O poema
Istambul, 2016
Na casa de banho da mansão à beira-mar, Peri imobilizou-se, observando o seu reflexo no espelho ornado. A fachada de compostura que conseguira manter perante a filha desaparecera, substituída pelo desassossego. A solidão dos peixes no aquário lembrou-lhe as personagens dos desenhos animados, irremediavelmente encalhadas numa ilha deserta, mas sem nunca pensarem em fugir. Conseguiria ela fugir a nado? Podíamos modificar hábitos diários, reformar personalidades, renunciar a alianças, quebrar amizades, inclusive desprezar dependências físicas, mas a coisa mais difícil de alterar na vida era a ligação a um lugar.
Uma onda de riso ergueu-se do outro lado da porta. O homem de negócios estava a contar uma piada, a sua voz erguendo-se acima do burburinho. Peri não ouviu o fim da anedota, que, pela reação, era ordinária, obscena.
— Ai, vocês, homens! — disse uma voz feminina, meio repreensiva, meio brincalhona.
Peri crispou os lábios. Nunca fora uma daquelas mulheres capaz de dizer em alto e bom som, e muito menos num tom tão sedutor: «Ai, vocês, homens!»
Fossem homens ou mulheres, as pessoas que a intrigavam eram sempre as que tinham viagens agrestes no seu passado, incerteza nos olhos e feridas invisíveis na alma. Generosa com o seu tempo e leal até ao tutano, tornava-se amiga desses quantos eleitos com um empenho e um amor inabaláveis. Mas, com todas as outras pessoas, que constituíam praticamente a maioria, o seu interesse rapidamente se metamorfoseava em tédio. E quando se sentia entediada, a única coisa que queria era fugir, libertar-se da pessoa, da conversa, do momento. Tinha o palpite de que, nessa noite, o tédio ia ser seu companheiro no jantar burguês e, para o contrabalançar, prometeu a si própria arranjar joguinhos para brincar, divertimentos só seus.
À pressa, salpicou a cara com água. Se não tivesse perdido a palete de sombra dos olhos no beco e espezinhado o seu batom, teria retocado a maquilhagem. Penteando o cabelo rapidamente com os dedos, observou-se uma última vez no espelho. O rosto que a fitou no reflexo estava pálido, irrequieto… como se um espírito perturbado a tivesse perpassado sem que ela se apercebesse. Abriu a porta. Para sua surpresa, a filha esperava-a lá fora.
— O pai queria saber onde te meteste.
— Precisava de me lavar e arranjar um bocado. — Peri fez uma pausa. — O que é que lhe contaste?
Peri viu uma centelha de afeto nos olhos de Deniz antes de a indiferença se impor.
— Nada.
— Obrigada, meu amor. Vamos lá.
— Espera, esqueceste-te disto — disse Deniz, estendendo-lhe uma coisa na mão.
Peri não precisou de olhar mais de perto para perceber que era a Polaroid. Procurara-a em toda a parte naquele beco asfixiante. Pelos vistos, Deniz avistara-a antes e guardara-a no bolso. Agora, a sua filha perguntou:
— Porque é que eu nunca tinha visto esta fotografia?
Havia quatro pessoas na imagem. O professor e as suas alunas. Felizes, esperançosas e prontas para mudar o mundo, ignorando alegremente o que o futuro lhes reservava. Peri lembrava-se do dia em que a fotografia fora tirada. «O pior inverno das últimas décadas em Oxford.» Lembrava-se de tudo: manhãs de enregelar os ossos, canos congelados, pilhas de neve nos passeios e o inebriante elixir do enamoramento a percorrer-lhe o corpo. Nunca se sentira tão viva.
— Quem são estas pessoas, mãe?
Mantendo a calma — até de mais —, Peri respondeu:
— É uma fotografia antiga.
— É por isso que andas com ela no porta-moedas? Junto das fotos dos teus filhos? — perguntou Deniz, numa voz carregada de incredulidade e curiosidade. — Quem são?
Peri apontou para uma das raparigas. Usava um lenço magenta cuidadosamente enrolado na cabeça como um turbante e tinha os olhos de avelã sublinhados com um grosso traço de Kohl que descrevia um arco até às sobrancelhas.
— Esta é a Mona, uma aluna egípcio-americana.
Concentrada e silenciosa, Deniz examinou a rapariga.
— A outra rapariga é a Shirin — explicou Peri. O seu olhar pousou numa figura muito vistosa, com uma volumosa cabeleira negra, o rosto todo maquilhado e botas de cabedal de salto alto. — A família era do Irão, mas tinha mudado de país tantas vezes que ela se sentia completamente desenraizada.
— Como é que as conheceste?
Peri demorou um instante a responder.
— Eram amigas minhas da universidade. Partilhámos casa, andámos na mesma faculdade. Fizemos o mesmo seminário, mas não todas ao mesmo tempo.
— O seminário era sobre o quê?
Peri esboçou um ténue sorriso, a recordação gravada em todos os traços da sua expressão.
— Era sobre… Deus.
— Uau! — exclamou Deniz, a sua resposta habitual às coisas que não lhe interessavam minimamente. Deu um toque com o dedo no homem alto, no meio da fotografia. O cabelo dele, louro-acastanhado, era indomável e suficientemente comprido para encaracolar; os olhos pareciam brilhar por baixo da boina; o queixo era forte e bem definido; a expressão tranquila, embora não totalmente serena.
— Quem é?
Um arrepio de desconforto perpassou as feições de Peri, tão subtil que foi praticamente impercetível.
— Era o nosso professor.
— A sério? Parece um estudante rebelde.
— Era um professor rebelde.
— Isso existe? — perguntou Deniz. — Como é que se chamava?
— Chamávamos-lhe Azur.
— Que nome esquisito. Onde é que foi isto?
— Em Inglaterra… Oxford.
— O quê? Porque é que nunca me disseste que andaste em Oxford? — Deniz pronunciou a última palavra com uma cadência exagerada.
Peri hesitou, sem saber o que dizer. Tinha mais ou menos a noção de porque é que nunca partilhara isso com ninguém, nem sequer com os filhos, mas aquele não era nem o momento nem a hora de o explicar.
— Foi só durante uns tempos — disse, deixando esmorecer a voz. — Não acabei o curso.
— Como é que entraste?
Deniz parecia impressionada, mas Peri detetou também um toque de inveja tingido de ressentimento no comentário da filha. Deniz começara a preocupar-se com os exames da universidade, embora ainda faltassem uns anos para lá chegar. O sistema de educação, concebido para tornar as mentes jovens cada vez mais competitivas, podia resultar muito bem com alunos como Peri, mas, em espíritos livres como Deniz, causava uma infelicidade consumada.
— Podes não acreditar, mas tive sempre excelentes notas no liceu. O meu pai sempre quis que eu tivesse a melhor educação possível… na Europa. Ajudou-me a fazer a candidatura e eu preenchia os requisitos exigidos.
— O avô? — perguntou Deniz, com dificuldade em conciliar a imagem do velhote senil que ela tinha na mente com aquele impetuoso agente de mudança.
Peri sorriu.
— Sim, ele tinha muito orgulho em mim.
— A avó não? — Quis saber Deniz, detetando um conflito.
— Ela tinha medo de que eu me perdesse num país estrangeiro. Era a primeira vez que eu saía de casa. Não é fácil para uma mãe. — Peri inspirou fundo, surpreendida com a sua própria frase, surpreendida por sentir empatia pela mãe.
Deniz pensou um instante.
— Quando é que foi isso?
— Na altura do 11 de Setembro, se é que isso significa alguma coisa para ti.
— Eu sei o que foi o 11 de Setembro — disse Deniz. O seu rosto iluminou-se quando se apercebeu de uma coisa: — Então, foi antes de conheceres o pai. Desististe de Oxford, voltaste para Istambul, casaste-te, abandonaste os estudos, tiveste três filhos de enfiada e tornaste-te dona de casa. Que original, parabéns!
— Eu não estava a tentar ser original — retorquiu Peri.
Ignorando o comentário, Deniz mordiscou o lábio inferior.
— Porque é que te vieste embora?
Era precisamente a pergunta à qual Peri não estava preparada para responder. A verdade era demasiado dolorosa.
— Era demasiado difícil para mim: as aulas, os exames…
Sem dizer nada, Deniz lançou à mãe um olhar de viés, claramente incrédula. Pela primeira vez, passou-lhe pela cabeça que a mulher que a parira, a mulher que ela vira todos os dias da sua vida e com a qual contava para satisfazer todas as suas necessidades e caprichos, talvez tivesse sido uma pessoa completamente diferente antes de ela e os irmãos terem nascido. Era uma ideia incómoda. Até esse dia, a sua mãe fora uma terra cognita da qual Deniz conhecia todos os vales bem-aventurados, todos os lagos plácidos e todas as montanhas invernosas. Não gostava da possibilidade de haver partes desse continente ainda por cartografar.
— Dás-me a fotografia agora? — pediu Peri.
— Espera um instante.
Com as pestanas a apanharem a luz do teto, Deniz aproximou a Polaroid da cara e semicerrou os olhos, quase até ficar vesga, como se esperasse descobrir um código secreto algures na imagem. Por impulso, virou a fotografia e viu a inscrição no verso, na grafia rígida de quem fez um esforço por escrever muito certinho: «Da Shirin para a Peri, com irmandade / Lembra-te, Ratito: “Já não me posso chamar um homem, uma mulher, um anjo ou sequer uma alma pura.”»
— Quem é o Ratito? — perguntou a Deniz, soltando uma gargalhada.
— Era assim que a Shirin me chamava.
— Jamais me passaria pela cabeça essa alcunha!
— Bom, pelos vistos mudei — comentou Peri. — Anda, temos de ir.
Deniz continuava com um ar perplexo.
— O que é que significa: «já não sou um homem, uma mulher, um anjo…»? Que frase sem sentido é esta?
— É um poema… Querida, dá-me a fotografia.
Da sala, chegou-lhes o som de palmas e vivas. Estavam a troçar ou a desafiar alguém para alguma coisa. Curiosa, Deniz, após uma brevíssima hesitação, devolveu a fotografia à mãe e voltou para a festa.
Sozinha no corredor, Peri segurou na Polaroid com força e ficou surpreendida ao sentir o calor que irradiava, como se estivesse viva. Que estranho era — quando uma pessoa pensava nisso — que, enquanto os momentos murchavam, os corações endureciam, os corpos envelheciam, as promessas morriam e até as convicções mais fortes esmoreciam, uma fotografia, uma representação bidimensional da realidade e uma mentira, permanecia imutável, para sempre fiel.
Enfiou a Polaroid no porta-moedas, com cuidado para não fitar nenhum dos rostos da imagem, resistente ao olhar do passado, resistente ao julgamento de uma Peri mais jovem acerca da mulher que se tornara. Endireitou as costas, pronta para ir ao encontro dos outros convidados, muitos dos quais não passavam, na verdade, de meros desconhecidos, e dirigiu-se lentamente para a festa.