A Polaroid

Istambul, 2016

O mendigo atirou-se a Peri, brandindo a faca com tanta destreza e precipitação que foi um milagre ela conseguir esquivar-se. A lâmina falhou o lado direito da barriga por uns centímetros, mas cortou-lhe a palma da mão. Peri soltou um uivo estridente, a sua voz estalando de dor. O sangue escorreu-lhe pelo pulso abaixo, manchando o vestido de seda roxo.

Com o coração a martelar-lhe a caixa torácica e o suor a pingar-lhe da testa, empurrou o homem com toda a sua pujança. Como não esperava resistência, ele desequilibrou-se, oscilando momentaneamente, um instante de trégua que ela usou para lhe arrancar a faca da mão. Furibundo, o mendigo bateu-lhe no peito com tanta força que, por um momento pavoroso, ela não conseguia respirar. Pensou na filha, à espera no carro. Pensou nos seus dois filhos mais novos, a verem o programa de televisão preferido em casa. Uma imagem do marido passou-lhe pela cabeça: no jantar, rodeado pelos outros convidados, consultando o relógio de minuto a minuto, aflito de preocupação. A tomada de consciência de que poderia não voltar a ver os seus entes queridos trouxe-lhe lágrimas aos olhos. Que estupidez, morrer assim! As pessoas enfrentavam a morte defendendo os seus países e as suas bandeiras e a sua honra; ela, a defender uma falsa carteira Hermès com um acento grave errado. Mas talvez fosse tudo igualmente sem sentido.

O mendigo deu-lhe outro murro, desta vez na barriga. Derrubada, Peri tossiu, quase esgotada.

Convocou as suas últimas reservas de força de vontade.

— Para! Estás a ouvir? Para! — gritou-lhe, como se repreendesse uma criança malcomportada. Tremia; o seu corpo parecia recusar-se a escutar as ordens do seu cérebro para não entrar em pânico. — Ouve — sussurrou, rouca —, se me fizeres mal, vais-te meter num sarilho enorme. Põem-te na cadeia. Quebram-te… — queria dizer «o espírito», mas, ao invés, disse: — os ossos. Acredita que sim.

O mendigo chupou os dentes.

— Puta — disse. — Quem é que julgas que és?

Nunca ninguém tinha chamado «puta» a Peri e a palavra perfurou-a como uma lasca de gelo. Fez mais uma tentativa, optando pela reconciliação.

— Fica com a carteira, está bem? Vai à tua vida e eu vou à minha.

— Puta! — repetiu ele, encalhado no insulto.

A expressão turvou-se-lhe; os olhos tornaram-se-lhe fissuras no rosto. Inspirou fundo, excitado com os seus próprios pensamentos. Um carro aproximou-se da entrada do beco e os seus faróis talharam, por instantes, um túnel de fuga. Peri quis gritar por socorro, mas era demasiado tarde, já o automóvel tinha desaparecido. Mergulharam novamente nas sombras. Ela recuou um passo.

Agarrando no pescoço de Peri, o mendigo empurrou-a para baixo. O cabelo dela soltou-se; o alfinete que prendia o totó fez ricochete no chão; um ruidozinho metálico. Quando ela caiu para trás, a cabeça bateu no asfalto. Estranhamente, não doeu. Dali de baixo, o céu parecia inacreditavelmente longe e assemelhava-se a uma chapa de bronze, imóvel, sólida, fria. Quis levantar-se, a sua mão deixando marcas ensanguentadas. Num ápice, ele atacou-a, tentando arrancar-lhe o vestido. Um cheiro azedo emanava-lhe da boca, a fome, tabaco, químicos. Era o fedor da decomposição. Peri sentiu o vómito vir-lhe à boca. A carne que tentava penetrar a sua carne era a de um cadáver.

Acontecia a toda a hora, naquela cidade que abrangia sete colinas, dois continentes, três mares e quinze milhões de bocas. Acontecia por trás de portas fechadas e em pátios abertos; em quartos baratos de motel e suítes de luxo cinco estrelas; a meio da noite ou em plena luz do dia. Os bordéis daquela cidade poderiam contar muitas histórias, se encontrassem simplesmente quem as quisesse ouvir. Call girls, prostitutos adolescentes e prostitutas envelhecidas, todos eles espancados, maltratados e ameaçados por clientes à procura da mais pequena desculpa para perderem a cabeça. Transexuais que nunca iam à polícia, porque sabiam que poderiam ser atacados uma segunda vez. Crianças com medo de alguns membros específicos da família e noivas com medo dos sogros ou dos cunhados; enfermeiras, professoras e secretárias assediadas por homens obcecados, só por se terem recusado a sair com eles no passado; donas de casa que nunca diriam uma palavra, porque não havia palavras naquela cultura para descrever a violação conjugal. Acontecia a toda a hora. Sob um manto de secretismo e silêncio que envergonhava as vítimas e protegia os atacantes, Istambul conhecia muito bem os maus-tratos sexuais. Naquela cidade onde toda a gente temia os forasteiros, a maior parte das agressões provinha de quem era demasiado familiar e estava demasiado perto.

Nos minutos que se seguiram no sossego daquele beco, como se acordasse de um sonho e descobrisse que estava encurralada no pesadelo de outra pessoa, a perceção de Peri acerca dos acontecimentos quebrou-se em camadas díspares. Lutou. Era forte. Ele também, inesperadamente para quem tinha uma estrutura tão descarnada. Ele deu-lhe um golpe com a cabeça, deixando-a inconsciente durante uns segundos. Ela podia ter desistido, tão intensa foi a dor, tão irresistível a vontade de deixar o desespero apoderar-se de si.

Foi então que viu uma silhueta pelo canto do olho. Suave e sedosa, demasiado angelical para ser humana. Reconheceu-a… o. O bebé na bruma. Bochechas rosadas, braços rechonchudos, pernas robustas e gorduchas; cabelo penugento e dourado, ainda não escurecera. Uma mancha cor de ameixa cobria-lhe uma face. Um bebezinho giro, só que não era um bebé. Era um jinni. Um espírito. Uma alucinação. Fruto da sua imaginação sobre-estimulada e receosa… embora não fosse a primeira vez que o via.

Ignorando a aparição atrás de si, o mendigo praguejou entre dentes, enquanto mexericava nas calças. Impacientemente, deu puxões à corda que lhe servia de cinto. Devia tê-la amarrado com demasiada força e não conseguia desapertá-la com uma mão, estando a agarrar Peri com a outra.

O bebé na bruma gorjeou, divertido. Através dos seus olhos inocentes, Peri viu a loucura para onde fora sugada, a risível miséria. Soltou uma gargalhada. Sonora e ousada. A sua reação desconcertou o mendigo, que se deteve por um fugaz segundo.

— Deixe que eu ajudo — disse Peri, apontando com a cabeça para a corda.

Os olhos dele cintilaram, meio desorientados, meio desconfiados. Uma centelha de condescendência perpassou-lhe o rosto. Conseguira assustá-la e sabia, mediante experiências passadas, que o medo era o suficiente para fazer com que alguém, fosse quem fosse, descesse do pedestal e se ajoelhasse. Afastou-se, apenas dois ou três centímetros.

Com toda a sua força, Peri atirou-se ao homem. Apanhado de surpresa, ele cambaleou para trás e caiu de costas. Flexível e ágil, ela saltou e deu-lhe um pontapé na braguilha. Ele uivou como um animal ferido. Peri não sentiu nada, nem pena, nem raiva. As pessoas estavam sempre a aprender com as outras. Algumas ensinavam a beleza; outras, a crueldade. Ela não sabia se era a cola que ele snifara antes que lhe começava a fazer efeito no corpo, enfraquecendo-o, ou se era ela própria que estava mais forte, graças a uma qualquer energia selvagem e desconhecida, mas sentia-se poderosa. Tresloucada. Perigosa.

Espetou um pé na cara dele, toda a sua força concentrada nesse ato singular. Um som nauseante ressoou no ar: o de um nariz a partir. A imagem do sangue dele, desta vez em abundância, ao invés de a aterrorizar, incitou-a a bater-lhe com mais força. Sem dar por isso, desatou a dar-lhe pontapés e murros no corpo todo.

O mendigo agarrou-se à barriga, com o casaco enrolado deixando à mostra um torso emaciado. Inerte e leve, ele aguentou a sova como se estivesse cansado de perseguir, roubar, lutar e lidar com a mesquinhez de tudo.

— Seu filho da mãe — disse Peri. Naqueles anos todos, nunca praguejara em voz alta, não o fazia desde os tempos de Oxford, e a sensação foi, como da última vez, surpreendentemente natural e doce.

O bebé na bruma deslizou perto dela. Evanescente como um sussurro; uma figurinha feita das sedas e gazes mais delicadas. Já não sorria; as suas feições, esculpidas em cera cor de mel, não se moviam. Também não parecia julgar o que estava a acontecer. Estava para lá dessas coisas, alheio a este reino. Velozmente e, uma vez mais, tendo ajudado Peri, desapareceu. O vapor dissolveu-se na escuridão crescente da noite, sem deixar rasto.

De imediato, Peri parou de bater no mendigo. Uma brisa que se avolumava despenteou-a; uma gaivota aos guinchos — porventura uma descendente distante da outra gaivota que, havia uma eternidade, engolira a língua do poeta — descrevia círculos lá no alto, irada com algo ou alguém naquela cidade de betão e multidões.

O homem arquejava e cada respiração era um soluço. Tinha o rosto coberto de sangue e o lábio superior rachado.

«Desculpa», pensou Peri, e quase o disse em voz alta, as palavras ficaram-lhe presas na garganta. Nesse instante, como que condicionada, lembrou-se de uma voz, carinhosa e repreendedora ao mesmo tempo. «Continuas a pedir desculpa a toda a gente, minha querida?»

Se o Professor Azur tivesse sido transportado para Istambul, era isso que lhe diria nesse momento, quase de certeza. Que estranho o passado inundar-nos precisamente no instante em que a desordem rompia as margens do presente. Recordações aleatórias, ansiedades reprimidas, segredos guardados e culpa, muita culpa. Com todos os seus sentidos turvados, o mundo tornou-se um fundo desfocado. Inundada por uma sensação de placidez, quase uma espécie de torpor, que a separava de tudo o resto, incluindo da dor que irradiava de uma parte do seu corpo que ela não conseguia identificar, Peri lembrou-se de coisas da sua vida que pensara ter deixado para sempre no passado.

O mendigo começou a chorar baixinho. Desaparecera o imperador das ruas, o pedinte, o viciado, o ladrão, o violador… todos os seus papéis lhe tinham sido arrancados, deixando para trás um rapaz a chorar no escuro por um toque reconfortante que nunca se concretizaria. Agora que o efeito da cola passara por completo, a dor física substituíra as alucinações.

Peri aproximou-se dele, com o sangue a latejar nos ouvidos, horrorizada com o que fizera. Ter-lhe-ia oferecido ajuda, se a sua filha não tivesse chegado nesse instante.

— Mãe, o que é que aconteceu?

Rápida como uma flecha, Peri virou-se para trás. Recompôs-se, esforçando-se ao máximo por ordenar as ideias.

— Querida… porque é que não esperaste no carro?

— Até morrer de velha? — ripostou Deniz, mas, fosse qual fosse a reprimenda que tivesse em mente, rapidamente se desvaneceu. — Oh, meu Deus, estás a sangrar! O que é que aconteceu? Estás bem?

— Estou — disse Peri. — Foi só uma escaramuça.

O mendigo, que agora estava num silêncio de morte, pôs-se de pé, trôpego, e cambaleou até uma esquina, como se não tivesse o mínimo interesse nelas. Mãe e filha apanharam a carteira e todos os objetos de Peri que conseguiram encontrar.

— Porque é que não posso ter uma mãe normal como toda a gente? — murmurou Deniz, enquanto apanhava os cartões de crédito do chão.

Era uma pergunta à qual Peri não conseguia responder e, por conseguinte, nem tentou.

— Vamos — disse Deniz.

— Espera um instante. — Os olhos de Peri procuraram a Polaroid, mas parecia ter desaparecido.

— Anda! — gritou Deniz. — O que é que se passa contigo?!

Deixando o beco, voltaram rapidamente para o carro. O Range Rover Azul Monte Carlo estava à espera delas, sem que, miraculosamente, o tivessem roubado.

Fizeram o resto do caminho em silêncio: a filha a catar as cutículas, a mãe de olhos fixos na estrada. Só mais tarde é que Peri se daria conta de que não tinham recuperado o seu telemóvel. Talvez o mendigo ainda o tivesse no bolso; talvez tivesse caído durante a luta e, algures naquele beco, estivesse a piscar e a tocar… mais um grito que passaria despercebido em Istambul.