O silêncio

Oxford, 2000

Depois de os pais terem partido para a estação, Peri, com uma sensação de enjoo causada pela solidão, voltou para as escadas no pátio da frente da sua residência universitária. Por mais empolgante que fosse ter-se livrado das discussões e embirrações deles, pelo menos eram-lhe familiares e, na sua ausência, sentiu-se inquieta, como se lhe tivessem arrancado o tapete debaixo dos pés e obrigado a caminhar em terreno agreste. Agora que o orgulho e a excitação do dia se tinham desvanecido, foi assolada por um profundo desassossego. Percebeu que não estava tão pronta para a grande fase seguinte da sua vida como gostara de pensar. Contraindo o corpo para enfrentar o vento, tão diferente da brisa salgada de um entardecer em Istambul, inspirou fundo e soltou lentamente o ar. O seu nariz procurou cheiros habituais: mexilhões fritos, castanhas assadas, bagels de sementes de sésamo, intestinos de carneiro grelhados, à mistura com os aromas das árvores-de-judas na primavera e das dafnes no inverno. Como uma feiticeira demente que se esquecera das fórmulas das suas poções, Istambul misturava odores improváveis no mesmo caldeirão: rançosos e doces, de revirar o estômago e fazer crescer água na boca. Em Oxford, porém, o cheiro resinoso que pairava no ar parecia inabalável, fiável.

Subiu as escuras escadas de madeira até ao quarto, onde abriu as malas, tirou as roupas e as pendurou no armário, organizou as gavetas e dispôs as fotografias da família em cima da secretária. Colocou o diário sobre Deus ao lado da cama.

Levara consigo alguns dos seus livros preferidos, uns em turco, outros em inglês: The Blind Owl, de Sadegh Hedayet, O Amor de Uma Boa Mulher, de Alice Munro, Dentes Brancos, de Zadie Smith, As Horas, de Michael Cunningham, O Deus das Pequenas Coisas, de Arundhati Roy, Tutunamayanlar, de Oğuz Atay, As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, An Artist on the Floating World, de Kazuo Ishiguro.

«Porque é que lês sempre autores ocidentais?», perguntou-lhe uma vez o único namorado que teve na vida.

Ela estava no liceu, na altura, no último ano, e ele, que era três anos mais velho, já andava na universidade, a estudar Sociologia. A acusação escondida na pergunta apanhara-a de surpresa. Na verdade, Peri lia literatura nacional e mundial. A sua tendência era para se perder em qualquer livro que lhe cativasse a imaginação e despertasse a curiosidade, independentemente da nacionalidade do autor. No entanto, em comparação com o namorado, cujas estantes exibiam títulos turcos — e uns quantos romances russos e sul-americanos, que ele dizia que não estavam corrompidos, porque não tinham sido escritos através da lente distorcida do imperialismo cultural —, a lista de leituras dela era demasiado europeia.

«Quando olho para ti, vejo a típica intelectual oriental em potência», dissera ele. «Apaixonada pela Europa, em desacordo com as suas raízes.»

Porque é que as raízes eram tão valorizadas em detrimento dos ramos ou das folhas era algo que Peri nunca percebera. As árvores tinham múltiplos rebentos e filamentos que se estendiam em todas as direções, por baixo e por cima dos solos vetustos da terra. Se até as raízes se recusavam a ficar imóveis no mesmo lugar, porquê esperar o impossível dos seres humanos?

Ainda assim, embeiçada por ele, Peri sentira uma pontada de culpa. Embora fosse uma leitora mais ávida do que o namorado, parecia que tinha desperdiçado o seu tempo a vaguear pelas ruazinhas e vielas da Cidade dos Livros, tentada pelos seus cheiros e sabores. Esforçara-se, durante uns tempos, por não gastar dinheiro em títulos ocidentais, mas a sua nova resolução fora rapidamente por água abaixo. Um bom livro era um bom livro e era só isso que importava. E, por mais que fizesse, não conseguia compreender a atitude reacionária em relação à leitura. Em muitas partes do mundo, uma pessoa era o que dizia e o que fazia e também o que lia; na Turquia, bem como em todos os países atormentados por questões de identidade, uma pessoa era, acima de tudo, o que rejeitava. Parecia que, quanto mais as pessoas falavam sobre um autor, menos provável era que tivessem lido os seus livros.

No fim, a sua relação com o rapaz, minada mais pelas suas atitudes divergentes em relação à intimidade do que pelos seus gostos divergentes em literatura, acabara. Havia um tipo de namorado no Médio Oriente que se irritava se uma rapariga rejeitasse as suas investidas sexuais; no entanto, assim que ela começasse a reagir apaixonadamente aos desejos dele, perdia o valor aos seus olhos. Presa por dizer «não» e presa por dizer «sim». Fosse como fosse, era uma batalha perdida.

Assim que acabou de arrumar o quarto, Peri abriu a janela chumbada com vista sobre os relvados imaculados do jardim. Uma sensação de vazio pairava no ar, turvando os contornos de todas as formas percetíveis ao longe. Fixando as sombras das árvores ali perto, estremeceu como se um espírito ou um jinni, apiedando-se da sua solidão, tivesse roçado em si muito ao de leve. Seria o bebé na bruma? Não lhe pareceu. Não o via há bastante tempo. Provavelmente fora um fantasma inglês. Oxford parecia um lugar onde fantasmas, desinibidos e não necessariamente assustadores, se podiam deslocar à vontade.

A primeira coisa que impressionou Peri em Oxford foi o silêncio. Essa era, e assim seria durante meses, a única peculiaridade à qual lhe custou habituar-se: a ausência de barulho. Istambul era desavergonhadamente ruidosa, de dia e de noite; mesmo quando uma pessoa baixava os estores, fechava as cortinas, punha tampões nos ouvidos e puxava os cobertores para o queixo, o ruído, muito pouco atenuado, penetrava as paredes, infiltrando-se no sono. Os últimos gritos dos vendedores de rua, o retumbar das carrinhas noturnas, as sirenes das ambulâncias, os barcos no Bósforo, as rezas e as profanidades — que se multiplicavam ambas depois da meia-noite — ficavam suspensos no vento, recusando-se a esmorecer. Istambul, tal como a natureza, detestava um espaço vazio.

Sentando-se na cama, Peri sentiu um aperto no peito. A ansiedade dos pais parecia ter-se apoderado de si, se bem que por motivos diferentes. Sentia-se uma impostora. Temia nunca ter êxito ali, entre alunos que estavam certamente muito mais bem preparados do que ela e sabiam exprimir-se melhor. O inglês que aprendera no liceu, e que aperfeiçoara através de longas noites de leitura solitária, poderia não ser suficiente para acompanhar algumas das cadeiras mais avançadas de Filosofia, Política e Economia. Embora se esforçasse por o esconder o melhor possível, o medo de Peri de fracassar era profundo. Sentiu um nó na garganta. Ficou surpreendida ao ver a rapidez com que os olhos se lhe encheram de lágrimas, que, quando caíram, eram quentes e familiares e, de certo modo, sem um pingo de tristeza.

Uma pancada na porta catapultou-a para o instante presente. Sem esperar pela resposta, a porta abriu-se e Shirin entrou no quarto.

— Olá, vizinha!

Peri fungou sem querer e sorriu, tentando recompor-se.

— Eu disse-te para deixares a porta aberta. — Shirin postou-se no meio do quarto, de mãos nas ancas. — É por causa de um rapaz?

— O quê?

— Estás a chorar. Acabaste com o teu namorado?

— Não.

— Ótimo, nunca chores por causa de um homem. Então, o que foi? Acabaste com uma namorada?

— O quê? Claro que não!

— Calma, calma — disse Shirin, lançando as mãos ao ar, fingindo que pedia desculpa. — Já percebi que és tão hétero e rígida como esparguete seco. Eu sou mais flexível como massa cozida.

Peri arregalou os olhos.

— Se essas lágrimas não são por causa de uma paixão, então deves estar com saudades de casa — concluiu Shirin, inclinando a cabeça. — Sorte a tua!

— Sorte a minha?

— Sim, se tens saudades de casa significa que tens uma casa, algures.

Shirin afundou-se na cadeira de braços junto da secretária e tirou do bolso um frasco de verniz, de um vermelho tão garrido que várias criaturas tinham certamente sido chacinadas para o seu fabrico.

— Importas-te?

Mais uma vez sem esperar pela resposta, descalçou os chinelos e começou a pintar as unhas dos pés. Um cheiro químico pungente permeou o ar.

— Então, agora que os teus pais já se foram embora, posso fazer-te umas perguntas? — disse Shirin. — És religiosa?

— Eu? Nem por isso… — respondeu Peri penosamente, como se revelasse uma coisa que tivesse demorado bastante tempo a perceber. — Mas preocupo-me com Deus.

— Hum… Preciso de mais do que isso. Por exemplo, comes porco?

— Não!

— E vinho, bebes?

— Sim, às vezes, com o meu pai.

— Aha, bem me pareceu. És metade-metade.

Peri franziu o sobrolho.

— O que é que isso quer dizer?

Mas Shirin já não a escutava. Parecia procurar qualquer coisa nos bolsos. Incapaz de a encontrar, franziu o nariz, levantou-se e foi ao seu quarto do outro lado das escadas, equilibrada nos calcanhares para não estragar a pintura das unhas dos pés.

Curiosa e ligeiramente irritada, Peri seguiu Shirin até ao quarto dela, que tinha a porta escancarada. Deteve-se de imediato, estupefacta com o caos que se lhe deparou. Espalhados em todos os cantos estavam estojos de maquilhagem, cremes do rosto, luvas de renda, frascos de perfume, maçãs meio comidas, papéis de rebuçados, sacos de batatas fritas vazios, latas de Coca-Cola amolgadas, livros e páginas arrancadas de revistas. Algumas dessas páginas tinham sido coladas nas paredes, ao lado de um póster dos Coldplay e de uma fotografia a preto e branco de uma mulher morena com ar provocante a ler Forough Farrokhzad. Na outra ponta do quarto, um enorme póster de Nietzsche, com o seu generoso bigode, fitava-a intensamente. Ao lado, estava o que parecia ser uma fotocópia ampliada e colorida de uma iluminura persa, com uma moldura em dourado reluzente. Por baixo dela estava Shirin, vasculhando uma mochila.

— O que é que quiseste dizer com «metade-metade»? — repetiu Peri.

— Metade muçulmana, metade moderna. Não suportas porco, mas gostas de vinho, ou de vodka ou tequila… tu percebes a ideia. Muito descontraída no que toca ao Ramadão, jejuas de vez em quando, mas, pelo meio, vais comendo. Não abandonas a religião, porque nunca se sabe se não haverá vida depois da morte, mais vale jogar pelo seguro. Também não queres abdicar de certas liberdades. Um pouco disto, um pouco daquilo. A grande fusão dos nossos tempos: Muçulmanus modernus.

— Ei, assim fico ofendida — protestou Peri.

— É claro que ficas. Um Muçulmanus modernus fica sempre. — Dito isto, Shirin tirou da mochila um frasco transparente, o verniz para dar brilho, e exclamou: — Encontrei!

Peri lançou um olhar carrancudo a Shirin.

— Se eu sou assim como dizes, então e tu como és?

— Oh, minha irmã, eu sou só uma criatura errante — respondeu Shirin. — Não encaixo em lado nenhum.

Enquanto aplicava uma camada de brilho nas unhas, Shirin começou a atacar os fanáticos e os hipócritas e os conformistas e os ignorantes. Como um rio, as ideias dela jorravam, palavras líquidas, fervilhantes, salpicantes, penetrantes. Disse que, aos seus olhos, as pessoas que criam ou descriam com verdadeira paixão eram igualmente dignas de respeito. O que não suportava eram aquelas que não pensavam. Os macacos de imitação, como lhes chamava.

No silêncio que se seguiu, Peri sentiu-se dividida. Uma parte de si não gostava da fanfarronice argumentativa de Shirin. Sentia a raiva da rapariga, mas em relação a quê — a sua terra-mãe, o pai, a religião, os mulás do Irão — não conseguia perceber. Outra parte de si gostava de ouvir Shirin, captando no seu solilóquio ecos da voz do seu pai. Fosse como fosse, não era aquele o tipo de conversa que esperara ter no primeiro dia longe de casa. Queria conversar sobre as aulas, os professores, onde tomar café, onde comprar as melhores sanduíches, os pormenores da vida quotidiana em Oxford.

Começou a chover; o tamborilar suave e constante da chuva inundou o quarto. O som deve ter tido um efeito balsâmico em Shirin, porque, quando voltou a falar, a sua voz, embora ainda estivesse imbuída de emoção, parecia mais calma.

— Desculpa bombardear-te com as minhas tretas. Aquilo em que decides acreditar só te diz respeito a ti, não é da minha conta. Não sei porque é que me inflamei assim.

— Não tem mal — disse Peri. — Mas ainda bem que a minha mãe não está aqui.

Shirin riu-se, um riso alegre, quase infantil.

— Conta-me coisas sobre os outros alunos — pediu Peri. — São todos muito inteligentes?

— Achas que toda a gente que anda em Oxford é o Einstein? — Shirin resfolegou ao dizer a última palavra. — Ouve, os alunos são como os batidos, vêm em diferentes sabores. Eu diria que há cá cerca de seis tipos de estudantes.

Em primeiro lugar, havia os tipos da justiça socioambiental. Faladores, sérios, exaltados, mergulhados em campanhas para salvar as florestas tropicais no Bornéu ou os monges budistas perseguidos no Nepal, explicou Shirin. Eram fáceis de identificar, com as suas camisolas de lã largueironas, colares de contas, maus cortes de cabelo, calças de ganga com as bainhas dobradas, expressões decididas e esferográficas e blocos de notas, sempre equipados para recolher assinaturas. Organizavam vigílias noturnas e, durante o dia, afixavam panfletos em toda a parte e embrenhavam-se em debates inflamados, uns atrás dos outros. Adoravam fazer os outros sentir-se culpados por não participarem numa coisa maior e mais importante do que a sua vidinha mesquinha.

Em segundo, havia os europeus ricos. Vinham de famílias europeias abastadas que aparentemente se conheciam todas entre si; nas férias, iam esquiar para as mesmas estâncias e voltavam a exibir o bronzeado e as suas fotos. Praticavam uma forma sofisticada de endogamia e só namoravam uns com os outros. Durante longos pequenos-almoços, consumiam pães com montes de manteiga e, no entanto, continuavam magros. Adoravam queixar-se de que os croissants não eram frescos e os cappuccinos eram falsos, e não paravam de falar sobre o tempo.

Em terceiro, o pessoal dos colégios privados. Tinham uma vida social muito seletiva. Criavam grupinhos à velocidade da luz, escolhendo os amigos em grande parte com base nos colégios em que tinham andado. Dotados de abundantes doses de energia e confiança, lançavam-se numa série de atividades extracurriculares. Praticavam remo, canoagem, esgrima, teatro; jogavam críquete, golfe, ténis, râguebi, polo aquático e faziam t’ai chi ou karaté nas horas vagas. Tanta ação devia deixá-los cheios de sede, porque se reuniam em «confrarias alcoólicas», vestindo-se de smoking e afogando-se em álcool, divertindo-se com a exclusão de todos aqueles que não viessem do mesmo estrato social e que, por conseguinte, não podiam tornar-se membros dos seus clubes. Era preciso ser-se nomeado para entrar e qualquer candidato podia levar com um voto contrário.

Depois, havia os estudantes internacionais: indianos, chineses, árabes, indonésios, africanos… A maior parte deles recaía em dois subgrupos. Aqueles que, como ímanes que se atraíam entre si, procuravam o familiar. Comiam, estudavam, fumavam e passavam o tempo em grupos onde pudessem falar a sua língua materna. E havia aqueles que faziam exatamente o oposto, tentando distanciar-se o mais possível dos seus compatriotas. Estes últimos eram os que tinham os sotaques mais voláteis, que mudavam drasticamente, na tentativa de parecerem mais britânicos ou, por vezes, americanos.

Em quinto, vinham os totós. Sérios, estudiosos, inteligentes, inquiridores, dignos de respeito, mas impossíveis de ter como amigos. Em Matemática, Física, Filosofia, brotavam como cogumelos, preferindo os seus cantos sossegados e sombrios aos espaços soalheiros. Estudavam com um afinco que raiava a neurose. Destacavam-se até numa multidão, caminhando energicamente da biblioteca para as aulas, desejosos de discutir assuntos com os professores nos claustros, mas, fora isso, perfeitamente satisfeitos com a sua solidão; na verdade, estavam mais à vontade na companhia dos livros do que dos colegas no bar da faculdade ou na sala dos alunos.

Enquanto ouvia Shirin, Peri foi inundada por uma excitação entretecida de ansiedade. Sentia-se preparada e, ao mesmo tempo, receosa de descobrir aquele mundo novo que requeria que ela tivesse força para nele entrar.

— Como é que sabes isto tudo?

Shirin riu-se.

— Porque já namorei com rapazes… e raparigas… de cada grupo.

— Já namoraste… com raparigas?

— Claro. Posso gostar de uma mulher, posso gostar de um homem. Estou-me nas tintas para os rótulos.

— Ah! — disse Peri, constrangida. — Bom… hum, então e a sexta categoria?

— Aha! — exclamou Shirin, com os olhos escuros iluminados por pintinhas cor de âmbar. — Esses são os que cá chegam de uma maneira e depois se tornam outra coisa completamente diferente. Desabrocham. Patinhos feios transformados em cisnes; abóboras em carruagens; Gatas Borralheiras em heroínas. Para alguns alunos, Oxford funciona como uma varinha mágica, toca-lhes e ta-rã! Transformam-se de sapo em príncipe.

Peri abanou a cabeça.

— Como?

— Bom, acontece de várias maneiras, mas geralmente é graças a alguém… regra geral, um professor. Alguém que os desafia e os faz perceber quem realmente são.

Houve qualquer coisa no tom de Shirin que intrigou Peri.

— Foi o que te aconteceu a ti?

— Sim, foi isso mesmo! Eu pertenço à sexta categoria — disse Shirin. — Há um ano, não me terias reconhecido. Era uma bola de raiva.

— E o que é que aconteceu?

— O Professor Azur! — respondeu Shirin. — Ele abriu-me os olhos. Ensinou-me a olhar para dentro. Hoje, sou uma pessoa mais calma.

Se aquela era a versão mais calma, Peri nem queria saber como seria a Shirin de antigamente.

— Quem é o Professor Azur? — perguntou.

— Não sabes? — Shirin estalou os lábios como se tivesse um doce na língua. — Azur é uma lenda viva aqui em Oxford!

— O que é que ele ensina?

Um sorriso perpassou o rosto de Shirin.

— Deus.

— A sério?

— A sério — respondeu Shirin. — Ele próprio é um bocado como Deus. Publicou nove livros e está sempre a participar em debates e conferências. Deixa-me dizer-te que é uma celebridade. No ano passado, a revista Time nomeou-o entre as cem pessoas mais influentes no mundo.

Lá fora, levantava-se um vento forte, que fez com que uma janela se abrisse e fechasse de rompante, algures no edifício.

— Era difícil como o caraças ser aluno dele! — continuou Shirin. — Bolas, ele obrigava-nos a ler imenso! Era de loucos! Todo o tipo de coisas estranhas: poesia, filosofia, história. Eu até gosto dessas coisas, não me interpretes mal, porque é que haveria de estar em Letras se não gostasse, não é? Mas ele desencantava uns textos que ninguém conhecia e mandava-nos debatê-los. Apesar de tudo, era divertido. Quando acabei, não era a mesma pessoa.

Peri reparou que, quando Shirin começava a falar, nunca mais se calava, como um carro com uma falha nos travões, incapaz de abrandar, muito menos parar, a não ser por intermédio de uma força externa. Ela continuou:

— Devias pensar em fazer esse seminário como opção. Bom… se o Azur te deixar. É difícil convencê-lo. É mais fácil obrigar um camelo a saltar por cima de uma vala.

Peri sorriu.

— Temos o mesmo provérbio na Turquia. Porque é que é tão difícil entrar para a turma do seminário dele?

— Tens de ser elegível. Isso significa que tens de discutir essa possibilidade com o teu conselheiro académico, etc. Se ele aprovar, vais falar com o Azur, o que é um bocado complicado. O homem é difícil de agradar. Faz umas perguntas estranhíssimas.

— Sobre?

— Deus… o bem e o mal… a ciência e a fé… a existência e a mortalidade… — Shirin franziu o sobrolho, procurando mais palavras. — Tudo. É como se fosse uma audição. Nunca percebi o que é que ele procura. No fim, escolhe só um punhado de alunos.

— Pelos vistos, passaste nas duas seleções — comentou Peri, sentindo algo parecido com inveja invadir-lhe a garganta, sem qualquer motivo.

— É verdade — confirmou Shirin, com um orgulho na voz impossível de ignorar.

Seguiu-se um breve silêncio.

— Ainda estou com ele pelo menos uma vez por semana, para me aconselhar — palrou Shirin, incapaz de ficar calada durante mais do que um minuto. — Na verdade, sou um bocado maluca por ele. É absurdamente giro. Não, não é só giro. É sexy!

Peri endireitou-se na cadeira, sem saber como reagir. À superfície, vinham ambas de países muçulmanos e culturas semelhantes. No entanto, ela era tão diferente daquela rapariga que parecia, em todos os sentidos, perfeitamente à vontade consigo própria e com a sua sexualidade.

— Uau, pelos vistos, tens uma paixoneta pelo teu professor — disse Peri, e não pôde deixar de acrescentar: — Isso não está errado?

Shirin lançou a cabeça para trás e soltou umas ruidosas gargalhadas.

— Oh, está muito, muito errado. Prendam-me por ordem de Sua Majestade!

Embaraçada com a sua ingenuidade, Peri encolheu os ombros.

— Bom… o seminário parece interessante. Mas tenho de me concentrar noutras coisas.

— Quer dizer que estás demasiado ocupada a ser mortal — comentou Shirin, fixando o seu olhar penetrante na sua nova amiga. — Deus terá de esperar.

Embora a intenção fosse jocosa, o comentário de Shirin foi tão inesperado e vigoroso que perturbou Peri. Desviou os olhos para a janela e para o céu cor de ardósia, no qual se esbatiam os últimos vestígios de luz. O vento, a chuva, a portada de uma janela a bater, o friozinho invernal que se sentia, embora estivessem ainda no início do outono… Peri lembrar-se-ia de todos esses pormenores durante muitos anos. Foi um momento decisivo na sua vida, embora ela só tomasse consciência disso a posteriori.