O tango com Azrael
Istambul, anos 90
No verão em que Peri fez onze anos, a mãe, realizando um sonho de longa data, fez uma peregrinação à Arábia Saudita. Como o irmão mais velho ainda estava na prisão e o outro irmão vivia ilegalmente sabia Deus em casa de quem, Peri e o pai ficaram por sua conta. Preparavam as suas próprias refeições (kofte e batatas fritas ao almoço, kofte e esparguete ao jantar), lavavam a louça (limitavam-se a passá-la por água) e viam os programas de televisão que bem lhes apetecia. Era como estar de férias, mas melhor.
No dia do mercado local, Peri acordou a sentir-se enjoada. Levou a mão à barriga com a sensação de que tanto kofte e esparguete tinham finalmente feito sentir os seus efeitos. Teria de pedir ao pai para mudar a ementa. Porém, na casa de banho, esperava-a uma surpresa: manchas na roupa interior. Demasiado escuras e, no entanto, soube que eram de sangue. A mãe avisara-a de que aquilo podia acontecer e, quando acontecesse, precisaria de ter ainda mais cuidado com os rapazes. «Não deixes que eles te toquem!» Era demasiado cedo! Na escola, tinha ouvido as raparigas mais velhas queixarem-se disso: «A minha tia voltou», diziam alegremente. «Importas-te de ver se tenho alguma nódoa atrás?», pediam umas às outras, apressando o passo. Na sua turma, havia uma rapariga que dizia já ter tido o período, mas toda a gente sabia que era mentira. Isso fazia com que Peri fosse a primeira entre as colegas. Crescera demasiado depressa nesse último ano, por mais que o tentasse esconder. Já lhe tinham dito que era bonita vezes suficientes para saber que era isso que as pessoas pensavam de si. A sua própria autoperceção era completamente diferente. Adoraria ter o cabelo negro como a noite, em vez de castanho-claro desenxabido; em vez das suas curvas que começavam a despontar, preferiria ser uma tábua rasa autoconfiante. Quem lhe dera ter sido o terceiro filho rapaz dos Nalbantoğlus. Não seria a vida mais fácil, se tivesse nascido rapaz?
Arranjou um lençol velho e limpo e cortou-o às tiras. Se as usasse com parcimónia e sensatez, não teria de dizer nada à mãe. Podia lavá-las, secá-las e reutilizá-las, como sabia que faziam muitas mulheres no país. Assim, esconderia a verdade até ter cerca de catorze anos, a idade que lhe parecia adequada para o seu primeiro período. Deus cometera um erro no seu cálculo divino e ela estava decidida a corrigi-lo.
Duas semanas depois, Selma regressou, queimada e mais magra. Deixou-se cair no sofá e começou a contar a sua viagem a Meca, as suas palavras galopando como teriam feito os seus cavalos de porcelana, se tivessem um sopro de vida neles.
— No ano passado, uma debandada dentro de um túnel de peões na cidade sagrada matou mais de mil peregrinos. Agora, os sauditas têm cuidado — explicou ela. — Mas não conseguem impedir as doenças. Fiquei tão doente que pensei que ia morrer. Ali mesmo!
— Oh, ainda bem que não morreste — comentou Mensur. — É bom ter-te de volta.
— Agradece a Alá eu ter voltado — disse Selma, com um suspiro. — Se eu não tivesse sobrevivido, teria sido enterrada na Medina, perto do Profeta, que a paz esteja com ele.
— Os cemitérios de Istambul têm uma vista melhor — brincou Mensur. — Temos ar puro do mar. Enterrada na Medina, terias servido de adubo a uma tamareira. Em Istambul, podes fertilizar aroeiras, tílias, bordos… Jasmim seria excelente. Passarias o ano inteiro banhada em perfume.
Selma retraiu-se ante as palavras do marido, como se fossem faúlhas quentes a espirrar de uma fogueira. Com medo de que se engalfinhassem outra vez, Peri interveio:
— O que é que tens na mala, mãe? Trouxeste-nos alguma coisa?
— Trouxe-vos Meca inteira! — Foi a resposta.
Peri e Mensur endireitaram-se, com um sorriso no rosto, como duas crianças expectantes. Uma a uma, as prendas foram desembrulhadas: tâmaras, mel, miswak, águas-de-colónia, tapetes de oração, almíscar, rosários, lenços e água de Zamzam em frasquinhos.
— Como é que sabes que isto é água sagrada… alguém a autenticou? — perguntou Mensur, abanando um frasquinho. — Bem te podem ter vendido água da torneira.
Perante isto, Selma agarrou no frasquinho, abriu-o e despejou-o de um trago.
— Isto é Zamzam pura, mas tu tens uma mente imunda!
— Como queiras. — Mensur encolheu os ombros.
Apontando para uma caixa, Peri perguntou:
— O que é aquilo, mãe?
«Aquilo» era um relógio de parede, de bronze, em forma de mesquita — 50 cm x 45 cm — com um pêndulo e minaretes de cada lado. Selma explicou que podia ser programado para indicar a hora da oração em mil cidades espalhadas pelo mundo inteiro. Depois, pendurou-o num prego na sala, na direção de Qibla, à frente do retrato de Atatürk.
— Recuso-me a ter uma mesquita debaixo do meu teto — disse Mensur.
— A sério? Mas eu tenho de viver com um infiel debaixo do meu — ripostou Selma.
— Pois, agora, metade dos meus pecados são teus. Se não tivesses comprado essa coisa, eu nunca teria blasfemado. Tira-a da parede!
— Não tiro — gritou Selma. — Escolhi-a, paguei-a, carreguei-a o caminho todo desde a Terra Santa, onde adoeci e quase morri. Sou uma haji, vê se tens algum respeito!
Foi a primeira vez que Peri ouviu a mãe gritar com o pai. Vindo de uma mulher cuja principal forma de rebelião era, havia anos, um silêncio estoico ou palavras cortantes proferidas com poucos decibéis, aquilo pareceu uma explosão. O relógio ficou onde estava, ainda que calado, uma solução de compromisso que não satisfez nenhuma das partes.
Durante o resto do dia, Mensur fechou-se num amuo profundo. Nessa mesma noite, houve um corte de eletricidade que durou horas. Mensur ocupou o seu lugar à mesa de raki mais cedo do que era hábito, entre Atatürk e o relógio de oração, o seu rosto pálido mergulhado nas sombras lançadas por uma vela; disse que não se sentia bem. Levando a mão ao coração, como que para saudar um ser invisível, inclinou a cabeça para o lado e desmaiou.
Foi um ataque cardíaco.
Até ao fim dos seus dias, Peri jamais esqueceria a maneira como a noite se tornara mais negra de minuto para minuto. Sob o seu olhar horrorizado, o pai caíra para a frente como um manequim inerte, batendo com a testa na mesa; os vizinhos acudiram, quando ouviram os gritos de Selma, e levaram-no para o sofá. Depois, quando o deitaram numa maca, o enfiaram numa ambulância, o levaram à pressa para as Urgências e o empurraram para um bloco operatório com máquinas a apitar por todos os lados, a única coisa em que ela conseguia pensar, repetidamente, era se seria um castigo de Deus. A pergunta era tão assustadora que não podia ser expressada em voz alta; tinha de ser engolida. Gostaria de a fazer à mãe, que chorava ao seu lado, mas sentia pavor da resposta que Selma eventualmente lhe daria. Era aquele o caminho de Alá? Primeiro, permitia que disséssemos profanidades e brincássemos sem inibições. A seguir, fazia-nos pagar o preço? Era quase como se esperasse que pecássemos para nos poder atingir com a Sua ira. Seria o caminho de Alá feito de dissimulação, um truque para camuflar uma vingança calculada?
Atormentava-a outro pensamento insistente. No seu âmago, Peri estava convencida de que o ataque cardíaco do pai fora, devido a uma qualquer cadeia tortuosa de causa e efeito no universo, instigado pelo seu período. Porque é que sangrara tão precocemente e enquanto a mãe se encontrava ausente? Não estava certo tentar tornar-se a mulher da casa. E também não estava certo, percebeu ela, porque, quanto mais depressa crescesse, mais depressa o seu pai poderia morrer.
Na sala de espera do hospital, Peri e Selma sentaram-se no sofá puído. Um feixe de luar perfurava as janelas, mas era devorado pela luz intrusiva das lâmpadas fluorescentes. O televisor estava aceso, embora sem som. No ecrã, uma mulher de vestido vermelho de lantejoulas fez girar a roda da sorte e ficou desiludida quando esta parou em «falência». O funcionário de serviço, um homem robusto com um bigode farfalhudo e a única pessoa que estava a ver o programa, riu-se alegremente.
— Vou rezar — anunciou Selma.
— Posso ir contigo?
Selma fixou a filha intensamente, meio à espera dessa pergunta.
— Por acaso, até seria bom. Alá ouve as preces das crianças.
Peri fez um gesto de assentimento com a cabeça, como uma filha obediente. Tirando umas quantas invocações aprendidas por rotina na escola, nunca fizera a Saláh, dado o seu desejo de apoiar o pai em todas as questões relacionadas com a fé. Mensur, ao contrário da mulher, atinha-se a preces sucintas e não cerimoniais. Raramente usava a palavra «Alá», preferindo «Tanri», mais secular. Agora, Peri estava disposta a fazer as coisas à moda da mãe. Faria fosse o que fosse para salvar a vida do pai, incluindo traí-lo.
Na casa de banho, efetuaram as suas abluções, enxaguando a boca e lavando o rosto, as mãos, os pés. A água estava fria, mas Peri não se queixou, considerando o ritual um preâmbulo para uma conversa com Deus. Não havia espaços de oração naquela ala do hospital, por isso usaram um canto da sala de espera, com o televisor ainda ligado e a mulher de vestido vermelho de lantejoulas ainda decidida a ganhar.
Como não tinham tapetes de oração, estenderam os casacos de malha no chão. Peri imitava tudo o que a mãe fazia, como um eco. Assim, quando Selma cruzou as mãos no peito, Peri fez o mesmo. Selma baixou-se, endireitou-se e depois prostrou-se, com a testa a tocar no chão; Peri seguiu-lhe o exemplo. Houve, porém, uma diferença crucial. Os lábios da mãe estavam constantemente a mexer-se, enquanto os de Peri estavam imóveis. Passou-lhe pela cabeça que talvez Deus não apreciasse isso. Uma prece silenciosa era o mesmo que um envelope sem nada lá dentro. Como ninguém, nem sequer o Criador, gostava de receber um envelope vazio, ela concluiu que teria de dizer qualquer coisa. E depois de pensar um pouco, eis o que a criança proferiu:
«Querido Alá,
A minha mãe diz que me observas o tempo todo, o que é simpático, obrigada; mas também um bocado assustador, porque às vezes gosto de estar sozinha. A mãe diz que ouves tudo, mesmo quando falo comigo própria. Até os pensamentos dentro da minha cabeça. Também vês tudo o que acontece. Consegues ver o bebé na bruma? Ninguém repara nele a não ser eu, mas tenho a certeza de que Tu também.
Seja como for, estava a pensar que os nossos olhos são pequenos e demoramos cerca de um segundo a pestanejar. Ora os Teus olhos devem ser enormes, por isso deves demorar pelo menos uma hora a fechar as Tuas pálpebras e talvez durante esse tempo não consigas ver o meu pai.
Quando me irrito com alguém, o meu pai diz-me: “Não és uma criancinha, podes perdoar.” Se estás irritado com o meu pai, por favor perdoa-o e põe-no bom outra vez. Ele é um homem bom. Daqui em diante, podes pestanejar sempre que o meu pai pecar?
Prometo que vou recomeçar a rezar. Rezarei todas as noites até ao resto da minha vida.
Ámen.»
Empoleirada no seu casaco, Peri viu a mãe virar a cabeça para a direita e para a esquerda e esfregar as mãos na cara, terminando assim a prece, e imitou todos estes gestos, selando a sua carta confidencial.
No dia seguinte de manhã, Mensur estava sentado na cama, recostado numas almofadas, a brincar com as suas visitas e, uns dias depois, saiu do hospital com uma fatura choruda e um pacemaker a pilhas no coração. Aconselharam-no a largar a bebida e a afastar-se do stresse, como se o stresse fosse um familiar insuportável que pudéssemos simplesmente deixar de convidar para jantar. Fosse como fosse, Mensur não deu ouvidos. Tendo dançado um tango com Azrael, o anjo da morte, dizia que já não tinha nada a temer.
Também isso se imiscuiria nos sonhos de Peri, a imagem fantasmagórica do pai a dançar uma jiga desconjuntada com um esqueleto… que era o dele próprio.