A caixa de música
Istambul, 2016
As sobremesas chegaram, servidas em travessas de cristal: bolo de mousse de avelã recheado com molho de chocolate e ovos, e marmelo assado no forno com gelado de natas por cima. Os convidados irromperam num coro, em que metade fez elogios e a outra metade expressou preocupação.
— Ah, devo ter engordado um quilo esta noite — disse a relações públicas, dando uma palmadinha na barriga.
— Não se preocupe, quando chegar a casa já queimou as calorias todas — garantiu a mulher do homem de negócios.
— Continuem a discutir política — aconselhou o jornalista. — É assim que queimamos calorias neste país.
Quando a empregada apareceu ao lado de Peri, esta murmurou:
— Não, obrigada.
— Com certeza, minha senhora — respondeu a empregada, baixando a voz, voluntariamente cúmplice.
A anfitriã, porém, tendo ouvido a troca de palavras, interveio da sua ponta da mesa:
— Não, querida! Não levei a mal quando se opôs às nossas opiniões, mas ficarei muito aborrecida se não provar o meu bolo.
Peri cedeu, uma vez que não tinha alternativa. Comeria o marmelo e o bolo. Era uma coisa que a deixava sempre perplexa, porque é que as mulheres faziam tanta questão de se engordarem umas às outras. Devia estar relacionado com a «lei da estética comparativa»: se todas fossem gorduchas, na realidade nenhuma o era. Mas provavelmente estava a ser cínica. A voz distante de Shirin ressoou-lhe na cabeça: «Acredita, Ratito, todo o cinismo é pouco.»
Assim que a anfitriã, satisfeita, desviou a sua atenção para outro convidado, Peri pegou no copo de vinho. Estava a beber mais do que era habitual, nessa noite, embora ninguém parecesse reparar, muito menos ela própria. Surgira uma brecha na barragem que ela erigira, ao longo dos anos, para estancar o fluxo de emoções indesejadas para dentro do seu coração. Agora, através dessa pequeníssima ranhura, infiltrava-se um fiozinho de melancolia. Entretanto, outra parte de si, ciente do perigo e da destruição que isso poderia causar, estava em alerta máximo, tentando freneticamente vedar a abertura, para que tudo pudesse voltar ao normal.
— Pensei que esta noite íamos ter cá um médium — disse a namorada do jornalista, numa voz rouca de fumadora. Toda a gente sabia que ela andava atormentada com os boatos, recentemente publicados num jornal online, de que o jornalista tinha sido visto num jantar romântico com a ex-mulher e que o casal estaria à beira de reatar a sua relação.
— Ele devia ter chegado há uma hora — explicou o homem de negócios. — Parece que o coitado ficou preso no trânsito.
— Ah, nem os médiuns sabem como evitar os engarrafamentos em Istambul — brincou o gestor americano.
— Verá, meu amigo, que este tipo é do melhor que há — disse o homem de negócios, metade em inglês, metade em turco. — Dizem que previu a crise financeira.
— Talvez todos nós devêssemos consultar médiuns, uma vez que os especialistas políticos não valem nada e os especialistas financeiros são ainda piores — comentou a relações públicas.
Impulsivamente, Peri pediu licença para sair da mesa.
— Oh, não, estamos a entediá-la outra vez? — disse o arquiteto, de copo na mão e olhos turvos. Sendo dado a amuos por motivos mesquinhos, não a perdoara por o ter confrontado.
Peri fitou-o.
— Vou só telefonar para casa, para saber dos miúdos.
— Com certeza — disse o homem de negócios. — Porque é que não vai lá acima e liga do meu escritório? Terá paz e sossego.
Pedindo ao marido para lhe emprestar o telemóvel, Peri dirigiu-se para o primeiro piso, escutando até lá acima as vozes à mesa do jantar.
O escritório do homem de negócios tinha uns janelões rasgados de uma ponta à outra, com uma vista espetacular sobre o Bósforo. Com paredes forradas de painéis de couro, o teto de madeira ornado com caixotões, uma secretária enorme de mogno e mármore, cadeiras altas cor de gema de ovo, objetos antigos de arte e belos quadros, o espaço mais parecia a sala de estar privada de um extravagante chefe da máfia do que um local de trabalho.
Um canto estava decorado com fotografias emolduradas do homem de negócios na companhia de políticos, celebridades e oligarcas. Entre eles, Peri reparou no sorriso de porcelana de um ditador do Médio Oriente, que já não estava no poder, a dar um aperto de mão ao anfitrião, diante do que parecia ser uma complexa tenda beduína. Atrás, noutra fotografia, via-se a carranca dura de um falecido autocrata da Ásia Central, conhecido por enfeitar a sua terra natal com a sua própria imagem e por ter ido ao ponto de dar o seu nome a um mês e o da sua mãe a outro. Peri inspirou fundo, retendo uma nuvem imaginária de fumo nos pulmões, incapaz de soltar o ar do peito. O que fazia ela ali, naquela mansão, construída com dinheiro que entrava nos cofres através de segredos e sombras? Naquele momento, sentiu-se como uma pedra num rio, levada aos trambolhões pela correnteza sem fim. Se o Professor Azur ali estivesse, possivelmente teria sorrido e citado um trecho do seu livro Guia para Preservar a Perplexidade: «Não há sabedoria sem amor. Não há amor sem liberdade. E não há liberdade, se não nos atrevermos a afastar daquilo que nos tornámos.»
Rapidamente, como se fugisse da sua própria mente, marcou o número de casa. Encostando a testa à janela, observou a vista lá fora enquanto esperava que a sua mãe, que ficara a tomar conta dos miúdos, atendesse. Por trás do vidro, sob uma Lua crescente tão luminosa que nem parecia verdadeira, estendia-se a cidade: casas inclinadas para um lado, como que murmurando segredos umas às outras; ruas com curvas apertadas serpeando pelas íngremes colinas acima; os últimos cafés a fecharem as portas e os últimos clientes a partirem… Perguntou-se o que estariam a fazer as crianças que lhe roubaram a carteira. Estariam a dormir e, se sim, teriam ido para a cama com fome? Peri pensou que poderiam estar a sonhar nesse momento e que ela própria poderia entrar nesses sonhos, uma louca com os sapatos de salto alto nas mãos, a persegui-las pelas ruas dentro.
Selma atendeu ao quarto toque.
— O jantar já acabou?
— Ainda não — disse Peri. — Ainda aqui estamos. Os miúdos estão bem?
— É claro que estão, porque é que não haveriam de estar? Divertiram-se imenso com a avó e agora estão a dormir.
— Jantaram?
— Achas que eu os deixava à fome? Fiz manti, que eles devoraram. Coitadinhos, fiquei com a impressão de que estavam cheios de saudades disso.
Peri, que não herdara os dotes culinários de Selma, ouviu a reprimenda na voz da mãe.
— Obrigada, tenho a certeza de que adoraram.
— De nada. Até amanhã de manhã. Provavelmente, estarei a dormir quando vocês chegarem.
— Espere! — Peri fez uma pausa. — Mãe, faz-me um favor?
Ouviu-se um restolhar e Peri percebeu que a mãe tinha passado o telefone para a orelha esquerda, para poder escutar melhor. Envelhecera a olhos vistos desde que o marido falecera. Estranhamente, depois de tantos anos de hostilidade, o mundo de Selma ruíra no dia em que Mensur morrera, como se tivesse sido a luta contra o marido que a mantivera cheia de vida.
— No quarto, na segunda gaveta, deve estar um caderno — disse Peri. — Turquesa. De pele.
— O que o teu pai te deu. — Um tom amargo infiltrou-se-lhe na voz; mesmo passados tantos anos, Selma sentia rancor do laço que unira o marido e a filha. A morte de Mensur não alterara os seus sentimentos e Peri sabia-o por experiência própria: era possível invejar os mortos e o poder que detinham sobre os vivos.
— Sim, mãe — respondeu Peri. — Está trancado, mas a chave está na última gaveta. Debaixo das toalhas. Na última página, tem um número de telefone. Diz «Shirin». Importa-se de mo dar?
— Não pode esperar até amanhã de manhã? — perguntou Selma. — Sabes que os meus olhos já não são o que eram.
— Por favor, preciso de fazer um telefonema — suplicou Peri. — Hoje.
— Está bem, espera um instante — disse Selma, com um suspiro. — Deixa-me ver o que posso fazer.
— Ah, e mãe…
— Sim?
— No fim, importa-se de voltar a trancar o caderno?
— Uma coisa de cada vez — respondeu Selma, cansada. — Não me baralhes.
Peri ouviu uma pancada seca, quando a mãe pousou o auscultador; depois, o som de passos a afastarem-se, pesados e apressados. Esperou, mordendo o lábio inferior. Ao longe, sob as luzes da Segunda Ponte, o mar era azul-esverdeado, a cor da antecipação. Examinou o seu reflexo na janela, reparando com desaprovação na sua barriga flácida. Apesar disso, ainda não tinha começado a envelhecer depressa, como temera que acontecesse. Talvez houvesse diferentes maneiras de envelhecer. A algumas pessoas murchava-lhes primeiro o corpo, a outras a mente, a outras ainda a alma.
Havia uma caixa dentro da parte do cérebro que armazenava a memória… uma caixa de música, com o esmalte lascado e uma melodia cujas notas nos assombravam. Guardadas nela estavam todas as coisas que a mente não queria esquecer, nem se atrevia a lembrar. Em momentos de stresse ou de trauma, ou porventura sem motivo aparente, a caixa abria-se de repente, derramando todo o seu conteúdo. Era isso que ela sentia que lhe estava a acontecer nessa noite.
— Não o encontrei — disse Selma, ofegante do esforço.
— Pode procurá-lo outra vez, por favor? Avise-me quando o encontrar.
— Estava a ver televisão — protestou Selma e, depois, assumiu um tom mais conciliador. — Está bem, vou fazer os possíveis.
As coisas entre elas tinham melhorado pela mesma razão que antes as afastara: Mensur. Enquanto em vida ele as separara, a sua ausência aproximara-as uma da outra.
— Só mais uma coisa — acrescentou Peri à pressa —, roubaram-me o telemóvel. Envie uma mensagem ao Adnan, mas não diga nada sobre isto. Escreva só: «Liga para casa» e eu telefono-lhe.
— O que é que se passa? — perguntou Selma, fazendo uma ligeiríssima pausa de desconfiança. — A Shirin não é aquela rapariga horrível de Inglaterra?
Peri sentiu o coração sobressaltar-se.
— Porque é que queres falar com ela? — insistiu Selma. — Ela não era tua amiga.
«Era a minha melhor amiga», pensou Peri, mas refreou-se e não o disse. «Ela, a Mona e eu. Nós as três: a Pecadora, a Crente, a Confusa.»
Ao invés, disse:
— Já lá vai muito tempo, mãe, agora somos adultas, todas nós. Não há motivo para se preocupar. Tenho a certeza de que a Shirin deixou tudo para trás.
Enquanto proferia estas palavras, e se forçava a acreditar nelas, Peri teve consciência de que provavelmente nenhuma era verdade. Shirin seria incapaz de deixar o passado para trás. Da mesma maneira que Peri também não o conseguira fazer.