A Última Ceia

Istambul, 2016

Quando entrou na espaçosa sala de jantar, Peri deparou com toda a gente instalada à mesa, agrupada em conversas distintas. Adnan falava com um amigo da família, o administrador executivo de um banco de investimento global. Pela expressão da cara deles, conversavam ou sobre política ou sobre futebol, os dois temas em que os homens demonstravam abertamente as suas emoções na presença de terceiros. Em cada ponta da mesa encontrava-se um dos anfitriões. O homem de negócios contava a quem o rodeava uma piada acerca de umas férias, com a confiança melíflua de quem está habituado a que o escutem, enquanto a sua mulher o observava à distância, com indiferença. Peri deu um passo em frente, sabendo que, num ápice, todas as cabeças se virariam na sua direção. Por um instante, pensou em avançar em bicos de pés e de lado, até chegar à porta de carvalho da entrada, por onde poderia fugir.

— Querida, porque é que está aí parada? — A mulher do homem de negócios vira-a. — Entre e junte-se a nós.

Peri forçou um sorriso, instalando-se na cadeira vazia que lhe fora reservada. Enquanto estivera na casa de banho, a maior parte dos convidados, se é que não foram todos, ficara a par do seu acidente. Agora, todos a fixavam com curiosidade e empatia, desejosos de ouvir a história.

— Sente-se bem? — perguntou uma mulher que geria uma agência de relações públicas. Tinha o cabelo penteado numa popa, presa com um grande alfinete de vidro a imitar diamantes, que lembrou a Peri um espeto e dava à mulher um ar perigoso. — Estávamos preocupados consigo.

— Sim, o que é que lhe aconteceu, querida? — acrescentou o administrador executivo.

Peri fitou Adnan, detetando um toque de preocupação no olhar normalmente afetuoso do marido. À frente dele estava uma tigela de sopa, vazia, e um copo de água. Ele era abstémio, por motivos de saúde e religiosos. Adnan era crente.

— Nada que valha a pena contar a uma mesa tão agradável — respondeu Peri, virando-se para o administrador executivo. — Interessa-me mais saber sobre o que é que estavam a conversar com tanto entusiasmo.

— Oh, sobre subornos e corrupção na primeira liga — disse o administrador executivo. — Algumas equipas parecem determinadas em perder os jogos. Se eu não as conhecesse até pensaria que estavam a ser pagas para isso. — Lançou um olhar travesso ao anfitrião.

— Que disparate — replicou o homem de negócios. — Se estás a tentar deitar abaixo a minha equipa, garanto-te, meu amigo, que vamos ganhar com o nosso suor.

Peri recostou-se, aliviada por ter desviado a conversa de si, embora não soubesse durante quanto tempo.

Os outros já tinham acabado a sopa e apareceu uma empregada com uma tigela para Peri: caldo de beterraba e cenoura com um pouco de queijo de cabra. Alguém lhe encheu o copo sem perguntar se ela queria. Um tinto de Napa Valley. Antes de o levar aos lábios, ela fez uma saudação silenciosa à alma do seu pai.

Peri olhou à sua volta, enquanto começava a comer lentamente. Móveis italianos, lustres ingleses, cortinas francesas, tapetes persas e uma pletora de ornamentos e almofadas com motivos otomanos; era uma casa — embora mais sumptuosa do que a maioria — decorada ao mesmo estilo de tantas outras em Istambul, meio oriental, meio europeu. Nas paredes havia quadros de conhecidos artistas do Médio Oriente, em ascensão, muitos dos quais Peri depreendeu que teriam sido subvalorizados ou sobrevalorizados, uma vez que, na região, o mundo das artes, porventura como acontecia com a política, ainda estava em constante mudança.

No passado, Peri participara em inúmeros jantares festivos nos quais muçulmanos conservadores não tinham visto mal nenhum em conviver com quem bebia prodigamente. Erguiam educadamente os seus copos de água na hora do brinde, juntando-se ao gesto. A religião, naquela parte do mundo, fora uma espécie de colagem. Não era invulgar as pessoas consumirem álcool o ano inteiro e arrependerem-se na Noite do Decreto, em que os pecados — desde que o arrependimento fosse genuíno — eram apagados por atacado. Havia inúmeras pessoas que jejuavam durante o Ramadão, tanto para renovar a fé como para emagrecer. O sagrado era compatível com o profano. Numa cultura de hibridismo, até os mais racionais acreditavam em jinn e mantinham junto de si um amuleto de vidro azul, considerado em todo o país como um protetor contra o mau-olhado, enquanto até os mais devotos desfrutavam da passagem de ano a ver televisão e a bater palmas ao ritmo de uma bailarina do ventre. «Um pouco disto, um pouco daquilo. Muçulmanus modernus.»

Contudo, as coisas tinham mudado drasticamente nos últimos anos. As cores reduziram-se a preto e branco. Havia cada vez menos casamentos em que — tal como o dos seus pais — um dos cônjuges era devoto e o outro não. Atualmente, a sociedade estava dividida em guetos invisíveis. Em vez de uma metrópole, Istambul mais parecia uma manta de retalhos urbana de comunidades segregadas. As pessoas ou eram «firmemente religiosas» ou «firmemente seculares»; e aquelas que até aí tinham mantido um pé em cada campo, negociando com o Todo-Poderoso e com os tempos com igual fervor, ou tinham desaparecido, ou haviam-se tornado sinistramente caladas.

O encontro dessa noite era, por conseguinte, invulgar, por reunir pessoas de campos opostos. Peri comparou o cenário, grandioso e palaciano, a um quadro renascentista. Se tivesse sido ela a artista, ter-lhe-ia intitulado «A Última Ceia da Burguesia Turca». Contou as pessoas à mesa. Claro está que eram treze, consigo incluída.

— Oh, ela nem sequer está a ouvir — disse a relações públicas.

Percebendo que falavam de si, Peri sorriu.

— O que foi?

— A sua filha disse-me que estudou em Oxford.

O rosto de Peri fechou-se. Os seus olhos procuraram Deniz, mas ela estava a jantar com a amiga na sala ao lado.

— A sério, querida, é tão reservada! — comentou a mulher do homem de negócios. — Porque é que não nos disse?

— Porque não acabei o curso… — respondeu Peri.

— Ninguém quer saber disso! — retorquiu o jornalista. — Continua a ter o direito de se gabar.

— É o que o meu irmão faz — pronunciou a relações públicas. — «Quando andei em Oxford…» É a primeira coisa que ele diz a toda a gente. — Virou-se para Peri. — Em que ano é que lá esteve?

— Por volta de 2001.

— Oh, na mesma altura que o meu irmão!

Peri sentiu-se afundar de constrangimento, que se agravou quando ouviu o marido dizer:

— A Deniz disse que tens uma fotografia. Porque é que não a mostras?

Peri percebeu que ele estava a fazer de propósito, a picá-la e a provocá-la à frente de terceiros. Ficou magoado por ela ainda andar com aquela Polaroid. Ele sabia, claro. Não tudo, mas o grosso da história. No fim de contas, tinha sido ele quem apanhara os cacos depois de ela ter deixado Oxford.

— Vá, mostre lá! — incitou alguém.

Por mais que Peri se esforçasse por mudar de assunto, não conseguiu. Não dessa vez. Estavam determinados em ver qual era o aspeto dela nos tempos da universidade… e o quanto mudara desde então.

Tirou a Polaroid da carteira e pousou-a na mesa. À luz das velas, distinguiam-se quatro pessoas, rostos sorridentes de um passado descartado, paradas no Old Schools Quadrangle da Biblioteca Bodleiana; das cornijas da torre de entrada, atrás deles, pendiam pingentes de gelo. Os convidados, um a um, examinaram a fotografia e passaram-na ao vizinho do lado, mas não sem antes fazerem um comentário.

— Oh, era tão novinha!

— Uau, vejam-me só este cabelo! Era uma permanente?

Quando a fotografia chegou à relações públicas, ela pôs os óculos. Analisou-a cuidadosamente.

— Esperem… — disse, arqueando as sobrancelhas. — A cara deste homem não me é desconhecida.

Peri contraiu-se.

— Eu costumava visitar o meu irmão todos os anos. Tenho a certeza de que ele me mostrou uma fotografia deste homem… onde é que foi…

A expressão de Peri petrificou-se.

— Ah, sim, já me lembro! Foi num jornal. Este homem era um professor universitário famoso… caiu em desgraça… foi obrigado a demitir-se de Oxford! Toda a gente falava nele. Houve um escândalo. — Apontou o seu olhar a Peri. — Com certeza soube do que aconteceu?

Peri ficou imóvel, sem capacidade de inventar uma mentira, sem vontade de dizer a verdade. Para seu alívio profundo, as empregadas apareceram naquele preciso instante com as entradas. Cheiros deliciosos espalharam-se pelo ar. Na interrupção que se seguiu, enquanto serviam os pratos, Peri conseguiu recuperar a Polaroid. Quando a guardou na carteira, as suas mãos tremiam tanto que teve de as manter debaixo da mesa.