto grave, tinha deixado a quinta com o seu séquito como escolta.

Achou que era boa ideia montar Nelly e subiu rapidamente para mudar de roupa. Nas cavalariças, Khalid mostrou-se amável e diligente e, sem hesitar, ordenou que preparassem a égua. Juntamente com Nelly, vinham outros dois cavalos, montados pelos guarda-costas de Kamal. Francesca observou que traziam armas e facas à cintura.

– O amo ordenou-me que, sempre que a senhora monte sozinha, o Abenabó e o Káder deverão acompanhá-la – informou Khalid, num francês mal pronunciado.

Francesca deu uma olhadela aos núbios, hieráticos sobre as selas, e pensou que a única atividade agradável do dia se esbatia. Não poderia ser ela própria com aqueles homens atrás, coartariam a sua liberdade.

– Não é necessário que me acompanhem – tentou dizer –, não penso sair dos limites da propriedade. Que poderia acontecer-me, Khalid?

– Ai, menina, não me diga nada a mim e aceite a guarda do Abenabó e do Káder. Com que cara me apresentaria eu ao meu senhor se a si lhe acontecesse alguma coisa? – disse Khalid.

Francesca lá foi com os guarda-costas, que, apesar de conservarem uma distância prudente, pareciam estar em cima dos quadris de Nelly. Porque é que Kamal teria decidido aquela medida de segurança? Correria perigo de vida? Quem o protegia a ele enquanto os seus homens estavam com ela? Embora durante os primeiros troços do caminho este pensamento a tivesse preocupado, a beleza da paisagem e a inquietação de Nelly, que mordiscava, ansiosa, o freio, fizeram-na esquecer estes pensamentos negros.

De regresso à casa, horas mais tarde, ficou desiludida ao saber por Méchin que Kamal continuava fora e que jantariam sem ele. Em passo lento, arrastando o pingalim, foi para o quarto, tomar banho e mudar de roupa. Depois, sentada em frente ao toucador, enquanto escovava furiosamente o cabelo húmido, voltou a repetir, desta vez em voz alta, «a mulher de Kamal Al-Saud» e interrogou-se se ser mulher dele significaria longas esperas, dias aborrecidos, guarda-costas a meter o nariz na sua intimidade, olhadelas de soslaio, temores e segredos.

Embora tivesse pensado escusar-se do jantar e ficar no quarto, desceu para se juntar a Mauricio e Jacques. O jantar decorreu sem contratempos e Francesca, já insensível à má cara do chefe e às tentativas falhadas de Méchin para animar o serão, continuou a pensar, nos mesmos solilóquios que ao longo do dia lhe tinham mudado várias vezes o estado de espírito.

O ruído de um automóvel na entrada e, um instante depois, a voz de Kamal a dar ordens junto à porta principal calaram Méchin, fizeram Dubois levantar a cabeça e encheram de brilho o olhar alheado de Francesca. Expectantes, esperaram que ele aparecesse. Al-Saud entrou na sala de jantar coberto com uma capa de seda branca e com uma ghutra muito elegante, que Francesca não reconheceu. Saudou com a vénia oriental e pediu desculpas por se ter ausentado do jantar. Não deu explicações e ninguém se atreveu a pedi-las.

– Espero que tudo esteja do vosso agrado. Tomamos café na sala mais tarde – acrescentou e retirou-se para o quarto.

Francesca seguiu-o com o olhar, até ele desaparecer por trás da porta. Só reagiu quando os seus passos se calaram. Sentiu um calafrio nas costas e o estômago revolto, que a impediu de continuar a comer. Tinha-o sentido tão distante e inacessível como das primeiras vezes na embaixada. Pedindo desculpa a Méchin e Dubois, saiu da sala de jantar. Tirou os sapatos de salto alto, atravessou o pórtico a correr e subiu as escadas igualmente depressa. Já no quarto, permaneceu apoiada à porta, com os olhos fixos a perscrutarem a escuridão, até que os risos provenientes do andar de baixo a tiraram daquele ensimesmamento.

Vestiu a camisa de noite e meteu-se na cama, com os lábios a tremer e os olhos inundados de lágrimas. Precisava da mãe: tinha a impressão de que tudo era um caos e desejou que Antonina estivesse ali, para se enroscar no colo dela e a ouvir dizer «Va tutto bene, figliola mia», e que a seguir aparecesse Fredo e a enchesse de beijos e a abraçasse. De repente, tinha saudades da sua cidade: a Praça de Espanha, a Avenida Chacabuco, o palácio dos Martínez Olazábal. Também sentia falta de Arroyo Seco, de don Cívico e de dona Jacinta, bem como dos passeios com Rex e Sofia e da sua vida na Argentina. Nunca devia ter partido. Fugir tinha sido um erro. Desatou a chorar e afundou a cara na almofada para que não a ouvissem.

No meio do choro, pareceu-lhe que alguém andava pelo corredor e parava diante da sua porta. Passado um segundo, Kamal entrava silenciosamente. Francesca virou-lhe as costas e fingiu dormir, esperando que ele não a despertasse e que se fosse embora depressa. Al-Saud, pelo contrário, tirou o roupão e enfiou-se debaixo dos lençóis. Agarrou-a pela cintura e beijou-lhe o ombro. Francesca sentiu o seu peito nu contra as costas e a dureza da sua virilidade sobre as suas nádegas e abafou um gemido. Kamal obrigou-a a voltar-se. Ao roçar-lhe a face com os lábios, deteve as carícias.

– Estás a chorar – alarmou-se –, que tens? Dói-te alguma coisa?

– Não.

– Ainda não recuperaste da noite passada – calculou ele.

– Não se trata disso – garantiu ela.

– Então, que aconteceu à minha princesa?

Francesca agarrou-se ao pescoço dele e continuou a chorar. Al-Saud recostou-se na cabeceira da cama e deixou-a desabafar: sentia falta da mãe e do tio Fredo, queria voltar para Córdova, precisava dos amigos, do seu cavalo, das suas coisas, dos seus lugares.

– Porque fugiste e me deixaste aqui todo o dia? – censurou-o. – Senti-me sozinha e aborrecida. Hoje precisei de ti mais do que nunca.

– Perdoa-me. Agora percebo que foi uma falta de consideração da minha parte, mas não pensei que te incomodasse. Tinha assuntos pendentes e não queria adiá-los mais um dia. O Sadún não te disse que eu ia a Gidá e que talvez regressasse depois do jantar?

– O Sadún não fala comigo ultimamente.

– Estou a ver.

– O Mauricio e o Jacques também não.

– Eu sei, Francesca, mas não deves preocupar-te, deixa tudo nas minhas mãos. Se soubesses o quanto precisei de ti hoje, não me censuravas.

– A sério? – ironizou. – Tu nunca pareces precisar muito de ninguém.

– De ti, sim! – zangou-se Kamal, e obrigou-a a olhar para ele. – És a única coisa que conta, disse-to ontem. Nunca falo só por falar. Fizeste-me tanta falta, que por momentos pensei mandar tudo para o diabo e voltar para casa para te procurar. Nunca duvides de mim, Francesca. A meio das reuniões, recordava-te a gemer e a gozar enquanto te fazias mulher entre os meus braços, e o pensamento toldava-se-me. Sonhava acordado.

A força de Kamal e a veemência das suas palavras apagaram as dúvidas e os pensamentos tristes que a tinham atribulado todo o dia e, enquanto a audácia das carícias aumentava, o anseio e a desilusão convertiam-se em felicidade e confiança plenas.

Kamal cobriu-a com o corpo e contemplou-a lentamente e com veneração. Francesca comovia-se quando ele a olhava daquele modo, isso fazia-a sentir-se amada e bonita. Susteve-lhe o olhar, com a respiração suspensa, subjugada por essa atração que emanava da pele do amante, que a tornava tão diferente e a obrigava a entregar-se àqueles deleites instintivos e lascivos que sempre lhe haviam dito que eram pecado. Francesca passou-lhe os dedos pelo cabelo, enquanto arqueava as costas em busca da voracidade dos lábios dele.

No seu íntimo, Kamal sentia uma rebelião a que não estava habituado; a sua mestria na cama tinha a ver com o controlo e o absoluto domínio da situação. Com Francesca acontecia o contrário: o sangue fervia-lhe nas veias e explodia sem contenção, uma excitação despótica a que ficava submetido sem remédio. Mas ele queria mostrar a Francesca que aquele jogo de mãos, de respirações ofegantes, línguas e palavras entrecortadas, aquele preâmbulo em que descobriam os encantos e os segredos dos seus corpos, eram tão maravilhosos como o próprio ato e, por isso, tentava controlar-se e não se transformar num animal com cio.

Quando acabaram, continuaram a beijar-se e a sussurrar palavras de amor, ainda presos naquela paixão inesgotável. O ar fresco da noite secou-lhes os corpos suados e acabou por os apaziguar. Francesca, entre os braços de Kamal, desenhava-lhe o contorno dos músculos com um dedo. Ele brincava com os caracóis dela.

– Que fizeste hoje para passar o tempo? – interessou-se o saudita.

– Não muito. Tentei ler, mas os teus livros não me interessam. Apeteceu-me tomar banho na piscina do harém, mas não tive coragem de pedir licença ao Sadún.

– Pedir licença? – interrompeu Kamal. – Tu és a senhora da casa, podes fazer o que quiseres, quando quiseres. Fui claro? Não quero voltar a ouvir que te privas de alguma coisa por medo do Sadún ou de qualquer outra pessoa. O Sadún e os outros são teus criados e pago-lhes para que te sirvam como a uma rainha.

– O Khalid foi muito amável – continuou a jovem. – Equipou a Nelly logo que lhe pedi e fê-lo com bons modos, embora não tivesse sido a mesma coisa que cavalgar sem ti.

– O Abenabó e o Káder foram contigo? – Francesca acenou afirmativamente. – De agora em diante, serão teus guarda-costas. Onde fores, irão contigo.

– Porquê, Kamal? Não gosto que dois homens me sigam para todo o lado. Não me sinto livre.

– Não discutas acerca disso, Francesca. Agora és minha mulher e qualquer pessoa pode fazer-te mal para me atingir a mim.

Francesca meditou nestas palavras e acabou por pensar que a imposição dos núbios era uma prova do amor de Al-Saud, pelo que não voltou a questionar a sua decisão.

– Amanhã partimos para o oásis onde está acampada a tribo do meu avô – retomou Kamal. – Vais gostar de conhecer a minha avó, é uma mulher extraordinária.

– Como se chama?

– Juliette.

– Juliette?!

– Sim, é francesa. O meu avô chama-lhe Xerazade.

– Xerazade como a heroína das Mil e Uma Noites?

– Exatamente. O meu avô diz que a minha avó o seduziu como Xerazade fez com o sultão Xariar, quando lhe contou todas aquelas histórias fantásticas ao longo de mil e uma noites, para evitar ser assassinada. – Kamal deu uma gargalhada breve. – Sim, vais gostar de os conhecer. Às vezes parecem crianças quando discutem, mas amam-se profundamente.

– Conta-me como é que uma francesa acabou por casar com um beduíno do deserto – disse Francesca, impaciente.

Al-Saud contou-lhe a mesma história que o avô lhe tinha contado anos atrás. Juliette d’Albigny era filha de um homem abastado de Paris, amante de cavalos, em especial de cavalos árabes, e, na altura, amigo íntimo do xeque Al-Kassib. Tinha-lhe comprado alguns animais e assim começara a amizade entre ambos. Um verão decidiu ir visitar o amigo beduíno e levar com ele a sua jovem filha, depois de esta ter insistido durante anos que lhe mostrasse o deserto. Juliette pisou solo árabe nesse verão e não voltou a deixá-lo. Harum, o filho e orgulho do xeque, apaixonou-se perdidamente por ela, e ela, a pouco e pouco, foi ficando seduzida pelos encantos e extravagâncias dele. No princípio nenhuma das duas famílias aceitou a relação – D’Albigny, porque não queria a sua única filha casada com um árabe que vagabundearia pelo deserto a vida inteira, e o xeque Al-Kassib porque não queria uma infiel como membro da sua tribo. Além do mais, Juliette era demasiado extrovertida, na opinião do velho árabe, habituado a mulheres submissas e respeitadoras. Juliette declarou que jamais regressaria a Paris e Harum ameaçou abandonar a tribo. Os pais acabaram por compreender que o amor que os unia era demasiado forte para ser combatido e decidiram aceitá-lo. Um mês mais tarde os jovens contraíram matrimónio segundo os rituais islâmicos.

– Quem me dera estar no oásis agora mesmo – disse Francesca.

Flutuavam num torpor mole e quente. Às vezes fechavam os olhos e dormitavam; abriam-nos repentinamente e asseguravam-se da presença do outro. Kamal deitou-se de lado e percorreu o corpo nu de Francesca com a mão, desde o ombro, passando pelo antebraço, seguindo pela curva da cintura e do quadril, pela perna suave até ao joelho, e daí subiu ao pescoço, tocando-lhe na orelha, nos cabelos, nos ombros, no peito. Cada centímetro daquela mulher lhe pertencia, conhecia-a toda, tinha-a conquistado por completo. Encostou-se às costas dela e abraçou-a.

– És minha – sussurrou.

– Sabes bem que é verdade – assegurou ela.

Não voltaram a falar durante um bom bocado. De repente, Francesca perguntou-se se Kamal dormia.

– Kamal?

– Diz.

– O que vai acontecer quando voltarmos a Riade?

– O que vai acontecer com quê?

– Connosco.

– Não regressarei a Riade – anunciou ele. – Quando voltarmos do oásis, viajarei para Washington. Estarei fora umas semanas, não serão muitas, e prometo-te que, quando voltar, casamos.

– Casamos? – repetiu ela.

Tateou o interruptor da luz de cabeceira e acendeu-a. Kamal apoiou-se na cabeceira da cama e colocou um braço, a servir de almofada, por trás da cabeça.

– Porque me olhas assim? Disse alguma loucura?

– Não, claro que não.

– Por acaso não queres casar comigo?

– Sim, claro que sim. Apanhaste-me de surpresa, só isso. Não imaginei que fosse tão rápido.

– Disse-te que te queria para mim – afirmou Al-Saud, como que a recordá-la de uma velha promessa. – Não quero esperar mais tempo. Serás minha esposa, se Alá quiser.

Francesca estava estupefacta. Fixava os grandes olhos negros nos olhos verdes de Kamal, enquanto procurava ordenar os pensamentos. Amava aquele homem e confiava nele, guiada pelo instinto, certamente, pois pouco sabia do seu passado e do seu presente; mas bastava que ele a olhasse, para acabar com as dúvidas; que a tocasse, para lhe eletrizar o corpo; que lhe dirigisse um sorriso, para que ela o guardasse como um tesouro; sentia-o dentro de si e não duvidava de que a faria feliz; entregava-se e o orgasmo acontecia, saciando-lhe o desejo abrasador que ele mesmo tinha despertado ao olhá-la, ao tocá-la, ao sorrir.

– Porquê a surpresa? – perguntou Kamal. – Serás minha esposa e minha amante também, a mãe dos meus filhos, com quem partilharei os meus sonhos, as minhas frustrações, os meus cansaços, as minhas alegrias. Serás o meu refúgio e eu serei o teu. Alá abençoará a nossa união e os frutos do nosso amor serão sagrados. Se quiseres – concedeu um momento depois –, casaremos também pelos rituais cristãos, mas em segredo, ninguém da minha família deverá saber.

– Os rituais são-me indiferentes – assegurou ela, e de imediato pensou em Antonina e no sermão que a esperaria. – No entanto, fá-lo-ei pela minha mãe, para que não me censure. É muito católica.

– Sim, meu amor, como quiseres.

– Já tenho vontade de estar no oásis – repetiu Francesca, aninhada no peito do amante.

– Amanhã conhecerás o verdadeiro coração do meu reino, a estirpe que deu vida àquilo a que hoje chamamos Arábia Saudita.

Na manhã seguinte acordou com as pancadas que alguém dava na sua porta. Encontrou a camisa de noite aos pés da cama, enrolada no cobertor, e vestiu-a depressa; pôs o roupão por cima e mandou entrar. Sadún entrou com o pequeno-almoço numa bandeja e a vivacidade do seu rosto moreno deixou-a desconcertada.

– Bom dia, menina. Espero que tenha passado uma excelente noite – desejou-lhe num francês fraco e pousou a bandeja sobre a cama. – Prefere café ou chocolate? Recomendo-lhe esta tarte de tâmaras, é a minha especialidade. Tome o pequeno-almoço com calma enquanto preparo o seu banho. Mais tarde, ajudá-la-ei com a mala. O meu amo Kamal pediu-me que a acordasse e lhe dissesse que estará consigo dentro de momentos. Levantou-se às cinco e, depois de sair, começou os preparativos para a viagem a Ramsis. Agora está a preparar os cavalos.

Sadún encaminhou-se para a casa de banho e Francesca ouviu o chiar da torneira e a água a correr para a banheira de cerâmica. Ao aparecer novamente, dirigiu-se ao roupeiro, de onde tirou o traje de amazona, que pousou sobre o divã, e também as botas, a que puxou o lustro com um pano de flanela.

– Vou arranjar-lhe um chapéu, menina. Não é conveniente que cavalgue tanto tempo com a cabeça exposta ao sol. Voltarei num instante.

Francesca viu-o afastar-se, convencida de que Kamal o tinha repreendido severamente, e sentiu-se culpada, embora tivesse logo reconhecido que nunca o tinha ouvido levantar a voz nem usar maus modos para se dirigir aos empregados, nem sequer naquela ocasião em que uma das raparigas deixara cair o jarro de labán em cima do tapete persa da sala de jantar. No entanto, o que quer que Kamal tivesse dito ou feito a Sadún tinha-o mudado por completo.