O caviar negro

Istambul, 2016

O prato principal — risoto de cogumelos selvagens e borrego assado com açafrão e molho de menta e mel — foi servido em grandes bandejas de prata e guarnecido com legumes grelhados. A imagem das empregadas de farda engomada a entrarem na sala e a levantarem as tampas das pilhas de carne fumegante foi tão teatral que alguns dos presentes aplaudiram, deleitados. Animados com as iguarias e com o vinho, os convidados tornaram-se mais alegres e cada vez mais ruidosos e arrojados.

— Sinceramente, não acredito na democracia — disse um arquiteto, de cabelo muito curto e uma barbicha muito bem aparada. A sua firma tinha tido uma margem de lucro enorme com projetos de construção espalhados pela cidade. — Vejam o exemplo de Singapura, sucesso sem democracia. A China, o mesmo. O mundo está a evoluir muito depressa. É preciso tomar decisões à velocidade-relâmpago. A Europa perde tempo com debates mesquinhos, enquanto Singapura galopa muito à frente. Porquê? Porque são muito focados. A democracia é uma perda de tempo e dinheiro.

— Bravo — respondeu uma decoradora, que era noiva do arquiteto e candidata a ser a sua terceira mulher. — Eu digo sempre que no mundo muçulmano a democracia é redundante. Se até no Ocidente é uma dor de cabeça, porque temos de admitir que o é, aqui é completamente desadequada!

A mulher do homem de negócios concordou.

— O meu filho tem um mestrado em Economia. O meu marido emprega milhares de pessoas. Mas, na nossa família, só representamos três votos. O irmão do nosso motorista, na aldeia dele, tem oito filhos. Não sei se alguma vez terão lido um livro na vida, mas representam dez votos! Na Europa, o público é instruído. A democracia não pode prejudicar. No Médio Oriente, o caso é completamente diferente! Dar direitos iguais de voto aos ignorantes é como dar fósforos a uma criança de colo. A casa vai arder toda!

Cofiando os pelos do queixo com o nó do indicador, o arquiteto disse:

— Bom, não estou a sugerir que abandonemos as eleições. Não conseguiríamos explicar isso ao Ocidente. Uma democracia controlada serve perfeitamente. Um quadro de burocratas e tecnocratas sob a alçada de um líder inteligente e forte. Desde que a pessoa no topo saiba o que faz, eu não me importo nada com a autoridade. Senão, como é que os investidores estrangeiros vão apostar em nós?

Toda a gente se virou e olhou para o único estrangeiro sentado à mesa, um americano gestor de fundos de investimento especulativo, de visita à cidade. Estivera a tentar seguir a conversa com a ajuda de traduções esporádicas que lhe sussurravam ao ouvido. Com as atenções centradas em si, mudou de posição na cadeira, constrangido.

— Ninguém quer uma região desestabilizada, obviamente. Sabem o que o pessoal de Washington chama ao Médio Oriente? O Desoriente! Desculpem, mas é um caos.

Alguns dos convidados riram-se, uns poucos fizeram uma careta. Era um caos, sim, mas esse caos pertencia-lhes. Eles podiam criticá-lo à vontade, mas um americano rico, não. Sentindo a energia negativa, o gestor cerrou os lábios.

— Mais uma razão para apoiarem o meu argumento — disse o arquiteto, entre garfadas de risoto. Tendo sido um homem apolítico durante muitos anos, e embora tivesse sangue curdo, ultimamente denotava tendências chauvinistas.

— Bom, a região toda está a chegar a essa conclusão — admitiu o administrador executivo do banco. — Depois do fiasco da Primavera Árabe, qualquer pessoa com um mínimo de sanidade mental tem de reconhecer os benefícios de uma liderança forte e da estabilidade.

— A democracia é coisa do passado! Sei que pode parecer chocante para algumas pessoas, mas paciência — insistiu o arquiteto, contente por a sua opinião estar a conquistar adeptos. — Sou todo a favor de uma ditadura benevolente.

— O problema da democracia é que é um luxo, como caviar de esturjão — disse um cirurgião plástico, que era dono de uma clínica em Istambul, mas vivia em Estocolmo. — No Médio Oriente é incomportável.

— Já nem a Europa acredita na democracia — acrescentou o jornalista, espetando o garfo num pedaço de borrego. — Os Estados Unidos da América estão desfeitos.

— Comportaram-se como um cordeirinho, quando a Rússia se transformou num tigre na Ucrânia — interveio o arquiteto, agora com ostentação. — Quer gostem quer não, este é o século dos tigres. É claro que ninguém gosta de tigres, mas toda a gente tem medo deles e é isso que importa.

— Pela minha parte, fiquei contente por não termos entrado para a União Europeia. Bons ventos os levem! — opinou a relações públicas. — Caso contrário, podíamos ter acabado como a Grécia. — Deu um puxão suave ao lobo da orelha, estalou a língua e bateu duas vezes na mesa.

— Os Gregos? Os Gregos estão desejosos de que os Otomanos voltem, eram mais felizes quando nós os governávamos… — comentou o arquiteto, com uma gargalhada, que atalhou quando reparou na expressão de Peri. Virou-se para Adnan, piscando-lhe o olho. — Acho que a sua mulher não gosta das minhas piadas.

Adnan, que estivera a ouvir a conversa atentamente com o queixo apoiado numa mão, sorriu; um sorriso meio soturno, meio compreensivo.

— Não me parece que isso seja verdade.

Os olhos de Peri baixaram para o risoto que arrefecera e solidificara no seu prato. Podia ter deixado os comentários passar em branco, como se fossem fumo de charuto, indesejado mas tolerável até certo ponto. Contudo, prometera a si própria, havia anos, logo depois de ter deixado Oxford, nunca mais se calar.

Com um aceno tenso de cabeça, disse ao marido:

— É verdade, sim, não gosto deste tipo de conversa. A democracia comparada a caviar negro, os Estados comparados a tigres… — Como não falava há um bom bocado, todas as cabeças se viraram para ela e Peri fitou-as por sua vez. — Não existe essa coisa de «ditadura benevolente».

— Porque não? — perguntou o arquiteto.

— Porque não existe nenhum deus pequeno. A partir do momento em que uma pessoa começa a armar-se em Deus, mais cedo ou mais tarde a situação descontrola-se.

Enquanto falava, a sua mente fervilhava de pensamentos sobre o Professor Azur. «Ele próprio é um pouco como Deus.» Teriam as coisas corrido menos mal, se ele tivesse pelo menos admitido que, tal como os seus alunos, também era humano?

— Deixe-se de fantasias! — interrompeu o arquiteto. — Não estamos na sua Oxford toda chique! Não estamos a falar de realpolitik. Os nossos vizinhos são a Síria, o Irão, o Iraque. Não são a Finlândia, a Noruega, a Dinamarca. Nunca conseguirá ter uma democracia de estilo escandinavo no Médio Oriente.

— Talvez não — respondeu Peri. — Mas não me podem impedir de o desejar. Não nos podem impedir a todos de desejar o que nos negam.

— Desejar! Que palavra! — exclamou o arquiteto, inclinando-se para a frente e apoiando as palmas das mãos na mesa. — Agora, está a entrar em águas perigosas.

Peri abanou a cabeça, ciente de que, segundo o Manual do Patriarcado — Nível Avançado, os membros do Clube das Senhoras Turcas Decentes não podiam defender em público os méritos do «desejo». Contudo, ela estava mortinha por cancelar o seu estatuto de sócia e, se não se podia demitir, então deveriam expulsá-la. Lembrou-se de Shirin. De certeza que a sua amiga indómita teria dito poucas e boas àquele indivíduo. Instigada por essa ideia, Peri disse, baixinho:

— Se me está a dizer que devia aceitar as coisas como elas são… que as nações, como boas esposas obedientes, também deviam abdicar dos seus sonhos… das suas fantasias… então, a sua noção das relações internacionais, e já agora das mulheres, é pior do que eu pensava.

Seguiu-se um breve silêncio, palpável, por ninguém saber o que dizer. Nesse momento pesado, o homem de negócios ergueu o queixo, puxou os ombros para trás, bateu as palmas como um bailarino de flamenco prestes a ocupar o centro do palco e rugiu, tão bem-disposto como antes:

— Que é feito do próximo prato?

A porta de vaivém entre a cozinha e a sala de jantar abriu-se e os empregados entraram apressadamente.