O jardim
Istambul, anos 80
A primeira vez que Peri viu o «bebé na bruma» tinha oito anos. O encontro alterá-la-ia para sempre, entrelaçar-se-ia na sua vida como uma videira numa árvore jovem. Seria também o início de uma série de experiências que, embora familiares por causa da sua similaridade, não perderiam o seu cunho assustador com o passar dos anos.
Ao contrário da maior parte das casas da vizinhança, a dos Nalbantoğlus tinha um jardim luxuriante a toda a volta. Era nas traseiras que a família passava quase todo o tempo ao ar livre. Era aí que penduravam pimentos vermelhos, beringelas e quiabos em cordéis para secarem ao sol, preparavam frasco atrás de frasco de molho de tomate picante e coziam cabeças de carneiro a vapor em caldeirões, no Eid al-Adha. Peri esforçava-se por não fitar os olhos do carneiro, abertos e fixos. A garganta contraía-se-lhe só de pensar que quem comesse aqueles olhos ingeriria também o horror que eles tinham visto, segundos antes de serem chacinados. A ideia perturbava-a duplamente, porque ela sabia que era o seu pai quem comeria a iguaria nessa noite, à sua mesa de raki.
Era também aí que empilhavam a lã crua e depois a arejavam, lavavam e batiam com paus antes de a enfiarem nos colchões. De vez em quando, um pedaço de lã soltava-se do resto e caía suavemente no ombro de alguém, como uma pena de um pombo atingido a tiro.
Quando Peri confessara ao pai que a lã crua lhe lembrava pássaros moribundos e que os olhos do carneiro a fixavam acusadoramente, Mensur sorrira e dera-lhe um beijo na bochecha. «Não sejas tão sensível, canimin içi1, não leves a vida tão a sério», como se ele próprio fosse diferente.
Uma vedação de madeira em bruto — com estacas tão afastadas umas das outras que parecia uma boca desdentada — separava o terreno deles do mundo exterior. De todas as atividades do jardim, a preferida de Peri, a seguir aos jogos a que brincava com as outras crianças, era a lavagem coletiva dos tapetes. Ansiava por essa ocasião, que ocorria de tantos em tantos meses. O tempo tinha de estar bom, nem demasiado seco nem demasiado húmido, os tapetes suficientemente sujos e toda a gente com o estado de espírito certo.
Num desses dias, todos os tapetes e capachos foram enrolados e arrastados lá para fora e, depois, estendidos na relva, lado a lado. Feitos à mão, tecidos sem pelo ou produzidos em fábrica, eram cerca de uma dúzia para lavar. Mergulhadas num universo de nós simétricos, medalhões centrais e símbolos escondidos, as crianças da Rua do Poeta Mudo saltavam de um lado para o outro com gargalhadas estridentes, viajando através dos mares e aterrando em portos nos seus tapetes voadores.
Entretanto, num canto à parte, fervilhava um caldeirão de ferro forjado, destapado, sobre uma fogueira a céu aberto. De dentro dele tiraram-se tigelas de água, que depois foram despejadas nos tapetes para amaciar o tecido. A seguir, os tapetes foram ensaboados, escovados, esfregados e enxaguados. Uma e outra vez. Nem todas as mulheres participaram na lida. A mãe de Peri, por exemplo, ficou de lado, por achar o trabalho demasiado enfadonho e sujo para o seu gosto. Outras, as corajosas e as diligentes, arregaçaram as calças e as saias, de rosto corado ante a importância da sua missão, com os cabelos soltando-se dos lenços e, de pés descalços, espezinharam o pelo comprido dos tapetes como se atravessassem um campo de cevada tenra.
Nas horas que se seguiram, as crianças construíram castelos de lama; aprisionaram moscas, usando caixas de fósforos com geleia; comeram alperces (e esmagaram os caroços) e melancia (e secaram as pevides); fizeram grinaldas com agulhas de pinheiro; e perseguiram uma gata amarelada que ou era obesa ou estava gravidíssima. Quando se lhes esgotaram as coisas para fazer, ainda só um terço dos tapetes tinha sido limpo. Uma a uma, as amigas de Peri voltaram para casa, para regressarem mais tarde. Como era o seu jardim e a sua casa, Peri ficou.
Estava um lindo dia, radioso e quente. O vento estava saturado com o som de água, água a derramar-se, água a cair… As mulheres trocavam mexericos, riam e cantavam. Alguém contou piadas ordinárias, que Peri não percebeu, mas adivinhou que deviam ser obscenas, pela carranca da mãe.
À tarde, as lavadeiras de tapetes fizeram uma pausa para almoçar. Levaram para o jardim a comida que tinham preparado de antemão: folhas de couve recheadas, börek com queijo feta, pepinos em salmoura, salada de bulgur, almôndegas grelhadas, croissants de maçã… Uma grande travessa redonda servia de base para cada prato pousado entre pilhas de pão ázimo e copos de ayran2, brancos e espumosos como pedaços de nuvens servidos por um deus generoso.
Sentindo-se esfomeada, Peri tirou um börek da travessa. Ainda mal tinha dado uma dentada quando um guincho desesperado rompeu o ar. A sua mãe, com a pressa e a distração, tinha esbarrado no caldeirão a ferver, conseguindo miraculosamente não o derrubar por cima de si. Mas ficou com o braço esquerdo queimado do cotovelo até às pontas dos dedos. As outras mulheres largaram o que estavam a fazer e correram a ajudar Selma.
— Deitem água fria no braço dela — disse alguém.
— Pasta de dentes! Esfreguem-na na queimadura.
— Vinagre, foi assim que curámos as queimaduras da minha tia. As dela eram piores — acrescentou outra pessoa.
Com toda a gente a correr para dentro de casa, para tratar de Selma da melhor maneira possível, Peri ficou sozinha no jardim. Uma faixa de sol incidiu-lhe no rosto; um inseto zumbiu, entorpecido, perto dela. Debaixo de uma figueira, do outro lado da rua, avistou a gata amarelada, com os olhos de jade semicerrados, reduzidos a duas fendas. Apeteceu-lhe dar de comer ao animal. Pegando numa almôndega, passou por cima da cerca e, num ápice, estava do lado de fora.
— Como é que te chamas, menina?
Peri virou-se e viu um rapaz de camisa aos quadrados brancos e vermelhos e calças de ganga azuis que pareciam nunca ter sido lavadas. A boina que usava estava prestes a cair-lhe da cabeça. A princípio, não respondeu, porque sabia que não se deve falar com desconhecidos. Mas também não se afastou. A boina intrigou-a, lembrou-lhe o póster que Umut tinha no quarto. Talvez aquele desconhecido fosse um revolucionário. Talvez tivesse ouvido falar no irmão dela… e no seu destino. Decidiu que, se não lhe dissesse a verdade, não estaria propriamente a dar-lhe informações. Por isso, respondeu:
— Chamo-me Rosa.
— Oh, nunca tinha conhecido uma Rosa, antes — disse ele, virando o rosto para o Sol. — E ainda por cima tão bonita. Vais partir corações quando cresceres.
Peri não disse nada, embora tenha sentido qualquer coisa estremecer dentro de si, uma ligeira onda de sensualidade, uma força que ainda não despertara, meio empolgada, meio repugnada com o elogio.
— Já vi que gostas de gatos — comentou ele.
Tinha uma voz discreta, quebradiça. Mais tarde, embora não naquele instante, Peri compará-la-ia ao feijão que guardava em algodão húmido junto do peitoril da janela. Tal como esse feijão, a voz do desconhecido escondia-se, modificava-se, germinava.
— Vi uma bola de pelo ao virar da esquina — disse ele. — Parece que ela pariu cinco gatinhos. São tão giros e minúsculos, parecem ratitos. Têm olhos cor-de-rosa.
Fingindo indiferença, Peri ofereceu o último pedaço de almôndega à gata.
O homem aproximou-se mais um passo: cheirava a tabaco, a suor, a terra húmida. Agachou-se e sorriu-lhe. Estavam agora cara a cara.
— É uma pena que a mãe deles os vá afogar.
Peri susteve a respiração. Ao fundo, no terreno baldio, onde os cães vadios vagueavam e umas quantas cabras pastavam, havia um reservatório que ninguém usava, porque, sempre que caíam mais de sete centímetros de chuva, ficava contaminado com água de esgoto. Peri olhou nessa direção, meio à espera de ver corpos felinos a boiar.
— É o que os gatos costumam fazer — insistiu o homem, com um suspiro.
Peri não pôde deixar de perguntar:
— Porquê?
— Não gostam de olhos cor-de-rosa — retorquiu. Os dele eram castanho-claros com a pele encovada por baixo e muito juntos no seu rosto anguloso. — Têm medo de ter parido criaturas estranhas, como crias de raposa, por isso matam-nas.
Peri perguntou-se se as crias de raposa teriam olhos cor-de-rosa e, se sim, o que pensariam as mães disso. Na sua família, ela era a única que tinha os olhos verdes e sentiu-se sortuda por nunca ninguém ter visto nisso um problema.
O homem, reparando no desconcerto dela, afagou a cabeça da gata antes de se levantar.
— É melhor eu ir ver os gatinhos. Precisam que alguém cuide deles. Queres vir comigo?
— Quem? Eu? — disse ela, mas só porque não sabia o que mais dizer.
Ele crispou os lábios, demorando a responder, como se tivesse sido ela a sugerir acompanhá-lo.
— Podes vir, se quiseres. Mas eles são muito pequeninos. Prometes ter cuidado para não os magoar?
— Prometo — redarguiu ela alegremente.
Algures, abriu-se uma janela; uma mulher gritou para o vento, ameaçando o filho de que, se não fosse para casa almoçar imediatamente, lhe partia as duas pernas. O homem, subitamente nervoso, olhou para a direita e para a esquerda. O rosto alongou-se-lhe quando disse:
— Não convém que nos vejam juntos. Eu vou à frente e tu segues-me.
— Os gatinhos… onde é que eles estão?
— Estão perto daqui, mas é melhor irmos de carro. Tenho o carro ao virar da esquina. — Apontou com um gesto vago e, depois, acelerou o passo.
Peri começou a seguir o homem, que coxeava visivelmente. Embora uma parte de si tivesse dúvidas sobre o que estava a fazer, aquela era a primeira decisão que tomava sem os seus pais e o mais perto que estivera de uma sensação de liberdade.
Daí a pouco, com um olhar evasivo por cima do ombro, ele chegou ao carro e sentou-se atrás do volante, à espera dela.
Peri deteve-se, alertada por algo mais físico do que propriamente intuitivo. Estremeceu como se um vento glacial lhe tivesse tocado na pele nua. Todavia, o que mais a assustou foi a bruma que surgira do nada. Uma cortina de nevoeiro, camadas atrás de camadas de cinzento, como rolos de tecido desenrolados numa loja. O nevoeiro baralhou-a, momentaneamente, fê-la pôr em causa para onde ia e porquê. Viu a silhueta leitosa de uma árvore ali perto, mas o mundo para lá dela já não era visível, incluindo o homem, a apenas uns passos de distância.
Dentro da nuvem cinzenta, Peri avistou uma imagem estranhíssima: um bebé, de rosto redondo, franco, confiante. Uma mancha roxa descia-lhe por uma das faces até ao maxilar. Tinha um bocadinho de líquido a pingar-lhe do canto da boca, como se tivesse acabado de regurgitar.
— Peri, onde é que estás? — A voz da sua mãe, carregada de pânico, chegou-lhe na brisa, vinda da casa cor de ginja.
Não conseguiu responder. O coração pulsava-lhe na concavidade da garganta, enquanto ela pestanejava, desconcertada, perante o bebé na bruma. «Deve ser um espírito, um jinni», pensou. Já tinha ouvido falar neles, criaturas feitas de fogo sem fumo. Já existiam muito antes de Adão e Eva terem caído aos trambolhões do Jardim do Paraíso; por isso, historicamente falando, a Terra pertencia-lhes. Os humanos tinham chegado depois, eram eles os invasores. Os jinn viviam em zonas distantes e isoladas — montanhas nevadas, cavernas escuras, áridos ermos —, mas apareciam muitas vezes na cidade, para se instalarem em latrinas fedorentas, adegas sujas, caves bafientas. Como vagueavam à solta, as pessoas tinham de andar com cuidado; pisar um deles por engano daria de certeza mau resultado, provavelmente provocaria paralisia. Às tantas, era isso que lhe tinha acontecido; mal se conseguia mexer.
— Peri! Responde! — gritou Selma.
O bebé na bruma retraiu-se como se tivesse reconhecido a voz. O cinza começou a dissolver-se. O bebé também, pedaço a pedaço, como uma neblina matinal sob os raios do sol nascente.
— Estou aqui, mãe! — Peri virou-se e voltou a correr a sete pés para o jardim de sua casa.
Mais tarde, perguntaria a várias pessoas se alguém no bairro tinha visto uns gatinhos de olhos cor-de-rosa. Ninguém tinha.
Mais tarde, muito mais tarde na vida, Peri percebeu que fora por um triz que não se tornara mais uma notícia num jornal. Uma vítima sem nome, só as iniciais impressas: N.N.; a sua fotografia com uma tira preta a tapar-lhe os olhos. Podia lá ter ido parar, ao lado dos artigos sobre um ataque mortal contra um chefe da máfia em Istambul, o confronto entre o exército turco e os separatistas curdos, numa povoação situada na fronteira sudeste, e a decisão do tribunal de banir Trópico de Capricórnio, de Henry Miller. O país inteiro leria os pormenores do seu rapto, batendo na madeira, abanando a cabeça, estalando a língua, agradecendo a Deus por ter sido a filha de outra pessoa qualquer e não a deles.
Chamou ao seu salvador «o bebé na bruma» e deixou a coisa por aí, sem capacidade, nem vontade, de perceber de onde surgira. Continuou, no entanto, a ter essa visão, a intervalos inesperados ao longo da vida. Aparecia não só quando estava em perigo, mas também em momentos banais. Dentro ou fora de portas, de manhã ou de noite, o nevoeiro podia abater-se a qualquer instante e em qualquer lugar, cercando-a por todos os lados como se quisesse que ela reconhecesse, de uma vez por todas, até que ponto estava sozinha.
Anos mais tarde, foi esse segredo que ela levou na mala quando, aos dezanove anos, viajou para a Universidade de Oxford pela primeira vez. Não era permitido levar carne nem produtos lácteos não europeus para Inglaterra, mas ninguém disse que não podia levar os seus medos e traumas de infância.