O pacto
Istambul, anos 90
Na escola secundária, Peri atravessou fases de fé e fases de dúvida. Sem o pai saber, mantivera-se fiel ao voto que fizera a Deus. Todas as noites antes de se deitar, escolhendo cuidadosamente as palavras, sempre com a mesma paixão, rezava. Esforçava-se. Tinha esperança que, se sacrificasse a sua descrença no altar do amor e se tornasse tão piedosa como todos aqueles pregadores que peroravam sob os céus de Istambul, Alá ficasse mais contente com a sua família e fosse menos severo para com o seu pai. Um pacto irracional, claro, mas não o eram todos os pactos com o Todo-Poderoso?
O problema de rezar, porém, era que tinha de ser puro, monofónico. Uma voz consistente do princípio ao fim. Mas, quando falava com Deus, a sua mente fragmentava-se numa pletora de falantes, alguns à escuta, outros fazendo comentários espirituosos, outros exprimindo objeções. Pior ainda, imagens indesejadas inundavam-lhe a mente: de morte, escuridão, violência, genocídio, mas especialmente de sexo. Fechava os olhos, abria os olhos, esforçava-se por apagar da sua imaginação os corpos nus que se contorciam. Atormentada com a sua incapacidade de controlar o cérebro e receosa de que esses pensamentos lhe maculassem as preces, recomeçava várias vezes e tentava despachar-se antes que ideias impuras se apoderassem novamente da sua cabeça. Preparar-se para rezar era como enfiar o lixo e a tralha toda num armário, antes de Deus visitar a casa da sua mente. Queria causar a melhor impressão, mas tinha perfeita consciência do que escondera do olhar divino.
Pensou que, se em vez de rezar em casa rezasse em público, talvez conseguisse calar as vozes que a atormentavam. Com umas quantas amigas de opinião idêntica, criou o hábito de visitar mesquitas locais. Apreciava a luz abundante que entrava pelas janelas altas em arco, os lustres, a caligrafia, a arquitetura de Sinan. Perturbava-a, contudo, que a secção das mulheres ficasse escondida nos fundos ou no andar de cima por trás de cortinas, sempre isolada, separada, pequena.
Num bairro, um homem de meia-idade seguiu-as até ao interior da mesquita e, depois, até ao pátio.
— As raparigas deviam rezar em casa — disse ele, percorrendo com os olhos os contornos dos seios delas.
— Esta é a casa de Alá, é para toda a gente — redarguiu Peri.
Ele deu um passo em direção a ela, espetando o peito para fora. O seu corpo era um lembrete, um aviso, uma fronteira.
— Esta mesquita não é suficientemente grande. Até os homens têm de rezar no exterior. Não há espaço para meninas de escola.
— Quer dizer que as mesquitas pertencem aos homens? — disse Peri.
Ele riu-se, como se estivesse surpreendido por ela ter pensado que não. Peri ficou desiludida por o imã, que ouvira a conversa ao passar, não ter dito nada para as defender.
De outra vez, em Üsküdar, na secção das mulheres, no andar de cima, ela abriu as cortinas para poderem ver a beleza da mesquita enquanto rezavam. De imediato, uma mulher mais velha, vestida de preto dos pés à cabeça, fechou as cortinas, murmurando, irritada. Não eram só os homens que queriam as mulheres longe da vista. Algumas mulheres partilhavam desse estado de espírito.
Sim, ela tentara. Mas havia sempre uma lacuna entre si e os caminhos da religião impressa no seu bilhete de identidade cor-de-rosa. Já agora, quem é que tivera a ideia de pôr um quadrado para a religião nos bilhetes de identidade? Quem é que decidia se um recém-nascido era muçulmano, cristão ou judeu? O bebé é que não era, certamente.
Se Peri tivesse podido preencher ela própria o quadrado da religião, provavelmente teria escrito: «Indecisa.» Seria mais verdadeiro. Se a sua mãe ia parar ao Céu e o pai ao Inferno, a sua morada seria o Purgatório, algures entre os dois.
Abstinha-se de falar sobre essas questões com os crentes, porque assim que reparavam que ela vacilava entre a dúvida e a fé, teimavam em tentar conquistá-la para o seu lado. Os poucos ateus que conhecia não eram muito diferentes. Fosse em nome de Deus ou da ciência, não havia satisfação igual para o ego como a de converter alguém. Todavia, a última coisa que Peri queria era que alguém a tentasse converter. Será que aquelas pessoas não entendiam que ela não queria chegar a uma conclusão acerca da crença delas? A única coisa que queria era estar em movimento. Se aterrasse de um lado ou do outro, tinha medo de se tornar outra pessoa qualquer e seria o seu fim.
No diário sobre Deus, escreveu: «Estou perpetuamente no limbo. Talvez queira demasiadas coisas ao mesmo tempo e nada com suficiente paixão.»
No dia em que Peri terminou o ensino secundário como melhor aluna desse ano, ela e o pai prepararam o pequeno-almoço juntos. Cortaram tomate aos cubos, picaram salsa, bateram ovos e fizeram um menemen tão picante que cada dentada lhes abria um buraco na língua. Trabalharam lado a lado, os seus gestos coordenados, fluidos. Peri observou o pai a cortar uma cebola às rodelas, reparando, aliviada, que o tremor nas mãos dele parecia ter abrandado. Contudo, ele suava profusamente, uma fina película de transpiração cobria-lhe a testa. Ela sabia que, se ele estivesse sozinho na cozinha, já se teria servido de um copo.
Depois, Mensur levou a filha de carro a uma agência que ajudava estudantes turcos a candidatar-se a escolas estrangeiras. Tinham visitado o escritório abafado e penumbroso várias vezes nos últimos meses, fazendo fila com adolescentes esperançosos, incapazes de despregar os olhos dos rostos sorridentes que enchiam as brochuras de universidades ocidentais. Das suas páginas reluzentes destacava-se uma louca diversidade — aparentemente como as Nações Unidas — de estudantes, todos com ar feliz, sem exceção.
Pelo caminho, pararam nos semáforos ao lado de uma mesquita otomana, famosa por ter sido construída sobre o mar. À volta da circunferência da cúpula estavam pousadas gaivotas como um colar de pérolas.
— Baba, porque é que nunca foi religioso? — perguntou Peri, de olhos postos na mesquita.
— Ouvi demasiados sermões fajutos, vi demasiados falsos gurus.
— Então, e Deus? Ainda acredita que Ele existe?
— Claro que acredito — respondeu Mensur, com uma leve falta de convicção. — Mas isso não quer dizer que percebo o que Ele anda a fazer.
Um casal de turistas — europeus, pelo aspeto — tirava fotografias no pátio da mesquita. A mulher cobrira a cabeça com um dos compridos lenços fornecidos à entrada. Alguém — talvez um transeunte — avisara-a certamente de que o vestido era demasiado curto, porque ela amarrara outro lenço à volta da cintura para tapar as coxas. O homem, por sua vez, levava umas sandálias e umas bermudas que pelos vistos ninguém considerara um problema.
Apontando para o casal, Mensur comentou:
— Se eu fosse mulher, seria duas vezes mais crítica em relação à religião.
— Porquê? — perguntou Peri, embora adivinhasse a resposta.
— Porque Deus é um homem… Foi disso que esta gente devota nos convenceu.
Um automóvel parou junto deles, tocando uma música de Santana em altos berros.
— Vê se percebes uma coisa, minha alma — continuou Mensur. — Eu gosto das tradições sufis Bektashi, Mawlawi ou Melami, com o seu humanismo e humor. Os Rinds eram completamente livres de preconceitos e intolerância… quantas pessoas se lembram deles, hoje? Essa filosofia antiquíssima desapareceu neste país. E não foi só aqui. Em todo o mundo muçulmano. Foi suprimida, silenciada, apagada. Para quê? Em nome da religião, andam a matar Deus. Em prol da disciplina e da autoridade, esquecem-se do amor.
O semáforo mudou para verde. Uns segundos antes — e não depois —, os automóveis atrás deles tinham começado a buzinar. Mensur pisou o acelerador a fundo e murmurou para si próprio:
— Como é que estes idiotas conseguiram esperar no útero das mães!
— Baba, a religião não lhe dá uma sensação de segurança, como uma luva protetora?
— Talvez, mas eu não quero uma camada adicional de pele. Se tocar numa chama, queimo-me; se pegar em gelo, tenho frio. O mundo é o que é. Todos morreremos. De que serve sentirmo-nos seguros em multidões? Nascemos sós, morremos sós.
Peri inclinou-se para a frente, pronta para dizer alguma coisa, mas a voz do pai prosseguiu:
— Quando eras pequena, perguntaste-me se tinha medo do Inferno.
— E o pai disse que escavaria um túnel para fugir do Inferno.
O rosto de Mensur abriu-se num sorriso.
— Sabes porque é que não gosto assim tanto do Céu?
— Diga lá.
— Olho para as pessoas que para lá irão, as que rezam e jejuam e aparentemente fazem tudo o que devem fazer. Muitas delas, tantas, estão cheias de pretensões! E eu digo para mim próprio: se estas pessoas vão para o Céu, será que eu também quero mesmo ir? Preferia arder em paz no meu próprio inferno. Faz muito calor, mas pelo menos não há hipocrisia.
— Ai, Baba, espero que não diga essas coisas à frente de outras pessoas. Vai acabar por se meter em sarilhos.
— Não te preocupes, a minha língua só se desata contigo. Ou depois de ter bebido uns copos. Aqueles fanáticos nunca se sentarão comigo a uma mesa de raki, por isso estou safo — explicou, rindo-se.
Pouco depois, chegaram ao Palácio Dolmabahçe, com os seus arcos triunfais e campanário.
— Conheces a história do peixe preto? — perguntou Mensur.
Contou que fora perto dali que, numa noite tempestuosa, o sultão Murad IV se sentara a ler Setas de Infortúnio, uma coletânea de poemas satíricos do grande Nefi. Ainda mal tinha começado, quando um raio atingiu um castanheiro nos jardins do palácio, um presságio, certamente. Profundamente agitado, o sultão não só atirou o livro ao mar, como assinou uma carta a conceder aos inimigos de Nefi autorização para o castigarem como quisessem. Uns dias depois, o poeta, enforcado, foi lançado às mesmas águas em que a sua poesia se desintegrara, verso a verso.
— A ignorância e o poder são uma mistura tóxica. O mundo sofreu mais às mãos da religião do que às mãos de pessoas como eu, seja qual for a palavra engraçada que escolheres para definir a minha «raça».
Peri olhou pela janela na direção das ondas de crista prateada que reluziam ao sol da tarde, esperando avistar um peixe ou dois a marcar a superfície. Agora que sabia o destino do poeta, tinha a certeza de que nunca se esqueceria daquela história. Tomava para si as penas dos outros como se fossem suas e pendurava-as ao pescoço, como os colares de agulhas de pinheiro que costumava fazer quando era pequena. Picavam-lhe a pele e magoavam-na, mas recusava-se a tirá-los até terem secado e desfeito em partículas finas como pó.
Mensur seguiu o olhar dela.
— É por isso que os peixes nesta zona do Bósforo são pretos. Engoliram demasiada tinta. Coitados, ainda procuram palavras de poemas e carne de poetas… que são a mesma coisa, se pensarmos bem.
Peri adorava as histórias do pai. Crescera com elas. Contudo, a melancolia que as imbuía trespassava-lhe a alma, como uma lasca debaixo da sua pele que se tornara uma parte orgânica de si. Por vezes, imaginava que tinha lascas espalhadas em toda a parte, no corpo e nos recantos da alma.
— Nem sei porque é que estou a falar nestas coisas — disse Mensur, com uma nova intensidade. — Não estás entusiasmada com Oxford?
Tinham-se candidatado a várias universidades na Europa, nos Estados Unidos da América e no Canadá. Lugares com nomes tão estranhos que nenhuma língua conseguia pronunciá-los. Mas era com Oxford que Mensur delirava.
— Não temos a certeza se vou.
— Ah, vais, vais — declarou Mensur. — O teu inglês é do melhor que há. Trabalhaste muito para o aperfeiçoar. Passaste nos exames, foste à entrevista e agora ofereceram-te um lugar.
— Baba, onde é que vamos arranjar o dinheiro… — disse Peri, deixando a voz esmorecer.
— Para de te preocupar. Já tratei disso.
Mensur ia vender o carro e o único investimento que tinham feito na vida: um terreno perto do mar Egeu, onde planeara plantar oliveiras, um dia. Peri sentia um peso enorme na consciência por o pai abdicar dos seus sonhos por ela. Ainda assim, quando os seus olhares se cruzaram, cúmplices, ela sorriu. Embora tentasse não falar sobre isso, a verdade era que estava mortinha por ir para Inglaterra.
— Baba, tem a certeza de que a mãe concorda com o plano? Falou com ela?
— Ainda não — respondeu Mensur. — Hei de falar. Como é que ela pode não querer que a filha vá para a melhor universidade do mundo? Vai ficar radiante da vida!
Peri assentiu, embora soubesse que ele estava a mentir. Nenhum dos dois contaria a Selma que a filha se ia embora, a não ser no último instante possível.