O Cinto de Castidade

Oxford, Istambul, 2000

Numa tarde, à beira do inverno, com o vento a saber a sal marinho e enxofre, Peri chegou a Istambul para o casamento do irmão. Tivera imensas saudades da sua cidade natal; por muito só que se tivesse sentido enquanto ali vivera, sentira-se ainda mais só enquanto estivera longe. Como que para se impedir de acalentar pensamentos melancólicos, a partir do instante em que pousou a mala, mergulhou numa lista de obrigações: visitar familiares, comprar prendas, cumprir tarefas.

Peri rapidamente se apercebeu de que, na sua ausência, se erguera uma pirâmide de tensão em casa dos Nalbantoğlus, tornando o ar pesado, difícil de respirar. Uma pequena parte do mal-estar era antiga, as habituais trocas de palavras amargas e irascíveis entre os seus pais. Contudo, uma grande parte era recente, precipitada pelos preparativos do casamento. A família da noiva insistira numa cerimónia luxuosa, digna da sua filha. O salão que tinha sido alugado foi substituído à última hora por um espaço maior, o que implicou convidar mais pessoas, encomendar mais comida e, em última instância, gastar mais dinheiro. Ainda assim, ninguém ficou contente. Enquanto as duas famílias trocavam galhardetes e simpatias, por baixo da pátina de cortesia, corria uma maré de ressentimento nos dois sentidos.

Na manhã do casamento, Peri acordou com cheiros suculentos a pairarem de uma ponta à outra da casa. Quando entrou na cozinha, encontrou a mãe, de avental com margaridas amarelas estampadas, a assar três tipos diferentes de börek: de espinafres, queijo branco e carne moída. A esfregar, encerar, limpar e lavar, Selma estivera a trabalhar a um ritmo sobre-humano e parecia incapaz de abrandar.

— Diz a essa mulher que vai ter um fanico de tanto se esfalfar — disse Mensur à filha, sentado à mesa da cozinha, sem levantar os olhos do jornal, um diário de centro-esquerda que ele assinava desde que Peri era gente.

— Diz a esse homem que o filho dele se vai casar. Só acontece uma vez na vida — ripostou Selma.

Peri suspirou.

— Vocês parecem duas crianças… porque é que deixaram de falar um com o outro?

Perante isso, o pai virou a página; a mãe tendeu mais um pedaço de massa. Sentando-se numa cadeira entre eles, como que para criar uma zona-tampão, Peri perguntou:

— E, então, como é que correu a noite da hena?

Selma mordeu o lábio inferior e lançou-lhe um olhar como um estilhaço de vidro.

— Não vieste. Devias cá ter estado.

— Mãe, eu disse-lhe que não podia vir. Tinha aulas.

— Bom, para que saibas, toda a gente perguntou por ti. Andaram a comentar nas minhas costas. O filho não está, a filha não veio… Que família!

— O Umut não vem? — perguntou Peri.

— Ele disse que vinha. Prometeu. Fiz-lhe os pratos preferidos. Contei a toda a gente que ele vinha. Mas, em cima da hora, ligou a dizer: «Mãe, tenho coisas importantes para fazer.» Que coisas importantes? Achará ele que sou tola? Não entendo aquele rapaz.

Mas Peri entendia. Desde que fora libertado da prisão, Umut preferia levar uma vidinha sossegada numa povoação do Sul, onde fazia bugigangas para os turistas numa cabana a que chamava casa, com um sorriso tão quebradiço como as conchas que agora lhe davam o sustento. Tinham-no visitado umas quantas vezes. Ele mostrara-se sempre delicado e reservado, como se falasse com desconhecidos. A mulher com quem vivia, uma divorciada com dois filhos, disse que ele andava bem, mas que, às vezes, o seu estado de espírito se toldava inesperadamente: ficava rabugento, irritadiço, não conseguia sair da cama, nem lavar a cara; disse que, às vezes, ele rebentava de tal maneira que ela tinha de o vigiar dia e noite, não por recear que ele lhe fizesse mal a si ou aos seus filhos, mas com medo de que se magoasse a si próprio; ela escondia as lâminas, porque esse tipo de cortes não sarava facilmente; tentava não pensar muito nisso e os Nalbantoğlus também não indagaram mais, com receio de não terem estofo para lidar com o assunto.

— Ouça, eu tenho muita pena, teria vindo mais cedo se pudesse — disse Peri. Não fazia tenções de discutir com a mãe. — Conte-me lá como correu.

— Oh, foi o mesmo de sempre, nada de especial — respondeu Selma. — Mas, em troca, eles esperam que nós os cubramos de diamantes.

Como um meticuloso contabilista, Selma fizera um registo da quantia que os Nalbantoğlus tinham despendido em comparação com a outra família; de quantas pessoas o noivo ia convidar em comparação com a lista de convidados da noiva; e por aí fora. Era como se, no meio das suas vidas, tivesse surgido uma balança de merceeiro: qualquer que fosse o peso que uma família colocasse num dos pratos tinha de ser contrabalançado pelo outro lado. Se se tratava de uma espécie de luta, era travada com o máximo de decoro. Peri ficou estupefacta ao ver a maneira como a mãe fazia críticas e queixas e, daí a nada, conversava alegremente com a mãe da noiva ao telefone, brincando e rindo como uma menina.

Apesar dos gastos, a noiva tinha qualidades que agradavam sobejamente a Selma: o facto de a família ser bastante religiosa, por exemplo.

— Para sermos justos, levaram um hodja genial à noite da hena — disse Selma. — Uma voz de rouxinol! Toda a gente chorou. A família da noiva é mais pia do que a nossa linhagem de sete gerações. São descendentes de hajis e xeques. — Proferiu estas últimas palavras com ênfase, certificando-se de que chegavam aos ouvidos pouco esclarecidos do marido.

— Que maravilha! — retorquiu Mensur, do seu canto. — Se têm muita gente pia na família, também têm muitos hereges. Explica lá à tua mãe, Peri, este conceito básico da dialética. A negação da negação. Toda a doutrina cria a sua oposição. Onde há muitos santos, há de certeza igual número de pecadores!

Selma franziu o sobrolho.

— Peri, diz-lhe que isso é um chorrilho de disparates.

— Mãe, pai, chega… — atalhou Peri. — Temos a sorte de o meu irmão ter encontrado uma mulher que o faz feliz. É só isso que importa.

Já estivera com a noiva duas ou três vezes. Uma rapariga de covinhas nas bochechas, com uns olhos de avelã que se arregalavam à menor surpresa e um gosto por pulseiras douradas; parecia bastante tímida. Usava um lenço na cabeça, atando-o num estilo que Peri ficou a saber que se chamava «à moda do Dubai». À moda de Istambul adequava-se a rostos redondos, à moda do Dubai a rostos ovais e à moda do Golfo a rostos quadrados. Foi com espanto que Peri descobriu toda uma linha de moda islâmica que ou estava a emergir, ou lhe passara despercebida até aí. A par com o «hijab de alta-costura», o «burquíni» e as «calças halal», aquela era uma tendência da moda. E um negócio enorme.

Ao contrário de muitos secularistas que ela conhecia, incluindo o seu pai, Peri não era terminantemente contra o facto de as mulheres se cobrirem, daí a sua amizade com Mona. Preferia ter em conta não o que as pessoas usavam em cima da cabeça e, sim, o que tinham dentro dela. E era aí que residia o seu dilema. Apesar de aceitar o visual da noiva, no seu âmago Peri menosprezava-a. Nunca o confessara aos pais e tinha quase tanta dificuldade em o admitir perante si própria: a rapariga não era culta; a última vez que pegara num livro provavelmente fora na escola. Não conseguiam manter uma conversa, a menos que envolvesse assuntos que não interessavam minimamente a Peri: séries de TV populares e dietas com baixo teor em hidratos de carbono. A bem da verdade, a noiva não era mais inculta do que o futuro marido, que Peri também depreciava em segredo. Não se lembrava de alguma vez ter tido uma conversa decente com Hakan.

Esse seu snobismo intelectual limitava-se à juventude. Os velhinhos iletrados, que nunca tinham tido acesso ao conhecimento, não a incomodavam nada, mas sentia um certo desprezo por qualquer pessoa da sua idade que falasse como se os livros fossem objetos decorativos que só servissem para condizer com os móveis.

«Se algum dia me apaixonar», prometeu a si própria, «será pelo cérebro de uma pessoa. Não me importarei com a sua aparência, estatuto ou idade, só com o intelecto».

O espaço alugado para o casamento foi o Salão Nobre de um hotel de cinco estrelas, com uma vista magnífica sobre o Bósforo. Caminhos de mesa em cetim, cascatas de flores de seda, cadeiras adornadas com faixas e laços dourados, um bolo de oito camadas com arcos e folhas de açúcar feitas à mão e, como centro de mesa, uma árvore de cristal que mudava de cor. Peri tinha noção de que a festa devorara uma grande porção das poupanças dos pais. Os seus gastos em Oxford já tinham sobrecarregado o orçamento familiar. Ao ver aquela extravagância à sua volta, decidiu arranjar um emprego a tempo parcial, assim que voltasse para Inglaterra.

Os convidados começaram a chegar. Familiares, vizinhos e amigos de ambos os lados sentaram-se às mesas enfeitadas, alinhadas no vasto espaço do salão de baile. Entretanto, os recém-casados pareciam nervosos, ele acenando para toda a gente, ela de olhos baixos; ele demasiado ruidoso, ela excessivamente calada. A noiva levava um vestido de renda e tafetá marfim, de manga comprida, bordado a prata e enfeitado com vidrinhos a imitar diamantes: um vestido definido como «elegante e hijabi chique» no catálogo da loja. Era bonito, mas um pouco grosso e, sob os focos, já ela transpirava. O noivo, ataviado com um smoking preto, parecia mais à vontade e despiu o casaco quando ficou com calor. Um a um, os convidados aproximaram-se para os felicitar e alfinetar as suas prendas: moedas de ouro e dinheiro vivo e frio (liras e dólares). O vestido da noiva foi adornado com tantas notas e moedas presas com fitas que, quando ela se levantou para posar para a fotografia, parecia uma escultura contemporânea, em delicado equilíbrio entre o estilo avant-garde e o lunático.

Em pano de fundo, uma banda amadora de rock tocava uma série de músicas, desde canções populares anatolianas aos êxitos dos Beatles e, de vez em quando, metia uma melodia sua, por mais desarmoniosa que fosse. Apesar dos protestos da família da noiva, havia bebidas alcoólicas a um canto da sala. Mensur batera o pé e ameaçara faltar ao dia mais feliz da vida do filho, se banissem o raki, o seu companheiro de sempre. A maior parte dos convidados optou por refrigerantes, mas bastantes pareciam ter descoberto o bar ímpio. Entre os pioneiros naquele território proibido encontrava-se, surpreendentemente, o tio da noiva. Dada a rapidez com que tragava as bebidas, não demorou a ficar embriagado, um pormenor que Mensur observou com deleite.

Peri, fazendo o papel de anfitriã — de vestido azul-água até aos joelhos e o cabelo penteado num totó tão grande que lhe mudou o centro de gravidade da cabeça —, teve de falar com muitos convidados e sorrir com frequência. Enquanto arrulhava para as crianças, beijava as mãos dos idosos, ouvia a tagarelice dos seus pares, reparou num rapaz que a fitava intensamente, muito atento. Não era o tipo de olhar masculino que exprimia atração e se detinha nessa linha fina; era um olhar que ia mais longe, insistia, exigia. Parecia não compreender que era um passinho liliputiano que separava a determinação da agressividade. Quando os seus olhares se fixaram, Peri fez uma carranca, na esperança de deixar bem claro que não estava interessada. Ele retribuiu com um sorriso malicioso, deixando o sinal dela suspenso no meio do ar, recusando-se a recebê-lo.

Meia hora depois, quando ela se dirigia para a casa de banho das senhoras, o rapaz barrou-lhe o caminho. Pondo a mão na parede para ela não poder passar, disse:

— Pareces uma fada. Pelos vistos, os teus pais deram-te o nome certo.

— Desculpa, mas não tens nada de mais interessante para fazer?

— Não tenho culpa se és tão bonita — respondeu ele, lançando-lhe um olhar lascivo.

Peri sentiu o sangue a fervilhar, as palavras saindo-lhe da boca em catadupa.

— Deixa-me em paz! Ninguém te deu o direito de me incomodar.

Espantado, ele pestanejou. Com um esforço exagerado, baixou o braço. O rosto, que até há uns segundos exibira um sorriso confiante, expressava agora uma hostilidade inequívoca.

— Disseram que eras uma snobe. Eu devia ter dado ouvidos. Só porque andas em Oxford, achas que és melhor do que nós!

— Isto — disse ela, com firmeza — não tem nada a ver com Oxford.

— Cabra arrogante — disse ele, entre dentes, suficientemente alto para ela ouvir.

O rosto de Peri ficou branco enquanto o via afastar-se, hirto. Como era fácil passar do amor ao ódio. No reino do Oriente, o coração masculino, como a esfera na ponta de um pêndulo, oscilava de um extremo ao outro. Balouçando da adoração exacerbada para o desprezo exacerbado, suspensos por cima dos destroços emocionais do que, ainda na véspera, tinha sido rotulado de paixão, os homens amavam demasiado, enfureciam-se demasiado, odiavam demasiado, tudo era sempre demasiado.

Quando voltou para o salão, Peri deparou com os noivos empenhados na dança de que toda a gente estivera à espera. Dezenas de olhos pressionavam-nos de todos os lados. Com as costas direitas como se tivessem engolido um espeto e as mãos rígidas, mantiveram a pose sem se tocarem e oscilaram em uníssono, dois sonâmbulos presos no mesmo sonho.

Peri sentiu-se triste. O abismo entre a pessoa que ela era por dentro e a que esperavam que fosse por fora afigurou-se-lhe maior do que nunca. Apercebeu-se da distância, intransponível, entre o meio de onde vinha e aquele para onde desejava encaminhar-se. Não seria uma noiva como aquela. Não viveria a vida da sua mãe. Não seria inibida, limitada e reduzida a algo que não era.

Um pensamento atravessou-lhe a mente à velocidade da luz: «Nunca me hei de casar com um homem desta parte do mundo.» A ideia ia contra tudo o que lhe tinham ensinado, era tão deliciosamente errada, tão indescritivelmente blasfema, que ela teve de baixar o rosto para que ninguém lhe adivinhasse a expressão dos olhos. Escolheria um marido de uma cultura o mais distante e diferente da sua quanto fosse possível. Um esquimó, por exemplo. Alguém chamado Aqbalibaaqtuq.

O seu rosto abriu-se num sorriso, ao imaginar o pai a convidar o genro Inuit para beber uns copos a acompanhar os seus novos pratos: sopa de cabeças de peixe, carne de baleia crua e barbatanas de foca fermentadas. Entretanto, a sua mãe insistiria para que ele se convertesse ao Islão, com circuncisão e tudo. Aqbalibaaqtuq tornar-se-ia Abdullah. Depois, o seu irmão Hakan far-lhe-ia um curso intensivo de masculinidade turca. Aqbalibaaqtuq preencheria muitas horas de lazer no café a jogar cartas e a fumar o narguilé. Rapidamente, se passasse tempo suficiente em más companhias, seria iniciado nos comportamentos do arquétipo masculino nacional, exigindo os privilégios devidos ao seu sexo. O seu amor ártico depressa derreteria no calor dos costumes patriarcais.

Depois da meia-noite, a festa chegou ao fim. Um a um, os últimos convidados despediram-se e os membros da banda arrumaram o material e foram-se embora, deixando apenas os familiares mais chegados no salão. No dia seguinte de manhã, os recém-casados partiriam para uma semana de lua de mel. O destino era uma estância balnear de luxo na costa mediterrânica da Turquia, que se tornara famosa e gerara alguma controvérsia, devido à criação de restaurantes halal, piscinas halal e discotecas halal, todos com zonas específicas para cada sexo. Até tinham dividido a praia, e o mar, em secção feminina e secção masculina.

Mas, nessa noite, por insistência de Selma e por uma questão de conveniência, os recém-casados passariam a noite em casa dos Nalbantoğlus, perto do aeroporto. Os pais da noiva, que viviam na outra ponta da cidade, também foram convidados. Assim, encaixaram-se todos com dificuldade na carrinha, com sacos e cestos, e um buquê de seda que, ao fim de tantas horas, tinha as pétalas amarrotadas e esfiapadas.

Estava invulgarmente frio para aquela época do ano, o vento fustigava as janelas, irado, como um espírito injustiçado.

Enquanto a carrinha acelerava por entre as ruas lambidas pela chuva, Peri viu a mãe da noiva tirar uma faixa vermelho-vivo — «o Cinto de Castidade» — da carteira e atá-la à cintura da filha. A faixa desconcertou-a, embora soubesse que, em muitas partes do país, era uma prática comum. Sem pensar mais no assunto, tentou conversar com Hakan, sentado ao seu lado. O irmão parecia cansado e distraído, e ela reparou que ele tinha uma fina película de suor na testa; pouco depois, também Peri sucumbiu ao silêncio.