O pescador
Oxford, 2000
Semana dos Caloiros, era assim que lhe chamavam. Antes de o primeiro período começar a sério, em outubro, um sem-fim de acontecimentos sociais e de diversão tinha sido encaixado nuns quantos dias, para ajudar os alunos mais novinhos a conhecer a universidade, a cidade e os seus arredores, a fazer amizades — e possivelmente inimizades — e a libertar-se do nervosismo tão depressa como uma árvore gingko biloba perde as suas folhas com a primeira geada. Churrascos, reuniões com professores, concursos de culinária e comezaina, lanches, bailes, karaoke e mascaradas… Com a sua T-shirt de caloira, Peri deambulou e conversou com alunos e funcionários. Quanto mais falava com as pessoas, mais se convencia de que toda a gente sabia o que fazia, toda a gente menos ela.
Peri descobrira que a universidade — decidida a mudar a sua imagem de coutada de uns quantos privilegiados e a criar uma diversidade de alunos e ambiente — anunciara recentemente um esquema de bolsas, para incentivar a candidatura de estudantes oriundos de meios desfavorecidos. Perscrutou os rostos à sua volta e detetou uma variedade de etnias e nacionalidades, mas era difícil discernir a sua situação económica.
Reparou que, por detrás do frenético bulício, havia uma subtil troca de olhares. Um rapaz em especial parecia interessado nela. Alto, de queixada forte e cabelo louro muito curto, ombros pujantes e postura triunfal — da natação ou do remo, calculou ela —, sorriu-lhe como um gourmet sorriria ao ver um prato exótico.
— Fica longe dele — disse uma voz ao ouvido de Peri.
Instintivamente, Peri virou-se e viu uma rapariga de lenço na cabeça, com as sobrancelhas em forma de arco e os olhos debruados com Kohl negríssimo. Usava um brinco no nariz em forma de crescente de prata em miniatura.
— Clube de Vela da universidade, extremamente popular — explicou a rapariga. — Anda à pesca de caloiras.
— Desculpa?
— Aquele tipo, ali, parece que todos os anos faz a mesma coisa. Depois, anda por aí a gabar-se de quantos peixes apanhou numa semana. Disseram-me que está a tentar quebrar o recorde do ano passado.
— Quer dizer que os peixes são… raparigas?
— São. A ironia é que algumas raparigas não se importam nada de ser tratadas como peixes reluzentes e estúpidos, todas embonecadas. — Um tom trocista infiltrou-se-lhe na voz. — É difícil quebrar as grilhetas, quando algumas de nós adoram estar acorrentadas.
Peri arregalou os olhos, tentando imaginar qual seria o aspeto de um peixe agrilhoado.
— Se perguntares às pessoas daqui quem é que precisa do feminismo — continuou a rapariga —, respondem-te: «As mulheres do Paquistão, da Nigéria, da Arábia Saudita, mas não da Grã-Bretanha, superámos esses problemas todos! Em Oxford é que não, certo?» Mas a realidade é bem diferente. Sabias que as estudantes do sexo feminino têm resultados invulgarmente maus em Oxford? Há um abismo enorme entre os sexos no que toca às notas dos exames. Uma caloira em Oxford precisa tanto do feminismo como uma mãe camponesa no Egito rural! Se concordas comigo, assina a nossa petição. — Ofereceu-lhe uma caneta e um papel que dizia: «Brigada Feminista de Oxford» no cabeçalho.
— Hum… e tu és feminista, então? — perguntou Peri cautelosamente, com dificuldade em conciliar o termo com o visual da rapariga.
— É claro que sou — disse a rapariga. — Sou uma feminista muçulmana e, se algumas pessoas acham que isso é impossível, o problema é delas e não meu.
Enquanto Peri assinava a folha, de repente lembrou-se do seu ex-namorado na Turquia. Não só era contra ler literatura europeia, mas também contra todos os tipos de ideologias ocidentais, sendo o feminismo a pior ameaça de todas. «Uma desculpa para afastar as nossas irmãs da verdadeira questão: o conflito de classes.» Não era preciso um movimento à parte para as mulheres, porque o fim da exploração económica acabaria automaticamente com todos os tipos de discriminação. A emancipação das mulheres viria com a emancipação do proletariado.
— Obrigada — disse a rapariga, recuperando o papel e a caneta. — Já agora, chamo-me Mona. E tu?
— Peri.
— Gostei de te conhecer — disse Mona. O seu sorriso era radioso.
Peri ficou a saber que Mona era americana de origem egípcia. Nascida em Nova Jérsia, mudara-se com a família para o Cairo quando tinha cerca de dez anos. «As crianças devem ser criadas na cultura muçulmana», dissera o pai. Anos depois, tendo descoberto que a vida no Egito era mais dura do que pensavam — ou que, no fundo, eram americanos de gema —, tinham regressado aos Estados Unidos da América. Era o seu segundo ano em Oxford e ia mudar de disciplinas para se concentrar na Filosofia. A mãe usava o véu, disse ela, mas a sua irmã mais velha, não. «Fizemos diferentes escolhas na vida.»
Além de defender o feminismo, Mona estava envolvida numa série de atividades voluntárias: Associação de Apoio aos Balcãs, Associação dos Amigos da Palestina, Associação de Estudos Sufis, Associação de Estudos de Migração e Associação Islâmica de Oxford, da qual era um dos principais membros. Preparava-se também para lançar uma «associação de hip-hop» porque adorava esse estilo de música. Inspirando-se no seu encontro com diversas culturas, escrevia letras de canções, com a esperança de que um dia alguém as transpusesse para rap.
— Uau, como é que arranjas tempo para tantas coisas? — perguntou Peri.
Mona abanou a cabeça.
— Não é uma questão de arranjar tempo. É uma questão de gerir simplesmente o tempo. Foi por isso que Alá nos deu cinco preces por dia: para estruturar as nossas vidas.
Peri, que nunca aderira às cinco preces — nem sequer a uma, nem mesmo na sua fase religiosa depois do ataque cardíaco do pai —, crispou os lábios e disse:
— Pareces muito à vontade com a religião.
— Podemos dizer que estou em paz comigo mesma — disse Mona, e consultou o relógio. — Tenho de ir, mas de certeza que nos vemos por aí. Ando sempre a recolher assinaturas para uma boa causa.
Despediram-se com um aperto de mão, firme, que era o estilo de Mona.
Nessa mesma noite, Peri escreveu no seu diário sobre Deus: «Algumas pessoas querem mudar o mundo; outras, os seus companheiros ou os amigos. Quanto a mim, adoraria mudar Deus. Isso, sim, seria uma grande coisa. Toda a gente no mundo beneficiaria com isso, não é?»
Em Istambul, Peri tentara, amiúde sem êxito, comportar-se como uma extrovertida quando não o era, e tivera uma vida social mais intensa do que lhe apetecia. Em Oxford, sem a pressão cultural a pesar-lhe nos ombros, apreciava, não, adorava a solidão. A introversão não foi, porém, o único motivo para ela evitar quase toda a excitação da Semana dos Caloiros. Descobriu que, embora alguns eventos (lanches na sala dos alunos, encontros com os professores) fossem gratuitos, outros (queques veganos, marshmallows halal, pizas vegetarianas) exigiam dinheiro. Como o seu orçamento era reduzido, convinha esquivar-se à confusão. Concentrou-se, ao invés, na sua lista de coisas para fazer: arranjar o cartão de estudante; comprar os manuais, se possível em segunda mão; abrir uma conta-estudante. Decidida a encontrar a maneira mais barata de sobreviver, comparava preços em lojas e supermercados.
Peri foi provavelmente um dos poucos alunos que ficou radiante quando a semana, com toda a sua diversão e galhofa, chegou ao fim. O período letivo começou logo a seguir. Aliviada, acomodou-se a uma rotina de palestras, aulas de grupo e individuais, listas de bibliografia e trabalhos escritos. Num ambiente que era completamente novo para ela, estudar era uma corda robusta à qual se agarrar e fê-lo com toda a sua força.
Shirin ia e vinha a qualquer hora, deixando um rasto de perfume no ar, inebriantes moléculas de magnólia e cedro. Embora os ritmos das suas vidas diárias fossem pautados por hábitos incompatíveis, cada vez mais tomavam o pequeno-almoço e o almoço juntas, conversando sobre as palestras, os professores e, por vezes, sobre esse tema de interesse constante: rapazes. Peri, que não tinha muita experiência nesse campo, ouvia Shirin a papaguear sem fim sobre a arte de namorar o sexo masculino, sentindo-se mais e mais desanimada. Na companhia de amigos experientes que seduzem sem esforço, há um desalento que se abate sobre uma pessoa relativamente noviça, a sensação de ficar tão para trás que se torna uma mera espectadora.
Peri procurou o seminário que Shirin tinha mencionado. Encontrou-o numa lista de cadeiras opcionais dadas pelo Departamento de Filosofia, algumas com títulos impressionantes e complexos: «A Crítica dos Atomistas ao Criacionismo»; «Holismo na Psicologia e Epistemologia Estoicas»; «Os Reis Filósofos de Platão, A Bela Vida e a Mentira Nobre»; «Aquinas: Os Seus Críticos Medievais e Colegas Escolásticos»; «O Idealismo Alemão e Kant sobre a Filosofia da Religião»; «Questões Filosóficas nas Ciências Cognitivas».
Quase no fim da lista, destacava-se um título curto: «DEUS». Ao lado, vinha uma descrição: «Recorrendo a fontes desde a Antiguidade até ao presente, da filologia à poesia, do misticismo à neurociência, dos filósofos orientais aos seus pares ocidentais, este seminário explora o que significa Deus quando falamos de Deus.»
Entre parêntesis vinha o nome do professor: Anthony Zacharias Azur. Por baixo, uma nota: «Vagas limitadas, é necessária uma conversa prévia com o docente. Atenção: Esta pode, ou não, ser a cadeira certa para si.»
Peri ficou intrigada com a descrição e achou a arrogância subjacente àquelas palavras tão atraente quanto desmotivadora. Pensou em informar-se, mas, no frenesim daqueles primeiros dias de aulas, rapidamente se esqueceu disso.
Shirin tinha razão. «Deus» teria de esperar.