sta é uma história muito antiga, tem mais de quatrocentos anos. E se passou em uma cidade distante, Florença, que fica na Toscana, que por sua vez fica num país inventado muito tempo depois, a Itália. Porém, há coisas que aconteciam antigamente em terras distantes, que continuam a acontecer hoje em dia bem aqui pertinho, e que vão continuar a acontecer enquanto o mundo for mundo.
Foi assim com Anselmo e Lotário, dois cavalheiros importantes e ricos, e tão unidos que todos os chamavam de “os dois amigos”. Eram solteiros, jovens, tinham a mesma idade e os mesmos gostos, e tudo dava motivo para fortalecerem cada vez mais sua amizade. Bem verdade que Lotário era um pouco mais chegado às emoções da caça, enquanto as emoções preferidas de Anselmo eram as do namoro. Porém, sempre que surgia oportunidade, Anselmo trocava as moças pelas feras e Lotário, as feras pelas moças. Sincronizavam tão bem suas vontades, que sua amizade funcionava melhor que o melhor dos relógios. Havia sido assim até ali, e assim continuaria sendo, se não fosse por ela.
Anselmo andava perdido de amores por uma donzela importante e bela. Ela era filha de pais tão bons, e tão boa era ela, que Anselmo resolveu pedi-la em casamento. Consultou Lotário — pois não fazia nada sem consultá-lo — e encarregou o amigo de pedir a mão da moça, como era tradição naquele tempo e naquele lugar. Lotário cumpriu muito bem sua missão e, em pouco tempo, Anselmo tomou posse daquilo que mais desejava: Camila. Camila, contentíssima por se tornar esposa de Anselmo, não se cansava de agradecer a Deus e também a Lotário, que havia lhe proporcionado tamanha felicidade. Os primeiros dias, como os de todo casamento, foram alegres. Lotário continuou a frequentar a casa de Anselmo e procurou prestigiá-lo, festejá-lo e diverti-lo de todas as formas possíveis. Porém, com o passar do tempo, Lotário tomou o cuidado de se descuidar das visitas a Anselmo. Pensava como costumam pensar todos aqueles que são discretos: que não se deve frequentar a casa dos amigos casados como se frequentava quando eram solteiros. Por mais que a boa e verdadeira amizade não possa nem deva despertar suspeitas, a honra de um casal é muito delicada. Se os próprios irmãos dos casados devem ser reservados, que dirá os amigos.
Anselmo percebeu a ausência de Lotário e reclamou com ele. Disse que, se soubesse que o casamento os afastaria, jamais teria se casado. Argumentou que, se já haviam sido unidos a ponto de serem conhecidos como “os dois amigos”, Lotário não deveria permitir que perdessem apelido tão agradável e famoso só para se mostrar discreto. Se fosse necessário implorar, implorava, portanto, que Lotário voltasse a ser dono de sua casa e que nela entrasse e saísse como sempre fez. Anselmo garantia que era esse também o desejo de sua esposa Camila, e que ela só desejava o que ele queria que ela desejasse. Revelou, por fim, que, sabendo o quanto os dois amigos se estimavam, Camila ficava confusa cada vez que Lotário evitava o casal.
Anselmo deu essas e muitas outras razões a Lotário para convencer o amigo a voltar a frequentar sua casa como antes. A cada uma dessas razões, Lotário respondeu com tanta prudência, discrição e juízo, que Anselmo ficou satisfeito com as boas intenções do amigo. Combinaram então que, duas vezes por semana e nos dias de festa, Lotário iria comer com o casal. Apesar do combinado, Lotário decidiu que só faria o que fosse conveniente à honra de Anselmo, que para ele estava acima da sua.
Lotário dizia — e dizia muito bem — que o homem que recebeu dos céus uma bela esposa devia ter tanto cuidado com os amigos que colocava em casa quanto com as amigas que conversavam com ela. Porque aquilo que não se faz, nem se combina nas praças, nem nas igrejas, nem nas festas públicas, nem nas estações de águas (prazeres que, mesmo naquela época, nem sempre os maridos podiam proibir às mulheres), se combina e se faz na casa da amiga, ou da parenta em quem mais se confia. Também dizia Lotário que cada homem casado precisava ter um amigo que lhe mostrasse seus erros. Explicava que é comum o marido apaixonado, para não aborrecer a esposa, deixar de alertá-la a fazer ou deixar de fazer coisas que, não sendo feitas, ou exatamente por serem feitas, fazem a diferença entre a honra e a desonra. Ora, sendo avisado pelo amigo, o esposo poderia facilmente evitar esses erros. Contudo, onde se pode encontrar amigo tão discreto, leal e verdadeiro como esse que Lotário descreve? Não sei. Certamente, ele é o único desse tipo. Com toda boa vontade, Lotário zelava pela honra do amigo. Fazia de tudo para cancelar ou encurtar as visitas a Anselmo, a fim de que os desocupados e fofoqueiros não maldassem a entrada de um moço rico, garboso e bem-nascido como ele na casa de mulher tão bela como Camila. Embora a bondade e o caráter de Camila fossem suficientes para calar as más línguas, Lotário não queria colocar em dúvida a reputação dela nem a de Anselmo. Por isso, na maior parte dos dias em que deveria visitar o amigo, Lotário arrumava outros compromissos que dizia serem inadiáveis. Assim, boa parte de suas poucas e curtas visitas era perdida entre as reclamações de Anselmo e as desculpas de Lotário. Numa dessas visitas, porém, quando deixaram a casa para um passeio no campo, tudo começou a mudar para sempre.
Já no campo, Anselmo disse a Lotário:
— Amigo Lotário, Deus me concedeu a graça de me fazer filho de bons pais, e me presenteou com saúde e riqueza. Como posso não ser grato? E veja o bem maior que Ele me fez: me deu você como amigo, e Camila como mulher, dois tesouros que estimo, talvez não como devo, mas certamente como posso. Pois apesar de possuir tudo que os homens costumam desejar para serem felizes, sou a criatura mais ingrata e mais desesperada de todo o universo. Não sei há quantos dias, venho sendo perseguido por um desejo tão estranho, tão diferente dos desejos dos outros, que me espanto de mim mesmo. E me culpo, me censuro, tento matar ou esconder esse desejo com meus próprios pensamentos. Porém, já não consigo mais guardar este segredo. E se ele tem que ser revelado, que seja a você. Sendo verdadeiro amigo, acredito que você vá me ajudar na busca de uma solução. Com sua ajuda, logo estarei livre da angústia que esse desejo me causa. Minha alegria há de chegar pelas mãos da sua amizade, da mesma forma que minha aflição chegou pelas garras da minha loucura.
Lotário não atinava aonde aquela conversa ia levar, e tentava imaginar que tipo de desejo poderia estar afligindo tanto seu amigo. Não conseguiu. Para terminar logo com a agonia da expectativa, disse a Anselmo que não tinha cabimento ele fazer tantos rodeios para lhe contar seus problemas mais secretos, e assegurou que teria vários conselhos para amenizá-los ou soluções para resolvê-los.
— Tem toda razão — respondeu Anselmo. — E é só porque confio plenamente em seus conselhos e soluções que crio coragem para lhe dizer, amigo Lotário, que o desejo que me aflige é o de saber com toda certeza se Camila é tão honesta e perfeita como penso. Não posso ter essa certeza enquanto não testar minha esposa, para ela me mostrar os quilates de sua bondade, da mesma maneira que o fogo mostra os quilates do ouro. Acredito, meu amigo, que o que torna uma mulher melhor do que a outra é a maneira como ela reage ao homem. Tenho uma teoria: só é fiel a mulher que não cede às declarações de amor, às promessas, aos presentes, às lágrimas, à tentação de cair nos braços de um bom amante. Qual a vantagem de uma mulher ser boa só porque ninguém a convida a ser má? Qual a vantagem de uma mulher ser honesta só porque sabe que o marido, se a pegar com outro, pode lhe tirar a vida? Não me interessa a mulher que é boa ou honesta por falta de oportunidade ou por medo. Interessa-me a mulher que é tentada e vence a tentação. Por essas e por outras, desejo que Camila, minha esposa, seja assediada por um homem que esteja à altura de ser amado por ela. Se ela resistir ao assédio, como acredito que resistirá, poderei me considerar o mais feliz dos homens. Se ela não resistir, serei o mais infeliz dos homens, mas com uma compensação: terei comprovado a minha teoria. E nem tente me fazer desistir de colocar em prática o meu desejo. Porque quero, amigo Lotário, que seja você o sedutor da minha mulher. Vou lhe dar todas as condições para cumprir essa missão. Não lhe faltará nada que eu considere necessário para conquistar uma mulher fiel, honrada, recatada e desinteressada. E o que me faz lhe dar essa missão tão árdua é a certeza de que, se conseguir seduzir Camila, você será incapaz de possuí-la, fará apenas o suficiente para despertar nela o desejo sem lhe faltar com o respeito. Serei traído só por pensamentos, e não por atos, e minha desgraça estará protegida pela sua discrição. Pois tenho certeza de que você guardará até a morte o segredo da desonra de minha mulher. Se quiser que minha vida volte a valer a pena, amigo, entre nessa batalha amorosa. Não terei paz enquanto não testar Camila, e para isso conto apenas com nossa amizade.
Foi isso que Anselmo disse a Lotário. Lotário escutou em silêncio, com toda a atenção. Quando viu que o amigo se calou, ficou olhando para ele por muito tempo, como se nunca o tivesse visto. Então era isso que Anselmo desejava? Que ele o traísse? Tamanho disparate exigia uma boa resposta.
Por fim, Lotário respondeu:
— Não posso acreditar que você esteja falando sério, amigo Anselmo. Se acreditasse, não teria lhe deixado falar tanto. Até parece que você não me conhece, ou que quem não conhece você sou eu. No entanto, sei que você é Anselmo, e você sabe que eu sou Lotário. O problema é que penso que você não é o Anselmo que eu conhecia, e você deve pensar que não sou o Lotário que devia ser. Porque as coisas que me disse não são daquele Anselmo meu amigo, e as coisas que me pediu não se pediriam àquele Lotário que é seu amigo. Os amigos devem contar uns com os outros, certamente, mas só se seus atos não forem contra a vontade de Deus. Um cristão sabe que por nenhuma amizade do mundo se deve perder a amizade divina. Só se justifica desrespeitar o céu para atender o amigo em casos onde estão em jogo a honra e a vida desse amigo. Então diga, Anselmo: qual dessas duas coisas está em jogo? Nenhuma. Ao contrário: o que você me pede é que eu seduza uma mulher justamente para tirar a sua honra e a sua vida, e também para eu perder a minha honra e a minha vida. Porque, se lhe arranco sua honra, também lhe arranco sua vida, pois um homem sem honra é pior que um morto. E, se eu lhe atendesse, e lhe causasse tamanha desgraça, eu não ficaria também desonrado, e, consequentemente, sem vida? Tenha paciência, amigo Anselmo, e ouça até o fim o que tenho a dizer sobre o que penso a respeito do seu desejo. Não vai lhe faltar tempo para me responder e para eu lhe escutar.
— Como quiser — respondeu Anselmo. — Diga o que tem a dizer.
Lotário prosseguiu:
— Parece-me, amigo Anselmo, que você tem a malícia dos mouros. Não conseguimos convencê-los de que estão errados usando citações da Sagrada Escritura, nem argumentos racionais, nem os fundamentos da fé. Temos que usar com eles exemplos práticos, fáceis, palpáveis. Temos que lançar mão de demonstrações matemáticas que não se possam negar, como “se de duas partes iguais tiramos partes iguais, as que restam são também iguais”. E quando os mouros não entendem uma palavra, como costuma acontecer, falamos com eles através de gestos. Mesmo assim, ninguém consegue convencê-los das verdades da Bíblia. Pelo que vejo, agora tenho que agir assim com você. Porque o desejo que tomou conta de você é tão louco, tão irracional, que me parece tempo perdido tentar lhe mostrar isso. Quase tenho vontade de lhe deixar nesse desatino, como castigo pelo mau desejo. Só não faço isso porque sou seu amigo. Só para lhe ajudar a ver as coisas com clareza, responda, Anselmo: você me pede para assediar uma mulher recatada, tentar uma mulher fiel, seduzir uma mulher desinteressada, encantar uma mulher prudente? Sim, é isso que você me pede. E se você sabe que tem uma mulher recatada, fiel, desinteressada e prudente, o que mais quer? Se você acha que ela vai resistir a mim, como certamente resistirá, que qualidades melhores do que essas ela vai ter depois do teste, o que ela vai ser depois, que já não seja agora? Ou você tem uma boa opinião sobre a sua esposa, ou não sabe o que está me pedindo. Se não tem uma boa opinião sobre a sua esposa, para que testá-la? Só para ela sofrer as consequências de fracassar no teste? E se você acredita realmente na fidelidade de sua esposa, para que testá-la? Se ela for bem-sucedida no teste, você a amará como antes, nada mudará. Só as cabeças imprudentes e sem juízo tentam fazer coisas que podem produzir mais perdas do que ganhos. Maior a imprudência e menor o juízo se essas coisas não são obrigadas, nem forçadas: nesse caso, tentá-las é pura loucura. Devemos tentar fazer coisas difíceis em nome de Deus, ou em nome do mundo, ou em nome dos dois. Em nome de Deus agiram os santos, tentando viver a vida de anjos em corpos humanos. Em nome do mundo agiram os conquistadores que enfrentaram mares infinitos, climas cruéis e povos desconhecidos para conquistar a fortuna. Em nome de Deus e do mundo agem os soldados corajosos, que, ao verem a menor brecha na muralha do adversário, esquecem o medo, desprezam o perigo, voam nas asas do desejo de lutar por sua fé, sua nação e seu rei, e enfrentam as mil mortes que os esperam. Todas essas coisas são feitas, apesar de tantos inconvenientes e perigos, para se obter glória, honra ou riqueza. Porém, o que você me pede para fazer não vai lhe dar a glória de Deus, nem a honra entre os homens, nem mais riqueza. Mesmo que o teste termine como desejado, você não vai ficar mais bem-aventurado, nem mais bem-afamado, nem mais bem-nascido do que é hoje. E, se o teste não terminar como previsto, você vai se tornar um homem miserável, pois de nada vai adiantar se eu mantiver em segredo a infidelidade da sua mulher. Bastará você saber que ela é infiel, para se afligir e se desesperar. Para se convencer de que o que digo é verdade, ouça essa estrofe do famoso poeta Luís Tansilo, no fim da primeira parte das Lágrimas de são Pedro:
Sempre que nasce o novo dia, cresce a dor e cresce a vergonha em Pedro.
Até quando está só, ele se envergonha de si mesmo, por ver que pecou: em um peito bondoso não existe vergonha só diante dos outros, ele se envergonha sempre que erra, mesmo quando só o céu e a terra o veem.
Portanto, de nada vai adiantar eu manter os seus cornos em segredo, ao contrário. Se você não chorar as lágrimas salgadas dos olhos, vai chorar as lágrimas de sangue do coração. Imagine, Anselmo, que o céu ou a boa sorte te fizesse dono de um finíssimo diamante. Que todos os lapidários lhe assegurassem que esse diamante fosse, em termos de quilates, bondade e finura, o melhor de todos. Que você mesmo tivesse essa opinião sobre o diamante, sem ter nada a alegar contra ele. Diga-me: seria justo colocar esse diamante entre uma bigorna e um martelo e golpeá-lo, só para testar se ele era tão duro e perfeito como se acreditava? Suponhamos que você fizesse esse teste tão estúpido e o diamante resistisse ao martelo: nem por isso ganharia mais valor ou mais fama. E se o martelo despedaçasse o diamante, coisa bastante possível? Você não perderia tudo? Sim, com certeza. E todos iriam considerar o dono do diamante um tolo. Imagine agora, Anselmo amigo, que Camila é um diamante, tanto na sua opinião como na dos outros, e que não há razão para correr o risco de despedaçá-la, porque, mesmo que ela resista ao martelo, não pode ganhar mais valor do que o que tem agora. E, se ela não resistir, pense no que seria sua vida sem ela, e como você teria razões para culpar a si mesmo, por ter causado a perdição dela e a sua própria. Não há joia no mundo mais valiosa que uma mulher fiel e pura, e a honra da mulher é justamente a opinião que temos sobre ela. Sendo assim, se sua opinião sobre a sua esposa é boa, para que você quer testá-la? Lembre-se, amigo, que a mulher é um animal imperfeito, não convém colocar obstáculos em seu caminho para que ela tropece e caia. Ao contrário: devemos remover os obstáculos e limpar o caminho da mulher para que ela possa correr sem dificuldades e alcançar a perfeição, que é ser virtuosa. Os naturalistas contam que o arminho é um animal de pelo branquíssimo. Para apanhá-lo, os caçadores enchem de lodo os lugares onde o arminho costuma aparecer. Ao dar com o lodo, o arminho para, e se deixa capturar facilmente. Para o arminho, a brancura é mais preciosa que a liberdade ou mesmo a vida. A mulher fiel e pura é como o arminho. E a virtude da fidelidade é mais branca e limpa que a neve. Se quisermos que a mulher se mantenha fiel, devemos usar uma tática diferente da que se usa para capturar o arminho. Não convém mostrar a ela o lodo dos presentes e elogios dos sedutores inconvenientes, porque talvez — e mesmo sem talvez — ela não tenha tanta virtude e força moral por si mesma para passar por cima desses obstáculos. É necessário remover esses obstáculos, colocar diante da mulher a limpeza da virtude e a beleza da boa reputação. A mulher honrada é como o espelho de cristal reluzente e claro, que pode se embaçar e escurecer com qualquer bafo que o atinja. É preciso tratar as mulheres fiéis da mesma maneira que se tratam as relíquias: adorá-las, e não tocá-las. É preciso estimar e proteger a boa mulher como se protege e estima um belo jardim, cheio de flores e rosas: com altas grades de ferro, para que ninguém o invada ou o toque — basta sentir seu perfume e ver de longe sua beleza. Por fim, gostaria de lhe recitar uns versos que me vieram à memória e que ouvi numa comédia moderna, pois me parece que eles têm a ver com o assunto que estamos tratando. Um velho prudente aconselhava o pai de uma donzela a mantê-la dentro de casa. Entre outras razões, dava estas:
É de vidro a mulher
Mas não se deve testar
Se ela pode ou não quebrar
Porque tudo pode acontecer
Como é mais fácil que se estale
Não é prudente colocar
Em risco de se rachar
Coisa que não tem quem cole
Ouvir esse conselho convém
Pois tenho boa razão de falar:
Há mulheres que se podem quebrar e há as que ficam inteiras também.
Tudo o que lhe disse até aqui, Anselmo, se refere a você. Agora lhe peço que ouça algo que diz respeito a mim. Se eu estiver falando demais, me perdoe. O que me obriga a isso é a confusão em que você se meteu. Você me considera seu amigo, mas quer tirar a minha honra, o que é contra qualquer amizade. Pior: também quer que eu tire a sua. Perco minha honra assim que abrir a boca para cortejar Camila, como você está me pedindo, pois ela vai me julgar um homem desonrado e mal-intencionado, pelo simples fato de abordar a mulher do meu amigo. E tiro sua honra porque, quando Camila perceber que a estou assediando, vai pensar que me deu razões para esse atrevimento e se julgar desonrada — e a desonra da mulher torna desonrado o marido. Pois é exatamente isso o que se vê: o marido da mulher infiel, mesmo que ignore a traição, mesmo que nunca tenha dado à esposa oportunidade para traí-lo, mesmo que não tenha feito nem deixado de fazer algo que pudesse lhe evitar os cornos, fica com fama de enganado e desprezível. E aqueles que sabem do mau passo de sua mulher o olham com menosprezo, em vez de olhá-lo com pena, como deviam, já que a desgraça dele foi causada não por sua culpa, mas por culpa da má companheira. Contudo, o que eu queria era lhe dizer por que, com toda razão, o marido da esposa infiel é desonrado. Preste bastante atenção, porque isso vai lhe ser útil. Diz a Sagrada Escritura que Deus criou nosso primeiro pai, Adão, e que com uma costela dele fez nossa mãe Eva. Quando Adão a viu, disse: “Esta é carne da minha carne e osso dos meus ossos”. E Deus disse: “Pela mulher, o homem deve largar pai e mãe, e os dois serão uma só carne”. Assim foi instituído o divino sacramento do matrimônio, e os laços da carne só a morte pode desatar. O casamento é tão milagroso que faz com que duas pessoas diferentes se tornem uma só. E o milagre é ainda maior nos bem casados, que, apesar de serem duas almas, têm uma só vontade. Portanto, se a carne da esposa recebe uma mancha, ou adquire um defeito, a mancha ou o defeito se transmite para a carne do esposo. Da mesma maneira que a dor do pé é sofrida pelo corpo todo, por ser todo o corpo uma única carne, o marido sofre a desonra da mulher, por ser o casal não duas, mas uma única coisa. E como as honras e desonras deste mundo nascem todas da carne e do sangue, as da mulher infiel cabem também ao marido, e ele fica tido e havido como desonrado. Veja bem, Anselmo, que perigo você corre, ao perturbar o sossego em que vive com sua boa mulher. Por curiosidade impertinente e inútil, está querendo mexer em sentimentos que andam quietos no peito de sua esposa recatada. O que você pode ganhar com essa aventura é tão pouco, e é tanto o que pode perder, que, se ainda não lhe convenci a desistir dessa loucura, não tenho mais nada a dizer. Apenas uma coisa: você tem que procurar outra pessoa para lhe desonrar e lhe desgraçar, porque a isso não vou me prestar. Mesmo que perca a sua amizade, que é meu tesouro mais precioso.
Dizendo isso, o virtuoso e prudente Lotário se calou. Anselmo ficou tão confuso e pensativo que se manteve em silêncio por um bom tempo. Era dura a batalha que se travava entre seu coração e sua cabeça, entre as promessas do desejo e as certezas da razão. Era preciso fazer uma escolha.
E foi isso que Anselmo respondeu:
— Amigo Lotário, escutei com atenção tudo o que você disse. E tudo o que você disse me dá provas de sua discrição e lealdade. A única conclusão a que posso chegar é que, se eu não seguir a sua opinião e continuar com a minha, estarei fugindo do bem e indo atrás do mal. Mas você tem que levar em conta que estou doente, assim como aquelas mulheres que, de uma hora para outra, cismam de comer terra, gesso, carvão ou coisas piores de se ver, quanto mais de se comer. Peço que me cure. E você me curaria facilmente se cortejasse Camila. Mesmo que fosse assim como quem não quer nada, sutilmente, se fazendo de desentendido... Não acredito que ela seja assanhada a ponto de cair na primeira conversa. Se você me fizesse esse imenso favor, me deixaria feliz e ainda por cima cumpriria seu dever de amigo, me devolveria a paz e me convenceria de que Camila é fiel. Você tem obrigação de atender ao meu pedido por uma única razão: estou decidido a testar minha esposa. Você não vai permitir que eu dê essa missão a outra pessoa, colocando em risco justamente o que o amigo quer proteger, que é a minha honra. E se Camila fizer mau juízo da sua honra ao ser cortejada, isso pouca diferença vai fazer, pelo seguinte: minha esposa provando que é fiel, como esperamos que prove, você pode contar a ela sobre esse teste, e ela logo vai voltar a lhe considerar honrado. Se é tão pouco o que você arrisca, e tanta a felicidade que pode me dar correndo esse risco, peço que não me falte, amigo. Como já lhe disse, basta começar. Prometo que não vou demorar a dar sua missão como encerrada.
Ao ver que Anselmo estava decidido, sem saber mais que argumentos usar, e, acima de tudo, ao ouvir do amigo a ameaça de confiar a outro homem a tarefa de seduzir Camila, Lotário resolveu evitar um mal maior e fazer o que ele pedia. E com uma única intenção: fazer as coisas de modo a satisfazer Anselmo, sem mudar os pensamentos de Camila. Disse então ao amigo que não revelasse a mais ninguém seu desejo, pois ele, Lotário, se encarregaria da missão de testar Camila, e começaria assim que o amigo quisesse. Anselmo lhe agradeceu com um longo abraço, pelo enorme favor que o amigo lhe fazia de cortejar sua mulher e colocar sua testa em risco. Combinaram de começar o teste no dia seguinte. Anselmo providenciou hora e lugar para Lotário falar a sós com Camila, e deu dinheiro e joias para ele presentear sua esposa. Aconselhou Lotário a compor canções e versos elogiando Camila, e se ofereceu para criá-los, caso ele não tivesse imaginação. Lotário aceitou tudo, apesar de sua intenção ser completamente diferente da do amigo. Com tudo combinado, voltaram à casa de Anselmo. Camila os esperava preocupada, porque naquele dia o esposo havia demorado mais do que o normal. Lotário deixou Anselmo contentíssimo, e voltou para casa pensativo. Precisava encontrar uma maneira de se sair bem daquela enrascada tão impertinente, e passou a noite toda a matutar uma maneira de atender Anselmo sem ofender Camila.
No dia seguinte, Lotário foi comer com Anselmo, e Camila o recebeu como sempre, de boa vontade e satisfeita, porque sabia como o esposo estimava o amigo. Terminada a refeição, Anselmo pediu a Lotário que fizesse companhia a Camila, disse que tinha um negócio urgente a resolver e informou que ficaria fora por uma hora e meia. Camila pediu ao marido que não saísse, Lotário se ofereceu para acompanhá-lo, mas de nada adiantou. Anselmo insistiu com o amigo para que o esperasse, e ordenou à esposa que não deixasse Lotário sozinho. Fingiu tão bem o senso ou contrassenso de sua ausência, que ninguém diria que Anselmo estava fingindo. E partiu, deixando Lotário e Camila sozinhos.
E lá estava Lotário no meio da confusão em que o amigo o havia metido. Tinha agora diante de si um inimigo capaz de vencer um exército de cavaleiros armados até os dentes usando apenas a própria beleza. Não tinha Lotário razões para ter medo? Sem saída, enfiou o cotovelo no braço da poltrona, apoiou o rosto na mão espalmada, pediu perdão a Camila pela falta de modos, e disse que queria repousar um pouco até a volta de Anselmo. Educadamente, Camila lhe ofereceu o sofá. Lotário recusou, educadamente. Quando Anselmo voltou, encontrou o amigo ressonando na poltrona e a esposa cochilando em seu quarto, e concluiu que os dois haviam tido tempo suficiente para conversar e dormir. Aguardou ansioso. Assim que Lotário despertou, Anselmo saiu com ele e o crivou de perguntas. Lotário respondeu que não achou de bom tom, assim, da primeira vez, cortejar Camila abertamente. Mentiu que a havia coberto de elogios, e que dissera a ela que Florença inteira só falava de sua beleza e discrição. Acrescentou que achava uma boa tática conquistar a simpatia da moça e fazê-la gostar de suas palavras, usando o mesmo truque que o demônio usa quando quer enganar alguém muito esperto: mesmo sendo um anjo das trevas, se transforma em um anjo de luz, e no começo se mostra com a melhor das aparências, para só no final revelar sua feiura.
Anselmo ficou muito contente com as novidades, e disse a Lotário que, dali em diante, ele teria oportunidade de ficar a sós com Camila diariamente, pois ele daria uma desculpa à esposa sobre coisas a fazer em outro cômodo da casa.
E assim se passaram muitos dias. Sem dizer uma palavra a Camila, Lotário contava a Anselmo que havia feito à esposa do amigo os mais rasgados elogios e as mais comoventes declarações de amor, e que ela não lhe dava a menor esperança de corresponder às suas más intenções. Por fim, disse que Camila ameaçou contar tudo a Anselmo, caso Lotário insistisse naquela sedução barata.
— Muito bem — decidiu Anselmo. — Camila resistiu às palavras. Vamos ver se resiste às ações. Amanhã lhe darei dois mil escudos de ouro, para que você os ofereça a ela, e mais dois mil escudos de ouro, para você lhe comprar joias capazes de tentá-la. As mulheres, por mais fiéis que sejam, gostam de se vestir bem e se enfeitar. E as mulheres belas, apesar de não precisarem desses truques, ou exatamente porque não precisam deles, gostam ainda mais. Se Camila resistir a essa tentação, você estará livre do incômodo de cortejá-la.
Lotário respondeu que, uma vez começada a missão, a levaria até o fim, mesmo que seduzir Camila fosse tão cansativo, e tão garantido o seu fracasso. No dia seguinte, Lotário recebeu de Anselmo quatro mil escudos, e com eles quatro mil confusões, pois não sabia mais que mentiras inventar. Planejou então dizer que Camila resistia aos presentes da mesma forma que resistia às palavras, de modo que não havia razão para levar a missão adiante, pois era perda de tempo. Lotário só não contava com o acaso, que resolveu meter o seu dedo travesso nesta história e revirá-la à sua maneira.
Como das outras vezes, Anselmo deixou Lotário e Camila a sós. Porém, como nunca havia feito antes, foi para o aposento contíguo para espionar os dois pelo buraco da fechadura. E já se sabe o que o marido enganador que queria se fingir de enganado viu: em mais de meia hora, Lotário não disse um ai para Camila, e não diria mesmo que ficasse ali por um século. Anselmo enfim percebeu que tudo o que Lotário havia lhe contado até ali sobre suas investidas a Camila era pura invenção. Para tirar a prova da mentira, saiu do aposento, chamou Lotário à parte e lhe perguntou como Camila reagira aos presentes. Lotário respondeu que não pretendia mais tocar naquele assunto, pois a moça tinha sido tão rude com ele que já não havia mais a menor condição de lhe falar coisa alguma.
— Ah, Lotário, Lotário — exclamou Anselmo.
— Como você retribui mal toda a confiança que deposito na nossa amizade! Vi tudo. Ou melhor: não vi coisa alguma. Espionei os dois pelo buraco da fechadura, e pelo seu silêncio, só posso concluir que você nunca cortejou Camila. Por que mentiu para mim? Por que quer me impedir de realizar o que mais desejo, que é testar a fidelidade de minha esposa?
Anselmo não disse mais nada. E o que disse bastou para deixar o amigo envergonhado e confuso. Lotário se sentiu ferido na honra, pois havia sido flagrado em uma mentira, e jurou a Anselmo que, dali em diante, em vez de faltar com a verdade, iria cumprir sua missão de seduzir Camila. Para comprovar suas intenções, garantiu a Anselmo que ele poderia espioná-los se quisesse, como acabava de fazer. Anselmo acreditou em Lotário. E foi aí que teve a pior de suas ideias.
Para deixar Lotário mais à vontade e menos assustado, Anselmo resolveu sair de casa por oito dias, indo para a casa de outro amigo que morava numa aldeia próxima a Florença. Para Camila não suspeitar de coisa alguma, Anselmo combinou com esse amigo que mandasse um recado a sua casa chamando-o com muita urgência.
Pobre e imprudente Anselmo! O que está fazendo? O que está planejando? O que está providenciando? Atenção, porque o que está fazendo é contra você mesmo, o que está planejando é sua própria desonra e o que está providenciando é a própria desgraça. Sua esposa Camila é boa, e seu casamento está em paz, você não tem nada nem ninguém a temer. Os pensamentos de Camila não saem das paredes da sua casa. Você é o céu na terra para ela, o alvo dos desejos dela, a realização dos prazeres dela, a régua com que ela mede as vontades dela, ajustando-as às suas e às de Deus. Então pense: se nessa mina de honra, beleza, fidelidade e recato, você encontra, sem fazer esforço, toda a riqueza com que pode sonhar, para que cavar a terra em busca de um tesouro desconhecido e oculto? Por que correr o risco de, cavando a terra, fazer a mina desmoronar, já que ela está construída sobre os frágeis alicerces da frágil natureza dela? Lembre-se que quem quer ganhar o impossível perde o possível, como bem disse o poeta:
Procuro na morte a vida, Saúde na enfermidade,
Na prisão, busco liberdade,
No que é fechado, quero a saída,
Do traidor espero lealdade.
Mas meu destino, de quem
Nunca espero nenhum bem,
Já tem tudo com Deus decidido:
Quando impossível é meu pedido
Nem o possível me vem.
No dia seguinte, Anselmo comunicou a Camila que sairia da cidade. Disse que, enquanto ele estivesse fora, Lotário iria a sua casa para comer e tomar conta de suas propriedades, e ordenou que ela o tratasse como se fosse o próprio marido.
Por ser discreta e honrada, Camila se incomodou com a ordem de Anselmo, e lembrou que não ficava bem, na ausência do dono da casa, que outro homem tomasse o lugar dele à mesa. Acrescentou que, se o marido tinha medo que ela não fosse capaz de tomar conta da casa sozinha, ela lhe daria provas de que era capaz daquilo e de muito mais. Anselmo respondeu que era aquele seu desejo, e, como se costumava fazer naquele tempo, lembrou que a esposa tem obrigação de abaixar a cabeça e obedecer ao marido. Como, além de discreta e honrada, Camila cumpria suas obrigações, abaixou a cabeça. Mas contra a vontade.
Anselmo partiu para a aldeia num dia, e no outro Lotário já estava na casa do amigo. Camila o recebeu com cortesia e decência, e tomou todas as providências para eles estarem sempre cercados pelos criados e criadas da casa. Uma delas era a preferida de Camila, Leonela. As duas se conheciam desde meninas, cresceram juntas na casa dos pais de Camila, e a amizade que as unia era tanta que a moça a levou consigo quando se casou com Anselmo. Camila ordenou a Leonela que não a deixasse a sós com Lotário nem um minuto. Leonela, porém, tinha lá seus próprios assuntos, e nem sempre cumpria as ordens de Camila: deixava a patroa a sós com a visita de um jeito que parecia até que a ordem era essa, e não o contrário. De modo que Lotário até teve oportunidade para tentar cumprir sua missão, mas, nos três primeiros dias, não conseguiu. Mesmo sem vigilância ou testemunhas, Camila mantinha uma postura tão séria, decente e honesta que desencorajava Lotário. Contudo, se por um lado as virtudes de Camila calavam a língua de Lotário, por outro atiçavam os pensamentos dele. E eles foram aonde não deviam.
Sem dizer uma palavra, Lotário contemplava o caráter e a beleza de Camila, que eram capazes de destroçar o coração de mármore de uma estátua, quanto mais um coração de carne.
O tempo que Lotário deveria falar com Camila, ele passava admirando-a, pensando o quanto ela era digna de ser amada. E essa admiração aos poucos começou a minar o respeito que ele tinha por Anselmo. Percebendo que a fortaleza da sua honra começava a rachar, mil vezes Lotário teve vontade de sair de Florença e ir para um lugar onde Anselmo nunca mais o visse, e ele nunca mais visse Camila, mas mil vezes a vontade de estar perto dela foi mais forte. Lotário começou a lutar consigo mesmo, contra o prazer de estar com Camila. Culpava-se por aquele desatino, chamava a si mesmo de mau amigo e mau cristão. Fazia discursos para ninguém, onde repetia ao vento que sua deslealdade havia sido provocada pela loucura e pela confiança de Anselmo. Se isso valesse como pedido de perdão a Deus e aos homens pelo que pretendia fazer, não temia castigo para sua culpa.
Três dias: foi o tempo que durou a luta de Lotário contra seu desejo. Foi o tempo que o caráter e a beleza de Camila, juntamente com todas as oportunidades criadas pelo impertinente Anselmo, levaram para destruir a lealdade de Lotário. Vencido, ele se declarou a Camila. E foi uma declaração tão cheia de espanto e amor, que a moça, surpresa como estava, não pôde fazer outra coisa: levantou-se e foi para seu quarto sem dizer uma única palavra. E como a esperança sempre nasce junto com o amor, a frieza de Camila não desanimou Lotário, muito antes pelo contrário: só aumentou seu desejo por ela.
Camila não sabia o que fazer com a declaração de Lotário. Decidiu que o mais prudente era não dar mais ao rapaz chance de lhe falar, e naquela mesma noite enviou um bilhete a Anselmo, onde escreveu o seguinte:
“Como diz o povo, vai mal um exército sem general. E eu digo que vai ainda pior uma mulher casada e jovem sem seu marido. Sinto-me tão mal sem você, e sua ausência é tão insuportável para mim, que, se não voltar depressa, me vejo forçada a ir para a casa de meus pais. Serei obrigada a descuidar de sua casa. Porque aquele que você incumbiu de tomar conta dela, toma mais conta dos próprios prazeres do que dos seus interesses, meu marido. E por ser você tão discreto, mais não digo, nem devo dizer.” Ao receber o bilhete, Anselmo logo concluiu que Lotário havia tentado seduzir Camila e que ela havia reagido da maneira que ele esperava. Sem caber em si de tanta felicidade, Anselmo mandou um recado a Camila ordenando que ela ficasse em casa, pois ele regressaria em breve. A resposta de Anselmo surpreendeu Camila e a deixou ainda mais confusa, pois não conseguia se decidir entre ficar em sua casa ou ir para a casa dos pais: se ficasse, sua honestidade estaria em perigo; se partisse, desobedeceria ao marido.
Depois de muito pensar, Camila decidiu pelo pior: ficar em casa, e não fugir de Lotário, para não provocar a curiosidade da criadagem. Já lhe bastava o medo que tinha de Anselmo, por causa do bilhete, pensar que ela houvesse dado a Lotário motivos para se engraçar. Confiando no próprio caráter e em suas boas intenções, Camila entregou-se a Deus, determinada a escutar em silêncio tudo que Lotário quisesse lhe dizer. Resolveu ainda não contar mais nada ao esposo, mas só para não preocupá-lo, nem provocar uma briga entre “os dois amigos”. E o mais importante: começou a maquinar uma desculpa para despistar Anselmo, quando ele lhe perguntasse por que motivo ela havia escrito o bilhete.
Foi com esses pensamentos, pouco corretos, nem um pouco úteis, mas muito honrados, que Camila se pôs a escutar Lotário no dia seguinte. E Lotário falou com tanta paixão, que a fortaleza da honra de Camila também começou a rachar, e a honestidade dela teve que ser muita para seus olhos não revelarem a confusão amorosa que ele havia despertado em seu peito. Mas Lotário notou a rachadura no olhar de Camila. E, com mais paixão ainda, intensificou o ataque à fortaleza da moça, elogiando sua beleza. E nada derruba mais facilmente as muralhas da vaidade das belas mulheres do que a própria vaidade.
E assim, como água mole em pedra dura, Lotário foi batendo na rocha da honestidade de Camila. E foi tão persistente e caprichoso que, mesmo que fosse feita de bronze, a moça não teria como resistir. Lotário chorou, implorou, jurou, bajulou, insistiu e fingiu com tanta sinceridade, que venceu o pudor de Camila e conquistou o prêmio que menos esperava, justamente por ser aquele que mais desejava.
Camila se entregou a Lotário. Sim, Camila se entregou. Sim, a amizade de Lotário por Anselmo veio por terra. Qual é a surpresa? Essa é apenas mais uma demonstração de que a única maneira de dominar a paixão é fugir dela, e que ninguém deve cair na besteira de medir forças com inimigo tão poderoso. É preciso ter poderes divinos para vencer os poderes humanos. Camila não conseguiu esconder de Leonela que havia traído Anselmo. Lotário, porém, conseguiu esconder de Camila que foi o próprio Anselmo quem lhe dera a missão de seduzi-la. E escondeu por uma razão muito simples: Lotário não queria que Camila fizesse pouco caso de sua paixão, se soubesse que o estopim de tudo havia sido o desejo de Anselmo, e não o desejo dele mesmo.
Dias depois, Anselmo estava de volta.
Anselmo não percebeu que faltava em sua casa aquilo que ele mais valorizava, e ao mesmo tempo aquilo com que ele menos teve cuidado: sua honra. Assim que pôde, procurou Lotário, e depois de abraçá-lo longamente, perguntou sobre as novidades. Lotário respondeu:
— A novidade, amigo Anselmo, é que você tem uma mulher que pode servir de exemplo e de símbolo para todas as mulheres honestas. As palavras de amor que eu disse a ela, o vento levou. Os juramentos que fiz, ela desprezou. Os presentes que ofereci, ela recusou. E as lágrimas falsas que derramei, secaram com as gargalhadas dela. Em resumo: o que tem de bela, Camila tem de fiel, recatada, humilde, e todas as virtudes que tem que ter uma mulher honrada. Pegue de volta seus escudos de ouro, amigo, pois não precisei deles. Posso lhe garantir que dinheiro e joias não derrubam a fortaleza da honestidade de Camila. Alegre-se, Anselmo, pois você testou a fidelidade de sua esposa e ela passou intocada pelo teste. Você atravessou o mar das suspeitas sem molhar os pés e sem respingar o rosto. Não tente mergulhar de novo nas profundezas abissais de novos inconvenientes, não queira colocar à prova com outro capitão a força desse navio que o céu lhe deu para cruzar o oceano da vida. Faça de conta que você já chegou a um porto seguro, jogue a âncora da confiança e descanse em águas calmas, até que a morte venha cobrar sua dívida — pois nem os nobres, nem os ricos deixam de pagá-la.
Anselmo ficou muito contente com o que Lotário lhe contou. Acreditou em tudo. Mas nem assim o estranho desejo o deixou em paz.
Anselmo pediu a Lotário que não abandonasse a missão de seduzir Camila, por pura curiosidade, como diversão. Apenas, com menos empenho: queria só que o amigo escrevesse alguns versos para Camila, mas usando o nome de Clóris. Seu plano era dizer à esposa que Lotário estava apaixonado por uma mulher e queria homenageá-la com a poesia, mas não devia usar o nome da amada para proteger a reputação dela. Anselmo chegou mesmo a se oferecer para escrever os versos.
— Não é preciso — disse Lotário. — A inspiração me visita algumas vezes por ano. Diga a Camila que estou apaixonado por outra mulher, que eu me encarrego dos versos. Eles podem até não ficar bons como ela merece, mas pode ter certeza de que serão os melhores que eu puder fazer.
Assim ficou combinado entre o curioso impertinente e o amigo traidor. Quando Anselmo perguntou a Camila por que havia lhe escrito o tal bilhete, ela respondeu o que havia maquinado: que tinha tido a impressão de que Lotário a olhava de um modo diferente na ausência de Anselmo, mas que já estava convencida de que havia se enganado, pois Lotário passou a fugir dela, e evitava que ficassem a sós. Anselmo assegurou então a Camila que ela jamais deveria desconfiar das intenções de Lotário, pois tinha certeza absoluta de que o amigo seria incapaz de traí-lo. E que, além da lealdade à amizade dos dois, outra forte razão impedia Lotário de faltar ao respeito para com Camila: ele estava apaixonado por uma importante donzela, a quem chamava em seus poemas de Clóris.
Camila poderia ter sido dominada pelo ciúme ao saber da existência de Clóris, mas não foi. O rápido Lotário já a havia prevenido de que mentira para Anselmo, dizendo que amava uma inventada Clóris, só para poder dirigir palavras de amor à própria Camila diante do marido.
Certo dia, estando os três à mesa, Anselmo pediu a Lotário que declamasse algo que tivesse criado para Clóris, garantindo que a privacidade de sua amada estava assegurada, uma vez que Camila não conhecia a donzela.
— Mesmo que conhecesse — respondeu Lotário — eu não esconderia nada, porque quando um amante louva a beleza de sua dama, mas também a chama de cruel, não causa dano algum a sua reputação. Ontem mesmo compus um soneto inspirado na ingratidão de Clóris, que diz assim:
No silêncio da noite, quando
o doce sono ocupa os mortais,
a enorme conta dos meus ricos ais
aos céus e à minha Clóris vou saldando.
E quando o sol vai se mostrando
por entre as rosadas portas orientais,
com suspiros e acentos desiguais
vou a antiga queixa renovando.
E quando o sol, de seu estrelado trono,
raios diretos à terra envia,
o pranto cresce e dobro os gemidos.
Volta a noite, volto ao triste abandono,
e sempre encontro, nessa mortal teimosia
Surdos os céus, e Clóris sem ouvidos.
Se Camila achou bom o soneto, Anselmo o achou ótimo, e ainda lamentou a crueldade de Clóris, que não correspondia a uma paixão tão sincera. Camila então perguntou:
— Os poetas apaixonados sempre são sinceros?
— Enquanto poetas, não — respondeu Lotário.
— Mas, enquanto apaixonados, são tão sinceros quanto passageiros.
— Certamente — concordou Anselmo, que apoiava enfaticamente as opiniões de Lotário para reforçar a trama da paixão do amigo pela fictícia Clóris.
O que Anselmo não podia imaginar era que, se por um lado Camila ignorava a trama urdida por ele para matar sua curiosidade e se divertir com ela, por outro àquela altura sua esposa estava completamente apaixonada por Lotário.
Certa de que a verdadeira Clóris, o objeto da paixão, dos desejos e dos versos de Lotário, era ela mesma, Camila, deliciada, lhe pediu que recitasse mais sonetos.
— Não creio que este seja tão bom quanto o primeiro, ou melhor: menos mau — respondeu Lotário. — Mas vocês vão saber julgá-lo.
Sei que morro, e já que em mim não acredita,
É mais decente morrer, assim como é mais acertado
Oh, bela ingrata, estar aos seus pés, inanimado,
Do que lhe adorar arrependido, dura desdita.
Posso para sempre ser esquecido
De vida, glória e consideração deserto
Que mesmo assim em meu peito aberto
Se poderá ver seu belo rosto esculpido
Essa relíquia guardo para o duro
Estado de aflição a que leva minha teimosia
Pois quanto maior sua frieza, mais ela se fortalece.
Ai daquele que navega
Por mar ousado em perigosa travessia
Onde nem norte, nem porto se oferece!
Anselmo elogiou o segundo soneto, da mesma forma que havia elogiado o primeiro. E assim, de elo em elo, ia formando a corrente que acorrentava a ele mesmo e engendrava a própria desonra. Quanto mais Lotário desonrava Anselmo, mais lhe dizia que ele deveria se sentir honrado. Quanto mais baixo Camila descia, tornando-se adúltera e depois mentirosa e depois cínica, mais alto o marido a elevava em sua estima e consideração. Anselmo, que pensava manipular Lotário e Camila, era pelos dois manipulado.
Estando certa vez a sós com Leonela, Camila comentou:
— Estou envergonhada por não ter sabido me dar o devido valor. Entreguei-me a Lotário tão depressa! E hoje são tão rotineiros nossos encontros na despensa... Tenho medo que ele faça pouco de mim por causa disso.
— Não tenha medo, minha senhora — respondeu Leonela. — Quando a coisa é muito boa, entregá-la rápido ou devagar não diminui nem aumenta seu valor. O povo até diz que aquele que dá depressa, dá duas vezes.
— Também se costuma dizer — retrucou Camila — que o que custa pouco, pouquíssimo é estimado.
— Não é o seu caso — garantiu Leonela —, porque o amor, pelo que ouvi dizer, às vezes voa, às vezes anda. Com uma pessoa corre, com outra se arrasta. A uns esfria, a outros queima. A uns fere, a outros mata. No mesmo lugar onde a jornada dos seus desejos começa, acaba. Pela manhã, o amor cerca uma fortaleza, e à noite ela já está tomada, porque não há quem resista a sua força. Então, por que a senhora se assusta? De que tem medo? Se a mesma coisa deve ter acontecido a Lotário, se o amor usou a ausência do meu patrão como arma para render vocês dois? Na ausência de Anselmo, nada poderia impedir o ataque do amor, porque o general do amor é justamente a ocasião. Se a ocasião faz o ladrão, também faz os amantes.
É a ocasião que o amor aproveita, principalmente no começo. E sei disso muito bem, não por ouvir dizer, mas por experiência própria, afinal também tenho carne e sangue jovens. O que mais importa é que a senhora só se entregou depois de ver nos olhos, nos suspiros, nas queixas, nas promessas, nos mimos de Lotário toda a alma dele. E viu tanto na alma, quanto nas virtudes de Lotário que ele é um homem digno de ser amado. Não se incomode mais com esses pensamentos. Se Lotário a ama como a senhora o ama, dê-se por feliz, pois ele tem os quatro “s” que devem ter os bons amantes: sabido, sozinho, solícito e secreto. Mais que isso, Lotário tem o abecê completo: amoroso, bom, cortês, doce, enamorado, firme, gostoso, honrado, importante, jovem, lindo, mão-aberta, nobre, ótimo, poderoso, querido, rico, os quatro “s”, e depois o “t” de talentoso e o “v” de verdadeiro. O “x”, tenha dó, é uma letra briguenta. E para o “z”, zelador da honra de sua amada.
Camila riu do abecê de sua criada e se deu conta de que ela tinha muito mais prática nas coisas do amor do que demonstrava. Leonela confessou então que namorava um jovem nobre. Camila ficou preocupada. Temendo pela honra de Leonela, interrogou a criada para saber até que ponto iam suas intimidades com o tal nobre. Leonela, com pouca vergonha e muita desenvoltura, respondeu que as intimidades haviam chegado aonde todas deveriam chegar, pois o fato é que, quando as patroas relaxam, também relaxam as criadas. Se umas escorregam, as outras não se importam de capengar, e menos ainda se importam de que os outros saibam disso. A única coisa que Camila pôde fazer foi pedir a Leonela para nunca falar com ninguém sobre seu romance com Lotário. Leonela prometeu segredo, mas cumpriu a promessa de tal maneira que Camila a cada dia tinha mais medo de perder sua reputação por causa da criada.
De fato, depois de ver que a patroa já não era tão honrada como antes, a desonrada e desaforada Leonela começou a levar seu amante para dentro da casa dos patrões, na certeza de que, mesmo que Camila o visse, não teria coragem de denunciá-lo. Essa é a pior consequência dos pecados das patroas: eles as tornam escravas de suas criadas. E foi o que aconteceu a Camila. Nem uma, nem duas, mas muitas vezes ela viu Leonela com o amante em um cômodo de sua casa, mas não só não podia ralhar com ela, como se via obrigada também a esconder o rapaz para evitar que Anselmo o visse. Contudo, Camila não conseguiu evitar que, certa madrugada, Lotário visse o amante de Leonela fugindo pelo jardim de Anselmo, e tirasse a mais inesperada — e a mais perigosa — das conclusões.
Lotário logo concluiu que se tratava de outro amante de Camila. Julgou que, da mesma forma que ela havia sido fácil e leviana com ele, agora era fácil e leviana com todos. Sim, senhoras: quando uma mulher dá um mau passo, perde a confiança até mesmo daquele que a ajudou a sair do caminho da decência e da honradez. Mesmo aquele que só consegue possuir uma moça decente à custa de muita paciência e lábia, acredita que ela se entrega a outros com toda rapidez e facilidade. E Lotário, que sempre fora sensato e compunha longos e ponderados discursos antes de tomar qualquer decisão, dessa vez agiu sem pensar nem um segundo. Cego de ciúme e raiva, foi imediatamente procurar Anselmo para se vingar de Camila.
— Sabe, amigo Anselmo, há dias venho lutando comigo mesmo. Não quero lhe contar uma coisa, mas ao mesmo tempo já não é possível nem justo eu não contar. Você precisa saber que a muralha de Camila desabou, e posso entrar ou sair dela na hora que bem entender. Só demorei a lhe revelar essa desgraça para ter certeza de que não era impressão. E não é: Camila está mesmo disposta a me deixar terminar aquilo que você me pediu para só começar. Achei que, se ela fosse o que nós dois pensávamos que era, a esta altura já teria se queixado com você do modo como a elogio. Se não se queixou, é porque ela pretende cumprir o que me prometeu: encontrar-me na despensa, na próxima vez que você sair de casa. Ainda não acho que você deva se vingar de Camila, pois ela só pecou em pensamento, e é bem possível que se arrependa antes de pecar em atos. Você sempre ouviu os meus conselhos, e muitas vezes os seguiu. Por isso, e para que você possa tomar a medida mais justa e prudente, lhe peço: finja que vai viajar por dois ou três dias, e se esconda na despensa. Há ali espaço suficiente para ter conforto. Dessa forma, você vai poder ver com seus próprios olhos, e eu com os meus, o que Camila pretende. Se, como se pode temer e até esperar, ela quiser se entregar a mim, você poderá lavar com sangue sua honra.
As palavras de Lotário pegaram Anselmo de surpresa. O marido enganado já estava convicto de que Camila havia resistido à sedução do amigo — que ele pensava ser fingida — e já comemorava o fato de ser casado com a mais fiel das mulheres. Ficou calado por algum tempo, com o pensamento distante e o olhar no chão. Até que disse:
— Você agiu como eu esperava. Vou seguir seu conselho. Faça com ela como quiser, guarde o segredo que julgar conveniente.
Foi só se separar de Anselmo, que Lotário se arrependeu de tudo que havia lhe dito.
Que estupidez! Lotário poderia muito bem se vingar de Camila de um modo menos cruel, menos desonrado. Sentindo-se precipitado e covarde, não sabia o que fazer para acabar com a intriga que havia começado, ou para dar a ela um fim melhor. Decidiu então contar tudo a Camila. Naquele mesmo dia, teve oportunidade de estar a sós com ela. Mas, antes que ele pudesse abrir a boca, Camila desabafou:
— Lotário, meu coração anda tão apertado que nem sei como ainda está inteiro. Imagine a que ponto chegou a pouca-vergonha de Leonela: toda noite, ela traz o amante para esta casa e fica trancada com ele até o dia clarear. E é a minha reputação que está em risco, claro. Se virem um desconhecido saindo de minha casa fora de hora, o que hão de pensar? E o pior é que não posso castigá-la, e nem mesmo reclamar com ela. Porque Leonela sabe do nosso romance e guarda segredo, sou obrigada a também guardar segredo sobre o romance dela. Tenho medo de como isso pode acabar.
A princípio, Lotário pensou que a história do amante de Leonela fosse apenas uma mentira de Camila para esconder o próprio deslize. Mas tanto Camila chorou, se desesperou e implorou por uma solução para a situação, que ele foi se convencendo de que a história era verdadeira. E quanto mais acreditava na história, mais se arrependia por ter dito o que disse a Anselmo. O arrependimento cresceu tanto em seu peito que chegou à garganta, e da garganta à boca. Lotário confessou então a Camila que, por ciúme, havia jogado Anselmo contra ela. E contou também do plano que ele e o marido enganado haviam armado para flagrar a infidelidade de Camila. Pediu mil perdões e implorou a ela que o ajudasse a encontrar uma saída para essa confusão em que ele havia metido os dois.
Camila podia esperar qualquer coisa de seu amante, menos aquilo. Irritada, censurou não apenas o mau juízo que Lotário fazia dela, mas principalmente a tolice de sair correndo atrás de Anselmo. Porém, seja para o bem, seja para o mal, e em se tratando de ação, e não de falação, a mulher tem mais expediente que o homem. De modo que Camila rapidamente remediou o que parecia não ter remédio, e disse a Lotário que levasse adiante o combinado com Anselmo. Garantiu que sabia como os dois poderiam tirar proveito daquilo, e assegurou que dali em diante eles poderiam se amar sem susto. Porém, não revelou o que pretendia. Avisou apenas que ele deveria ter cuidado quando Anselmo se escondesse, e o instruiu a só entrar na despensa quando Leonela o chamasse, e a responder a tudo que ela falasse como se não soubesse que o marido estava ali escutando.
Lotário insistiu para que Camila lhe contasse todo o seu plano, para que ele pudesse segui-lo com mais segurança e cautela, mas a única coisa que ouviu foi:
— Você não precisa saber de mais nada. Basta responder ao que eu lhe perguntar.
Camila não queria contar a Lotário o que planejava com medo de que ele não aceitasse a ideia que ela considerava perfeita, se negasse a colocá-la em prática, ou pior: fizesse outra tolice. Sem mais o que dizer ou escutar, a única coisa que restou a Lotário foi seguir às cegas o misterioso plano de Camila.
No dia seguinte, com a desculpa de ir à aldeia de seu amigo, Anselmo saiu de casa. Só para voltar em seguida e, graças às oportunidades que Camila e Leonela lhe deram, se esconder na despensa — ou pensar que se escondia, já que todos de quem ele pretendia se esconder sabiam que ele estava ali.
O que se passava pela cabeça de Anselmo, temendo pela integridade de sua testa, já se pode imaginar. Encolhido entre a farinha e as batatas, esperava assistir, com seus próprios olhos, mais do que a esposa destruir a honra dela, e a dele a reboque. Esperava ver a morte de seu amor pela esposa, que ele considerava sua maior riqueza.
Seguras de que Anselmo já estava na despensa, Camila e Leonela entraram no cômodo. Foi só colocar os pés ali que Camila exclamou, em meio a um suspiro:
— Ai, amiga Leonela! Não lhe contei meu plano para você não poder me impedir de executá-lo, mas agora penso se não seria melhor lhe entregar logo o punhal de Anselmo, que trago comigo, e lhe pedir que o enterre em meu peito infame. Porém, não há motivo para eu ser punida pela culpa que não é minha. Antes, preciso saber o que fiz a Lotário, para ele se atrever a me dizer descaradas palavras de amor, menosprezando a amizade de Anselmo e a minha reputação. Esse desclassificado deve estar aí na rua, pensando que vai me possuir hoje. Mal sabe que, antes que ele possa realizar suas más intenções, eu realizarei a minha, que é cruel, porém honrada.
— Ai, minha patroa! — respondeu Leonela que, além de esperta, conhecia o verdadeiro plano de Camila. — O que vai fazer com esse punhal? Matar-se? Ou matar Lotário? Qualquer uma das mortes lhe fará perder a reputação. É melhor fingir que não entendeu as palavras de Lotário, e impedir que esse canalha entre aqui em casa e nos encontre sozinhas. Somos mulheres fracas e ele é um homem decidido, que vem com uma intenção má, os olhos cegos de desejo e o coração apaixonado.
É bem possível que, antes que a senhora coloque seu plano em prática, Lotário coloque o dele. A espada que ele traz vai mais fundo na carne que esse punhal, será pior que a morte para a senhora. Pobre do meu patrão Anselmo, que abriu as portas para esse traidor! E se a senhora matar Lotário, como penso que pretende fazer? Que fim daremos ao corpo?
— Ora, deixaremos aqui, para que Anselmo o enterre — respondeu Camila. — É justo que ele tenha ao menos o alívio de sepultar o patife que o desonrou. Chame logo Lotário. Quanto mais espero para me vingar da ofensa que ele me fez, mais me parece que falto com a fidelidade que devo ao meu marido.
Anselmo escutava tudo, e cada palavra de Camila transformava seus pensamentos. Quando ouviu que ela estava decidida a matar Lotário, quis sair do esconderijo para evitar que ela fizesse tamanha loucura. Mas não saiu. Desejou ver até onde ia tanta coragem e tanta determinação de defender a própria honra — e com a dela, a dele. Anselmo continuou encolhido em seu canto, sempre na intenção de sair a tempo de impedir o mal maior.
Neste momento Camila teve um desmaio, largando-se sobre os pimentões. Leonela desatou um choro sentido, dizendo:
— Pobre de mim! O que vou fazer se morrer nos meus braços a mais fiel das mulheres fiéis, o exemplo das boas esposas, o modelo da castidade?
E por aí foi o lamento de Leonela. Quem a ouvisse, jurava que era a mais inconsolável e leal das criadas, e a patroa, uma nova Penélope, que, pelo que diziam os antigos gregos, esperou por vinte anos que o marido voltasse da guerra de Troia, sem saber se ele estava vivo ou morto, e recusando todos os pretendentes que lhe apareciam, e não foram poucos. Pelo menos, era isso que diziam.
Logo Camila despertou do desmaio, e disse.
— Corra, vá chamar aquele que se diz o melhor de todos os amigos que o sol ilumina e a noite oculta! Vá, Leonela! Não quero que a sua demora diminua minha raiva, nem transforme em meras ameaças vazias a minha justa sede de vingança!
— Vou chamá-lo, mas com uma condição — impôs Leonela. — Deixe-me levar o punhal. Não quero que a senhora aproveite que está só para fazer num segundo aquilo que vai causar a dor eterna de sua criada e de todos que lhe querem bem.
— Vá em paz, amiga Leonela, não vou fazer nada — prometeu Camila. — Apesar de você achar que sou ousada e ingênua por lutar por minha honra, não cometerei a ousadia e a ingenuidade de Lucrécia, que, reza a lenda, matou-se sem ter cometido erro algum e sem matar aquele que causou sua perdição. Só morro se morrer vingada, se levar comigo o monstro que me faz estar aqui, agora, sofrendo por causa de seus atrevimentos, que não sei de onde vieram, sei apenas que não foi culpa minha.
Leonela esticou ao máximo seu teatrinho, fazendo-se de serviçal abnegada, mas por fim saiu para chamar Lotário. Camila começou a falar para Anselmo, fingindo que falava consigo mesma:
— Valei-me, Deus! Será que fiz bem em fingir para Lotário que estava disposta a trair meu marido? Não teria sido mais correto fingir que não escutava, ou não entendia as propostas indecentes dele? Talvez fosse... Mas, se me fizesse de surda ou tola, eu não me vingaria da ofensa à minha reputação. Nem preservaria a honra do meu marido, se Lotário saísse daqui como entrou, trazido pelos seus pensamentos sujos. O traidor tem que pagar com a vida por ter tentado trazer a desonra a esta casa. O mundo precisa saber que Camila não apenas se manteve fiel a Anselmo, mas também vingou o marido da traição daquele que se atreveu a ofendê-lo. E se eu tivesse simplesmente contado tudo a Anselmo? Bem que tentei fazer isso no bilhete que escrevi para a aldeia... Mas ele não atendeu aos meus apelos. Penso que, em sua boa-fé, Anselmo não quis nem pode acreditar que aquele que se dizia seu amigo fosse capaz de um dia sequer pensar em atentar contra sua honra. A princípio, nem eu acreditei, e não teria acreditado nunca, se a ousadia de Lotário não tivesse chegado tão longe, às palavras evidentemente apaixonadas, aos presentes claramente cheios de segundas intenções, às lágrimas desavergonhadas até. Mas... A quem tento convencer fazendo esse discurso para as cebolas? Não há mais tempo para argumentos, estou decidida. Morte ao traidor! Venha a mim a vingança! Que entre o dissimulado: que entre e morra! Que, aconteça o que acontecer, seu mal se acabe aqui! Cheguei aos braços de Anselmo sem manchas, e sem manchas deles vou sair. Na pior das hipóteses, me manchará meu sangue puro e o sangue impuro do mais falso dos amigos.
Enquanto falava, Camila andava em círculos pela despensa, dando passos tão desaforados e agitando o punhal no ar com tamanha destreza, que em nada lembrava a mulher delicada que era, parecia ter nascido e crescido entre valentões.
Entre a farinha e as batatas, Anselmo assistia a tudo, e não tinha mais olhos para esbugalhar nem boca para escancarar, de tão surpreso que estava. Já achava que o que tinha visto e ouvido era mais do que o suficiente para acabar com todas as suas desconfianças, e, temendo que acontecesse o pior, até torcia para que Lotário não aparecesse. Estava a ponto de se revelar para Camila, abraçá-la e acalmá-la, quando Leonela voltou, com Lotário pela mão. Assim que o viu, Camila traçou com a ponta do punhal um risco no chão e disse:
— Lotário, preste bastante atenção: se você passar desta linha, ou mesmo se chegar perto dela, enfio este punhal em meu peito. Exijo que me escute calado, e depois me responda como bem entender. Antes de tudo, quero que me diga se conhece Anselmo, meu marido, e o que você pensa sobre ele. Depois, quero saber se você me conhece. Responda, e responda sem pensar muito, pois não lhe fiz nenhuma pergunta difícil.
Lotário não era dos mais ignorantes, e percebeu o que Camila pretendia no mesmo momento em que ela havia concordado em manter Anselmo escondido. Seguiu o plano com tanta prontidão e competência, que os dois traidores conseguiram transformar aquela mentira na mais verdadeira das verdades. E assim ele respondeu:
— Quando me chamou aqui, bela Camila, nunca poderia imaginar que era para fazer perguntas tão descabidas. Se faz isso para valorizar o que prometeu me dar, devo lembrar-lhe que quanto mais cansada fica a caça, mais próximo fica o caçador. Mas, para que não diga que fugi de suas perguntas, afirmo que conheço seu marido Anselmo desde que éramos crianças. Não quero falar tudo o que você já sabe sobre a nossa amizade para não tornar ainda pior o dano que causei a ela por causa do amor. Sim, o amor, a melhor desculpa para os maiores erros. Conheço você e a amo assim como seu marido a ama. Só por você eu seria capaz de contrariar tudo aquilo em que acredito, e só um inimigo poderoso como o amor seria capaz de me jogar contra o meu amigo.
— Então você confessa: é o inimigo mortal de tudo aquilo que deve ser amado! Como se atreve a colocar seus olhos em cima de mim, sabendo que quem me olha é Anselmo, e que você não chega aos pés dele? O que lhe fez perder o respeito que você devia a si mesmo? Ai, de mim! Só pode ter sido algum gesto meu, que não posso nem chamar de indecência, pois nunca tive a intenção de lhe dar liberdades... Devo ter tido algum descuido, desses que as mulheres costumam ter quando pensam poder estar à vontade. Diga, traidor! Correspondi aos seus galanteios com alguma palavra, algum gesto que lhe desse a menor esperança de realizar seus desejos sujos? Não rejeitei sempre com firmeza todas as suas palavras de amor? Quando lhe dei confiança, quando aceitei suas promessas e presentes? Não sei. Mas também não consigo acreditar que alguém persista na sedução, se não tiver esperança de possuir o que deseja. Por isso, só posso concluir que sou eu a culpada pelo seu atrevimento. Devo, portanto, pagar por isso, receber a pena pela culpa que é sua. Só me resta ser tão desumana com você como estou sendo comigo mesma. Chamei-o para que fosse testemunha do sacrifício que faço à honra do meu marido, que foi insultado pelas suas más intenções e pelo meu descuido. É isso que mais me aflige: pensar que algum descuido meu possa ter lhe encorajado a me amar, e por isso devo eu mesma castigar esse delito, para que a minha culpa e a vergonha de meu marido se encerrem nestas quatro paredes. Porém, quero matar morrendo, e levar comigo aquele que satisfaz meu desejo de vingança. De onde quer que eu esteja, hei de ver qual será a pena da Justiça, que não vai se dobrar a quem me levou ao desespero.
Ao dizer isso, Camila se atirou contra Lotário com o punhal em riste, com uma força, uma agilidade e, acima de tudo, com uma pontaria tão certeira que ele quase acreditou que ela quisesse mesmo cravar a lâmina em seu coração. Lotário teve que aplicar força e agilidade verdadeiras para deter o falso golpe de Camila. Para tornar mais verossímil o combate, ela resolveu dar à luta as cores de seu próprio sangue.
Vendo que não podia vencer Lotário, ou fingindo não poder vencê-lo, Camila disse:
— O destino é cruel, não me deixa satisfazer plenamente meu desejo de vingança. Mas não tem poder para me impedir de satisfazê-lo em parte.
Camila se desvencilhou de Lotário, voltou o punhal contra o próprio ombro e espetou a lâmina um pouco acima da axila esquerda, produzindo um ferimento superficial, mas suficientemente teatral. Em seguida, fingiu um desmaio e desabou no chão.
Perplexos, Leonela e Lotário olhavam para Camila ensanguentada, imóvel, e já começavam a duvidar que a cena toda fosse uma farsa. Lotário, em pânico e ofegante, correu para arrancar o punhal. Assim que percebeu como a ferida era pequena, recuperou a calma e voltou a se admirar da esperteza, da disposição e do incrível autocontrole da bela Camila. Para desempenhar seu papel naquele cambalacho, começou a agir como se ela estivesse morta, lamentandose e praguejando contra si mesmo e contra tudo que havia levado àquela tragédia. Sabendo que Anselmo o escutava, escolhia palavras que faziam o marido enganado ter mais pena do amigo que da própria esposa. Já Leonela implorava a Lotário que fosse atrás de alguém que tratasse de Camila em segredo, e lhe perguntava o que deveriam dizer a Anselmo. Lotário respondeu que não estava em condições de dizer nada que se aproveitasse, conseguia apenas pedir a Leonela que tentasse estancar o sangue de Camila, porque ele ia para algum lugar onde ninguém pudesse encontrá-lo. E, afetando muita dor e sentimento, partiu. Contudo, assim que se viu a sós e em segurança, Lotário fez o sinal da cruz quantas vezes pode, fascinado com a astúcia de Camila e o desembaraço de Leonela. Tentava imaginar se Anselmo perceberia o golpe da esposa, e não via a hora de estar com ele, para festejarem a mentira mais verdadeira e a verdade mais mentirosa que um dia alguém já se atreveu a imaginar.
Enquanto cuidava do ferimento de Camila, que sangrou apenas o mínimo necessário para dar credibilidade à pantomima e já fingia retomar a consciência, Leonela elogiava a honestidade da patroa. E os elogios de Leonela a Camila foram tantos e tão belos, que fariam Anselmo acreditar piamente na fidelidade da esposa, mesmo que não tivesse visto ou ouvido nada antes. Camila, ao contrário, se depreciava. Lamentava-se por não ter tido a coragem e a força necessárias para dar fim à própria vida, que, dizia, já não valia a pena ser vivida, e perguntava à criada se deveria ou não contar o que houve a Anselmo. Leonela aconselhou Camila a não contar nada ao marido. Argumentou que, se ele ficasse ciente da traição de Lotário, seria obrigado a se vingar do mau amigo, o que era demasiado perigoso. E acrescentou que a obrigação da boa esposa é não dar motivo para seu marido se meter em brigas e, sempre que possível, livrá-lo de confusões.
Camila disse que o conselho de Leonela era muito bom e que ia segui-lo. Contudo, precisavam decidir o que diriam a Anselmo quando ele visse aquela ferida. Leonela jurou que não sabia mentir nem por brincadeira.
— E eu, então? — replicou Camila. — Prefiro morrer a inventar ou alimentar uma mentira. E se nem você, nem eu somos capazes de mentir, melhor será contar a Anselmo toda a verdade: que Lotário é um canalha!
— Acalme-se, patroa — pediu Leonela. — Deixe comigo: até amanhã, vou pensar no que dizer. Quem sabe a senhora consegue esconder a ferida? Deus está do lado de quem tem o coração justo e honrado como o seu. O melhor é a senhora se tranquilizar, senão o patrão vai perceber seu desassossego. Do resto, cuidamos eu e Deus, que sempre ajuda as boas intenções.
O tempo todo, Anselmo assistiu com a maior atenção à encenação, sem saber que não se tratava de um melodrama cujo final estava nas mãos dele, mas de uma tragédia: a morte de sua honra. Camila, Leonela e até Lotário representavam com tanta verdade, que nem pareciam mentir em cada gesto, em cada palavra. Aquele espetáculo selou para sempre o destino de seus três atores e do único homem que constituía sua plateia.
Anselmo esperava ansioso pela chegada da noite, quando finalmente poderia ir ao encontro do bom amigo Lotário e comemorar com ele. Depois de sofrer todos os tormentos da dúvida, precisava celebrar a certeza da fidelidade da esposa, assim como celebra quem encontra a mais bela flor no mais árido dos desertos. Camila e Leonela facilitaram a saída de Anselmo que, assim que viu oportunidade, escapou da despensa e foi atrás de Lotário. E quando o encontrou, foram tantos os abraços que lhe deu, tantas as alegrias que lhe contou, tantos os elogios que fez a Camila, que é impossível descrever. Lotário escutava Anselmo, mas não podia demonstrar alegria alguma, porque só conseguia pensar em como o pobre marido estava enganado. Anselmo reparou que Lotário não se alegrava com sua alegria, e pensou que ele estava aflito com o estado de Camila, não apenas por ela estar ferida, mas por haver sido ele o causador do ferimento. Para tranquilizar o amigo, contou que Leonela e Camila haviam combinado de esconder dele o incidente com o punhal, e que, portanto, o ferimento não deveria ser grave. Anselmo insistiu com Lotário que se alegrasse porque, pensava ele, o amigo havia sido o instrumento de toda a sua felicidade. Acreditava que a astúcia de Lotário havia lhe revelado o quanto Camila era fiel ao marido, sem saber que mais astuciosa ainda havia sido Camila, e que nem a esposa, nem o amigo lhe eram fiéis. Dali em diante, Anselmo só pensava em fazer versos em homenagem à esposa, para que as gerações futuras soubessem o quanto ela era honrada. Lotário por fim apoiou a ideia do amigo, e se prontificou a ajudá-lo a eternizar a memória de Camila.
E foi assim que Anselmo se tornou o homem mais saborosamente enganado em cima da terra e embaixo do céu, pois levava ele mesmo para dentro de sua casa o destruidor de sua honra, pensando levar o construtor de sua glória. Camila fechava a cara para Lotário, mas lhe abria seu coração e todo o resto. Porém, como não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe, ao fim de alguns meses a maré da sorte mudou, e trouxe à mostra toda maldade que havia sido escondida com tanta artimanha. E o preço que Anselmo pagou por sua impertinente curiosidade foi a própria vida.
Anselmo estava tão seguro da fidelidade de Camila que vivia feliz e despreocupado com a integridade de sua testa. Já Camila tinha sempre o cuidado de torcer o nariz para Lotário, de forma que o marido visse ódio onde só existia amor. Para dar mais veracidade à encenação de Camila, Lotário pediu a Anselmo licença para não frequentar mais sua casa, alegando que era evidente a má vontade de sua esposa com ele. Anselmo, porém, recusou veementemente o pedido do amigo. Dessas e de mil outras formas, ia Anselmo cavando a própria desonra, enquanto se dava ao seu maior prazer: desfrutar da companhia de Camila e Lotário.
Leonela também vivia dias e, principalmente, noites felizes. Confiante na amizade de Camila, e mais ainda no poder do segredo da patroa que ela guardava, Leonela recebia seu amante sem tomar precaução alguma. Camila, de fato, não apenas encobria os encontros clandestinos da criada, como chegava até a facilitá-los. E tanto Leonela se descuidou, que certa noite Anselmo ouviu passos pesados no quarto da criada, e decidiu ver quem os dava. Tentou abrir a porta, mas alguém do lado de dentro do aposento impediu sua passagem. A resistência só aumentou a determinação de Anselmo, e ele aumentou sua força, até arrombar a porta. Porém, conseguiu ver apenas o vulto de um homem que pulava a janela, que dava para a rua. Anselmo ainda correu para tentar alcançar ou reconhecer o intruso, mas não conseguiu nem uma coisa, nem outra, porque Leonela se agarrou e ele, implorando:
— Por favor, patrão, não vá atrás dele! É meu marido!
Anselmo, até ali o mais crédulo dos homens, não acreditou na criada, justamente no momento em que ela falava algo parecido com a verdade.
Cego de raiva, desembainhou o punhal e disse a Leonela que, se ela não lhe contasse a verdade, ele a mataria.
Apavorada e sem saber o que dizer, Leonela respondeu:
— Não me mate! Posso lhe contar coisas muito mais importantes do que o senhor é capaz de imaginar.
— Conte agora, ou morre!
— Agora não consigo, estou nervosa demais. Poupe-me até amanhã, e o senhor irá se espantar com o que vai ouvir de mim. Posso apenas garantir que o homem que pulou por esta janela é um nobre desta cidade que aceitou ser meu esposo.
Com isso Anselmo se acalmou e decidiu dar a Leonela o prazo que ela pedia. Convicto da fidelidade da esposa, nem lhe passava pela cabeça — ou pela testa — ouvir algo contra Camila. Trancou a criada no quarto dela, avisando que de lá ela não sairia enquanto não lhe revelasse o que prometeu, e foi contar a Camila o que havia se passado.
Camila ficou perturbadíssima. Tendo todas as razões para acreditar que Leonela estava disposta a contar a Anselmo tudo o que sabia sobre seu romance com Lotário, não esperou até o dia seguinte. Assim que Anselmo adormeceu, recolheu suas melhores joias e algum dinheiro, e fugiu para a casa de Lotário. Depois de lhe contar o que estava acontecendo, pediu que a acolhesse ou que partissem os dois para um lugar onde Anselmo não pudesse encontrá-los.
Lotário ficou tão confuso que não sabia o que dizer, nem mesmo o que pensar. Por fim, propôs levar Camila para um convento onde a irmã dele era priora. Ela aceitou a ideia, e os dois partiram imediatamente, Camila para o convento e Lotário, para fora da cidade, sem dizer a ninguém para onde ia.
Assim que amanheceu, sem se dar conta de que Camila já não estava em casa, Anselmo foi para o quarto de Leonela para saber o que de tão importante ela tinha a lhe contar. Porém, não encontrou a criada: a janela estava aberta, e dela pendia uma corda feita de lençóis. Desolado, foi procurar Camila para lhe dar a triste notícia da fuga de Leonela, e só então deu pela falta da esposa. Anselmo perguntou por ela aos criados, mas nenhum a tinha visto sair nem sabia aonde ela poderia estar. Enquanto procurava por Camila, o que Anselmo encontrou foram os cofres abertos, e o que viu — ou antes, o que não viu — fez com que ele enfim percebesse a verdade. Boa parte das joias da esposa havia desaparecido, e isso só podia significar uma coisa: ele era um homem desonrado, e a causa de sua desonra obviamente não era a sua criada. Do jeito que estava, sem terminar de se vestir, triste e de cabeça baixa, pois sentia pela primeira vez o peso de seus cornos, Anselmo foi para a casa de Lotário, a fim de lhe contar seu infortúnio. Quando não o encontrou, e os criados dele lhe disseram que ele havia partido naquela noite levando todo o dinheiro que tinha, Anselmo pensou que ia enlouquecer. Como desgraça pouca é bobagem, ao voltar para casa Anselmo a encontrou vazia: todos os seus criados haviam ido embora.
Anselmo não sabia o que pensar, nem o que dizer, muito menos o que fazer. Precisou de tempo para recuperar o juízo. De um dia para o outro, via-se sem mulher, sem amigo, sem criados e, principalmente, sem honra, pois a ausência de Camila era a prova da sua perdição.
Finalmente, Anselmo resolveu ir à aldeia de seu amigo, onde esteve enquanto, com sua própria permissão, as pessoas que mais amava tramavam sua infelicidade. Trancou a casa, montou no cavalo e, com o que restava de suas forças, se pôs a caminho. Mal havia alcançado a metade da jornada e já havia perdido o ânimo, de tão maltratado por seus pensamentos. Fez então a única coisa que podia: escolheu uma árvore, desmontou, amarrou o cavalo e deixou-se ficar na sombra da copa, dando sentidos suspiros. Já era quase noite quando viu que se aproximava um homem a cavalo, vindo da cidade. Anselmo o cumprimentou e pediu notícias de Florença. E o que ele ouviu foi o seguinte:
— Senhor, as notícias são as mais estranhas dos últimos tempos, e não se fala em outra coisa em Florença. Dizem que esta noite Lotário raptou Camila, esposa do rico Anselmo, que está desaparecido. Isso foi o que contou uma criada de Camila, que na madrugada de ontem foi encontrada pelo governador pendurada em uma das janelas da casa de Anselmo, agarrada a uma corda de lençóis. Não sei em detalhes como tudo se deu. Sei apenas que a cidade inteira está espantada com o ocorrido, pois todos conheciam a imensa amizade que unia Lotário e Anselmo, a ponto de só os chamarem de “os dois amigos”.
— E por acaso se sabe — perguntou Anselmo — para onde foram Lotário e Camila?
— Não deixaram rastros — respondeu o homem. — E não foi por falta de procurar, já que o governador tomou todas as providências que podia tomar para encontrá-los.
— Vá com Deus, senhor — disse Anselmo.
— E fique o senhor com Ele — respondeu o homem ao partir.
Com notícias tão tristes, Anselmo esteve a ponto de perder não só o juízo, mas a própria vida. Num último esforço, conseguiu montar e chegar enfim à aldeia. Seu amigo ainda não sabia de sua desonra, mas bastou ver a palidez e o abatimento de Anselmo para concluir que ele chegava castigado por alguma coisa muito grave. Anselmo pediu que o acomodassem, lhe dessem material para escrever e o deixassem só, a portas fechadas. O amigo o atendeu. Sozinho com seus pensamentos, sua desgraça lhe pareceu tão negra que ele compreendeu que sua vida chegava ao fim. Decidiu então deixar explicada a causa de sua estranha morte, e começou a escrever. Ainda não havia colocado no papel tudo o que queria quando os sentidos lhe fugiram e Anselmo deixou a vida, carregado pela dor que lhe trouxe sua curiosidade impertinente.
Ao ver que já fazia muitas horas que Anselmo estava em silêncio, o dono da casa resolveu entrar no quarto para saber se ele havia melhorado. Encontrou-o estendido, metade do corpo na cama, metade debruçada sobre a mesinha, ainda com a pena na mão e o rosto tombado sobre o papel escrito. Chamou por ele. Sem obter resposta, aproximou-se. Tomou sua mão e, ao senti-la fria, percebeu que estava morto. Surpreso e aflito, chamou todos que estavam na casa para verem a fatalidade que Anselmo acabava de sofrer. Só então leu o papel, que concluiu ter sido escrito pelo falecido e onde encontrou as seguintes palavras:
“O desejo que rouba minha vida é absurdo e impertinente. Se Camila souber de minha morte, quero que saiba também que a perdoo, porque nem ela era obrigada a fazer milagres, nem eu tinha necessidade de querer que ela os fizesse. E já que fui eu mesmo que causei minha desonra, não há razão para...” Neste ponto Anselmo parou de escrever, e logo se pôde deduzir que neste ponto acabou sua vida, sem que ele pudesse acabar de escrever a razão a que se referia. No dia seguinte o amigo comunicou a morte aos parentes de Anselmo.
A notícia da morte de Anselmo encontrou Camila também com a vida por um fio, e não pelo que ela acabava de ouvir sobre o marido, mas pela falta de informações sobre seu amante. Dizem que, ao se saber viúva, Camila não quis deixar o convento, nem se tornar freira. Logo depois, ela soube que Lotário, arrependido, havia fugido para o reino de Nápoles, onde se alistou na batalha travada entre o visconde de Lautrec e o grande capitão Gonzalo Fernández de Córdoba. Lotário perdeu a vida em combate. Assim que foi comunicada, Camila professou seus votos, que duraram poucos dias, que foi o que durou sua vida, consumida pela tristeza. Foi esse o fim de todos, e outro não poderia ser, com um começo tão desatinado.