O dicionário

Oxford, 2000

Em Oxford, não faltavam pubs e tascas adequados à bolsa de um estudante; no entanto, Peri raramente transpunha o limiar de um deles. E, embora houvesse mais de uma centena de clubes e associações em que se poderia ter inscrito, fugiu de todos sem exceção, incluindo da Brigada Feminista. Não se esquecia de que tinha de se manter nos eixos; tudo o resto a distrairia do estudo. Isso incluía os rapazes. Apaixonar-se era caótico, e desapaixonar-se, ainda mais caótico. Demasiadas emoções e andanças; almoços, jantares e passeios; depois, discussões por causa de pormenores mesquinhos, seguidas de reconciliações. Resumindo: colocar outro ser humano, se não no centro da nossa vida, então algures perto dele, exigia um esforço enorme e ela não tinha tempo para isso. As amizades também podiam ser igualmente exigentes e requerer trabalho intensivo. De vez em quando, conhecia uma aluna com quem se dava imediatamente bem, mas evitava aprofundar laços. Durante as primeiras semanas na universidade, houve qualquer coisa de rígido e robótico, quase dogmático, na maneira como Peri se autodisciplinou em função de um único lema: estudo, estudo, estudo.

Habituada a ter êxito desde que entrara para a escola, estava penosamente ciente dos seus pontos fracos académicos recém-adquiridos. Não tinha qualquer dificuldade em seguir as palestras, mas participar nas aulas de grupo — nos debates e nos trabalhos escritos — era mais difícil. Pôr os seus pensamentos por escrito numa língua que não era a sua língua materna constituía um duro desafio. Determinada a não fracassar, esforçava-se arduamente, insatisfeita consigo própria.

Percebeu que para ser excelente aluna em Oxford teria de aperfeiçoar os seus conhecimentos de inglês. O seu cérebro precisava de palavras para se expressar plenamente, da mesma maneira que um rebento precisa de gotas de chuva para alcançar o seu crescimento máximo. Comprou pilhas de post-its coloridos. Neles, escrevia palavras que encontrava por acaso, pelas quais se apaixonava e que tencionava usar assim que surgisse a oportunidade, como fazia qualquer estrangeiro, de uma maneira ou de outra:

«Autotomia: reação pela qual certos animais, presos por um membro, se libertam, seccionando-o por uma contração muscular.»

«“Num aperto” (do Senhor dos Anéis, de Tolkien): em situação difícil, em apuros.»

«Valdevinos (de A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça): pessoa que leva uma vida desregrada.»

No seu primeiro ensaio de Filosofia Política, escreveu: «Na Turquia, onde a política diária é um valdevinos, sempre que o sistema se encontra num aperto, a democracia é a primeira coisa a ser amputada e sacrificada num ato de autotomia.»

Quando chegou a sua vez de ler o seu ensaio em voz alta, o professor interrompeu-a a meio, com um ar simultaneamente perplexo e divertido.

— Isso é inglês?

Peri ficou morta de vergonha. A frase que aos seus ouvidos parecera inteligente, sofisticada e cheia de estilo não passava de um chorrilho de disparates para um inglês. Como podiam o estrangeiro e o nativo ouvir as mesmas palavras de maneira tão diferente? Recusando-se a perder o ânimo, obcecada com as nuances, continuou a colecionar palavras deslumbrantes. Lembravam-lhe os búzios e corais cor-de-rosa, polidos por inúmeras marés, que ela apanhava quando era pequena e ia com a família para a beira-mar. Só que, ao contrário dessas bonitas lembranças imóveis, as palavras respiravam, estavam vivas.

Como o sentido de orientação não era o seu ponto forte, de vez em quando Peri perdia-se a explorar Oxford. Numa dessas suas saídas, descobriu uma livraria chamada Dois Tipos de Inteligência. As tábuas irregulares do soalho rangeram de compaixão imaginária, quando ela atravessou a sala da entrada; em todas as paredes erguiam-se estantes até ao teto; havia uma lareira a um canto, por cima da qual se viam velhas estampas de Oxford; um lanço de escadas de madeira levava a duas salinhas, ambas apinhadas de livros escolhidos a dedo, refletindo os gostos peculiares do dono em filosofia, psicologia, religião, o oculto. Com fotografias emolduradas nas paredes, pufes em tons pastel para os clientes se sentarem e uma máquina que servia café gratuitamente o dia todo, tornou-se imediatamente um dos lugares preferidos de Peri.

Os donos (ela era escocesa, e ele, paquistanês) ficaram impressionados com ela quando perceberam que sabia a origem do nome da livraria. Tratava-se do título de um poema de Rumi. Peri até se lembrava de uns quantos versos: «Existem dois tipos de inteligência: uma que se adquire em criança na escola… memorizando factos e conceitos de livros e o que diz o professor… A outra inteligência… é fluida… uma fonte que jorra de dentro de ti para fora.»

— Muito bem — aplaudiu a senhora. — Vem para cá ler quando quiseres.

— Para alimentares a tua inteligência. Os dois tipos! — acrescentou o homem.

E Peri assim fez. Rapidamente se tornou um hábito. Pegava no seu café, punha uma moeda na caixa das gorjetas e instalava-se num pufe, a ler até lhe doerem as costas e ficar com as pernas doridas. Também visitava muito a Biblioteca Bodleiana. Procurava um canto recôndito, empilhava mais livros do que conseguiria ler, abria sub-repticiamente um pacote de paus de pretzel e enterrava a cabeça em ondas de palavras.

Comprava postais com imagens de Oxford. As ruas medievais iluminadas pelo Sol, os edifícios de pedra calcária cor de mel, os jardins universitários cheios de sombra… Enviava alguns aos pais, mas reservava os restantes para o seu irmão Umut. Escrevia-lhe constantemente, embora as respostas dele fossem irregulares e secas. Apesar disso, ela nunca desistia. Mandava-lhe postais em tom leve, inclusive alegre. Era escusado falar-lhe nos seus medos, nas suas enxaquecas, pesadelos e solidão, que por essa altura já ela sabia que era simultaneamente uma maldição e uma companhia. Falava-lhe, ao invés, dos modos dos Britânicos, estranhamente cativantes, do seu pragmatismo, da sua confiança implícita nas instituições, do seu sentido de humor peculiar.

Umut escrevia-lhe mensagens em papel pautado, pedaços de cartão arrancados de pacotes de bolachas, folhas de calendários ou sacos de mercearia. Mas, uma vez, enviou-lhe um postal. Um mar azul-índigo, um barco de pesca vermelho, a brisa balsâmica do Mediterrâneo e uma areia macia como promessas… como se também ele estivesse a ver se tinha jeito para a arte de fingir felicidade.

Durante o «Jantar Formal» — num salão grandioso datado de há vários séculos —, rodeada pelos retratos de antigos reitores, Peri sentava-se nos antiquíssimos bancos corridos de carvalho, às mesas adornadas com as pratas da faculdade, servida por empregados de casaco branco, e sentia-se transposta para outra dimensão. Era uma figura num quadro, simultaneamente surreal e romântico. Algumas partes da faculdade mantinham-se iguais havia séculos e ela adorava o toque e o cheiro a História, a continuidade. Visitava amiúde a velha biblioteca só para inspirar o aroma inebriante das estantes cheias. Descia a uma cave onde era preciso dar a uma manivela para deslocar as prateleiras, de modo a chegar aos livros de que precisava. Entre milhares de títulos, cada um dos quais era um refúgio, sentia-se completa. Estranhamente, havia um pensamento recorrente que lhe vinha à superfície, quando se encontrava no interior daquela vastidão de conhecimento: Deus.

Ficava desconcertada, porque, de entre todos os atributos que poderia aplicar a si própria, nenhum se aproximava de «religiosa» ou sequer de «espiritual». Nunca se atreveria a confessar tal coisa à mãe, mas havia momentos em que nem sequer sabia se acreditava em alguma coisa. Culturalmente, era muçulmana, claro. Adorava o Ramadão e o Eid, que lhe enchiam o coração de afeto e a mente de recordações viscerais de cheiros e sabores. O Islão, para ela, era semelhante a uma recordação da infância, tão familiar e pessoal, mas também um tudo-nada vago, distante no tempo e no espaço. Como um cubo de açúcar dissolvido no café, que existia e depois deixava de existir.

Sempre se lhe afigurara estranho que tantos turcos decorassem as preces árabes sem fazerem a menor ideia do que estavam a dizer. Fossem em inglês ou em turco, Peri adorava palavras. Segurava-as nas palmas das mãos como ovos prestes a eclodir, os seus corações minúsculos a baterem de encontro à sua pele, cheios de vida. Indagava os seus significados, implícitos e explícitos; estudava as suas etimologias. Contudo, para inúmeros crentes, as palavras das preces eram sons sagrados que eles deviam simplesmente imitar, mais do que compreender… um eco sem princípio nem fim, em que o ato de pensar era subjugado pelo ato de mimetismo. No seio abrigado da fé, uma pessoa encontrava as respostas abdicando das perguntas; avançava, rendendo-se.

No seu diário sobre Deus, Peri escreveu: «Os crentes preferem as respostas às perguntas, a clareza à incerteza. Os ateus são mais ou menos a mesma coisa. É engraçado que, no que toca a Deus, sobre o qual não sabemos praticamente nada, são muito poucas as pessoas que, como eu, dizem: “Não sei.”»