A celebração
Oxford, 2000
Era o vigésimo aniversário de Shirin, que ela ia comemorar no Turf Tavern, um pub que já existia há séculos, com vigas de madeira, ao fundo de uma viela ao abrigo das velhas muralhas da cidade. Peri, que já ia atrasada para a festa, caminhava resolutamente com uma prenda enfiada debaixo do braço. Depois de ter dado voltas e voltas à cabeça, sem saber o que oferecer à amiga, acabara por comprar uma coisa que sabia que Shirin ia adorar: um casaco de ganga adornado com contas reluzentes de cores garridas. Custara uma exorbitância.
Quando Peri entrou no pub de painéis de carvalho, um bafo morno e húmido a álcool e riso envolveu-a sob o teto baixo. Dada a popularidade de Shirin, ia à espera de encontrar uma multidão reunida e, de facto, assim aconteceu. Um grupo de amigos ruidosos rodeava a aniversariante, que tinha ao seu lado o novo namorado, de braço pousado no ombro dela. O namorado anterior — um aluno do segundo ano de Física, esperto e querido — planeava todos os encontros com tanta minúcia que se tornara exasperante, segundo Shirin. «Decidi deixá-lo quando vi o horário semanal dele.» Tinha assinalado as horas para ir às palestras da manhã, à biblioteca, ao ginásio e às aulas individuais. No «furo» das 16h15 às 17h15 inscrevera o nome dela. À sexta-feira à noite, reservara-lhe mais um espaço. «Acreditas, Ratito, que ele me encaixou entre as sete e meia e as dez e meia da noite? Jantar, filme, sexo.»
A voz forte de Shirin arrancou Peri aos seus pensamentos.
— Olha, é a minha vizinha! Olá!
Linda, de top adornado com pérolas e lantejoulas e umas calças de ganga brancas, justas e de cintura descaída, Shirin pegou na sua prenda e deu um beijo e um abraço a Peri.
— Onde é que te meteste? Assim, não viste o convidado de honra. Ele acabou de sair.
— Quem?
— O Azur — disse Shirin, com os olhos a sorrir. — Ele veio cá. Nem acredito que veio. Tão fixe! Entrou, fez um brinde e foi-se embora.
Shirin parecia querer acrescentar qualquer coisa, mas alguém a puxou pelo braço para apagar as velas do bolo. Peri olhou à sua volta, pensando que não reconheceria nenhum dos amigos gregários de Shirin, que estavam de pé, a beber e a conversar muito alto. Para sua surpresa, porém, viu um rosto conhecido: Mona. De túnica laranja de manga comprida, calças e lenço na cabeça a condizer, estava sentada a um canto, a bebericar um copo de Coca-Cola.
— Olá, Mona.
— Que bom ver-te — disse Mona, parecendo aliviada por ter alguém com quem falar.
— Não sabia que eras amiga da Shirin — comentou Peri, sentando-se ao lado dela.
— Não somos propriamente amigas, mas ela convidou-me e eu pensei… — respondeu Mona, deixando a voz esmorecer.
Peri percebeu o que a rapariga não exprimiu em voz alta. Não se recusava desprendidamente um convite de uma das alunas mais populares da universidade. Por isso, Mona — extrovertida e confiante — decidira aparecer, sem saber com o que contar. Agora, entre dezenas de estudantes desinibidos e galhofeiros, movendo-se ao som de um ritmo que só eles conseguiam ouvir, ela sentia um constrangimento que não se atrevia a mostrar.
As duas mergulharam numa conversa, comendo fatias do bolo de anos, enquanto Shirin e os amigos se divertiam ruidosamente.
— Posso fazer-te uma pergunta? — disse Peri. — Quando nos conhecemos, disseste que tu e a tua irmã tinham feito escolhas diferentes na vida. Isso quer dizer que… preferes cobrir a cabeça?
— Claro. Os meus pais sempre me deixaram a possibilidade de escolha. O meu hijab é uma decisão pessoal, um testemunho da minha fé. Dá-me paz e confiança. — O rosto de Mona ensombreceu. — Embora as pessoas me atormentem constantemente por causa do lenço.
— A sério?
— Sim, mas isso nunca me fez deixar de o usar. Se eu, com o meu lenço na cabeça, não desafiar os estereótipos, quem é que o fará por mim? Quero abanar as mentalidades. As pessoas olham para mim como se fosse uma vítima passiva e obediente do poder masculino. Mas não sou. Penso pela minha própria cabeça. O meu hijab nunca interferiu com a minha independência.
Peri ouviu-a, intrigada, vendo naquela rapariga uma versão mais jovem da sua própria mãe. A mesma rebeldia assumida, a mesma resolução. Era um sentimento que ela conhecia muito bem. Estava habituada a que as pessoas perorassem com fervor, com confiança. Não fazia ideia do que haveria em si que levava os outros a despejarem as emoções na sua presença. Não deixava de ser curioso que alguém tão ambivalente como ela fosse inundada pelas certezas e paixões de terceiros.
— As tais letras de hip-hop que escreves… são sobre religião?
Mona riu-se.
— O hip-hop é sobre o amor. Poesia. Talvez um pouco de raiva, também, contra a injustiça e a desigualdade. Dá-nos poder…
Uma irrupção de gargalhadas interrompeu-lhe a frase. Alguém desafiara o namorado de Shirin para um concurso de cerveja. Encheram um copo com sessenta centímetros de altura e um bolbo grande no fundo, chamado «uma jarda de cerveja», e o rapaz estava a emborcá-lo a toda a velocidade. Chegou ao fim com um sorriso convencido na cara e a camisa encharcada. Com a multidão a gritar vivas, deu um longo beijo molhado e feliz a Shirin, mas, de repente, deteve-se e correu lá para fora, tomado pela vontade de vomitar.
— Acho melhor ir-me embora — disse Mona.
— Eu também vou — respondeu Peri, embora não estivesse incomodada com o álcool, nem com o comportamento lascivo como Mona parecia estar. O constrangimento de Peri era de natureza diferente. Quando se via confrontada com a exuberância dos outros e percebia que era incapaz de os acompanhar, retraía-se sempre, um porco-espinho que se encolhia numa bola, autoprotegendo-se da alegria.
Quando Peri e Mona saíram do pub, sem ninguém reparar, estava Lua Cheia. Passando por baixo da Ponte dos Suspiros, serpearam pelas ruazinhas penumbrosas.
— Não entendo — disse Mona. — Porque é que a Shirin me convidou?
Peri perguntara-se exatamente a mesma coisa.
— Ela gosta de fazer novos amigos.
Mona abanou a cabeça.
— Não, não foi só por isso. Não consigo perceber ao certo por que motivo foi. Conhecemo-nos há algum tempo, mas sempre tive a sensação de que ela não gosta de mim por causa… do meu lenço, provavelmente.
Lembrando-se da maneira como Shirin olhara intensamente para a sua mãe, Peri ficou calada.
— Se é verdade, não me importo nada. Mas porque é que ela tenta ser minha amiga? — perguntou Mona, com uma expressão aguerrida de orgulho. — Achas que estou a ser paranoica?
— Não — respondeu Peri. — Ou melhor, sim, um bocadinho. Tenho a certeza de que vocês podem ser amigas.
— Bom, veremos — disse Mona. — A Shirin está sempre a dizer-me que devia fazer o seminário do Professor Azur.
— A sério? — Peri contraiu-se, como se o seu corpo tivesse pressentido um perigo que a sua mente ainda não captara. — Ela diz-me o mesmo: vai falar com o Professor Azur.
— Então, não sou a única… — comentou Mona, distraída. Apontou para Turl Street. — Eu vou por ali.
— Está bem. Então, boa noite.
— Boa noite para ti também — disse Mona. — Temos de nos ver mais vezes.
Dito isso, pegou na mão de Peri com firmeza entre as suas, apertou-a vigorosamente e desapareceu na noite.
Novamente a sós com os seus pensamentos, Peri virou para Broad Street. Ao fundo, no escuro, reparou numa figura iluminada pelas luzes de vapor de sódio amarelas dos lampiões: uma mendiga a empurrar um berço enferrujado, empilhado com roupa, cartão, sacos de plástico, uma viajante perene entre o aqui e o nenhures. Peri perscrutou-a. As roupas estavam sujas e colavam-se-lhe, húmidas, ao corpo; o cabelo estava acachapado de sujidade e o que parecia ser sangue seco. Aos poucos, Peri discerniu mais pormenores: calos nas palmas das mãos, uma nódoa negra que lhe tingia a maçã do rosto direita, os olhos papudos. Em Istambul, viam-se constantemente rostos miseráveis. Alguns encolhiam-se pelos cantos para se esconder dos olhares de desconhecidos; a maior parte suplicava atenção, comida e dinheiro. Em Oxford, também havia vagabundos, só não eram tantos como em Istambul, mas não deixava de ser desconcertante ver um sem-abrigo, por causa do contraste abrupto com a requintada serenidade da cidade.
Sentindo-se estranhamente cativada pela mulher, que avançava com passos curtos e deliberados, Peri começou a segui-la. Um cheiro fétido entrou-lhe nas narinas, quando o vento mudou momentaneamente de direção. Um misto de urina, suor e excrementos.
A mendiga falava sozinha, numa voz tensa.
— Que raio, quantas vezes tenho de te avisar?! — perguntou. O seu rosto tornou-se mais duro, enquanto esperava pela resposta. Soltou uma gargalhada de júbilo, mas a raiva subiu rapidamente por ela acima. — Não, seu cabrão!
Peri sentiu um desânimo tão intenso que raiava a melancolia. O que a separava — uma aluna de Oxford, com um futuro promissor — daquela mulher que não tinha nada na vida? Haveria um precipício do qual a sociedade instruída temia cair, como a beira do mundo plano que antigamente enchia os marinheiros de pavor? Se assim era, onde ficava a fronteira entre a sanidade e a loucura? Lembrou-se do que o hodja dissera, quando ela e a mãe o visitaram. Talvez tivesse razão. Talvez ela fosse propensa às trevas.
A mulher deteve-se e virou-se, trespassando Peri com o olhar.
— Estavas à minha procura, querida? — riu-se ela, revelando uns dentes manchados de nicotina. — Ou estavas à procura de Deus?
Peri empalideceu. Abanou a cabeça, incapaz de responder. Dando um passo em frente, abriu o punho para lhe oferecer as moedas que preparara de antemão. A mulher esticou a mão para fora da manga do casaco e agarrou nelas com a destreza da língua de um lagarto a arrancar um inseto de uma folha.
Peri deu imediatamente meia-volta, partindo em direção à residência universitária, quase a correr, assustada sem saber porquê, esperando que cada passo a levasse para mais longe da mendiga e da suspeita insinuante de que as duas pertenciam ao mesmo lugar.
Nessa noite, Peri ficou acordada até tarde, a ler. Se tivesse ficado de olho no relvado lá fora, teria eventualmente visto Shirin, que não sabia onde guardara a chave, a descalçar os sapatos com saltos em cunha, a empoleirar-se num amigo igualmente inebriado e a trepar ao muro de pedra do jardim, de três metros e meio de altura — rasgando e manchando as calças de ganga brancas e justas —, a aterrar num canteiro de flores, a pôr-se atabalhoadamente de pé e a bater numa janela ao acaso de um quarto no rés do chão, sempre rindo e cantando uma alegre melodia persa.