A mesa do pequeno-almoço
Istambul, anos 90
O encarceramento de Umut, como uma tocha incindindo nos cantos escuros, expôs as falhas e fraquezas que os Nalbantoğlus tinham andado a esconder, tanto de si próprios como dos outros. Qualquer pessoa que os observasse teria reparado no buraco que a ausência de Umut abrira no meio das suas vidas, mas eles preferiram fingir que não existia esse ávido vazio. Era mera coincidência Mensur ter começado a beber mais; e mera coincidência, também, as faces de Selma exibirem um amarelo anémico de falta de sono, de tanto rezar, e de falta de alimentação adequada, de tanto jejuar.
Os sonhos de Peri tornaram-se cada vez mais perturbadores, e os seus gritos, mais descontrolados. Dormia de luzes acesas e deixava um colar de âmbar junto da cama, tendo lido que o âmbar afugentava os demónios. Nada ajudava. Nos sonhos, via escolas que pareciam prisões, e guardas que eram estranhamente parecidos com a sua mãe ou com o seu pai. Dava por si coberta de minhocas e de fezes, com o cabelo rapado à máquina zero, detida e encarcerada por um crime que não sabia ter cometido. Desses pesadelos, acordava sempre com o coração a galopar e precisava de vários segundos adicionais para regressar ao mundo real.
Mensur mudara. Desaparecera o homem que bebia uns copos com os amigos no calor de velhas baladas e discussões políticas acesas. Agora, preferia beber sozinho, com o silêncio como seu fiel companheiro. Durante muito tempo, o seu corpo, forte e robusto, não deu sinais de deterioração, tirando as olheiras, as meias-luas escuras num céu pálido.
Depois, aconteceu o inevitável. De manhã, Mensur acordava suado e com dores, com ar exausto, como se tivesse passado a noite a partir pedra. Muitas vezes estava confuso, nauseado. Esforçando-se por esconder os tremores que lhe invadiam o corpo, mantinha-se distante, mergulhado em silêncio, ou falava demasiado, descontrolado. A empresa para a qual trabalhava decidiu dar-lhe a reforma antecipada, quando se tornou óbvio que não estava em condições de trabalhar. Sem emprego, começou a passar mais tempo em casa, uma mudança que não agradou à mulher, nem ao filho mais novo. Apreensivo, esgotado e facilmente agitado, parecia um império sob tensão a lutar em duas frentes: a velha fronteira oriental, a batalha com a sua mulher; e a fronteira ocidental, recém-aberta, a batalha com Hakan. Estava a perder em ambas.
Discutiam de forma constante e ferozmente, pai e filho, uma confusão de vozes masculinas, acusações ofensivas à mesa do pequeno-almoço, como cardumes de peixes mortos a flutuarem à tona depois de uma explosão de dinamite. Por fora, era por causa de assuntos completamente mesquinhos — um comentário sobre uma camisa de mau gosto ou sobre beber chá ruidosamente —, mas, por dentro, a fratura era profunda.
Sempre, sem exceção, Selma ficava do lado do filho mais novo. Era mais aguerrida a defender a prole do que a si própria. Feroz e vigorosa, parecia um falcão a proteger a cria do raptor inimigo. Assim, eram dois contra um. Uma equação que obrigava Peri a tirar partido e a socorrer o pai, nem que fosse por uma questão de equilíbrio. Contudo, não queria realmente ganhar. A única coisa que queria era uma espécie de cessar-fogo. Uma suspensão temporária da dor.
Pouco depois, Hakan, que nunca percebera o valor de uma boa educação, anunciou que ia desistir da universidade e que não fazia tenções de voltar para aquele estábulo inútil. Da noite para o dia, para mágoa dos pais, pôs fim à sua vida de estudante, selando a sua mente antes mesmo de a abrir. Viram nos olhos dele o quanto detestava a sua existência e as pessoas que, para si, eram responsáveis pela sua infelicidade.
Muitos dias por mês, Hakan ia a casa só encher a barriga, mudar de roupa e dormir. Tão desnorteado como um balão ao vento, experimentou vários empregos sem êxito, até encontrar uma causa através de um grupo de amigos a quem chamava Irmãos. Colegas que tinham grandes opiniões sobre a América, Israel, Rússia, o Médio Oriente e que, em toda a parte, viam teorias da conspiração e sociedades secretas. Cumprimentavam-se batendo com as têmporas umas nas outras e despejando palavras sonoras, como «honra», «lealdade» e «retidão». Na companhia deles, Hakan mostrou que aprendia depressa. O cinismo e o pessimismo do seu novo círculo adequava-se-lhe. Com a ajuda dos Irmãos, arranjou um cargo num jornal ultranacionalista. Vergonhosamente descuidado no que tocava a gramática e ortografia, tinha, no entanto, jeito para usar as palavras, um talento para a retórica incendiária. Sob pseudónimo, começou a escrever artigos que se tornaram cada vez mais estridentes e agressivos nas suas mensagens. Todas as semanas revelava os traidores da nação, as ovelhas negras que, se não fossem tratadas, poderiam dar cabo do rebanho inteiro: judeus, arménios, gregos, curdos, alevitas… Não havia um único grupo étnico em que um turco pudesse confiar, a não ser outro turco. O nacionalismo, como um fato feito à medida, assentava bem à sua personalidade. O nacionalismo garantia-lhe que tinha nascido numa nação superior, numa raça mais digna, e estava destinado a grandes coisas, não para si próprio, mas para o seu povo. Envergando esta identidade, sentia-se forte, com princípios, invencível. Ao observar a transformação do irmão, Peri acabaria por perceber que nada incha tanto o ego como uma causa motivada pela ilusão de puro altruísmo.
— Julgas que só tens um filho preso? Nesta casa, sinto-me tão preso como o Umut — gritou Hakan ao pai, depois de mais uma discussão ao pequeno-almoço. — O Umut tem sorte, não tem de ouvir as tuas arengadas todos os dias.
— Estás a dizer que o teu irmão tem sorte, seu infeliz? — gritou Mensur, com a voz a tremer ainda mais do que as mãos.
Peri ouviu-os, de cabeça baixa e com os ombros contraídos. Havia qualquer coisa numa discussão familiar que fazia lembrar uma avalanche iminente: uma palavra em falso e a situação ameaçava transformar-se numa calamidade que levava toda a gente à frente.
— Deixa-o em paz. Ele é jovem — murmurou Selma ao marido.
— Um jovem irresponsável que vive à custa do pai — ripostou Mensur.
— Ah, não queres que coma a tua comida, é? Muito bem, a partir de agora, isso acabou. — Hakan atirou o cesto do pão vazio contra a parede, onde fez ricochete como uma bola de borracha, espalhando migalhas no chão. — Seja como for, quem é que quer o pão de um alcoólico?
Nunca a palavra tinha sido proferida. Impensável. Irrevogável. Irreparável, chamar ao chefe da casa alcoólico e, no entanto, o mal estava feito. Hakan, incapaz de suportar o silêncio que se seguiu, foi-se embora intempestivamente.
Selma começou a chorar. Entre soluços, a sua voz subiu e desceu numa litania de lamentos.
— Fomos amaldiçoados. A família toda! Sim… é uma maldição.
Disse que, na desgraça do filho mais velho, via um castigo e um aviso de Alá. Como não tinham prestado atenção à mensagem divina, estava convencida de que sofreriam mais condenações.
— Isso é a coisa mais estúpida que já ouvi — respondeu Mensur. — Porque é que Deus haveria de querer destruir os Nalbantoğlus? Tenho a certeza de que Ele tem coisas mais importantes para fazer.
— Alá atua sobre nós de muitas maneiras. Quer ensinar-nos… ensinar-te a ti… uma lição.
— E que lição é essa?
— Veres que o teu comportamento está errado — disse Selma. — Até tu o admitires, nenhum de nós terá sossego.
Mensur sentou-se muito tenso na cadeira.
— Se achas mesmo que o que aconteceu ao Umut foi obra de Deus e que Deus precisa de prisões e torturadores para levar a cabo os seus ensinamentos, há qualquer coisa de muito errado em ti, mulher, senão, ora bolas, há qualquer coisa de muito errado é com o teu Deus.
— Tövbe, tövbe…1 — murmurou Selma.
Para apaziguar a ira de Alá, Selma passava dias, por vezes semanas, quase sem comer; satisfazia-se com pão, iogurte, tâmaras e água. Oferendas votivas; negociações viscerais com o Todo-Poderoso. À noite, dormia pouco, passava o tempo a fazer as únicas duas coisas que lhe acalmavam a mente: rezar e limpar. Da cama, conseguia detetar uma camada de pó fino em cada móvel e ouvir as térmitas a comer os armários de madeira… porque é que os outros não ouviam nada? Aspirina triturada, vinagre branco, sumo de limão, bicarbonato de sódio. Esfregava, lavava, escovava, encerava e limpava. De manhã, a família acordava com o cheiro a detergente.
Selma lavava as mãos com tanta frequência, e com tamanha intensidade, que cheiravam sempre a desinfetante. A pele ficava gretada e sangrava aqui e ali, o que aumentava o seu medo de contaminação e a fazia lavá-las outra vez, ainda com mais força. Para esconder o estado das mãos, começou a usar luvas pretas com o hijab e um casaco comprido, escuro e largo, que lhe chegava quase aos calcanhares. Uma noite, quando Selma e Peri regressavam do mercado, Peri olhou para trás e, por um segundo fugaz, não conseguiu ver a mãe, de tão profundamente ela se fundira na noite.
Mensur, envergonhadíssimo com o aspeto da mulher, não quis que o vissem mais com ela. Passou a fazer compras sozinho e ela também. O traje de Selma era o epítome de tudo o que ele sempre desprezara, odiara e criticara no Médio Oriente. A escuridão intelectual dos religiosos. A presunção de que o seu modo de vida era o melhor, só porque nasceram naquela cultura e engoliram sem questionar o que lhes ensinaram. Como é que podiam ter tanta certeza da superioridade das suas verdades quando sabiam tão pouco, se é que sabiam alguma coisa, sobre outras culturas, outras filosofias, outras maneiras de pensar?
Para Selma, os modos de Mensur encarnavam tudo o que a deixava nervosa: a condescendência nos olhos, o tom decisivo da voz, a retidão na inclinação do queixo. A arrogância dos modernistas seculares. A facilidade pomposa e pretensiosa com que se colocavam fora e acima da sociedade, olhando com altivez para tradições com séculos de existência. Como é que se podiam considerar esclarecidos quando sabiam tão pouco, se é que sabiam alguma coisa, sobre a sua própria cultura, a sua própria fé?
Tensos de pavor de terem de conversar, marido e mulher passavam um pelo outro, sem se tocarem. O que lhes faltava em amor, sobejava-lhes em ressentimento.
Entretanto, Peri encontrou refúgio na literatura. Contos, romances, poemas, peças… devorava tudo aquilo a que conseguia deitar a mão na limitada biblioteca da escola. Quando não havia mais nada ao seu dispor, lia enciclopédias. Devorando tudo, de Aaleniano até Zombie, ficou a saber coisas que, embora não lhe servissem para nada no seu quotidiano, poderiam um dia vir a ser úteis, esperava ela. Mas, se nunca viessem a cumprir uma função, continuaria a ler, impelida pela fome de aprender.
Os livros eram libertadores, estavam cheios de vida. Ela preferia estar na terra dos livros do que na sua terra-mãe. Recusando-se a sair do quarto ao fim de semana, mordiscando maçãs e sementes de girassol, lia os romances da biblioteca, uns a seguir aos outros. Descobriu que a inteligência, tal como um músculo, precisava de ser exercitada com níveis crescentes de pressão, para desenvolver plenamente o seu potencial. Insatisfeita com a aprendizagem de rotina da escola, desenvolveu métodos verbais e visuais próprios para armazenar informação: nomes de plantas em latim; versos de poemas em inglês; datas de guerras, tratados de paz e mais guerras, que eram demasiado numerosas na história otomana. Estava determinada a superar-se em todas as disciplinas, da Literatura à Matemática, da Física à Química. Imaginou as diferentes disciplinas como pássaros tropicais instalados em gaiolas separadas, lado a lado. O que aconteceria se abrisse buracos na rede e os pássaros pudessem voar para a gaiola ao lado e para a outra a seguir? Estava desejosa de ver a Matemática na companhia da Literatura, a Física na companhia da Filosofia. Aliás, quem é que decidira que as disciplinas não podiam conviver umas com as outras?
Peri percebeu que a sua obsessão pelo estudo a isolava dos colegas e suscitava inveja e animosidade. Não se ralou nada com isso. Tal como todos os Nalbantoğlus, tinha uma propensão natural para a solidão. Não se importava que as outras crianças lhe chamassem a menina querida da professora; não se importava que as meninas mais populares não a convidassem para as suas festas de aniversário e que os rapazes mais populares não a convidassem para ir ao cinema. O facto de a vida ter que ver com esclarecimento, ideais ou amor… era isso que fazia sentido para si. A diversão é que nunca a interessara.
Tal como todos os marginais, rapidamente descobriu que não estava sozinha. Em todas as turmas, havia uns quantos que, por uma série de razões, se mantinham à margem de toda a gente. Reconheciam-se imediatamente. Era preciso um intocável para reconhecer outro: um rapaz curdo ridicularizado pelo seu sotaque; uma rapariga com pelos na cara; outra rapariga numa turma mais atrasada que não conseguia controlar a bexiga quando ficava nervosa nos exames; um rapaz de cuja mãe se dizia ser uma devassa… Deles, Peri tornou-se boa amiga. Os seus verdadeiros companheiros, porém, eram sempre os livros. A imaginação era o seu lar, a sua pátria, o seu refúgio, o seu exílio.
Por isso, lia e estudava, e era a melhor aluna da turma, período letivo após período letivo. Sempre que a sua autoconfiança precisava de um certo ânimo, corria para o pai. E Mensur dava-lhe sempre o mesmo conselho: «A educação, minha alma. A educação salvar-nos-á. És o orgulho da nossa família triste, mas quero que estudes no Ocidente. Há muitas escolas boas na Europa, mas tens de ir para Oxford! Vais encher a cabeça com conhecimento e depois voltarás para cá. Só jovens como tu podem mudar o destino deste país velho e cansado.»
Na sua juventude, Mensur conhecera um estudante de Oxford, um mochileiro, um hippie pálido com quem sentira uma afinidade imediata. O indivíduo fazia tenções de viajar pela Turquia de bicicleta, completamente sozinho. Gabara-se de esconder o dinheiro todo na meia para evitar ladrões de rua e de hotel. Com medo de que algo de mal acontecesse àquele ingénuo estrangeiro, Mensur insistira em acompanhá-lo. Os dois tinham atravessado a península da Anatólia e, depois disso, o britânico louro atravessara a fronteira para o Irão. Mensur não sabia o que fora feito dele, mas nunca se esquecera do seu próprio desconcerto ao ver o seu país através dos olhos de um ocidental. Foi a primeira vez que se apercebeu de que o que era normal para si não o era necessariamente para um forasteiro. Foi a primeira vez que se apercebeu de que existia um mundo lá fora. Agora, queria que a sua filha fosse educada lá. Era o seu desejo mais fervoroso. Peri — e centenas de jovens como Peri — tornar-se-ia uma rapariga licenciada culta, idealista, de ideias avançadas, que salvaria aquele país do seu atraso.
Peri percebeu e aceitou que algumas filhas nascem com uma missão: realizar os sonhos dos seus pais. E que, ao fazê-lo, estão também a redimir a sua pátria.
1 «Arrepende-te, arrepende-te…» (N. da T.)