O hospital

Istambul, 2000

Ao chegarem a casa, os recém-casados foram instalados no quarto principal e os pais da noiva no de Peri. Selma e Mensur não tiveram alternativa, a não ser ficar no quarto do filho e partilhar cama. Quanto a Peri, teria de se contentar com o sofá da sala.

Assim que pousou a cabeça na almofada, Peri sentiu-se inundada por uma onda de exaustão. Entre a vigília e o sono, ouviu um murmúrio distante, palavras a pairarem momentos antes de a última luz se apagar. Alguém rezava. Tentou adivinhar quem seria, mas a voz parecia destituída de idade e sexo. Talvez já estivesse a sonhar. Embalada pelo tiquetaquear do relógio do corredor, demasiado sonolenta até para lavar os dentes, com o peito a subir e a descer a cada respiração, adormeceu.

A meio da noite, passado uma hora ou mais, Peri acordou, sobressaltada. Pensou ter ouvido um barulho, mas não tinha a certeza. Apoiou-se num cotovelo, hirta e muito quieta. Enquanto aguçava os ouvidos, expectante, perguntou-se se estaria ela a escutar a escuridão ou a escuridão a escutá-la a si. Sustendo a respiração, contou os batimentos cardíacos: três, quatro, cinco… ouviu o som outra vez. Alguém a chorar. Por entre soluços, ouvia-se um restolhar firme e insistente, como vento num arvoredo antes de uma tempestade. Uma porta abriu-se e fechou-se com estrondo, por acidente ou às mãos de alguém furioso.

Embora sentisse no seu âmago que se passava alguma coisa de errado, Peri deitou-se para trás, esperando que o que quer que fosse se resolvesse por si só. Mas os sons multiplicaram-se. Os sussurros transformaram-se em gritos, ecoaram passos no corredor e, ao fundo, já não um soluço mas um gemido, o uivo de uma alma em sofrimento.

— O que é que se passa? — disse Peri em voz alta, levantando-se e ouvindo a sua voz avançar à sua frente até às entranhas da casa.

Chegou ao quarto onde os seus pais deveriam estar a dormir. A mãe encontrava-se de pé, com o rosto pálido. O pai andava de um lado para o outro, de mãos entrelaçadas, o cabelo desgrenhado. Ao lado deles estava o seu irmão Hakan, com um cigarro a queimar entre os dedos; puxou uma fumaça com um gesto de desespero exagerado. Olhando para eles, Peri teve a estranha sensação de que não conhecia nenhuma daquelas pessoas; eram desconhecidos a fazerem-se passar pelos seus entes queridos.

— Porque é que estão todos acordados? — perguntou Peri.

O irmão fulminou-a com os olhos semicerrados como o gume de uma lâmina.

— Vai para o teu quarto!

— Mas…

— Vai!

Peri deu um passo atrás. Nunca tinha visto Hakan assim; embora ele sempre tivesse sido dado a ataques de mau feitio e palavrões, dessa vez a sua raiva era tão intensa e descontrolada que parecia uma criatura selvagem dentro do quarto.

Em vez de voltar para a sala, Peri virou para o quarto principal, onde encontrou a porta entreaberta e a noiva empoleirada na beira da cama, de camisa de noite, com o cabelo escuro caindo-lhe em cascata sobre os ombros. Os pais estavam sentados, um de cada lado, com os lábios cerrados numa linha fina.

— Eu juro que não é verdade — disse a noiva.

— Então, porque é que ele diz uma coisa destas? — perguntou a mãe, numa voz áspera.

— Acredita nele ou na sua própria filha?

A mãe ficou calada por um instante.

— Acreditarei no que o médico disser.

Lentamente, como que em transe, Peri compreendeu a razão que estava por detrás dos sons que ouvira antes: o irmão saíra intempestivamente do quarto, convencido de que a sua mulher não era virgem.

— Que médico? — perguntou a noiva; os seus olhos, vermelhos e assustados, olharam fixamente para a cidade através da janela. O céu, negro-carvão, com a Lua escondida atrás de uma nuvem, tingia de roxo o horizonte, reduto da alvorada.

— É a única maneira de resolvermos esta questão — anunciou a mulher, levantando-se, agarrando na filha pela mão e puxando-a para fora da cama.

— Mãe, por favor, não — sussurrou a filha, numa voz mais pequenina do que uma pérola.

Mas a mulher não a ouvia.

— Vai buscar os nossos casacos — disse ela ao marido, que fez que sim, por hábito ou quiçá por concordar.

Com o sangue afluindo-lhe ao rosto, Peri voltou a correr para junto dos pais.

Baba, eles vão para o hospital! Não os deixes ir!

Mensur, de pijama de algodão, tinha o ar infeliz de uma pessoa que fora atirada para uma peça de teatro sem saber as suas deixas. Olhou para a filha e, em seguida, para a noiva e para a mãe, que passaram diante deles, a caminho da porta. Era a mesma impotência que demonstrara havia anos, na noite em que a polícia lhes entrara pela casa dentro.

— Vamo-nos acalmar, todos — disse Mensur. — É escusado envolver desconhecidos nesta história. Agora, somos da mesma família.

A mãe da noiva menosprezou as palavras com um aceno de mão.

— Se a minha filha tiver falhado, eu própria a castigarei. Mas se o seu filho estiver a mentir, que Alá seja minha testemunha, hei de fazê-lo arrepender-se disso!

— Por favor — disse Mensur —, não devemos agir com raiva…

— Eles que façam o que quiserem — ripostou Hakan, com o fumo do cigarro a sair-lhe em espiral das narinas. — Também quero saber a verdade. Tenho o direito de saber com que tipo de mulher me casei.

Peri fitou o irmão, boquiaberta.

— Como é que és capaz de dizer uma coisa dessas?

— Cala-te! — retorquiu Hakan, numa voz tão inexpressiva que nem sequer condizia com a dureza da mensagem. — Já te disse para não te meteres no assunto.

Passado menos de meia hora, estavam, todos eles, sentados num banco no hospital mais próximo. Todos, menos a noiva.

Dessa noite, que Peri relembraria muitas vezes durante anos, foram vários os pormenores que lhe ficaram na memória: as brechas no teto que pareciam o mapa de um continente perdido; os sapatos da enfermeira a baterem no chão de betão; o odor a desinfetante misturado com os cheiros a sangue e infeção; a tinta verde-musgo que pintalgava as paredes; o letreiro URGÊNC AS com a letra em falta; e o pensamento inquietante, massacrando-lhe o cérebro, de que por mais surreal que lhe parecesse tudo o que estava a acontecer, ela própria poderia facilmente ter sido sujeita àquele exame, se os seus pais a tivessem casado com um homem de uma família que se preocupasse com aquelas coisas. Sim, Peri teve noção disso com um peso no coração.

Já tinha ouvido falar em crises na noite de núpcias, mas sempre pensara que só aconteciam a outras pessoas, a camponeses em aldeias perdidas, provincianos que não tinham capacidade para mais. A sua família nunca se veria metida numa história de teste de virgindade num hospital decrépito. Desde criança, sempre fora tratada em pé de igualdade com os seus irmãos, se é que não fora privilegiada. Era acarinhada, mimada e amada pelos pais. Ainda assim, tendo crescido num bairro pequeno, onde havia olhos por trás de todas as cortinas de renda, vendo e julgando, estava ciente das fronteiras que não podia transpor, do que não devia vestir, de como se sentar em público, de quando voltar para casa depois de ter saído à noite… isto é, a maior parte das vezes. No último ano do liceu, o redemoinho de revolta e desafio que arrastara a maioria dos seus colegas na correnteza e os levara para longe deixara-a inicialmente intacta, ancorada no alto do seu pedestal moral. Enquanto os colegas quebravam tabus e os corações uns dos outros com igual fervor, Peri levara uma vidinha pacata. Mas, depois, apaixonara-se e o amor, embora tão breve quanto arrojado, destruíra-lhe as fronteiras bem preservadas. Sem os seus pais saberem, ela tivera relações sexuais com o seu namorado de esquerda. Compreendia agora a fragilidade da sua posição de «filha adorada». Sentia-se hipócrita. Ali estava ela, à espera do resultado do teste de virgindade de outra jovem, quando ela própria já não era virgem.

— Porque é que está a demorar tanto? Terá havido algum problema? — perguntou o pai da noiva, pondo-se de pé de um salto e voltando a sentar-se logo a seguir.

— É claro que não! — repreendeu a mulher dele. Estava tão alvoroçada que a enfermeira de serviço se aproximara duas vezes para a mandar falar mais baixo.

Passou uma hora, ou o que pareceu ser uma hora. Finalmente, surgiu a médica, de cabelo apanhado e os olhos cinzentos a faiscarem por trás dos óculos. Esquadrinhou-os sem disfarçar o seu desprezo. Era evidente que detestava o que acabara de fazer e os detestava ainda mais por lhe terem pedido tal coisa.

— Já que querem tanto saber, a rapariga é virgem — anunciou a médica. — Algumas raparigas nascem sem hímen e alguns hímenes podem rasgar-se durante o sexo ou uma mera atividade física, sem nunca sangrarem.

Parecia estar a fazer de propósito, a usar factos médicos para os humilhar, um ato de vingança pela vergonha a que tinham sujeitado a noiva.

— Destruíram a sanidade mental desta jovem. Aconselho-vos a levarem-na a um psicólogo. Isto é, se gostam dela. E agora quero que saiam todos daqui. Temos doentes com problemas a sério. Pessoas como vocês só nos fazem perder tempo.

Sem dizer mais nada, a médica virou costas e foi-se embora. Durante um minuto inteiro, ninguém falou. Foi a mãe da noiva quem quebrou o silêncio.

— Alá é grande — gritou. — Tentaram conspurcar a minha filha, mas Deus, o meu Deus, deu-lhes um estalo na cara e disse: «Como é que se atrevem a macular uma virgem? Como é que se atrevem a manchar um botão de rosa?»

Na periferia do seu campo de visão, Peri viu o pai baixar a cabeça, de olhos fixos no chão de betão como se quisesse que este o engolisse.

— O vosso filho é que não conseguiu dar conta do recado, ouviram? Se não é homem que baste, como é que podem culpar a minha filha? Em vez disto, deviam ter levado o vosso filho sabem muito bem onde!

— Acalma-te, mulher — murmurou o marido, com ar constrangido e sem saber se aquela seria a melhor abordagem.

A intervenção dele só serviu para inflamar ainda mais a mulher.

— Porque é que eu me haveria de acalmar? Porque é que eu haveria de os poupar à vergonha?

Uma porta ao fundo do corredor abriu-se e apareceu a noiva. Avançou para eles, num passo contido e sem pressa. Num abrir e fechar de olhos, a mãe precipitou-se para ela, batendo nas coxas com os punhos como uma carpideira.

— Meu botão de rosa, o que é que eles te fizeram? Que se afundem na lama para onde nos tentaram arrastar!

Ignorando a mãe, a noiva encaminhou-se a passos largos para a saída. Ao passar pelos Nalbantoğlus, e pelo marido, que dava tanto à perna que o banco até vibrava, manteve o queixo erguido, recusando-se a olhar para qualquer um deles. Peri reparou nas mãos dela, arranjadas e pintadas com hena, e nas palmas, com manchas vermelhas em forma de meia-lua. Foi esse o pormenor que a afetou mais do que tudo o resto que viu naquela triste noite. As marcas deixadas na pele, quando uma rapariga finca as unhas nas mãos durante um teste de virgindade.

— Feride… espera…

Foi a primeira vez que Peri pronunciou o nome dela. Até aí, fora sempre «ela» ou «tu» ou simplesmente «a noiva».

Embora abrandasse, Feride não parou nem se virou. Caminhando sempre em frente, transpondo as portas automáticas, desapareceu com os pais a reboque.

Peri sentiu uma raiva a fervilhar dentro de si, para com o irmão, cujo egoísmo e insegurança tinham causado aquela infelicidade; para com os pais, por não terem feito um esforço maior para evitar aquele insulto; para com as tradições velhíssimas que determinavam que o valor de um ser humano do sexo feminino se encontrava entre as suas pernas; mas, acima de tudo, para consigo própria. Podia ter feito alguma coisa para ajudar Feride e, no entanto, não o fizera. Era sempre assim. Em momentos de stresse, quando precisava de agir e mostrar determinação, caía na letargia, como se uma mão invisível a empurrasse para baixo, de onde via o mundo à sua volta esbater-se e reduzir-se a um borrão, e os seus sentimentos tornarem-se difusos, como luzes que alguém esmorece, uma a uma.

No caminho de regresso a casa, na carrinha que tinham alugado para o casamento, os Nalbantoğlus estavam sozinhos. Enquanto Hakan conduzia e Mensur ia no banco de trás, a olhar fixamente pela janela, Peri sentou-se ao lado da mãe.

— O que é que vai acontecer agora? — perguntou.

— Nada, inshallah — respondeu Selma. — Vamos comprar chocolates, sedas, joias… e pedir desculpa. Faremos tudo o que pudermos para os compensar, embora tenha sido deles e não nossa a ideia de ir ao hospital.

Peri pensou um instante.

— Como é que um casamento pode sobreviver a um começo tão mau?

A mãe sorriu de esguelha, com a luz do candeeiro de rua a dividir-lhe o rosto em dois: meio chamas, meio sombras.

— Vai por mim, Pericim, já muitos casamentos sobreviveram a coisas piores do que isto. Vai correr tudo bem, inshallah.

Peri ficou especada a olhar para ela, vendo a sua mãe, porventura pela primeira vez, com olhos de ver. Passou-lhe pela cabeça que talvez o casamento dos seus pais afinal não fosse só o que parecia ser e que talvez o seu querido pai nem sempre fosse o cavalheiro que ela imaginava.

Os seus pensamentos esvoaçaram para a fotografia de casamento dos pais que eles tinham guardado no armário, emoldurada, mas sem estar à vista. Mensur e Selma, ambos jovens e magros, estavam de pé, hirtos e sisudos, como se tivessem acabado de tomar consciência da gravidade do que tinham feito. Atrás deles, via-se um fundo absurdo de orquídeas selvagens e gansos voadores. Na cabeça, que na época ainda não andava coberta, Selma levava uma coroa de margaridas entrançadas, a sua beleza de plástico tão artificial como a felicidade deles.

Peri pegou na mão da mãe, mais por instinto do que propriamente com intenção, e apertou-a ao de leve. Ocorreu-lhe que a sua mãe, que ela sempre considerara frágil e chorosa, talvez tivesse uma resiliência interior própria. Selma lidava com crises emocionais da mesma maneira que com as suas tarefas domésticas. Diligentemente, apanhava os cacos, do mesmo modo que arrumava as bugigangas espalhadas pela casa.

Como se tivesse pressentido os pensamentos da filha, Selma disse:

— Tenho fé, isso ajuda. Deve haver uma razão para termos passado por isto. Ainda não sei qual é, mas Alá sabe.

Peri percebeu, pelo rubor das faces e o brilho dos olhos, que a mãe estava a ser sincera. A fé, fosse qual fosse o significado que Selma lhe desse, imbuía-a de um sentido de entrega que poderia ter sido um motivo de fraqueza e, no entanto, a tornava mais forte. Seria a religião uma força que dava poder a mulheres que, de outro modo, tinham um acesso muito reduzido a esse mesmo poder, numa sociedade concebida por e para os homens, ou seria só mais uma ferramenta para os ajudar a subjugá-las?

No dia seguinte, Peri voltou para Inglaterra, com a mente a arder de perguntas… e incapaz de dizer se seria melhor procurar as respostas ou deixá-las estar, sem lhes mexer.