O Otimizador
Istambul, Oxford, 2001
O primeiro período acabou num abrir e fechar de olhos. Peri, de regresso a Istambul para passar as férias do Natal, convenceu-se de que a saúde do pai não tinha piorado e que a preocupação da mãe com a higiene não se transformara numa obsessão. A casa inteira cheirava a lixívia e a água-de-colónia de limão. Havia peças de roupa dependuradas dos radiadores (lavadas com tanta frequência, que os estampados e as cores estavam tão desbotados que já quase não se viam), com pequeninas poças de água por baixo de cada uma, como lágrimas vertidas por coisas passadas.
Na noite do fim de ano, estavam sentados à frente da televisão, pai e filha, a mastigar castanhas assadas enquanto viam uma bailarina do ventre, a maneira tradicional de Mensur celebrar a chegada de um novo ano. Selma, como sempre, tinha-se recolhido cedo, não para dormir, mas para rezar. Na ausência de Umut e Hakan, só restavam eles os dois, pai e filha, tal como antigamente. Pouco falavam, como se entre eles o silêncio tivesse uma linguagem própria. Do que Peri mais tivera saudades fora dos rituais, dos rituais de pai e filha: dar longos passeios à beira-mar, cozinhar menemen, jogar gamão na mesa de cartas ao lado do cato da janela.
Uma semana depois, Peri regressou a Oxford. Como duas viagens consecutivas a Istambul lhe deram cabo do orçamento, estava decidida a arranjar um emprego a tempo parcial. E tinha algo mais em mente: saber mais coisas sobre o Professor Azur.
O segundo período começou com novas esperanças e decisões. Peri marcou uma reunião com o seu professor encarregado de a orientar academicamente. O Dr. Raymond, de óculos de aros metálicos e com um ar constantemente distraído, como se estivesse a tentar resolver mentalmente uma equação quadrática, era um homem de estatura baixa e queixada firme. Incentivava todos os alunos com quem trabalhava a encontrar «o horário perfeito para otimizarem os seus recursos intelectuais». Em troca, os estudantes arranjaram-lhe uma alcunha: Senhor Otimizador.
O Dr. Raymond e Peri conversaram longamente sobre as cadeiras que ela devia fazer no segundo ano, embora não houvesse muita flexibilidade; o programa estava mais ou menos definido e permitia apenas um ou outro ajuste.
— Há um seminário que eu estava a pensar fazer. Toda a gente diz que é excelente — anunciou Peri vivamente. — Bom, toda a gente, não, uma amiga minha.
— E que seminário é esse? — perguntou o Dr. Raymond, tirando os óculos.
Ao longo dos anos, vira, vezes sem conta, alunos a orientarem mal, sem querer, outros alunos. O que resultava para uma pessoa podia tornar outra muito infeliz. Além disso, os jovens tinham tendência para mudar de ideias com a mesma frequência com que mudavam o top das suas cinco canções preferidas. O curso que elogiavam com entusiasmo, no início do ano, era o mesmo do qual diziam cobras e lagartos, no fim. Nos seus vinte e três anos de carreira naquela universidade, chegara à conclusão de que era melhor não dar muitas opções aos alunos. A variedade de escolha e a confusão eram gémeas siamesas.
Sem fazer ideia dos pensamentos do professor, Peri prosseguiu:
— É um seminário sobre Deus. O professor chama-se Azur. Conhece-o?
A boca do Dr. Raymond, fixa num sorriso amistoso, revirou-se quase impercetivelmente para baixo nas comissuras. Só um ligeiríssimo crispar de uma sobrancelha traiu o seu constrangimento.
— Sim, já ouvi falar dele… quem é que não ouviu?
A mente de Peri tentou freneticamente desconstruir a entoação daquele comentário aparentemente simples. Já percebera, com o tempo, que os Ingleses exprimiam as suas opiniões de maneira indireta. Ao contrário dos Turcos, não comunicavam o ressentimento através do ressentimento, nem a raiva através da raiva redobrada. Não, havia camadas e camadas nas suas conversas; o desconforto mais profundo podia ser transmitido através de um sorriso reticente. Elogiavam quando, na realidade, tinham vontade de denunciar; envolviam as suas críticas em louvores crípticos. «Na Turquia, se eu tivesse um mau desempenho em palco», pensou Peri, «zurziam-me com azevinho espinhoso; em Inglaterra, imagino que o fariam com rosas, convictos de que eu perceberia a mensagem por causa dos espinhos. Os estilos são completamente diferentes».
Entretanto, o Dr. Raymond ficou calado, a ponderar a melhor maneira de abordar um assunto delicado. Quando falou de novo, proferiu cuidadosamente cada palavra, como um progenitor a explicar um facto desagradável da vida a uma criança amuada.
— Não estou muito convencido de que seja a melhor opção para si.
— Mas disse que eu podia escolher um tema que me interessasse, desde que fizesse parte da lista de cadeiras de opção e este seminário faz. Eu verifiquei.
— E se me explicasse porque é que quer fazer este seminário?
— O tema é… importante para mim, por razões familiares.
— Razões familiares?
— Deus foi sempre motivo de discussão em minha casa. Ou melhor, a religião. Os meus pais têm opiniões conflituosas. Gostava de estudar o assunto como deve ser.
O Dr. Raymond pigarreou.
— Temos a sorte de dispor de um dos maiores acervos de livros do mundo. Pode ler as obras todas que quiser acerca de Deus.
— Não acha que seria melhor fazê-lo com a orientação de um professor?
Eis uma pergunta a que o Dr. Raymond preferia não responder, e não o fez.
— O Professor Azur é um homem muito culto, sem dúvida, mas tenho de a avisar que o método de ensino dele é… como é que eu hei de dizer? Pouco ortodoxo. Não cai bem a toda a gente. Esse seminário divide os alunos: alguns gostam muito, outros ficam profundamente infelizes. E vêm ter comigo para se queixar.
Peri manteve-se imóvel na cadeira. Estranhamente, a falta de entusiasmo do seu orientador espicaçara-lhe a curiosidade; agora, estava mais desejosa do que nunca de fazer o seminário.
— Olhe que se trata de uma turma pequena. O Professor Azur aceita poucos alunos e espera que eles assistam às aulas todas as semanas e que façam todas as leituras e exercícios escritos. É muito trabalho.
— Nunca me incomodou ter de trabalhar muito — declarou Peri.
O Dr. Raymond soltou um suspiro ruidoso.
— Bom, nesse caso, esteja à vontade e vá falar com o Professor Azur, peça-lhe para lhe mostrar o programa. — Não pôde deixar de acrescentar: — Se é que existe um programa.
— O que é que quer dizer com isso, professor?
O Dr. Raymond ficou calado e o desassossego perpassou-lhe as feições habitualmente alegres. Depois, fez uma coisa que nunca tinha feito nos seus longos anos de carreira em Oxford: dizer mal de um colega pelas costas, a um aluno.
— Ouça, o Azur é considerado um bocadinho excêntrico, por estas bandas. Está convencido de que é um génio e os génios acham que não se regem pelas regras dos comuns dos mortais.
— Ah! — exclamou Peri. — Mas é verdade?
— O quê?
— É um génio?
O Dr. Raymond percebeu que o seu cinismo tinha sido um tiro pela culatra e o que quer que dissesse a seguir poderia deixá-lo ainda mais encurralado. A sua expressão séria transformou-se numa de ligeireza.
— Estava a brincar.
— Era uma piada? Ah…
— Não se precipite, vá com calma — aconselhou o Dr. Raymond, voltando a pôr os óculos, indicando que a conversa chegara ao fim. — Veja como é que se sente e, se tiver dúvidas, volte cá e fale comigo, facilmente lhe arranjaremos outra opção. Mais adequada.
Peri pôs-se de pé de um salto, tendo ouvido só o que queria ouvir.
— Ótimo, muito obrigada, professor!
Quando Peri se foi embora, as comissuras dos lábios do professor descaíram, numa expressão introspetiva. Com os maxilares ainda mais cerrados, as narinas a adejar e os dedos entrelaçados debaixo do queixo, ficou sentado na sua cadeira durante uns minutos, sem se mexer. Por fim, encolheu os ombros, decidindo que fizera os possíveis. Se aquela tola queria dar um passo maior do que as pernas, a culpa era dela e de mais ninguém.